A Força da State Action: mais uma pitada de Boston Legal

A idéia de eficácia horizontal (direta) dos direitos fundamentais não é aceita por outros países com tanta naturalidade como ocorre aqui no Brasil. Aliás, a maioria dos países entende que os direitos fundamentais incidem nas relações privadas apenas indiretamente, ou seja, através da regulamentação da matéria por lei ordinária.

Lá nos EUA, por exemplo, eles são enfáticos ao entenderem que os direitos constitucionais servem apenas para proteger o indivíduo contra o arbítrio estatal e não contra particulares. As chamadas liberdades civis previstas na Constituição não podem servir para limitar a autonomia privada, salvo se houver lei regulamentando a matéria. A única hipótese em que os direitos constitucionais podem ser diretamente invocados contra um particular é quando o particular está agindo como se poder público fosse. Essa teoria é conhecida como “state action”.

Um caso que bem ilustra a teoria da “state action” foi divertidamente narrado no seriado Boston Legal (S2E2).

Foi assim: um cantor ingressou com uma ação judicial contra uma casa de show alegando violação à sua liberdade de expressão. A boate havia proibido o cantor de incluir em seu repertório uma música que criticava a guerra.

Nos debates finais, a advogada da boate argumentou que se tratava de uma empresa privada e, por isso, tinha a liberdade de contratar o espetáculo que quisesse.

Já o advogado do cantor justificou seu ponto de vista argumentando que as ameaças contra a liberdade de expressão não vêm mais do governo, mas das corporações privadas; não se deveria tolerar a censura motivada pelo fator econômico.

Na sua sentença final, a juíza sintetizou bem o espírito da teoria da “state action” que prevalece naquele país. Eis suas palavras:

“Acho que a idéia de censurar a música é ridícula. A idéia de que uma mensagem antiguerra é antipatriótica é completamente absurda. No entanto, por mais que eu quisesse julgar favoravelmente ao cantor, e por mais que as empresas privadas sejam potenciais violadoras dos direitos constitucionais, considero que o dono de uma boate ainda tem o direito de controlar o conteúdo de seus próprios espetáculos”.

Certamente, a mera aceitação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais não significaria necessariamente reconhecer o direito do cantor. Especulo que, se o caso ocorresse aqui no Brasil, provavelmente a maioria dos juízes julgaria em favor da boate. No entanto, o que é importante assinalar nesse caso é que a liberdade de expressão é, nos EUA, um direito preferencial. Eles colocam essa liberdade acima de tudo. E mesmo assim, não consideram que ela possua uma eficácia horizontal. Esse é o espírito da “state action”. Nas relações privadas, vale tudo, até mesmo violar os mais básicos valores protegidos pela Constituição.

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A propósito, a música censurada foi esta:

Boston Legal (S01E01) – Eficiácia Horizontal e Ditadura dos Direitos Fundamentais

Seguindo a dica do meu amigo de confraria Rubens, comecei a assistir ao seriado Boston Legal. Vi o episódio 1 da primeira temporada (S01E01).

Já percebi que vai ser mais um vício, assim como Lost, House, Weeds, Roma, Heroes, Prison Break, Big Bang Theory e por aí vai…

Pelo menos, posso dizer que há um interesse juscientífico por detrás de Boston Legal, já que ele enfrenta dilemas bastante curiosos para a teoria dos direitos fundamentais.

Neste primeiro episódio, o escritório de advocacia que domina o espetáculo aceitou defender um caso, no mínimo, inusitado.

Eis os fatos: uma menininha negra, que cantava extremamente bem, foi desclassificada no concurso nacional de canto. De acordo com a mãe da criança, ela era a melhor e foi preterida tão somente por causa da sua cor.

Os reais motivos da desclassificação não foram bem explorados no seriado, pois, na minha ótica, não foi bem isso que o diretor quis mostrar. Há um humor refinado ao longo da narrativa da estória, que deixa a entender que o objetivo principal daquele episódio foi muito mais criticar o exagero do discurso politicamente correto, que pode levar a tal da “ditadura dos direitos fundamentais”. Até mesmo questões aparentemente banais poderão ser levadas ao Judiciário se os valores jusfundamentais forem considerados ao pé da letra, o que certamente sufocará a sociedade e colocará o juiz como um árbitro onipresente em qualquer conflito social. É esse um dos únicos contrapontos à chamada horizontalização dos direitos fundamentais.

Imagine, por exemplo, se uma pessoa deixa de convidar um colega de trabalho para a sua festa de aniversário, justamente porque não gosta dele. Digamos que esse colega de trabalho pertença a alguma minoria. Certamente, o fato de ele pertencer a alguma minoria pode ter sido um dos motivos que levaram o aniversariante a não gostar dele e, portanto, foi um dos motivos pelos quais ele não foi convidado para a festa. E aí, é discriminação? Será que, sendo comprovada a discriminação, o Judiciário pode obrigar o aniversariante a convidar o colega discriminado? Não seria uma invasão muito pesada na sua autonomia privada?

Ainda a eficácia horizontal dos direitos fundamentais: respostas às perguntas

A palestra de ontem, sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, foi bastante interessante e gerou muita controvérsia e perguntas, o que é natural, pois o tema é, de fato, bem complexo e empolgante. Procurei dar uma visão um pouco mais descontraída e, talvez por isso, recebi muitas indagações sobre temas que, propositadamente, não aprofundei, tendo em vista os limites de uma palestra de uma hora. Por isso, vou tentar aqui responder algumas questões que recebi tanto por e-mail quanto por bilhete.

Comecei falando sobre o caso do lançamento de anão e descrevi a decisão prevalecente no sentido de que a dignidade do anão foi considerada como um valor mais importante do que a sua autonomia privada. Ou seja, o anão não seria livre para decidir ser tratado como mero objeto de diversão. Embora eu não tenha dito na palestra, digo aqui que concordo com a solução.

Se o senhor Wackhehein (o anão) não fosse anão, mas uma pessoa de estatura normal, ele poderia, na minha ótica, realizar aquele trabalho. Se ele quisesse ser lançado para deleite de bebuns, isso seria problema seu. No entanto, sendo anão, o problema não se restringe à dignidade dele, mas de toda uma categoria social já tão estigmatizada.

Isso não lhe retira, contudo, o direito à sobrevivência. Entendo que, a partir do instante em que o Estado impede o anão de trabalhar sem lhe dar outra opção, nasce para ele o direito subjetivo de exigir um benefício assistencial ou previdenciário, conforme o caso, até ele conseguir uma nova ocupação. O Estado não lhe pode negar o direito ao mínimo existencial.

Dentro dessa mesma discussão, alguém perguntou sobre a situação das prostitutas. Não deveria também ser proibida já que se trata de uma atividade degradante?

A pergunta lembra muito o caso do “peep-show”, onde a Corte Constitucional alemã entendeu que o “peep-show” violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido. Na argumentação, o TCF decidiu que “a simples exibição do corpo feminino não viola a dignidade humana; assim, pelo menos em relação à dignidade da pessoa humana, não existe qualquer objeção contra as performances de strip-tease de um modo geral”. Já os Peep-shows – argumentaram os velhinhos do Tribunal – “são bastante diferentes das performances de strip-tease. No strip-tease, existe uma performance artística. Já em um peep-show a mulher é colocada em uma posição degradante. Ela é tratada como um objeto… para estímulo do interesse sexual dos expectadores”.

Explicou ainda o TCF que a violação da dignidade não seria afastada ou justificada pelo fato de a mulher que atua em um “peep-show” estar ali voluntariamente. Afinal, “a dignidade da pessoa humana é um objetivo e valor inalienável, cujo respeito não pode ficar ao arbítrio do indivíduo”.

De minha parte, não concordo com a decisão tomada pela Corte Constitucional alemã. De duas uma: ou se proíbe também o strip-tease ou se libera tudo. Não consigo enxergar, como fizeram os velhinhos do Tribunal alemão, diferença substancial entre o peep-show e o strip-tease. Se bem que não tive acesso à prova dos autos… :-)

Na minha ótica, se se tratar de mulher adulta, com plena capacidade de discernimento, que esteja realizando aquela atividade por livre e espontânea vontade, sem pressão psicológica, financeira ou física, não vejo como não respeitar a autonomia da vontade.

E o argumento que utilizei do caso do lançamento de anão não se aplica aqui, a não ser que se proíba também o strip-tease que, igualmente, coloca a mulher como mero objeto de prazer sexual. Não é pelo fato de uma ou outra mulher optar por trabalhar como dançarina de strip-tease ou de peep-show que os homens irão vincular todas as mulheres à atividade.

Aqui, há uma substancial diferença com o lançamento de anão: os anões já são estigmatizados como meros objetos de diversão, o que não pode ser tolerado pelo Estado. Quando se vê um anão caminhando na rua, o imaginário popular imediatamente o vincula a atividades de mera diversão, como o trabalho em circos ou em programas de humor. O mesmo não ocorre com as mulheres. Quando se vê uma mulher caminhando, não há uma necessária vinculação com a prostituição ou com atividades de cunho sexual. O estigma não é tão forte.

Portanto, se uma mulher (ou um homem) deseja realizar atividades como o do peep-show, não vejo como impedi-la(lo). É um trabalho como outro qualquer, a não ser que a pessoa esteja ali contra a sua vontade.

Outra questão que levantou polêmica foi a pergunta que fiz só para contextualizar a discussão. Ei-la: um pai pode deixar de contemplar um filho no seu testamento, na parte disponível, por ser ele homossexual? Deve prevalecer a vontade do pai, que é dono do seu patrimônio e faz dele o que bem quiser, ou a norma constitucional que proíbe a discriminação?

Não tenho resposta para essa pergunta. Mas ela levou a algumas indagações: o pai pode mesmo fazer o que quiser com o seu patrimônio? A propriedade não tem que observar uma função social? Não seria melhor o pai simplesmente não dizer os seus motivos?

Meus comentários: é lógico que a propriedade tem que cumprir a sua função social. Mas se o pai resolver queimar o seu dinheiro quem pode impedi-lo? Se ele resolver doar seu patrimônio para a Igreja ao invés de dar para o filho, também não estaria cumprindo uma função social? Ou seja, a exigência de função social não resolveria o problema em questão.

Segundo ponto: a questão da dissimulação dos motivos. Ora, o interessante da eficácia horizontal é justamente saber se a pessoa pode abrir o jogo, dentro da sua autonomia privada, e dizer com sinceridade qual a sua opinião. Se o pai não disser os motivos, é lógico que o testamento não é nulo. Afinal, a sua vontade deve prevalecer. Mas e se ele disser os motivos? É essa a magia da teoria da eficácia horizontal. Se você entender que os direitos fundamentais têm essa força tremenda de violar até a consciência do pai, então o testamento é nulo. Se você entender que, nesse caso, a autonomia da vontade é mais importante do que a não-discriminação, o testamento é válido. Não tenho resposta para esse dilema.

Mais uma coisa.

Afirmei na palestra algo que já havia dito aqui no blog: em caso de colisão de direitos, fatalmente um dos dois valores colidentes terá que ceder, caso não seja possível harmonizá-los. Isso causou estranheza em alguns alunos: então quer dizer que os direitos fundamentais, mesmo sendo princípios, funcionam na base do tudo ou nada?

