O que é ativismo, afinal?

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Os juristas têm mania de conceituar e parecem fazer dessa atividade um jogo com vencedores e vencidos. Não se percebe que as palavras, por mais poderosas e importantes que sejam, são apenas ferramentas criadas culturalmente para facilitar a comunicação e nada mais do que isso. O uso de uma determinada palavra não pode ser qualificado de falso ou verdadeiro, nem de certo ou errado, mas apenas de adequado ou inadequado. Ou seja, se a transmissão da ideia foi atingida satisfatoriamente, pode-se dizer que as palavras cumpriram sua finalidade. Se, pelo contrário, a confusão terminológica impediu o mútuo entendimento, algo está errado, tornando-se necessário estabelecer algum tipo de pacto semântico para que a comunicação possa prosseguir a contento.

O pacto semântico, em geral, não é explícito, até porque a imensa maioria das palavras não gera dúvida de compreensão. Há, porém, determinadas situações em que se torna importante esclarecer o uso de algumas expressões, sobretudo para evitar que palavras polissêmicas sejam usadas para se referir a fenômenos diferentes em um determinado contexto comunicacional.

No direito, cuja gramática está repleta de palavras ambíguas e com forte carga valorativa, a confusão linguística costuma ser constante. Por isso, o pacto semântico deveria ser uma atividade permanente e explícita, exercitado antes mesmo do debate de fundo prosseguir. Infelizmente, não é assim que ocorre. Em geral, os juristas assumem uma postura de arrogância semântica, como se fossem os donos das palavras, desenvolvendo conceitos com pretensões de serem os únicos verdadeiros e chamando de equivocados todos os usos diferentes daquela expressão que ele arbitrariamente se apropriou. E o pior é que nem sempre há um esclarecimento preciso sobre o uso daquela palavra, como se todos estivessem de acordo com os pressupostos linguísticos e teóricos assumidos implicitamente pelo interlocutor.

Os exemplos disso são múltiplos, mas fiquemos apenas com a palavra “ativismo judicial”, objeto do presente texto.

Nos anos 1980 e 1990, a expressão “ativismo judicial” era normalmente usada para se referir a uma atitude de “rebeldia” dos “juízes de esquerda” (alternativos), que faziam de sua atividade uma tentativa de transformar o mundo. Assim, aqueles que defendiam que a função judicial deveria buscar a emancipação social elogiavam o ativismo judicial. Por outro lado, os que criticavam essa contaminação ideológica da jurisdição repudiavam o ativismo judicial.

Já mais recentemente, a expressão “ativismo judicial” perdeu parte de sua polaridade direita-esquerda para se referir a uma atitude de voluntarismo judicial genérico. Nesse contexto, costuma-se usar a expressão “ativismo judicial” em um tom pejorativo, para criticar um tipo de jurisdição que não respeita seus limites funcionais. O juiz ativista seria um tipo de juiz “porra-louca”, que julga como quer e não presta contas a ninguém.

O problema é que a função jurisdicional, sobretudo com o avanço do constitucionalismo, passou por tantas transformações que é difícil estabelecer quais são seus limites funcionais. É papel do juiz negar-se a aplicar uma lei inconstitucional? E uma lei injusta? Pode o juiz se valer de argumentos pragmáticos ao tomar uma decisão? E elementos éticos? Na interpretação do texto normativo, deve o juiz simplesmente tentar captar o sentido semântico contido no texto ou deve se esforçar para ir além da interpretação gramatical? E se houver mais de um sentido semântico, como decidir qual deve prevalecer? Em matéria probatória, deve o juiz receber passivamente os dados indicados pelas partes ou deve buscar, mesmo de ofício, informações que possam enriquecer a compreensão da realidade? Enfim… são questionamentos sobre o papel da jurisdição que dividem os juristas e também os próprios juízes.

Dentro desse contexto, o que se nota é que a etiqueta “ativismo judicial” tem-se transformado em uma espécie de rótulo que serve para criticar todas aquelas situações que, na ótica do interlocutor, extrapolam a função jurisdicional. Com isso, a expressão perdeu grande parte de seu poder explicativo, pois seu uso, nesse contexto, pressupõe uma compreensão mais abrangente do papel da função jurisdicional, do sentido do direito, dos limites do constitucionalismo, das possibilidades do raciocínio jurídico e da atividade interpretativa etc. É óbvio que a compreensão disso tudo não é simples, como também não é simples, mesmo depois de muita reflexão, estabelecer limites precisos para o exercício da função jurisdicional.