Não é bem assim. Vou citar uma frase que talvez esclareça a questão: “é possível que, em casos concretos específicos, após a aplicação da proporcionalidade e de sua terceira sub-regra, a proporcionalidade em sentido estrito (sopesamento/ponderação), nada reste de um determinado direito. Por mais que isso soe estranho e possa passar uma certa sensação de desproteção, isso apenas reflete o que ocorre em vários casos envolvendo direitos fundamentais” (SILVA, Virgílio Afonso. O Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais e a Eficácia das Normas Constitucionais. In: Revista de Direito do Estado n. 4, Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 44).

Essa frase é do Virgílio Afonso da Silva, um dos principais defensores da teoria dos princípios de Alexy aqui no Brasil.

E para complementar, cito um trecho do meu Curso: “São nessas situações em que a harmonização se mostra inviável que surge a necessidade de sopesamento ou ponderação propriamente dita. O sopesamento/ponderação é, portanto, uma atividade intelectual que, diante de valores colidentes, escolherá qual deve prevalecer e qual deve ceder. E talvez seja justamente aí que reside o grande problema da ponderação: inevitavelmente, haverá um descumprimento parcial ou total de alguma norma constitucional. Quando duas normas constitucionais colidem, fatalmente o juiz decidirá qual a que ‘vale menos’ para ser sacrificada naquele caso concreto” (MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008).

Ora, se há um valor que deve ceder, é natural, portanto, que um princípio deixe de ser aplicado, num dado caso concreto, ainda que a sua validade normativa permaneça íntegra. Quando um princípio “cede”, não significa dizer que ele é inconstitucional, mas apenas que, naquela situação específica, existe outro valor mais importante que o neutraliza e justifica a sua não-aplicação.

E aí se pode perguntar: e como fica a idéia de proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais?

Mais uma vez, me auto-cito a mim mesmo:

“a proteção ao núcleo essencial é uma ferramenta argumentativa contra leis que restrinjam direitos fundamentais. Nenhuma lei pode, abstratamente, restringir um direito fundamental a tal ponto que seu conteúdo fique completamente esvaziado.

Isso não impede, contudo, que, em situações concretas, diante de circunstâncias específicas, o Judiciário, ao sopesar valores em conflito, possa afastar por completo um determinado direito fundamental, atingindo, obviamente, seu núcleo essencial. Essa situação nunca será a ideal, mas, em dadas situações, será inevitável, conforme já visto anteriormente.

Além disso, em situações bastante peculiares, até mesmo a lei poderá eventualmente atingir o núcleo essencial de direitos fundamentais. Há determinados direitos cuja limitação sempre implicará uma restrição total. É o caso, por exemplo, do direito à vida. Quando a Constituição prevê a pena de morte em caso de guerra está atingindo o próprio núcleo essencial do direito à vida. Quando o Código Penal brasileiro autoriza a realização do aborto em caso de gravidez que possa resultar em risco para a vida da gestante está autorizando uma restrição total do direito à vida do feto. Não há como limitar apenas parcialmente o direito à vida.

Por isso, pode-se dizer que o princípio da proteção ao núcleo essencial deve ser sempre associado ao princípio da proporcionalidade. Se uma lei que restringe um determinado direito fundamental é proporcional, então será válida, mesmo que, eventualmente, atinja o núcleo essencial de um dado direito” (MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008).

O post já ficou grande. Então finalizo com a mesma citação contida na parte final do slide:

“Somos o país do ‘elevador de serviço’ para pobres e pretos; do ‘sabe com quem está falando’; dos quartos de empregada sem ventilação, do tamanho de armários nos apartamentos da classe média, reprodução contemporânea do espírito da “casa grande e senzala’” (Daniel Sarmento)

“Somos também o país do analfabetismo, das mortes aguardando atendimento nos hospitais da rede pública, das humilhações no ambiente do trabalho (isso, quando não se está desempregado), dos moradores de rua, da violência insuportável, das fraudes na Previdência Social, do preconceito racial, dos pedintes nos semáforos, da agressão cotidiana ao meio-ambiente” (Adriano Costa).

Por tudo isso, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais representa a “última fronteira” da expansão normativa da Constituição (Bilbao Ubillos) e a única forma de construir uma sociedade mais justa, livre e solidária, tal como imaginado pelo constituinte.

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Eis o slide da palestra: Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

E sobre o mesmo assunto, recomendo a leitura de um dos melhores textos que tratam sobre a eficácia horizontal aqui no Brasil:

COSTA, Adriano. Direitos Fundamentais entre Particulares na Ordem Jurídica Brasileira. Fortaleza: UFC – Dissertação de Mestrado, 2007.

E aí, Drica? Tens algo a dizer sobre o assunto?

50 Anos do Caso Lüth: o caso mais importante da história do constitucionalismo alemão pós-guerra

Por George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional

Neste ano de 2008, mais precisamente em 15 de janeiro, o famoso Caso Lüth completou cinqüenta anos de existência. Quase todos os constitucionalistas “germanófilos” consideram que o Caso Lüth é o mais importante da história do constitucionalismo alemão no pós-guerra. E, de fato, a decisão da Corte Constitucional alemã revolucionou o direito, não apenas o constitucional.

Curiosamente, os fatos que deram origem à discussão jurídica foram aparentemente banais. Era uma briguinha de direito privado envolvendo um judeu e um alemão já depois da desnazificação.

O alemão Veit Harlan era um produtor de cinema. Ganhava a vida fazendo filmes. E dirigiu, nos anos 50, um romântico filme chamado “Amada Imortal”. Até aí nada de mais. Ninguém estava questionando o filme em si.

O problema todo era o histórico do cineasta. No auge do nazismo, Veit Harlan havia sido nada menos do que o principal responsável pelos filmes de divulgação das idéias nazistas, especialmente por força do filme Jud Süß (1941), considerado como uma das mais odiosas e negativas representações dos judeus no cinema. Coisa do passado, diria ele. Mas ainda assim, algo muito vivo na memória dos judeus alemães, até porque um filme não se apaga com a história…

Veit Harlan Filme Amada Imortal Filme Nazista
Nas imagens, respectivamente: (1) Veit Harlan, (2) a capa do filme “Amada Imortal” (1951) e (3) a capa do filme nazista “Jud Süß” (1941)

Pois bem. Antes do lançamento do filme “Amada Imortal”, vários judeus de prestígio e de influência na mídia alemã resolveram boicotá-lo, ainda que o filme não tivesse nada que lembrasse o nazismo ou o anti-semitismo.

À frente do boicote, estava Eric Lüth, um judeu que presidia o Clube de Imprensa. Ele escreveu um pesado manifesto contra o cineasta, conclamando os “alemães decentes” a não assistirem ao filme. A carta-boicote pode ser lida logo abaixo.

Não é preciso nem dizer que o filme foi um fracasso de público. Prejuízo total.

Em razão disso, Veit Harlan, juntamente com os empresários que estavam investindo no filme, ingressaram com ação judicial alegando que a atividade de Eric Lüth violava o Código Civil alemão. Sustentaram que todo aquele que causa prejuízo deve cessar o ato danoso e reparar os danos causados. A tese prevaleceu em todas as instâncias ordinárias.

Eric Lüth não se conformou. Ora, pensava ele, a Lei Fundamental alemã não garante a liberdade de expressão? Por que eu estou sendo punido, já que eu nada mais fiz do que manifestar uma opinião?

E, com base nisso, recorreu para a Corte Constitucional alemã.

Acho que isso tipo de processo é tão comum que a gente não percebe toda a complexidade que o cerca. Mas a Corte Constitucional alemã percebeu e, a partir dele, desenvolveu alguns conceitos que atualmente são as vigas-mestras da teoria dos direitos fundamentais, como por exemplo: (a) a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, (b) a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e (c) a necessidade de ponderação, em caso de colisão de direitos. Aqui no Brasil, esses fenômenos chegaram ainda que com outras roupagens. Fala-se em constitucionalização do direito privado, filtragem constitucional, interpretação conforme os direitos fundamentais etc.

De acordo com o jurista alemão Robert Alexy, na decisão do caso Lüth há três idéias que serviram para moldar fundamentalmente o Direito Constitucional Alemão:

“A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, ‘ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores’. Mais tarde a Corte fala simplesmente de ‘princípios que são expressos pelos direitos constitucionais’. Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípios dos direitos constitucionais aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à ‘todas as áreas do Direito’. É precisamente graças a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um “efeito irradiante” sobre todo o sistema jurídico. Os direitos constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: “Um ‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário”” (extaído do texto “Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade“).

Mas nem todo mundo concorda com a decisão do Caso Lüth. Há quem defenda que a decisão “avacalhou” o direito civil, pois trouxe incerteza num campo em que a lei era relativamente clara. E mais: colocou a proteção da liberdade de manifestação do pensamento num patamar exagerado, dando margem a abusos.

De minha parte, concordo com decisão, sobretudo em razão do seu fundamento. É uma forma de fazer com que o jurista “vista a camisa” dos direitos fundamentais, forçando os agentes públicos a levarem em conta os valores que emanam da Constituição na hora de tomar uma decisão. Só por isso, a decisão já mereceria ser elogiada.

E para que tudo isso fique ainda mais claro, vale citar a decisão na íntegra.

BVERFGE 7, 198

(LÜTH-URTEIL)

 

RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL CONTRA DECISÃO JUDICIAL

15/01/1958

 

MATÉRIA:

 

O cidadão alemão Erich Lüth, conclamou, no início da década de cinqüenta (à época crítico de cinema e diretor do Clube da Imprensa da Cidade Livre e Hanseática de Hamburgo), todos os distribuidores de filmes cinematográficos, bem como o público em geral, ao boicote do filme lançado à época por Veit Harlan, uma antiga celebridade do filme nazista e coresponsável pelo incitamento à violência praticada contra o povo judeu (principalmente por meio de seu filme “Jud Süß”, de 1941). Harlan e os parceiros comerciais do seu novo filme (produtora e distribuidora) ajuizaram uma ação cominatória contra Lüth, com base no § 826 BGB. O referido dispositivo da lei civil alemã obriga todo aquele que, por ação imoral, causar dano a outrem, a uma prestação negativa (deixar de fazer algo, no caso, a conclamação ao boicote), sob cominação de uma pena pecuniária. Esta ação foi julgada procedente pelo Tribunal Estadual de Hamburgo. Contra ela, ele interpôs um recurso de apelação junto ao Tribunal Superior de Hamburgo e, ao mesmo tempo, sua Reclamação Constitucional, alegando violação do seu direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento, garantida pelo Art. 5 I 1 GG.