Na ausência de uma abrangente teoria do direito que possa servir para estabelecer os limites da função jurisdicional, a expressão “ativismo judicial” não passa de um slogan emotivo para exprimir um sentimento de aprovação ou desaprovação de uma determinada decisão. Quando se concorda com a decisão, diz-se que o juiz não foi ativista, pois não extrapolou seus limites, interpretou corretamente o direito existente, exerceu a guarda da constituição de forma adequada e assim por diante. Por outro lado, quando a decisão não agrada, afirma-se que o juiz foi ativista, arbitrário, decisionista, usurpou o poder legislativo e outros epítetos nada elogiosos. A charge acima ilustra com perfeição esse fenômeno.

Para que o debate possa sair desse impasse, é preciso um pouco mais de rigor semântico e clareza na apresentação das ideias, tentando escapar desse jogo de subjetividade que orienta as preferências contingentes do interlocutor. Sem um prévio pacto semântico que possa possibilitar o entendimento mútuo, o atalho fácil do “ativismo é ruim”, “sou contra o ativismo” ou “ativismo é bom”, “sou a favor do ativismo” não satisfaz. É uma espécie de “ativismo semântico”, com o perdão do jogo de palavras.

Curiosamente, o problema não é restrito ao Brasil. Mesmo nos Estados Unidos, que vivem esse debate há séculos, ainda não se tem um sentido preciso do “judicial activism“, nem mesmo do seu contraponto, o “judicial self-restraint“.

Para se ter uma ideia da dificuldade do problema, Thomas Sowell explica que há pelo menos sete fatores que costumam ser associados ao ativismo e à auto-restrição judiciais. Assim, um juiz poderá ser considerado ativista ou não conforme se afaste ou se aproxime: (1) da opinião pública dominante; (2) do legislador que representa a atual maioria popular; (3) das leis aprovadas pelo legislativo do presente ou do passado; (4) dos atos atuais do executivo ou das agências administrativas; (5) do significado das palavras contidas na constituição; (6) dos princípios e propósitos daqueles que escreveram a constituição; ou (7) dos precedentes estabelecidos por interpretações judiciais com base na constituição (SOWELL, Thomas. Judicial Activism Reconsidered. Stanford: Stanford University, 1989, p. 1).

Sowell esclarece que “no coração do conceito” de judicial activism encontra-se o medo de que o juiz imponha suas próprias preferências pessoais em suas decisões, deixando de lado a ideia de que a vida social deve ser regulada por um conjunto de regras previamente conhecidas e não por critérios ad hoc estabelecidos arbitrariamente pelo julgador. Assim, na sua ótica, o ativismo que deveria ser rejeitado é aquele que permite que os “valores substantivos” dos juízes orientem as decisões constitucionais (p. 32).

William P. Marshall também associa a expressão judicial activism a uma espécie de pecado, apontando sete tipos de ativismo que costumam ser mencionados pela literatura jurídica: (1) o ativismo contramajoritário (“counter-majoritarian activism”), que consiste na relutância das cortes de prestar deferência às decisões tomadas pelos órgãos democraticamente eleitos; (2) o ativismo não-originalista (“non-originalist activism”), decorrente de uma desconsideração pelos propósitos originais estabelecidos na constituição pelos constituintes (“framers”); (3) o ativismo de precedentes (“precedential activism”), que resulta da não observância dos precedentes consolidados; (4) o ativismo jurisdicional (“jurisdictional activism”), fruto da incapacidade dos tribunais de se curvarem aos limites jurisdicionais de seus próprios poderes; (5) o ativismo criativo (“judicial creativity”), resultado da criação de novas teorias e direitos na doutrina constitucional; (6) o ativismo corretivo ou remedial (“remedial activism”), que implica o uso do poder judicial para impor contínuas obrigações positivas aos outros poderes ou submeter outras instituições governamentais a uma supervisão judicial como parte do controle jurisdicional; (7) o ativismo partidário (“partisan activism”), que significa o uso do poder judicial para efetivar os objetivos ou o programa ideológico de um determinado partido político (MARSHALL, William P. Conservatives and the Seven Sins of Judicial Activism. In: Colorado Law Review vol. 73, 2002, disponível on-line: http://tinyurl.com/kvktazw).

Por outro lado, nem sempre a palavra ativismo é usada com essa conotação patológica. Algumas vezes, diz-se que um tribunal ou um juiz é ativista quando assume deliberadamente uma atitude proativa na decisão de casos concretos, desenvolvendo soluções inovadoras para além dos critérios normativos disponíveis (e, em alguns casos, até mesmo contra os critérios previstos). Em geral, essa atitude é assumida como uma parte indissociável da interpretação jurídica que há muito tempo superou a sua dimensão mais legalista e formalista. Outras vezes, é assumida como uma exigência do próprio judicial review e da proteção constitucional a ele inerente. O juiz, em nome da defesa da constituição, teria o dever jurídico de exercer o controle de constitucionalidade e até mesmo de racionalidade das leis, o que significa que não poderia ficar aprisionado ao conteúdo normativo estabelecido pelo legislador, devendo se guiar pelos comandos constitucionais, por mais genéricos e abstratos que sejam.

Em qualquer caso, o importante é perceber como é difícil estabelecer rótulos para qualificar a atividade jurisdicional. Toda decisão contém alguns componentes volitivos e toda interpretação carrega alguma dose de criação. Portanto, é quase impossível estabelecer limites precisos para diferenciar o “juiz ativista” do “juiz honorável”. Talvez o juiz honorável seja apenas um juiz ativista mais astuto, que soube fundamentar adequadamente a sua decisão. Ou talvez seja o contrário: o juiz ativista talvez seja apenas um juiz que não foi astuto o suficiente para esconder suas inclinações e preferências subjetivas. Enfim, o que eu sei é que, quando escuto alguém acusar um juiz de ser ativista, a primeira coisa que me vem à mente é: provavelmente, a decisão não agradou aquela pessoa. No fundo, o epíteto “ativista” é apenas uma espécie de manifestação emotiva de descontentamento com o conteúdo do julgado ou, na melhor das hipóteses, com o modelo de justificação da decisão. Sem uma rede mais ampla de informações, é possível afirmar que o ativismo está, de fato, apenas nos olhos de quem vê.

Pra começar bem 2016: um pouco de omissão inconstitucional

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É muito bom começar um ano com os ânimos revigorados e com muitos projetos a serem implementados. 2015 foi um ano excelente no âmbito acadêmico. Além da defesa da tese de doutorado, o ano fechou com chave de ouro com a aprovação pela CAPES da criação do curso de mestrado da FA7 – Faculdade 7 de Setembro. Notícia esta que me abriu um monte de perspectivas e me deu um novo gás para iniciar alguns projetos acadêmicos engavetados, seja projetos individuais (produção de artigos e livros), seja projetos colaborativos (grupos de pesquisa*).

Como fruto desses ares revigorantes, resolvi aproveitar o recesso para concluir alguns artigos que havia começado no ano passado. Na verdade, a ideia original era escrever um livro sobre Omissões Inconstitucionais, mas preferi transformar algumas reflexões em artigos específicos, e dois já estão praticamente prontos. Mais dois ou três a caminho.

O interesse pelo tema nasceu a partir de um convite para ministrar uma aula sobre controle de constitucionalidade por omissão em um curso de pós-graduação, coordenado pelos Profs. Robério Nunes e Flávia Martins. Quando fui preparar a aula e estudar o que havia sido produzido sobre omissão inconstitucional nas últimas duas décadas, fiquei decepcionado (embora não surpreso) com o que vi. Mais do mesmo. Subserviência com a jurisprudência do STF, que, por sinal, é caótica e contraditória. Pouca ousadia. Provincianismo. Nenhum diálogo com os países latino-americanos. Repetição acrítica de ideias equivocadas. Sublimação do saber que vem “de cima” (do hemisfério norte ocidental). Desconsideração da proteção multinível. Praticamente nada sobre litígios estruturais. Falta de coerência. Alguma hipocrisia. E por aí vai…

A cada texto que eu lia, mais eu me convencia de que havia um campo vastíssimo a ser explorado, em um tema não só fascinante, mas também de extrema importância prática e teórica. Afinal, a um só tempo, dois problemas fundamentais e atuais entram em jogo quando se fala de omissão inconstitucional: a falta de efetividade dos direitos e o excesso de judicialização do Supremo Tribunal Federal. E assim, resolvi arregaçar as mangas e, dentro de minhas capacidades, tentar suprir algumas lacunas que identifiquei, escolhendo cinco “desafios”, a serem transformados em artigos:

(1) desconstruir o mito de que apenas as normas de eficácia limitada podem gerar omissões inconstitucionais (artigo já concluído);

(2) verificar as possibilidades do controle jurisdicional das omissões inconvencionais (artigo já concluído);

(3) desenvolver standards para auxiliar o diagnóstico das omissões inconstitucionais por níveis de gravidade e, assim, permitir que a resposta judicial varie em conformidade com a gravidade da omissão inconstitucional (artigo em desenvolvimento);

(4) analisar o problema da omissão parcial ou da proteção insuficiente para verificar em que situações é possível corrigir o problema por meio de uma extensão do direito aos grupos excluídos e em que situações isso não seria recomendável (artigo em desenvolvimento);

(5) construir as bases para um modelo de macrojurisdição para a solução de violações estruturais de direitos, seja em nível mais local, seja em nível mais amplo (artigo em desenvolvimento).