 

O TCF julgou a Reclamação procedente e revogou a decisão do Tribunal Estadual. Trata-se, talvez, da decisão mais conhecida e citada da jurisprudência do TCF. Nela, foram lançadas as bases, não somente da dogmática do direito fundamental da liberdade de expressão e seus limites, como também de uma dogmática geral (Parte Geral) dos direitos fundamentais. Nela, por exemplo, os direitos fundamentais foram, pela primeira vez, claramente apresentados, ao mesmo tempo, como direitos públicos subjetivos de resistência, direcionados contra o Estado e como ordem ou ordenamento axiológico objetivo. Também foram lançadas as bases dogmáticas das figuras da Drittwirkung e Ausstrahlungswirkung (eficácia horizontal) dos direitos fundamentais, do efeito limitador dos direitos fundamentais em face de seus limites (Wechselwirkung), da exigência de ponderação no caso concreto e da questão processual do alcance da competência do TCF no julgamento de uma Reclamação Constitucional contra uma decisão judicial civil.

 

1. Os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos de resistência do cidadão contra o Estado. Não obstante, às normas de direito fundamental incorpora-se também um ordenamento axiológico objetivo, que vale para todas as áreas do direito como uma fundamental decisão constitucional.

 

2. No direito civil, o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais desenvolve-se de modo mediato, por intermédio das normas de direito privado. Ele interfere, sobretudo, nas prescrições de caráter cogente e é realizável pelo juiz, sobretudo pela via das cláusulas gerais.

 

3. O juiz de varas cíveis pode, por meio de sua decisão, violar direitos fundamentais (§ 90 BVerfGG), quando ignorar a influência dos direitos fundamentais sobre o direito civil. O Tribunal Constitucional Federal revisa decisões cíveis somente no que tange a tais violações de direitos fundamentais, mas não no que tange a erros jurídicos em geral.

 

4. As normas do direito civil também podem ser “leis gerais” na acepção do Art. 5 II GG e, destarte, limitar o direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento.

 

5. As “leis gerais” têm que ser interpretadas à luz do significado especial do direito fundamental à livre expressão do pensamento para o Estado livre e democrático.

 

6. O Direito fundamental do Art. 5 GG não protege somente a expressão de uma opinião enquanto tal, mas também o efeito intelectual a ser alcançado por sua expressão.

 

7. Uma expressão do pensamento que contenha uma convocação ao boicote não viola necessariamente os bons costumes na acepção do § 826 BGB; ela pode ser justificada constitucionalmente, em sede da ponderação de todos os fatores envolvidos no caso, por meio da liberdade de expressão do pensamento.

 

Decisão (Urteil) do Primeiro Senado de 15 de janeiro de 1958

 

— 1 BvR 400/51 —

 

Dispositivo da decisão:

 

A decisão (Urteil) do Tribunal Estadual de Hamburgo, datada de 22 de novembro de 1951 (…) viola o direito fundamental do reclamante decorrente do art 5 I GG, sendo, por isso, revogada. A matéria será devolvida ao Tribunal Estadual de Hamburgo [para nova decisão] .

 

RAZÕES:

 

A.

 

O reclamante, à época diretor do conselho e gerente do órgão da imprensa estatal da Cidade Livre e Portuária de Hamburgo, declarou, a 20 de setembro de 1950, por ocasião da abertura da “Semana do Filme Alemão”, como presidente do Clube da Imprensa de Hamburgo, perante produtores e distribuidores de filmes, o seguinte:

“Depois que a cinematografia alemã no terceiro Reich perdeu sua reputação moral, um certo homem é com certeza o menos apto de todos a recuperar esta reputação: Trata-se do roteirista e diretor do filme ‘Jud Süß’. Poupemo-nos de mais prejuízos incomensuráveis em face de todo o mundo, o que pode ocorrer, na medida em que se procura apresentar justamente ele como sendo o representante da cinematografia alemã. Sua absolvição em Hamburgo foi tão somente uma absolvição formal. A fundamentação daquela decisão (já) foi uma condenação moral. Neste momento, exigimos dos distribuidores e proprietários de salas de cinema uma conduta que não é tão barata assim, mas cujos custos deveriam ser assumidos: Caráter. E é um tal caráter que desejo para a cinematografia alemã. Se a cinematografia alemã o demonstrar, provando-o por meio de fantasia, arrojo óptico e por meio da competência na produção, então ela merece todo apoio e poderá alcançar aquilo que precisa para viver: Sucesso junto ao público alemão e internacional”. A firma Domnick-Film-Produktion GmbH, que naquele tempo estava produzindo o filme ‘Unsterbliche Geliebte’ (a amante imortal) segundo o roteiro e sob a direção do diretor de cinema Veit Harlan, exigiu do reclamante que ele desse uma explicação sobre que legitimidade (legal) teria ele ao realizar as declarações supra reproduzidas contra Harlan. O reclamante respondeu, com a Carta de 27 outubro de 1950, entregue à imprensa como “carta aberta”, entre outras coisas, o seguinte:

 

“O Tribunal do júri não negou o fato de que Veit Harlan foi, por um grande período, o “diretor nº 1 da cinematografia nazista” e que seu filme ‘Jüd Süß’ foi um dos expoentes mais importantes da agitação assassina dos nazistas contra os judeus. Pode ser que dentro da Alemanha e no exterior existam empresários que não fiquem repudiados com um retorno de Harlan. A reputação moral da Alemanha não pode, entretanto, ser novamente arruinada por pessoas inescrupulosas, ávidas por dinheiro. Com efeito, a volta de Harlan irá abrir feridas que ainda não puderam sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível desconfiança que se reverterá em prejuízo da reconstrução da Alemanha. Por causa de todos esses motivos, não corresponde somente ao direito do alemão honesto, mas até mesmo à sua obrigação, na luta contra este representante indigno do filme alemão, além do protesto, mostrar-se disposto também ao boicote.”

 

A Domnick-Film-Produktion GmbH e a Herzog-Film GmbH (esta como distribuidora nacional do filme ‘unsterbliche Geliebte’) ajuizaram, junto ao Tribunal Estadual de Hamburgo, uma ação cautelar com pedido de medida liminar contra o reclamante, liminar esta que lhe proibia:

 

1. pedir aos proprietários de salas de cinema e empresas de distribuição de filmes que não incluíssem em seus programas o filme “Unsterbliche Geliebte”, 2. Conclamar o público alemão a não assistir a este filme.

 

O Superior Tribunal Estadual de Hamburgo indeferiu a apelação do reclamante contra a decisão (Urteil) do Tribunal Estadual.

 

Consoante o pedido do reclamante foi fixado às sociedades cinematográficas um prazo para o ajuizamento da ação (principal). Ajuizada a ação, o Tribunal Estadual de Hamburgo prolatou, no dia 22 de novembro de 1951 a seguinte decisão (Urteil):

 

“Condena-se o acusado, sob pena pecuniária a ser fixada judicialmente ou pena de prisão, a deixar 1. de pedir aos proprietários de anfiteatros e empresas de distribuição de filmes que não incluam o filme “Unsterbliche Geliebte”, que fora produzido pela autora “1”, cuja distribuição nacional fora confiada contratualmente à autora “2” em seus programas, 2. de conclamar o público alemão a não assistir a este filme. (…)”.

 

O Tribunal Estadual enxerga nas expressões do reclamante uma convocação imoral ao boicote. Seu objetivo teria sido impedir a apresentação de Harlan como “criador de filmes representativos”. A convocação do reclamante acarretaria até mesmo “que na prática Harlan seria desligado da produção de filmes normais de ficção, pois qualquer filme deste tipo poderia, através do seu trabalho de direção, transformar-se num filme representativo”. Uma vez, entretanto, que Harlan por causa de sua participação no filme ‘Jud Süß’ fora absolvido, tendo essa absolvição transitada em julgado, e em função da decisão no processo de desnazificação (Entnazifizierung), segundo a qual ele não precisaria mais se submeter a nenhuma limitação no exercício de sua profissão, essa atitude do reclamante se chocaria com a “democrática concepção moral e jurídica do povo alemão”.

 

Não se teria acusado o reclamante porque ele teria expressado uma opinião negativa sobre a reapresentação de Harlan, mas porque ele convocou o público a, por meio de um certo comportamento, tornar impossível o retorno de Harlan [ao mercado] como diretor de cinema. Tal convocação ao boicote se teria voltado contra as autoras, sociedades civis do setor cinematográfico, pois se a produção do filme em pauta não tivesse retorno financeiro, elas estariam ameaçadas por um sensível prejuízo patrimonial. Os elementos objetivos do tipo de uma ação não permitida [delito civil] do § 826 BGB estariam, portanto, presentes no caso, existindo o direito [do autor] à fixação da obrigação do réu de abstenção [das expressões].

 

O reclamante apelou desta sentença junto ao Superior Tribunal Estadual de Hamburgo. Ao mesmo tempo, impetrou sua Reclamação Constitucional, na qual argúi violação de seu direito fundamental à livre expressão do pensamento (Art. 5 I 1 GG). [Segundo sua petição], ele teria feito crítica moral e política em face do comportamento de Harlan e das sociedades cinematográficas. Para tanto ele teria o direito, pois o Art. 5 GG não garantiria somente a liberdade do discurso sem a intenção de provocar um efeito, mas justamente a liberdade para a provocação do efeito através da palavra. Suas expressões teriam representado juízos de valor. O tribunal teria erroneamente julgado se a expressão seria correta no que tange ao seu conteúdo e se poderiam ser aceitas, ao passo que relevante seria tão somente julgar se ela seria juridicamente permitida. Isso elas seriam, pois o direito fundamental da liberdade de expressão do pensamento teria um caráter social e garantiria um direito público subjetivo à tomada de influência na formação da opinião pública por ação intelectual e à participação na “conformação do povo para com o Estado”. Este direito encontraria seus limites tão somente nas “leis gerais” (Art. 5 II GG). Quando por meio da expressão do pensamento se quisesse influenciar a vida pública e política, só poderiam ser consideradas como “leis gerais” aquelas que contivessem normas de direito público, não podendo destas participarem as normas do Código Civil sobre delitos (unerlaubte Handlungen). Ao contrário, aquilo que na esfera do direito civil não seria permitido, poderia ser justificado na esfera do direito público por meio do direito constitucional; os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos com dignidade constitucional, seriam para o direito civil “causas [normativas] superiores de justificação”. (…)

 

B. – I.

 

A Reclamação Constitucional é admitida (…).

 

II.

 

O reclamante afirma que o Tribunal Estadual feriu seu direito fundamental à livre expressão do pensamento fundado no Art. 5 I 1 GG por meio de sua decisão [condenatória].

 

1. A decisão do Tribunal Estadual, um ato do poder público na forma especial de ato do Poder Judiciário, só pode violar por seu conteúdo um direito fundamental do reclamante se este direito fundamental tivesse que ser observado no momento da formação da convicção judicial.

A decisão proibiu ao reclamante expressões por meio das quais ele pudesse induzir outros a se juntarem à sua concepção sobre a volta ao mercado de Harlan, condicionando suas condutas diante de filmes por ele feitos de acordo com essa concepção [ou seja: fazendo com que o público não fosse assistir ao novo filme de Harlan]. Isso significa objetivamente uma limitação na livre expressão de pensamento do reclamante. O Tribunal Estadual fundamenta a sua decisão com o fato de ter considerado as expressões do reclamante como uma ação não permitida [delito civil] segundo o § 826 BGB em face das autoras e reconhecendo a estas, por isso, e com fulcro nas normas do direito civil, o direito à proibição das expressões. Destarte, o direito decorrente da lei civil reconhecido pelo Tribunal Estadual levou, por meio de sua decisão, a uma determinação do poder público que limitou a liberdade de expressão do reclamante. A decisão só pode violar o direito fundamental do reclamante do Art. 5 I 1 GG, se as normas aplicadas do direito civil fossem, pela norma de direito fundamental, de tal sorte influenciadas e modificadas em seu conteúdo, que elas não pudessem mais justificar aquela decisão do Tribunal.