Encarar esses desafios para mim é, de certo modo, um retorno às minhas origens acadêmicas. Afinal, desde 2008, quando entrei no doutorado, os problemas sobre os quais me debrucei tinham um viés mais “filosófico” por assim dizer. De certo modo, eu havia deixado de lado os problemas tradicionais da teoria constitucional para ir um pouco mais a fundo, investigando os fundamentos do poder, o sentido do direito, a moralidade política, as teorias da justiça e assim por diante… Agora, volto, ainda que brevemente, à “dogmática”, mas com um espírito “antidogmático”. Vamos ver no que vai dar.

Desde já, disponibilizo os dois primeiros artigos que desenvolvi para uma discussão prévia, antes de submetê-los a uma publicação oficial. São eles:

  1. a) A Eficácia Incompleta das Normas de Eficácia Plena: desfazendo um mal-entendido sobre o parâmetro normativo das omissões inconstitucionais;
  2. b) Controle Jurisdicional das Omissões Inconvencionais.

Comentários, críticas, indicação de erros ortográficos ou de digitação, sugestões bibliográficas etc… são super bem-vindos. Podem ser enviadas diretamente para o meu email: georgemlima@yahoo.com.br

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* Estou elaborando também um outro projeto de pesquisa um pouco mais ousado, de natureza colaborativa, que espero que seja inovador dentro do contexto jurídico brasileiro. Não posso dar os detalhes agora, mas, em breve, explicarei como irá funcionar.

Show me a Hero: uma minissérie sobre demandas estruturais nos EUA

O post de hoje é sobre um assunto aparentemente árido: injunções estruturais (structural injunctions). É um modelo de macrojurisdição, que, ao invés de mirar a resolução de conflitos intersubjetivos (microjurisdição), busca enfrentar as causas estruturais do problema. Assim, por exemplo, se o sistema de educação segregado entre brancos e negros é inconstitucional (tal como decidido pela Suprema Corte norte-americana em 1954), há pelo menos duas formas de enfretar o problema. Pelo modelo tradicional (microjurisdição), cada criança negra prejudicada com a política segregacionista ingressaria com uma ação individual e buscaria um remédio judicial para o seu problema. O juiz responsável, identificando a violação do direito, determinaria a sua matrícula em uma escola “de brancos” (obrigação de fazer) e/ou imporia uma ordem de reparação pelos prejuízos sofridos (obrigação de pagar). No modelo de demandas estruturais (macrojurisdiçao), a solução judicial buscaria alterar toda a política educacional que contribui para aquele estado de coisas discriminatório, impondo ordens estruturais (structural injunctions) para forçar as instituições responsáveis a reverem suas práticas e agirem em conformidade com os padrões estabelecidos na decisão judicial. Nesse contexto, a superação estrutural de um caso como o da segregação racial pode atingir o sistema de transporte escolar, o local para a construção de uma escola e até mesmo a política habitacional (para que as moradias populares concedidas aos negros sejam integradas às comunidades “brancas”, por exemplo).

Esse tema supostamente indigesto (apesar de extremamente útil para o estudioso do direito) foi o pano de fundo de uma interessante minissérie da HBO, chamada “Show me a Hero“, que narra o desenvolvimento da implementação de uma injunção estrutural na Cidade de Yonkers (NY). O caso é analisado na perspectiva de um prefeito (Nick Wasicsko) que, no final dos anos 1980, teve a espinhosa missão de implementar, contra a vontade de seus eleitores, uma ordem judicial que determinou a construção de 200 casas populares em um bairro dominado por uma elite branca completamente hostil ao que foi decidido.

Como os episódios foram baseados em um caso real que teve muita repercussão nos EUA, há alguns aspectos da história que não são bem explicados. Por exemplo, os próprios fundamentos da decisão judicial (de 670 páginas!) não ficaram muito claros. A minissérie já se inicia na fase de implementação da decisão e não expõe os detalhes do contexto que a motivou, prejudicando um pouco a compreensão do problema como um todo.

Na verdade, a minissérie já se inicia em uma segunda etapa do processo de implementação da decisão, quando os mecanismos de solução consensual foram ultrapassados. São feitas algumas menções às várias tentativas de diálogo que não deram resultados, mas tais esforços não são enfatizados. Assim, o espectador já é inserido em uma etapa de intervenção judicial mais agressiva (contempt), que, obviamente, impressiona aqueles que não estão acostumados com o modelo judicial americano. Basta dizer que, logo nos capítulos iniciais, o juiz concede um prazo para que o plano de habitação seja apresentado pelo município, devendo ser indicada a localização das casas e o prazo de sua construção. Como o município já vinha sendo contumaz em desobedecer os prazos assinalados judicialmente, o juiz aplicou uma multa diária de quinhentos dólares, que dobraria a cada dia de descumprimento, até que o plano fosse aprovado (isso, na prática, levaria à falência do município em menos de um mês). O juiz determinou ainda que os vereadores que votassem contra o plano também deveriam ser multados e deveriam ficar presos até que mudassem de ideia e resolvessem aprová-lo!

Essas medidas mais invasivas foram suspensas em grau de recurso (obviamente, por violação à separação dos poderes), mas o comando geral da ordem de construção de 200 casas foi mantido. E é justamente em torno disso que a narrativa se desenvolve.

Parece-me que o propósito da minissérie não foi criticar o ativismo judicial do juiz responsável pelo caso (Juiz Federal Leonard Sand), mas demonstrar as dificuldades de se implementar uma ordem ambiciosa sem o engajamento da comunidade afetada. Basta dizer que o processo teve início em 1980 e a “sentença de extinção”, reconhecendo o cumprimento da obrigação de fazer, foi proferida apenas em 2007 (aqui). Durante todo esse período, o juiz Sand monitorou de perto o caso (por 27 anos!), acompanhando cada fase do processo de implementação, o que ilustra outro aspecto dos litígios estruturais: em geral, o mais complicado nesse tipo de demanda não é a constatação em si da violação de direitos, mas a superação do problema, que costuma ser demorada e exige um enorme empenho e criatividade do órgão judicial responsável pelo processo.

Além disso, a minissérie explora com perfeição o backlash político que se alimenta desse descontentamento criado a partir da ordem judicial. O discurso conservador contrário à ordem judicial se torna o discurso dominante, garantindo a vitória eleitoral dos políticos que criticam a decisão. Nesse processo, o preconceito que costumava ser dissimulado passa a ser abertamente defendido, acirrando ainda mais os conflitos raciais entre as pessoas diretamente afetadas. Com isso, o ambiente para a implementação da ordem judicial torna-se cada vez mais problemático, criando um sentimento de hostilidade não só com a ordem judicial, mas também com os seus beneficiários. Ao final, fica uma dúvida sobre a utilidade de todo aquele esforço.

O grande paradoxo das demandas estruturais parece ser justamente este: para fazer mudanças de larga escala é preciso antes obter o apoio da comunidade afetada e das instituições responsáveis. Porém, se houvesse o apoio da comunidade e das instituições, as demandas estruturais não seriam necessárias. Tem-se aí um impasse complicado. Sem respostas ainda…

Enfim, vale a pena assistir a minissérie, preferencialmente tentando compreender o background do caso e perceber os problemas práticos e teóricos que estão por trás das demandas estruturais.

O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão constitucional?

Quadro do pintor colombiano Fernando Botero

O chamado Estado de Coisas Inconstitucional – ECI tem tudo para se tornar a nova onda do verão constitucional, depois de sua adoção pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347/DF, em que se discute a crise do sistema carcerário (ver informativo 798). Mas será que se trata de apenas mais um modismo passageiro ou há, de fato, algo de valioso a ser extraído dessa novidade?

O conceito de ECI (“Estado de Cosas Inconstitucional“) foi desenvolvido pela Corte Constitucional colombiana no contexto de violações sistemáticas de direitos fundamentais e possui um propósito bastante ambicioso: permitir o desenvolvimento de soluções estruturais para situações de graves e contínuas inconstitucionalidades praticadas contra populações vulneráveis em face de falhas (omissões) do poder público.

Em termos muito sintéticos, ao declarar o Estado de Coisas Inconstitucional, o Judiciário reconhece a existência de uma violação massiva, generalizada e estrutural dos direitos fundamentais contra um grupo de pessoas vulneráveis e conclama que todos os órgãos responsáveis adotem medidas eficazes para solucionar o problema. Nesse sentido, o ECI é uma forma de dizer que a situação está tão caótica e fora de controle que é necessário que todos os envolvidos assumam um compromisso real de resolver o problema de forma planejada e efetiva.

A própria Corte Constitucional colombiana, na decisão T 025/2004, sistematizou seis fatores que costumam ser levados em conta para estabelecer que uma determinada situação fática constitui um estado de coisas inconstitucional: (1) violação massiva e generalizada de vários direitos constitucionais, capaz de afetar um número significativo de pessoas; (2) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir os direitos; (3) a adoção de práticas inconstitucionais a gerar, por exemplo, a necessidade de sempre ter que se buscar a tutela judicial para a obtenção do direito; (4) a não adoção de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos; (6) a existência de um problema social cuja solução depende da intervenção de várias entidades, da adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e da disponibilização de recursos adicionais consideráveis; (7) a possibilidade de um congestionamento do sistema judicial, caso ocorra uma procura massiva pela proteção jurídica.