 

A questão fundamental, de se saber se normas de direito fundamental exercem um efeito sobre o direito civil e como esse efeito precisaria ser visto em cada caso, é controvertida (…). As posições mais extremas nesta discussão apresentam-se, de um lado, pela tese de que os direitos fundamentais seriam exclusivamente direcionados contra o Estado; por outro lado, apresenta-se a concepção de que os direitos fundamentais, ou pelo menos alguns, no mínimo os mais importantes entre eles, também valeriam nas relações jurídico-privadas, vinculando a todos. (…). Também agora não existe motivo para discutir exaustivamente a questão controvertida sobre a “eficácia horizontal”. Para se chegar aqui a uma conclusão adequada ao presente problema, basta o seguinte: Sem dúvida, os direitos fundamentais existem, em primeira linha, para assegurar a esfera de liberdade privada de cada um contra intervenções do poder público; eles são direitos de resistência do cidadão contra o Estado. Isto é o que se deduz da evolução histórica da idéia do direito fundamental, assim como de acontecimentos históricos que levaram os direitos fundamentais às constituições dos vários Estados. Os direitos fundamentais da Grundgesetz também têm esse sentido, pois ela quis sublinhar, com a colocação do capítulo dos direitos fundamentais à frente [dos demais capítulos que tratam da organização do Estado e constituição de seus órgãos propriamente ditos], a prevalência do homem e sua dignidade em face do poder estatal. A isso corresponde o fato de o legislador ter garantido o remédio jurídico especial para a proteção destes direitos, a Reclamação Constitucional, somente contra atos do poder público. Da mesma forma é correto, entretanto, que a Grundgesetz, que não pretende ser um ordenamento neutro do ponto de vista axiológico (BVerfGE 2, 1 [12]; 5, 85 [134 et seq., 197 et seq.]; 6, 32 [40 s.]), estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo, e que, justamente em função deste, ocorre um aumento da força jurídica dos direitos fundamentais (…). Esse sistema de valores, que tem como ponto central a personalidade humana e sua dignidade, que se desenvolve livremente dentro da comunidade social, precisa valer enquanto decisão constitucional fundamental para todas as áreas do direito; Legislativo, Administração Pública e Judiciário recebem dele diretrizes e impulsos. Desta forma, ele influencia obviamente o direito civil. Nenhuma norma do direito civil pode contradizer esse sistema de valores, cada norma precisa ser interpretada segundo o seu espírito. O conteúdo normativo dos direitos fundamentais enquanto normas objetivas desenvolve-se no direito privado por intermédio do veículo (Medium) das normas que dominem imediatamente aquela área jurídica. Assim como o novo direito precisa estar em conformidade com o sistema axiológico dos direitos fundamentais, será, no que tange ao seu conteúdo, o direito pré-existente direcionado a esse sistema de valores; dele flui para esse direito pré-existente um conteúdo constitucional específico, que a partir de então fixará a sua interpretação. Uma lide entre particulares sobre direitos e obrigações decorrentes destas normas comportamentais do direito civil influenciadas pelo direito fundamental permanece, no direito material e processual uma lide cível. Interpretado e aplicado deve ser o direito civil, ainda que sua interpretação tenha que seguir o direito público, a Constituição.

 

A influência dos critérios axiológicos do direito fundamental se faz notar sobretudo em face daquelas normas do direito privado que encerrem direito cogente e que constituam assim uma parte da ordre public lato sensu, i.e., junto aos princípios, os quais, em razão do bem comum, devam ser vigentes também na formação das relações jurídicas entre os particulares e por isso sejam retirados do domínio da vontade privada. Estas normas têm, em razão de seu propósito, um grau de parentesco próximo ao direito público, ao qual elas se ligam de maneira complementar. Elas precisam estar submetidas de modo intenso à influência do direito constitucional. A jurisprudência serve-se sobretudo de “cláusulas gerais” para a realização desta influência, que, como § 826 BGB, remetem para o julgamento do comportamento humano a critérios extra-cíveis ou até a critérios extra-jurídicos, como os “bons costumes”. Pois para a decisão a respeito da questão sobre o que tais mandamentos sociais exigem no caso concreto, tem-se que, em primeiro lugar, partir do conjunto de concepções axiológicas, as quais um povo alcançou numa certa época de seu desenvolvimento cultural e que foram fixadas em sua Constituição. Por isso, foram as cláusulas gerais com propriedade alcunhadas de “pontos de entrada” (Einbruchstellen) dos direitos fundamentais no direito civil (Dürig, in: Neumann, Nipperdey, Scheuner, die Grundrechte, Tomo II, p. 525).

 

O juiz tem que, por força de mandamento constitucional, julgar se aquelas normas materiais de direito civil a serem por ele aplicadas não são influenciadas pelo direito fundamental da forma descrita; se isso ocorrer, então ele precisa observar a modificação do direito privado que resulta desta influência junto à interpretação e aplicação daquelas normas. Este é o sentido da vinculação do juiz cível aos direitos fundamentais (Art. 1 III GG). Se ele falhar na aplicação destes critérios e se sua sentença se basear na inobservância desta influência constitucional sobre as normas de direito civil, ele irá não somente infringir o direito constitucional objetivo, na medida em que ignorará o conteúdo da norma de direito fundamental (enquanto norma objetiva), mas também violará, por meio de sua decisão e uma vez investido do poder público, o direito fundamental a cuja observância pelo Judiciário o cidadão também tem o direito subjetivo constitucional. Contra uma tal decisão, o Tribunal Constitucional Federal pode ser acionado pela via da Reclamação Constitucional sem afetar o afastamento do erro de direito [que é da competência exclusiva das instâncias ordinárias] pelas instâncias cíveis. O tribunal constitucional tem que julgar se o tribunal ordinário avaliou de maneira procedente o alcance e a eficácia dos direitos fundamentais na área do direito civil. Disso resulta ao mesmo tempo a limitação de seu exame revisional: Não é da competência do tribunal constitucional julgar as decisões dos juízes cíveis em sua plenitude no que tange a erros de direito; o Tribunal Constitucional precisa avaliar tão somente o chamado “efeito de radiação” (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais no direito civil e fazer valer também para aquele ramo jurídico o conteúdo axiológico da prescrição constitucional. O sentido do instituto da Reclamação Constitucional é fazer com que todos os atos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário possam ser avaliados no que tange à sua consonância com os direitos fundamentais (§ 90 BVerfGG). Tampouco o Tribunal Constitucional Federal é competente para agir contra os tribunais cíveis enquanto instância revisional ou mesmo super-revisional; tampouco pode ele isentar-se em geral do exame superveniente destas decisões e passar ao largo de uma em si já praticada inobservância de normas e critérios de direito fundamental.

 

2. A problemática da relação dos direitos fundamentais com o direito privado parece colocada de maneira diferente no caso do direito fundamental da livre expressão do pensamento (Art. 5 GG). Esse direito fundamental é garantido pela Constituição – assim como o fora na Constituição de Weimar (lá, pelo seu Art. 118) somente dentro dos limites das “leis gerais” (Art. 5 II GG). Mesmo antes de perscrutar quais leis são “leis gerais” neste sentido, poder-se-ia defender a posição de que em tal caso a Constituição mesma, por meio da remição ao limite das leis gerais limitou, desde o início, a vigência dos direitos fundamentais àquela área à qual os tribunais, por sua interpretação destas leis, ainda os deixa. A conclusão desta interpretação precisaria ser aceita, ainda que ela representasse uma limitação do direito fundamental, não podendo, por isso, jamais ser considerada como uma “violação” do direito fundamental.

 

Este não pode ser, no entanto, o sentido da referência às “leis gerais”. O direito fundamental à livre expressão do pensamento é, enquanto expressão imediata da personalidade humana, na sociedade, um dos direitos humanos mais importantes (un des droits les plus précieux de l’homme, segundo o Art. 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789). Ele é elemento constitutivo, por excelência, para um ordenamento estatal livre e democrático, pois é o primeiro a possibilitar a discussão intelectual permanente, a disputa entre as opiniões, que é o elemento vital daquele ordenamento. (BVerfGE 5, 85 [205]). Ele é, num certo sentido, a base de toda e qualquer liberdade por excelência, “the matrix, the indispensable condition of nearly every other form of freedom” (Cardozo).

 

Deste significado primordial da liberdade de expressão do pensamento resulta para o Estado livre e democrático que, partindo da visão deste sistema constitucional, não seria procedente deixar o alcance material, principalmente deste direito fundamental, passível de qualquer relativização por parte da lei ordinária (e com isso necessariamente por meio da jurisprudência dos tribunais que interpretam as leis). Pelo contrário, aqui também vale o princípio que foi acima desenvolvido genericamente para a relação dos direitos fundamentais com o ordenamento de direito privado: As leis gerais precisam ser interpretadas, no que tange ao seu efeito limitador dos direitos fundamentais, de tal forma a garantir que o conteúdo axiológico deste direito, que, na democracia liberal fundamenta uma presunção a favor da liberdade do discurso em todas as áreas, vale dizer, sobretudo na vida pública, seja sempre protegido. A relação recíproca entre o direito fundamental e a “lei geral” não deve ser entendida, portanto, como uma limitação unilateral da vigência do direito fundamental por meio das ‘leis gerais’; ocorre, pelo contrário, um efeito de troca recíproca ou sinalagmático (Wechselwirkung) no sentido de que se as “leis gerais” colocam, de um lado, limites ao direito fundamental segundo o teor do dispositivo constitucional, por outro, elas mesmas precisam ser por sua vez interpretadas e, devido ao reconhecimento do significado axiológico deste direito fundamental no Estado livre e democrático, limitadas naqueles pontos onde manifestarem seus efeitos limitadores do direito fundamental. (…).