A primeira decisão sobre o tema foi de 1997 (SU 559/97), envolvendo uma demanda de professores que questionaram judicialmente a perda de alguns benefícios sociais. Referida decisão, contudo, não traduz a real dimensão do instituto, pois, nesse primeiro caso, o ECI foi mobilizado principalmente como uma ferramenta para evitar a repetição de demandas individuais sobre o mesmo assunto. Como havia vários professores na mesma situação dos demandantes, a Corte optou por declarar o “estado de cosas” contrário à constituição e exigir que fosse construída uma solução uniforme para todos, evitando assim a propositura de várias ações judiciais individuais sobre o mesmo tema.

De qualquer modo, é notório que tal decisão abriu as portas para a superação de um modelo de proteção jurídica de índole individual, onde o Judiciário responde a cada demandante em particular, não podendo ir além dos limites do pedido inicial. Com a declaração do ECI, o comando judicial visa solucionar o problema não só daquelas pessoas que ingressaram com a ação, mas de todos os demais afetados. E mais: são chamados para o processo não apenas os órgãos que estão diretamente envolvidos na violação dos direitos dos demandantes, mas todos aqueles que possam, de algum modo, contribuir para buscar a solução global do problema.

Como se observa, houve, no contexto colombiano, razões de ordem processual para o desenvolvimento do ECI, pois sua função originária, pelo menos no caso acima citado, foi suprir a ausência de um mecanismo jurídico-processual coletivo ou mesmo abstrato de proteção dos direitos fundamentais. A ideia era que, ao constatar a violação generalizada e sistemática de direitos (comprovada pela propositura de diversas ações semelhantes sobre o mesmo tema), o juiz pudesse estender a proteção judicial para todo o conjunto de pessoas afetadas, mesmo que estas pessoas não tivessem ingressado com ações individuais, evitando assim uma sobrecarga do sistema judicial em razão da multiplicidade de demandas repetitivas.

Se o ECI se limitasse a isso, seria desnecessária a sua importação para o Brasil. Afinal, já existem medidas jurídico-processuais previstas na Constituição para a proteção de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. A própria ADPF parece que cumpre essa função a contento. Caso a medida envolva a elaboração de uma norma regulamentadora capaz de viabilizar o exercício do direito, tem-se o mandado de injunção. Em algumas situações de âmbito regional ou local, a ação civil pública também pode ser um instrumento adequado de proteção contra as violações sistemáticas a direitos fundamentais. Além disso, com a súmula vinculante, o STF poderia estender os efeitos de uma demanda individual para todos os que estivessem em situação semelhante, e a decisão seria vinculante também para demais os órgãos do poder público, mesmo que não fossem parte da ação originária.

Porém, com o desenvolvimento jurisprudencial, o ECI, na Colômbia, deixou de ser um mero instrumento para dar uma feição coletiva a uma demanda individual para se tornar uma fórmula mais complexa para a superação de situações de graves e sistemáticas violações de direitos fundamentais, através de um diálogo institucional, onde vários órgãos diferentes atuam em conjunto para resolverem um problema estrutural. E nesse aspecto, o modelo pode ser bastante promissor aqui no Brasil.

Essa evolução jurisprudencial ocorreu, originalmente, em um caso emblemático julgado em 1998 (T 153/98), envolvendo a crise dos presídios, cujos problemas de fundo eram muito semelhantes ao do Brasil (superlotação e privação de direitos). Em uma ação individual interposta por um preso que denunciava violações de seus direitos mais básicos, a Corte ampliou o escopo original da demanda e chegou à conclusão de que o problema não se restringia ao presídio em que o demandante estava, mas abrangia todo o sistema penitenciário colombiano. A partir daí, foram realizadas diversas diligências visando diagnosticar a situação carcerária do país, tendo sido constatada a violação massiva da dignidade dos presos. Esse foi o ponto de partida para a declaração do ECI e estabelecimento de um diálogo institucional entre todas as entidades envolvidas visando solucionar o problema.

Outra relevante ação em que houve a mobilização do conceito do Estado de Coisas Inconstitucional, com a busca de um diálogo institucional visando superar uma massiva e sistemática violação de direitos de um grupo vulnerável, foi no caso T 025/2004, em que se discutia a situação dos migrantes internos (“despazados“), ou seja, das pessoas que foram obrigadas a abandonar seu local de origem por razões da violência provocada pelos conflitos armados e buscaram refúgio em outra localidade dentro do mesmo país.

Esse caso foi um dos casos mais emblemáticos da histórica da Corte Constitucional colombiana e inaugurou, de fato, uma nova fase no processo de superação do Estado de Coisas Inconstitucional, estabelecendo aquilo que pode ser designado por ativismo dialógico, em que a principal função da corte é a de coordenar um processo de mudança institucional através da emissão ordens de “desbloqueio” que costumam emperrar a burocracia estatal e de um processo de monitoramento contínuo sobre as medidas adotadas pelo poder público (RODRIGUEZ GRAVITO E RODRIGUEZ FRANCO, 2010). Assim, ao invés de proferir decisões contendo ordens detalhadas sobre como os órgãos devem agir, a Corte criou mecanismos de desobstrução ou desbloqueio dos canais de deliberação, buscou a coordenação do planejamento e da execução das políticas públicas, desenvolveu espaços de deliberação participativa e estabeleceu incentivos e prazos para avançar na proteção dos direitos. Além disso, a Corte manteve a sua jurisdição sobre o caso para impulsionar o cumprimento de suas ordens, tendo proferido 84 decisões e realizado 14 audiências públicas entre 2004 e 2010, já na fase de execução do julgado, mantendo um diálogo permanente com os órgãos envolvidos.

Esse processo de diálogo institucional é o que se pode extrair de mais valioso do modelo colombiano. A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional é, antes de mais nada, uma forma de chamar atenção para o problema de fundo, de reforçar o papel de cada um dos poderes e de exigir a realização de ações concretas para a solução do problema. Entendida nestes termos, o ECI não implica, necessariamente, uma usurpação judicial dos poderes administrativos ou legislativos. Pelo contrário. A ideia é fazer com que os responsáveis assumam as rédeas de suas atribuições e adotem as medidas, dentro de sua esfera de competência, para solucionar o problema. Para isso, ao declarar o estado de coisas inconstitucional e identificar uma grave e sistemática violação de direitos provocada por falhas estruturais da atuação estatal, a primeira medida adotada pelo órgão judicial é comunicar as autoridades relevantes o quadro geral da situação. Depois, convoca-se os órgãos diretamente responsáveis para que elaborem um plano de solução, fixando-se um prazo para a apresentação e conclusão desse plano. Nesse processo, também são indicados órgãos de monitoramento e fiscalização que devem relatar ao Judiciário as medidas que estariam sendo adotadas.

A linha de ação segue o seguinte esquema: (a) identificação e prova do quadro de violações sistemática de direitos, por meio de inspeções, relatórios, perícias, testemunhas etc. → (b) declaração do Estado de Coisas Inconstitucional → (c) comunicação do ECI aos órgãos relevantes, sobretudo os de cúpula e aos responsáveis pela adoção de medidas administrativas e legislativas para a solução do problema → (d) estabelecimento de prazo para apresentação de um plano de solução a ser elaborado pelas instituições diretamente responsáveis → (e) apresentação do plano de solução com prazos e metas a serem cumpridas → (f) execução do plano de solução pelas entidades envolvidas → (g) monitoramento do cumprimento do plano por meio de entidades indicadas pelo Judiciário → (h) após o término do prazo concedido, análise do cumprimento das medidas e da superação do ECI → (i) em caso de não-superação do ECI, novo diagnóstico, com imputação de responsabilidades em relação ao que não foi feito → (j) nova declaração de ECI e repetição do esquema, desta vez com atuação judicial mais intensa.

Nesse processo, o ideal é que o Judiciário não estabeleça, em caráter impositivo, os meios para a solução do problema, pois quem deve estabelecer o como agir são os órgãos responsáveis pela execução do plano. O papel do Judiciário deve ser o de buscar o engajamento de todos na resolução do problema e criar obrigações de resultado, estabelecendo parâmetros para caracterizar a superação do ECI e adotando os mecanismos processuais para pressionar os agentes estatais a cumprirem a política pública elaborada pelos próprios órgãos envolvidos.

Há alguns princípios-guias a orientar o nível da intervenção judicial. O primeiro refere-se ao grau da inação dos órgãos estatais. Quanto maior for a situação de abandono e de descaso com a solução do problema por partes dos órgãos competentes maior será a intensidade da atuação judicial. O segundo está relacionado à vulnerabilidade das pessoas envolvidas. Quanto maior for o grau de vulnerabilidade das pessoas afetadas (em razão da privação de direitos e incapacidade de articulação política) maior será a necessidade de uma atuação judicial mais rigorosa. Outro princípio importante relaciona-se à essencialidade do direito afetado: quanto maior for a essencialidade daquele (do ponto de vista do respeito e proteção da dignidade), maior deverá a busca pela sua implementação. Em todo caso, a atuação judicial deve mirar um diálogo para que a solução do problema seja construída pelos próprios órgãos responsáveis. Quanto mais sincero e efetivo for o engajamento dos demais órgãos para a solução do problema, menor deve ser a intervenção judicial.