 

3. O conceito da “lei geral” sempre foi controverso. Não se faz necessário saber se o termo chegou ao Art. 118 da Constituição de 1919 (Weimarer Reichsverfassung) por causa de um lapso de redação (cf. sobre isso: Häntzchel, Handbuch des deutschen Staatsrechts, 1932, Tomo II, p. 658). Em todo caso, ele foi interpretado, durante o período de vigência daquela Constituição, de tal sorte que sob o termo deveriam ser entendidas todas as leis que “não proibissem uma opinião em si, que não se voltassem contra a expressão da opinião em si”, mas que, ao contrário, “servissem à proteção de um bem jurídico por excelência, sem ocupar-se de uma opinião específica”, que servissem à proteção de um valor coletivo que tivesse prevalência sobre a liberdade de expressão (cf. a junção das formulações de conteúdo convergentes feita por Klein e v. Mangoldt, op. cit., p. 250 s., assim como as “Publicações da Associação dos Professores Alemães de Direito Público” – Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatslehrer , Vol. 4, 1928, p. 6 et seq., principalmente p. 18 et seq., 51 et seq.). A esta tese anuem também os intérpretes da Grundgesetz (cf. Ridder, in: Neumann – Nipperdey – Scheuner, Die Grundrechte, Tomo II, p. 282: “Leis que não inibam o puro efeito da pura expressão do pensamento”). Em sendo o conceito de “leis gerais” assim entendido, então conclui-se como sendo o sentido da proteção do direito fundamental, resumidamente, o seguinte:

 

A concepção segundo a qual somente a expressão de uma opinião é protegida pelo direito fundamental, mas não o efeito pretendido sobre as outras pessoas por meio dela, tem que ser recusada. O sentido da expressão da opinião é justamente deixar o “efeito intelectual atuar sobre o meio”, “mostrar-se convincente e formador de opinião frente à coletividade” (Häntzchel, HdbDStR II, p. 655). Por isso é que os juízos de valor, que sempre têm um efeito intelectual, isto é, objetivam o convencimento dos interlocutores, são protegidos pelo Art. 5 I 1 GG; a proteção do direito fundamental se baseia, em primeira linha, no posicionamento do falante que expressa um juízo de valor, por meio do qual ele procura influenciar outras pessoas. Uma separação entre expressão protegida e efeito não protegido da expressão não faria sentido.

 

A assim entendida expressão da opinião como tal, ou seja, no seu efeito puramente intelectual, é livre. Se por ela, entretanto, um bem jurídico de outra pessoa, protegido por lei, cuja proteção merece a prevalência em face da liberdade de expressão, for violado, então a intervenção não deixará de ser permitida, porque ela se efetivou por meio de uma expressão de opinião. Faz-se necessário proceder a uma “ponderação de bens jurídicos”:

 

O direito da liberdade de expressão não pode [no caso concreto, n. do org.] se impor, se interesses dignos de proteção de outrem e de grau hierárquico superior forem violados por intermédio do exercício da liberdade de expressão. Para se verificar a presença de tais interesses mais importantes, tem-se que analisar todas as circunstâncias do caso.

 

4. Partindo deste entendimento, não existe problema em reconhecer também, em relação a normas de direito civil, a qualidade de “leis gerais” na acepção do Art. 5 II GG. Se isso ainda não aconteceu na literatura (o que também fora apontado por Klein, v. Mangoldt, op. cit., p. 251), quer dizer que os autores só viam os direitos fundamentais em seu efeito havido entre o cidadão e o Estado, pois coerentemente com essa postura só eram consideradas leis gerais limitadoras aquelas que regravam a ação do Estado em face do indivíduo, ou seja, leis de direito público. Se, no entanto, o direito fundamental da livre expressão do pensamento também tem um efeito nas relações jurídicas de direito privado, e sua importância se revela aqui em prol da admissibilidade de uma expressão do pensamento também em face de cada co-cidadão, então precisa ser também observado de outro lado o eventual efeito contrário, qual seja: o efeito limitador do direito fundamental, próprio de uma norma de direito privado, desde que ela exista para a proteção de bens jurídico superiores. Não se poderia aceitar o fato de prescrições do direito civil que protejam a honra ou outros bens jurídicos substanciais da personalidade humana não poderem ser consideradas suficientes para colocar limites ao exercício do direito fundamental da livre expressão do pensamento sem que, para o mesmo propósito, prescrições penais tivessem que ser fixadas. O reclamante teme que, através da limitação da liberdade da expressão em face de um indivíduo, se pudesse trazer o risco de o cidadão ver a sua possibilidade de influenciar a opinião pública pela expressão de sua opinião reduzida a um grau ínfimo e por isso a liberdade indispensável da discussão pública de questões importantes para a coletividade não restaria mais garantida. Este perigo existe de fato (v. a respeito Ernst Helle, Der Schutz der persönlichen Ehre und des wirtschaftlichen Rufes im Privatrecht, 1957, p. 65, 83-85, 153). Para enfrentá-lo, não é necessário, entretanto, que o direito civil seja no geral tirado deste grupo das leis gerais. Necessário é aqui também tão somente que o conteúdo de liberdade do direito fundamental seja defendido com conseqüência. O direito fundamental terá que pesar na balança, sobretudo naqueles casos onde seu uso não se realizar em função de desentendimentos privados, mas naqueles casos onde aquele que se expressa quer, em primeira linha, contribuir para a formação da opinião pública de modo que o eventual efeito de sua expressão nas relações jurídicas privadas de um outro seja somente uma conseqüência inevitável, mas não represente o escopo por excelência de sua expressão. Justamente neste contexto é relevante a relação entre o propósito e o meio. A proteção de bem jurídico privado pode e deve ser afastada quanto mais a expressão não for diretamente voltada contra este bem jurídico privado, nas relações privadas, principalmente nas relações econômicas e na busca de objetivos egoísticos, mas, pelo contrário, se trate de uma contribuição para a luta intelectual das opiniões no contexto de uma questão essencial para a opinião pública, feita por uma pessoa legitimada para tanto; neste ponto existe a presunção pela admissibilidade da livre expressão.

 

Conclui-se, portanto: Mesmo decisões de um juízo cível, que com fundamento em “leis gerais” do direito civil chegue, em conclusão, a uma limitação da liberdade de expressão, podem violar o direito fundamental do Art. 5 I 1 GG. Também o juiz cível tem que sempre ponderar o significado do direito fundamental em face do valor do bem jurídico protegido pela lei geral para aquele que por meio da expressão fora supostamente ferido. A decisão só pode brotar desta visão completa do caso concreto, observando-se todos os fatores substanciais. Uma ponderação incorreta pode violar o direito fundamental e assim fundamentar a Reclamação Constitucional junto ao Tribunal Constitucional Federal.

 

III.

 

O julgamento do presente caso a partir das exposições gerais supra desenvolvidas traz como conclusão que a argüição do reclamante é fundamentada (…).

 

1. (…).

 

2. (…).

 

Para a solução da questão de se saber se a convocação ao boicote segundo esses critérios é imoral [“sittenwidrig” – por violar os “bons costumes”], faz-se necessário verificar os motivos, o objetivo e a finalidade das expressões. Além disto, deve-se examinar se o reclamante, na busca de seus objetivos, não ultrapassou a medida necessária e adequada do comprometimento dos interesses de Harlan e das sociedades cinematográficas.

 

a) Com certeza não têm, os motivos que levaram o reclamante às suas expressões, nada de imoral. O reclamante não perseguiu nenhum interesse de natureza econômica; ele não se encontrava em uma relação de concorrência nem com as sociedades cinematográficas, nem com Harlan. Até mesmo o tribunal estadual verificou, em sua decisão nos autos do processo da ação cautelar, que a audiência não revelou nada no sentido de se concluir que o reclamante teria agido em função de “motivos indignos ou egoísticos”. Isto não foi contestado por nenhuma das partes.

 

b) O objetivo das expressões do reclamante foi, como ele mesmo afirma, impedir que Harlan se firmasse como representante significativo da cinematografia alemã; ele queria impedir que Harlan fosse de novo apresentado como criador de filmes alemães e com isso surgisse a impressão de que um novo crescimento da cinematografia alemã tivesse que ser necessariamente ligado à pessoa de Harlan. Os tribunais não podem julgar se a fixação deste objetivo é aceitável do ponto de vista material, mas tão somente se a sua manifestação na forma escolhida pelo reclamante fora juridicamente admissível.

 

As expressões do reclamante precisam ser observadas no contexto de suas intenções políticas gerais e de política cultural. Ele agiu em função da preocupação de que o retorno de Harlan pudesse ser interpretado – sobretudo no exterior – como se na vida cultural alemã nada tivesse mudado desde o tempo nacional-socialista: Como naquele tempo, Harlan seria também novamente o diretor representativo da cinematografia alemã. Estas preocupações correspondiam a uma questão muito substancial para o povo alemão; em suma: a questão de sua postura moral e sua imagem no mundo naquela época. Nada comprometeu mais a imagem alemã do que a perseguição maldosa dos judeus pelo nacional-socialismo. Existe, portanto, um interesse decisivo de que o mundo saiba que o povo alemão abandonou essa postura e a condena, não por motivos de oportunismo político, mas por causa do reconhecimento de sua hediondez, reconhecimento este firmado sobre uma guinada axiológica intrínseca.

c) – d)(…).

 

IV.

 

O Tribunal Constitucional Federal chegou, pelo exposto, à convicção de que o Tribunal Estadual desconheceu, no julgamento do comportamento do reclamante, o significado especial do direito fundamental à livre expressão do pensamento, que também alcança o caso em que ele entra em conflito com interesses privados. A decisão do Tribunal Estadual fundamenta-se nesta falha de aferição e uso dos critérios próprios do direito fundamental e, destarte, viola o direito fundamental do reclamante do Art. 5 I 1 GG. Portanto, deve ser revogada.

 

 

Extraído de:

SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Org: Leonardo Martins  Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006

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Os Blogs no Banco dos Réus: afasta de mim esse cálice

Por George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional
Blog: direitosfundamentais.net

“Liberdade é passar a mão na bunda do guarda”
Casseta & Planeta

Já virou lugar-comum dizer que os blogs estão revolucionando a forma de se comunicar. A troca de informações nunca foi tão pulverizada, intensa e democrática. Há blogs de humor, de esportes, de direito, de religião. Há blogs de pessoas sem conteúdo, mas também de Prêmio Nobel. Enfim, de tudo muito. Hoje, com um pouco de paciência para separar o joio do trigo, é possível tranqüilamente substituir os meios de comunicação tradicionais pela mídia digital (aqui). Aliás, até mesmo a imprensa convencional já percebeu isso e se sente ameaçada. Tanto é verdade que o Estadão lançou uma pesada campanha contra os blogs, demonstrando que o inimigo existe e é forte.

A revolução dos blogs certamente trouxe inúmeras vantagens. Pessoas comuns tornaram-se quase celebridades na chamada blogosfera, justamente porque encontraram nessa ferramenta uma forma de se comunicar livremente para um número quase infinito de leitores, a um custo baixíssimo, algo inimaginável na mídia pré-internet. Assuntos que costumavam ficar de fora das notícias da imprensa hoje são debatidos com naturalidade. Por exemplo, os podres da mídia, raramente, eram divulgados. Atualmente, existem blogs especializados em criticar a impresa e os jornalistas, levantando questões que até então eram um tabu nos meios de comunicação (aqui, aqui e aqui). O humor negro, que costumava ser excluído das pautas jornalísticas tradicionais, hoje cresce em ritmo exponencial (aqui, aqui e aqui). A crítica política mais ácida, que a grande mídia tinha receio de estimular por medo de retaliações políticas e jurídicas, é feita com muito mais freqüência (aqui). Em países autoritários, onde praticamente não há liberdade de expressão, os blogs tornaram-se um dos instrumentos mais eficazes para criticar o governo (aqui).

Mas nem tudo são flores na blogosfera. Afinal, assim como a vida de Josef Klimber, a internet é uma caixinha de surpresas. E a mão que afaga é a mesma que apedreja, já dizia Augusto dos Anjos.