É provável que os demais poderes vejam nisso uma intromissão indevida do Judiciário nos assuntos de governo. Afinal, a solução, com mais ou menos intensidade, exige uma alocação de recursos humanos e financeiros que pode afetar a gestão administrativa, além de interferir na conveniência e oportunidade legislativas. Porém, a atuação judicial não é motivada apenas pela inação dos demais poderes, mas sobretudo pela constatação de que está ocorrendo uma violação sistemática dos direitos, que, de algum modo, reflete não só um desrespeito à constituição, mas afeta a própria funcionalidade da atividade judicial. Ou seja, a rigor, toda pessoa prejudicada pela falha na prestação dos serviços públicos poderia ingressar com uma ação judicial para resolver o seu problema particular e, obviamente, os juízes seriam obrigados a proferir decisões para proteger o demandante. Pela fórmula tradicional de tutela em situações assim, a solução se daria por meio de emissão de ordens pontuais para violação concreta e específica de um determinado direito, o que não parece ser adequado, pois, além de gerar a sobrecarga de trabalho, o problema persistiria num nível macro. Por isso, para evitar soluções fragmentadas e assistemáticas, proferidas caso a caso, busca-se por meio do ECI uma solução orquestrada de várias entidades distintas, sob a batuta judicial. Essa união de todos os órgãos que, de fato e de direito, podem fazer a diferença seria a melhor forma para tentar superar o estado de coisas inconstitucional em sua totalidade.

De certo modo, o modelo do ECI pode ser até útil para os demais poderes, na medida em que pode evitar a pulverização de soluções tópicas em muitos níveis diferentes que, sem dúvida, atrapalhariam a gestão do sistema. Ou seja, se o ECI for declarado, e o plano de ação elaborado e iniciado, os órgãos envolvidos poderiam, em tese, ter um maior controle da situação, favorecendo a racionalidade no processo decisório. Hoje, como qualquer situação de desrespeito à constituição é judicializada de forma isolada, é impossível alcançar soluções sistematizadas, reinando um verdadeiro caos que pode até aumentar o quadro de inconstitucionalidade. Basta ver o exemplo da judicialização da saúde, em que as microsoluções (caóticas) impedem qualquer planejamento das macrosoluções (sistemáticas). Uma declaração de ECI em matéria de saúde, com a apresentação de um plano de solução global, minimizaria o caos em que se vive hoje, onde qualquer paciente ingressa com ações judiciais para pedir qualquer remédio, inviabilizando a construção de um plano racional de longo alcance.

Por fim, uma observação mais crítica, com um tom realista. Como se nota, o ECI é um instituto bastante ambicioso, já que, por meio dele, busca-se resolver pronta e eficazmente problemas complexos de natureza estrutural de largas proporções. A prudência, porém, nos recomenda a ser mais cauteloso quanto às possibilidades do instituto. Cautela aqui em dois sentidos. Em primeiro lugar, na própria definição do papel do Judiciário nesse processo. O modelo só faz sentido se o órgão judicial tiver plena consciência dos limites de sua atuação. O propósito do ECI não deve ser o de transformar o Judiciário em um superórgão responsável pela elaboração e execução de políticas públicas.Deve ser justamente o oposto disso, pois, nesse modelo, os juízes não exercem um papel de substituição, mas de mera supervisão ou acompanhamento de um projeto que foi planejado pelos entes responsáveis, dentro de suas respectivas esferas de competência. (Nesse ponto, pode-se criticar o pedido formulado na ADPF 347/DF, que, claramente, deturpa parcialmente o modelo, já que são apresentadas medidas concretas de solução que seriam, caso deferidas, impostas pelo Judiciário sem uma análise dos órgãos responsáveis).

A segunda cautela é quanto à própria eficácia do instituto. Sem dúvida, o ECI não é o antídoto capaz de resolver todos os problemas da humanidade. Na verdade, ele é muito menos eficaz quanto se pensa. Basta ver que, no caso emblemático da situação dos presídios na Colômbia, a Corte Constitucional, em 2013, proferiu uma nova decisão (T 388-2013) reconhecendo que, apesar da decisão de 1998, o estado de coisas inconstitucional nos cárceres colombianos persistia (ainda que por razões distintas).

Não se pode supervalorizar o papel do judiciário na implementação de soluções de largo alcance. O poder judicial tem uma capacidade limitada de fazer valer os direitos fundamentais, sobretudo quando estamos diante de decisões de alta magnitude, como a que determina o fim das violações dos direitos dos presos ou a efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais. Mesmo decisões bem fundamentadas, convincentes e principiologicamente guiadas podem se tornar uma mera folha de papel sem qualquer poder de mudar o mundo se não houver um compromisso mais amplo para fazer valer o direito. Além disso, mesmo que se reconheça um papel restritivo da função judicial no modelo de superação da ECI, é de que se questionar se o judiciário brasileiro tem estrutura para tanto. E não vai ser apenas criando um instituto com um nome bonitinho que conseguiremos transformar a sociedade. A eliminação por completo das violações sistemáticas de direitos depende