Se a imprensa tradicional tinha um grande potencial de causar danos à honra de terceiros, os blogs redimensionaram de tal forma a questão que há quem defenda até mesmo o fim da mídia digital ou então a imposição de restrições severas para banir eventuais excessos e abusos. É cada vez mais freqüente, inclusive com o aval do Judiciário, a censura à internet, muitas vezes por questões banais que nitidamente estariam protegidas pela liberdade de expressão. O TSE, por exemplo, chegou a editar uma resolução praticamente proibindo os blogs de políticos durante o período em que a propaganda eleitoral não pode ser realizada!

O objetivo principal deste post é justamente citar alguns casos polêmicos envolvendo essa questão para levantar a bandeira em favor da livre informação na internet. O princípio que inspira essa idéia é um velho chavão: se não pode vencê-lo, junte-se a ele, especialmente quando essa é a melhor solução, independentemente de qualquer coisa.

A primeira vez que ouvi falar em censura na internet foi em 1996 quando a internet comercial brasileira tinha apenas um aninho e ainda era discada.

Uma fã do Vinícius de Moraes desenvolveu um lindo site em homenagem ao Poetinha, disponibilizando poemas e letras de músicas para quem quisesse ler. Inconformados com aquela atitude, os familiares do Poetinha, que eram os titulares dos direitos autorais de suas obras, pediram, através de advogados, que a fã retirasse a home-page do ar. Sem alternativas, a fã deletou a página, colocando no seu lugar um comovente manifesto de protesto contra a atitude da família do poeta e lançou o primeiro manifesto em favor da liberdade de expressão na internet brasileira. Vários “internautas” do mundo inteiro se comoveram com o protesto e resolveram criar, da mesma maneira que a fã, páginas sobre Vinícius de Moraes em diversos países diferentes, divulgando gratuitamente e sem restrições inúmeras poesias. A tentativa dos advogados da família de Vinícius de Moraes foi infrutífera e teve um efeito contrário do esperado. (O caso pode ser lido aqui)

Nessa época, eu ainda estava no segundo ano do curso de direito e acabei fazendo um trabalho acadêmico sobre o assunto (bem fraquinho, por sinal), defendendo a fã do Poetinha, pois, na minha ótica, se não houvesse intuito de lucro, a divulgação da cultura deveria ser livre.

Mas não é sobre a questão dos direitos autorais que quero falar, até porque hoje o problema ganhou uma dimensão bem diferente. Basta dizer que é possível baixar não apenas os poemas e letras de qualquer artista, mas até mesmo os livros inteiros e a discografia completa , através do sistema “peer to peer“, de forma gratuita.

O que quero destacar nesse caso é o espírito colaborativo e corporativo que existe na internet, sobretudo a partir da chamada “Web 2.0“. Se um blog é censurado, pode ter certeza de que surgirão centenas ou milhares de outros blogs reproduzindo a mesma matéria no mundo todo. Não dá pra censurar todos os blogs do mundo!

Outro exemplo que bem demonstra isso ocorreu com o caso “Xô Sarney”.

A Justiça Eleitoral do Amapá mandou tirar do ar um blog por reproduzir a foto abaixo, que mostra uma caricatura do então candidato José Sarney. Por força da decisão judicial, iniciou-se entre inúmeros blogueiros uma campanha que ficou conhecida como “Movimento Xô Sarney”, que se espalhou rapidamente pela internet.

Outro caso mais antigo foi o do site Cocaboa. O Mr. Manson (Wagner Martins), que é o responsável pelo Cocadaboa, gosta de provocar, a começar pela escolha do nome do site. Quando a blogosfera ainda não passava de meia dúzia de sites, o Cocadaboa teve problemas com a Coca-Cola, por utilizar um logotipo parecido com a da famosa marca (clique aqui).

O Cocadaboa também teve problemas com um tal de Marcos Mion. Nesse caso, Mr. Manson amarelou, pois poderia muito bem ter comprado a briga, assim como o Larry Flynt comprou a briga com o reverendo Falwell. Se bem que não posso nem reclamar, pois também já amarelei.

Já que se falou em Cocaboa, não se poderia deixar de mencionar seu arquiinimigo, o site Kibeloco, comandado por Antônio Tabet. O Kibeloco também enfrentou problemas semelhantes, especialmente com a Preta Gil, que era (e ainda é) constantemente alvo de chacotas. O Antônio Tabet, ao contrário do Mr. Manson, teve mais coragem e, apesar das ameaças dos advogados, continuou fazendo brincadeiras pesadas com a celebridade (o trocadilho não foi proposital).

Houve situações mais drásticas ainda. O blog Leite de Pato, que lamentavelmente já saiu do ar, teve problemas com a Polícia Federal quando um leitor incluiu um comentário fazendo apologia a facções criminosas.

Em 2004, o blog “Imprensa Marrom” também passou por problemas semelhantes, tendo sido um dos primeiros blogs brasileiros a ser bloqueado em razão de processo judicial. No caso em questão, o mais curioso é que o problema jurídico teve origem não em razão de um post escrito pelo blogueiro, mas de um comentário deixado por um leitor que supostamente seria ofensivo à honra de um determinado empresário. Vários outros blogueiros denunciaram o caso como um claro exemplo do despreparo do Judiciário para lidar com essas questões e como uma afronta à liberdade de expressão (aqui, aqui, aqui e aqui). O relato do próprio blogueiro censurado pode ser lido aqui.

Houve ainda um caso mais engraçado, envolvendo a Fiat e o Sr. Maritônio, um consumidor insastifeito que resolveu criar um site criticando aquela empresa automibilística e, por conta disso, foi alvo de alguns processos judiciais, inclusive tendo que trocar o site de provedor algumas vezes (aqui e aqui).

Tudo isso sem falar no conhecido caso Cicarelli, que conseguiu a façanha de tirar o Youtube do ar por um dia e no caso Barrichello, que conseguiu excluir todas as comunidades do Orkut que criticavam seu desempenho na Fómula 1.

O que todos esses casos demonstram é que o Judiciário ainda tem muito o que aprender sobre o ciberespaço. Os juízes devem rever seus conceitos sobre a internet e sobre a liberdade de informação que é o signo do território digital. Por isso, faço um apelo aos meus caros colegas juízes: não queiram ser o super-ego da sociedade digital, pois será um tiro no pé na nossa já tão arranhada reputação.

Não quero dizer que os blogueiros devem ser considerados como uma espécie de 007 com licença para ofender à vontade. Qualquer sociedade minimamente evoluída deve ter como base a idéia de responsabilidade. Aquele que causa danos a terceiros tem que responder por seu ato e, sendo o caso, sofrer as conseqüências jurídicas daí decorrentes. A liberdade de expressão também deve ter limites. Mas a banalização da censura é inadmissível, sobretudo em matéria política ou em relação às críticas e aos costumes sociais.

O que se tem notado – analisando a questão sob uma ótica mais jurídica – é um abuso da utilização do artigo 20 do Código Civil brasileiro, que autoriza a limitação da liberdade de expressão em dadas situações. Com base nisso, o Judiciário tem cerceado a livre manifestação do pensamento tão somente para proteger interesses de pessoas públicas que não querem ser criticadas ou então de autoridades e políticos que não querem que escândalos envolvendo a sua pessoa sejam divulgados. Certamente, em situações assim, a liberdade de expressão deveria prevalecer, já que o direito de falar mal das instituições, dos políticos e das celebridades faz parte da essência da democracia (cf. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008).

Acredito – e aqui estou meramente especulando – que o mundo globalizado tenderá a compartilhar os mesmos valores fundamentais no que se refere à liberdade de expressão. E provavelmente, há grande chance de se seguir o modelo norte-americano, já que eles costumam ditar as regras do mundo cibernético.

Lá nos EUA, prevalece o “laissez-faire, laissez-passer” em matéria de liberdade de expressão, ou seja, o Estado não deve intervir nessa seara, salvo em raras ocasiões. Os norte-americanos acreditam fortemente que as idéias ruins e equivocadas devem ser censuradas não pelo Estado, mas pela própria sociedade, através da manifestação natural de repugnância e desprezo, sem necessitar de qualquer repressão jurídica ao pensamento. Para eles, não cabe ao Estado, nem mesmo ao juiz, definir o que é bom ou ruim em termos de idéias. É o indivíduo, plenamente consciente e eticamente responsável pelas suas escolhas, que deve exercer o juízo crítico e pessoal sobre aquilo que ele considera capaz de lhe engrandecer como ser humano. Por isso, tirando situações excepcionais em que a manifestação das idéias pode ocasionar violência (“hate speech“), é totalmente livre a liberdade de expressão, sobretudo para criticar o governo, as pessoas públicas e os costumes.

Com toda certeza, os EUA não irão mudar de opinião em matéria de “freedom of speech”, que para eles constitui motivo de orgulho nacional, só porque um punhado de juízes brasileiros acham criticar político ou brincar com celebridades é ilícito. Certamente, a tendência será o Judiciário verde-amarelo se adequar ao espírito da internet e não o contrário, sob pena de ficarmos isolados do mundo. E se ainda há juízes que pensam que podem controlar o ciberespaço, lamento dizer uma triste verdade:

Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone. You are not welcome among us. You have no sovereignty where we gather” (Manifesto pela Independência do Ciberespaço, escrito por John Perry Barlow em 1996).

Os bons costumes podem limitar direitos Fundamentais? – Parte II

Dando continuidade ao post “os bons costumes podem limitar os direitos fundamentais?”, passo a formular meus comentários sobre o assunto. Como sempre, não tenho a pretensão da verdade e – eu próprio – tenho certeza de que minhas idéias ainda não estão completamente amadurecidas.
Mesmo assim, vamos tentar apresentar uma solução com base na teoria dos direitos fundamentais…
Inicialmente, uma análise sobre a legitimidade de medidas que limitam os direitos fundamentais não pode ser baseada em “achômetros”. É preciso buscar na Constituição a resposta para qualquer problema envolvendo direitos fundamentais.
Leia de cabo a rabo o texto constitucional e certamente você não encontrará nada que fale em bons costumes (melhor: faça uma pesquisa pelo mecanismo de busca do Word). Definitivamente, a Constituição não colocou os bons costumes como um valor a ser preservado, ao contrário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, por exemplo, que reconhece, em seu art. 29, que os direitos ali estabelecidos são relativos, já que podem ser limitados no intuito de promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática. Vale ressaltar que a DUDH, apesar de ser um poderoso instrumento em favor dos direitos humanos/fundamentais, não tem força normativa, sendo apenas uma recomendação política para os países que a subscreveram.
Há, contudo, na CF/88, na parte relativa à Comunicação Social, alguns artigos que sugerem a limitação da liberdade de comunicação em favor de valores morais conservadores. Dê uma lida no artigo 221 e comprove. Lá você verá que a Comunicação Social tem como princípio, entre outros, o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Inicialmente, descarto qualquer interpretação restritiva do artigo constitucional no sentido de que só se aplica à comunicação social. Sempre fui contra argumentos baseados na interpretação “ao pé da letra”. Os princípios elencados no artigo 221 são diretrizes ético-jurídicas que incidem em qualquer situação, sobretudo na Comunicação Social. Seria até meio sem lógica se pudesse haver a limitação de horário para exibição de filmes que contenham cenas de sexo e, ao mesmo tempo, qualquer pessoa pudesse fazer sexo em público em qualquer lugar a qualquer hora.
Ainda assim, não vejo como justificar a restrição à liberdade com base exclusivamente nesse tal de “bom costume”, sobretudo em matéria sexual. A Constituição não protege um único comportamento sexual. Pelo contrário. A CF/88 protege o pluralismo e o respeito às diferenças. Portanto, na minha ótica, não há base constitucional para punir comportamentos, sexuais ou não, com fundamento unicamente no conservadorismo moral.
As únicas restrições que podem ser admitidas são as realizadas para proteger outros valores constitucionais. Proibir um outdoor que estampe a foto de uma mulher nua é, talvez, proporcional, pois a medida visa proteger as crianças de terem contato precoce com apelos sexuais. Do mesmo modo, é proporcional obrigar que as revistas voltadas para o público masculino cubram as capas expostas em bancas de revistas, a fim de impedir que crianças vejam pessoas sem roupas.
Se a mesma mulher do exemplo do topless resolver ficar nua em uma Igreja, certamente estará ferindo o direito daqueles que freqüentam o lugar e, portanto, está violando outros direitos fundamentais. O exemplo da praia é totalmente diferente, já que existe, naturalmente, menos pudor entre os presentes. Mais uma vez a solução vai depender das informações fornecidas pelo caso concreto, tendo sempre como base o teste da proporcionalidade (especificamente a proporcionalidade em sentido estrito – ponderação).
Um caso que ilustra esse aspecto foi o do Diretor de Teatro Gerald Thomas, que foi denunciado pelo crime de ato obsceno após mostrar a bunda em público e simular uma masturbação como reação às vaias do público. O STF entendeu, em habeas corpus, que o ato não poderia ser punido, pois estaria inserido no contexto da liberdade artística. O ato foi praticado dentro de um teatro, às duas horas da manhã, no Rio de Janeiro. O público que presenciou a cena era adulto. A própria peça de teatro continha cenas de nudez e simulação sexual. Portanto, a “moral e os bons costumes” não foi suficiente, naquele caso concreto, para justificar a limitação ao direito fundamental à liberdade artística.
Seria diferente se fosse uma peça infantil, numa manhã de domingo e a cena fosse presenciada por crianças. Aí sim, na minha ótica, estaria plenamente justificada a limitação à liberdade artística, tendo em vista a necessidade de proteger as crianças contra estímulos sexuais precoces.
O caso hipotético de uma suposta lei proibindo que casais homossexuais troquem carícias em público quando houver crianças presentes é extremamente interessante do ponto de vista da teoria dos direitos fundamentais, pois envolve um conflito muito mais complexo de valores constitucionais.
De cara, entendo que a lei é inconstitucional, pois ela visa a um fim constitucionalmente ilegítimo. Ela não passaria pelo primeiro critério da proporcionalidade que é a adequação.
Vale ressaltar que adequação não exige somente a relação de pertinência/coerência entre meio e fim, mas também exige que uma medida restritiva de direitos fundamentais, para ser válida, seja idônea para o atendimento de uma finalidade constitucionalmente legítima. Se o objetivo visado pela medida buscar uma finalidade que não seja compatível com a Constituição, ela não será válida.
No caso da hipotética lei em questão, entendo que seria nitidamente inconstitucional, pois o fim buscado por ela é preconceituoso, e a Constituição veda a discriminação por razões sexuais.
O problema é que ainda não há, no seio da sociedade, uma completa aceitação do homossexualismo. A maioria das pessoas ainda não aceita (e talvez eu me inclua nessa relação) presenciar casais de pessoas do mesmo sexo trocando carícias em público. No entanto, esse tipo de preconceito, embora se justifique por razões culturais, não tem base constitucional. A Constituição não deve ser apenas um espelho da sociedade, mas também deve moldar comportamentos. No caso específico, a Constituição prospectivamente, com olhos voltados para o futuro, pretendeu claramente construir uma sociedade solidária, pluralista e sem preconceitos. Logo, nesse ponto, é a sociedade que deve se adequar aos valores constitucionais e não o inverso, já que os valores sociais estão descompassados com a idéia de dignidade da pessoa humana (que, em última análise, significa respeitar o outro, independentemente de quem seja o outro).
Portanto, como síntese a tudo o que foi exposto, concluo:
a) não há na Constituição, de forma expressa, qualquer proteção aos bons costumes;
b) há, contudo, uma proteção “aos valores éticos da pessoa e da família” (art. 221);
c) a limitação a direitos fundamentais, com base nos “valores éticos da pessoa e da família”, somente se justificará se atender ao critério da proporcionalidade;
d) é justificável a limitação de direitos fundamentais no intuito de impedir o contato do público infantil com estímulos sexuais precoces;
e) a limitação deverá buscar atingir valores constitucionalmente aceitos e não se pautar por preconceitos e discriminações descompassadas com o espírito de tolerância e respeito às diferenças positivado na Constituição.

PS. Como vocês devem ter percebido, os comentários apresentados no primeiro post sobre o assunto foram bastante importantes para a formação do meu convencimento. Acho que é essa a grande vantagem do blog: a possibilidade de interagir com os leitores e aprender com eles.

Textos Selecionados – Teoria dos Direitos Fundamentais (aprofundamento)

Enquanto o “Curso de Direitos Fundamentais” não sai, aproveito o blog para fornecer aos alunos um material de estudo aprofundado a respeito da teoria dos direitos fundamentais.

São trechos de livros ou revistas (geralmente, capítulos/artigos), por mim selecionados, especialmente para os alunos da disciplina “Direito Constitucional II – Teoria dos Direitos Fundamentais”.

Trata-se, portanto, de material utilizado para fins exclusivamente didáticos, sem qualquer fim lucrativo. Aliás, nunca é demais ressaltar: o presente blog não tem qualquer finalidade lucrativa. Nem mesmo há banners de publicidade ou de Adsense (lucro indireto). Meu interesse é tão somente divulgar os direitos fundamentais. Fazer com que o estudante de direito se encante com esse tema e, na sua futura atividade profissional, lute pela efetivação desses valores constitucionais. Mesmo assim, caso algum autor ou editora não queira ter a obra aqui divulgada, excluirei o link sem qualquer problema.

Os autores abaixo (aliás, menos um: eu) são as maiores autoridades em direitos fundamentais atualmente aqui no Brasil (alguns são estrangeiros, na verdade). São juristas antenados e influentes, que estão quebrando paradigmas e criando novos conceitos e princípios totalmente diferentes do pensamento jurídico tradicional. Se você analisar a sugestão bibliográfica já apresentada, vai perceber que a grande maioria desses juristas possui livros publicados sobre os direitos fundamentais. Vale a pena comprar os livros por eles escritos, pois eles estão na vanguarda. Os textos aqui disponibilizados são, na verdade, apenas fragmentos do pensamento desses juristas.

Fiz questão de colocar textos de autores com orientação ideológica diversa, justamente para dar mais pluralidade ao debate. Por enquanto, somente recomendei textos em língua portuguesa. Em breve, estarei fazendo um post semelhante com autores de outras línguas.

Logicamente, há diversos outros constitucionalistas igualmente bons (aliás, de cara, sinto a falta, na relação abaixo, do Professor Paulo Bonavides). Mas a minha idéia é ir acrescentando outros juristas aos poucos e fazer deste espaço, quem sabe, a maior biblioteca virtual sobre direitos fundamentais.

Por isso, quem tiver sugestão de outros textos relevantes dentro dessa temática (direitos fundamentais) fique à vontade para enviar.

Conceito e evolução dos Direitos Fundamentais

1. Vilhena, Oscar. A Gramática dos Direitos Humanos.

Direito à Imagem: Processos judiciais envolvendo celebridades brasileiras

Anteontem, foi julgado o processo movido por Luana Piovani e Dado Dolabella contra o Programa Pânico na TV (RedeTV).
O motivo do processo foi a perseguição sofrida pelos atores, em um famoso quadro do programa, em que os humoristas pretendiam fazer com que a atriz calçasse as “sandálias da humildade”, destinadas às celebridades mais antipáticas. Veja um trecho do programa obtido pelo YouTube.
O juiz da causa, convencido de que os humoristas violaram a honra, a privacidade e a intimidade dos artistas, condenou a RedeTV a pagar uma indenização de R$ 250.000,00 para a atriz e de R$ 50.000,00 para o ator (nada mal, hein?). Ainda cabe recurso da sentença.
Esse caso, obviamente, não foi o único envolvendo o direito de imagem de celebridades. Com bastante freqüência, o Judiciário é chamado para solucionar conflitos em que personalidades famosas se insurgem contra o uso abusivo de sua imagem pelos meios de comunicação.
São casos clássicos de colisão de direitos fundamentais: o direito de informação em choque com o direito à imagem; a liberdade jornalística em confronto com o direito de intimidade; a liberdade de comunicação invadindo a esfera de privacidade dos artistas; a livre manifestação do pensamento violando a honra de indivíduos. Todos esses valores, apesar de antagônicos, são protegidos pela Constituição Federal de 1988.
Assim, no intuito de tentar delimitar o que deve prevalecer em cada caso, selecionei alguns exemplos de julgamentos envolvendo esses conflitos. No final do texto, tento elaborar alguns parâmetros, com base nesses julgados, para auxiliar o jurista a encontrar a melhor solução.
Carolina Dieckman vs. Pânico na TV
O caso da Luana Piovani não foi o primeiro envolvendo o Programa Pânico na TV. Antes dela, a atriz Carolina Dieckman já havia sido “homenageada” e convidada a calçar as “sandálias da humildade”.
O problema é que os humoristas exageraram na dose. No intuito de chamar a atenção da atriz, os humoristas foram ao condomínio onde ela mora com guindaste e megafone, chamando-a pelo nome. O filho da atriz, que também estava no apartamento, sentiu-se igualmente constrangido com a “brincadeira”.
A atriz moveu ação judicial contra o programa, vencendo tanto na primeira quanto na segunda instância. A indenização fixada na decisão foi de R$ 35.000,00. O programa Pânico na TV também foi proibido a usar a imagem da autora ou a fazer referência a seu nome.
Para ver o acórdão do TJ-RJ, clique aqui.
Destaque para a ementa do acórdão:
“Direito Constitucional. Liberdade de expressão versus direito à intimidade. Atriz que manifesta sua vontade de não aparecer, nem participar de brincadeira, a seu ver vexatória, em programa humorístico. Exposição de sua vida íntima, afetando seu cotidiano, causando incômodo também a seu filho. Aplicação do princípio do interesse da criança.
Interesse mediato da criança em ter resguardada a sua honra e a liberdade de imagem e de locomoção de sua mãe.
Provimento parcial do recurso”.
Caso da Sunga do Thiago Lacerda

Todos se recordam da polêmica envolvendo o leilão da sunga que o ator Thiago Lacerda supostamente teria utilizado na encenação da peça “Paixão de Cristo”, em Nova Jerusalém – Pernambuco. O leilão foi promovido pelo apresentador Gugu Liberato, no seu programa dominical. Gugu pretendia, com a venda da sunga, arrecadar fundos para instituições de caridade. O problema desse nobre gesto é que o apresentador esqueceu-se de pedir autorização para o ator Thiago Lacerda. Tudo foi feito sem o consentimento do principal interessado, que era o dono da peça íntima.
No final das contas, o caso foi parar no Judiciário, tendo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgado favoravelmente ao ator.

Clique aqui para ver o acórdão na íntegra.

Caso Maitê Proença


A atriz Maitê Proença, depois de pousar nua para a Revista Playboy, teve o dissabor de ver uma das fotos publicada em um jornal carioca, sem o seu consentimento.
Em razão disso, ingressou com ação de indenização contra o referido jornal. Alegou ter direito a dano material (já que ela não recebeu qualquer pagamento pela utilização de sua foto) e a dano moral (já que a foto nua lhe colocava em uma constrangedora situação, especialmente porque o público que lia o jornal não era o mesmo público que lia a revista Playboy).
Quanto ao dano material, nada demais. É óbvio que a atriz tem direito de receber uma remuneração pelo uso da sua imagem, já que o jornal vendeu mais exemplares às custas dela. A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) foi nesse sentido. O problema foi quanto ao dano moral.
O TJRJ, em polêmica decisão, entendeu que não teria havido dano moral. Confira o argumento: “só mulher feia pode se sentir humilhada, constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou em revistas. As bonitas, não”. Se Maitê Proença fosse “feia, gorda, cheia de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação de sua fotografia desnuda – ou quase – em jornal de grande circulação, certamente lhe acarretaria um grande vexame”. Para os desembargadores, “tratando-se de uma das mulheres mais lindas do Brasil”, nada justificaria o pedido de indenização por danos morais.
A atriz recorreu ao STJ que modificou a decisão do TJRJ. Veja a ementa:
“Recurso Especial. Direito Processual Civil e Direito Civil. Publicação não autorizada de foto integrante de ensaio fotográfico contratado com revista especializada. Dano moral. Configuração.
– É possível a concretização do dano moral independentemente da conotação média de moral, posto que a honra subjetiva tem termômetro próprio inerente a cada indivíduo. É o decoro, é o sentimento de auto-estima, de avaliação própria que possuem valoração individual, não se podendo negar esta dor de acordo com sentimentos alheios.
– Tem o condão de violar o decoro, a exibição de imagem nua em publicação diversa daquela com quem se contratou, acarretando alcance também diverso, quando a vontade da pessoa que teve sua imagem exposta era a de exibí-la em ensaio fotográfico publicado em revista especializada, destinada a público seleto.
– A publicação desautorizada de imagem exclusivamente destinada a certa revista, em veículo diverso do pretendido, atinge a honorabilidade da pessoa exposta, na medida em que experimenta o vexame de descumprir contrato em que se obrigou à exclusividade das fotos.
– A publicação de imagem sem a exclusividade necessária ou em produto jornalístico que não é próprio para o contexto, acarreta a depreciação da imagem e, em razão de tal depreciação, a proprietária da imagem experimenta dor e sofrimento”.

Clique aqui para ver a decisão na íntegra.

Caso Glória Pires e Família

A atriz Glória Pires e seu marido Orlando Morais (compositor) foram vítimas de um dos mais lamentáveis boatos no cenário artístico brasileiro. Diversos meios de comunicação espalharam que o referido casal estaria se separando, pois a filha da atriz (a também famosa Cléo Pires), na época com apenas dezesseis anos, estaria tendo um caso com Orlando Morais. A mentira se espalhou rapidamente, causando um sério constrangimento para a família.
Depois de tudo haver se esclarecido, Glória, Cléo e Orlando ingressaram com ação de indenização contra os meios de comunicação que espalharam a notícia e ganharam. A indenização fixada pelo TJRJ foi de R$ 200.000,00 para Glória Pires, R$ 100.000,00 para Orlando Morais e de R$ 300.000,00 para Cléo Pires.
Clique aqui e veja a decisão do TJRJ.

Caso Chico Buarque – Marieta Severo

Outro caso envolvendo fofoca sobre a vida privada de celebridades ocorreu com divulgação dos rumores sobre o motivo da separação de Chico Buarque e Marieta Severo. O jornal carioca “O Dia” espalhou que o pivô da separação seria a cantora Daniela Mercury, que estaria tendo um caso com Chico Buarque.
Indignados com a fofoca, Chico e Marieta ingressaram na Justiça e obtiveram uma indenização de 500 salários mínimos para cada.
Veja a decisão do STJ.
Caso Cássia Kiss

O caso Cássia Kiss tem uma importância especial (apesar de não ser tão interessante), pois chegou até o Supremo Tribunal Federal. Foi um dos únicos casos sobre direito à imagem enfrentado pela mais alta Corte do Brasil.
A confusão começou quando a editora Ediouro publicou uma foto da atriz, sem sua autorização, na capa de duas revistas: “Remédios Caseiros” e “Coquetel” de palavras-cruzadas. Não era uma foto constrangedora, mas mesmo assim a atriz ingressou com ação de indenização, pedindo a reparação dos danos materiais e morais.
O STF concordou com a atriz e reconheceu tanto o dano material quanto o dano moral. Veja a ementa:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. DANO MORAL: FOTOGRAFIA: PUBLICAÇÃO NÃO CONSENTIDA: INDENIZAÇÃO: CUMULAÇÃO COM O DANO MATERIAL: POSSIBILIDADE. Constituição Federal, art. 5º, X. I. Para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5º, X. II. – R.E. conhecido e provido.
Veja, ainda, a decisão do STF na íntegra.

Outros casos
Caso Nívea Stelmann – Publicação de foto em noite de autógrafos – Inexistência de direito à indenização

Caso Gérson Brenner vs. Contigo – Publicação de foto e de noticia informando que a separação do ator com sua companheira (Ana Cristina) estava virando caso de polícia, com acusação de estelionato e de espancamento – Inexistência de direito à indenização, vez que não se comprovou a falsidade das informações

Caso Carolina Ferraz vs. Isto É Gente – Publicação de foto em capa de revista sem autorização – Direito à indenização

Caso João Paulo (cantor) vs. Domigão do Faustão – Simulação de fatos não comprovados que colocavam em cheque a fidelidade conjugal do falecido cantor – Direito à indenização

Caso Cida Costa – Uso indevida da imagem (quebra de contrato) – Dever de Indenizar

Caso Deborah Secco vs. Revista Playboy – Publicação de fotos da atriz nua em novas capas da mesma revista (Playboy) – Inexistência do dever de indenizar

Caso Rita Guedes – Publicação de foto da atriz em boate – Inexistência do dever de indenizar

Caso Vera Zimmerman – Quebra de contrato – foto nua – Dever de indenizar

Caso Danielle Winits vs. Isto É – Publicação de foto da atriz nua (extraída do seriado “Quintos dos Infernos” – Inexistência do dever de indenizar

Caso Juliana Paes vs. Revista Veja – Publicação de foto da atriz, sem calcinhas, em local público – Inexistência do Dever de Indenizar

Comentários Finais
Todas as situações envolvendo o fenômeno da colisão de direitos fundamentais são de complexa solução. Tudo vai depender das informações fornecidas pelo caso concreto e das argumentações apresentadas pelas partes do processo judicial. Por isso, é difícil afirmar de antemão quem tem razão.
Mesmo assim, é possível apontar alguns parâmetros para auxiliar na tomada de decisão.
Por exemplo, podem ser citados, como elementos meramente ilustrativos, os seguintes dados que poderão influenciar no resultado do processo judicial:
I – importância da informação (a informação é de interesse público?)
II – intuito de lucro (está havendo lucro direto com a divulgação da informação ou da imagem?)
III – violação da honra (a divulgação da matéria/imagem viola a honra do interessado?)
IV – intimidade (a divulgação da matéria/imagem viola a intimidade do interessado? É em lugar público ou privado?)
V – veracidade da informação (a informação é verdadeira?)
VI – intuito humorístico (a matéria tem intuito humorístico?)
Conforme for a resposta para as perguntas acima, a solução jurídica penderá para um dos dois lados: ou para o lado da liberdade de informação ou para o lado do direito à imagem. E no final, o Judiciário sopesará esses valores (é o que se costuma chamar de ponderação) e solucionará o caso em definitivo (quem tem a última palavra é sempre o Poder Judiciário).
O que se tem observado, em síntese, é o seguinte: havendo utilização indevida da imagem, sem consentimento do interessado, é cabível a indenização nos casos em que: (a) há intuito comercial; (b) quebra de contrato; (c) ofensa à honra (ressalvado, neste caso, o direito de sátira, exercido dentro dos limites da razoabilidade – estou elaborando um post especificamente quanto a isso).
O problema maior vai surgir nos casos em que não houver intuito comercial nem violação à honra, pois, nessas situações, há um conflito aparente de normas entre o Código Civil e a Constituição Brasileira.
Confira:
Constituição Federal:
Art. 5, V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
inc.X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Código Civil:
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Como se observa, a Constituição Federal protege o direito à imagem de modo incondicionado. O direito à indenização pelo uso indevido da imagem, de acordo com a CF/88, independe de violação à honra.
Já o Código Civil, diz que somente haverá indenização, pelo uso indevido da imagem, se houver ofensa à honra, à boa fama ou à respeitabilidade, ou se houver intuito comercial.
O STF e o STJ já sinalizaram (nos casos Cássia Kiss e Maitê Proença, respectivamente) que o uso indevido da imagem gera um dano “in re ipsa”, isto é, que vale por si só, independentemente de violar a honra. Mesmo assim, ainda não houve a análise da matéria à luz do art. 20 do novo Código Civil.
Uma valorização extremada da imagem, como tem feito o STF e o STJ, pode ocasionar uma limitação desproporcional ao direito de informação e à liberdade jornalística. Por isso, é preciso buscar um meio termo. Talvez seja melhor entender que a divulgação de fotografia sem autorização não gera, por si só, o dever de indenizar por danos morais, devendo se verificar outros fatos capazes de justificar uma indenização. Há, inclusive, uma decisão do STJ sobre o assunto: “Para imputar o dever de compensar danos morais pelo uso indevido da imagem com fins lucrativos é necessário analisar as circunstâncias particulares que envolveram a captação e exposição da imagem” (REsp 622.872⁄NANCY).
A título de informação, vale citar o principal “leading case” mundial sobre o assunto, que foi o Caso Carolina de Mônaco vs. Paparazzi, julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos. É um julgamento memorável que, na minha ótica, consegue compatibilizar a liberdade de informação e o direito à privacidade.
No julgamento, foram feitas as seguintes ponderações:
a) se a celebridade estiver em local público (praia ou rua, por exemplo), uma eventual fotografia pode ser publicada livremente, desde que não se destine a fins lucrativos;
b) se a celebridade estiver em local privado (sua casa ou seu barco, por exemplo), a publicação indevida de imagens pode gerar direito à indenização;
c) se a celebridade estiver em local público, mas em área reservada (um setor privativo de uma loja ou uma área privativa de um restaurante, por exemplo), demonstrando interesse em não ser fotografada, a publicação da imagem também pode gerar direito à indenização.
Clique aqui para ver a decisão, na íntegra e em português, do caso Carolina de Mônaco, julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos.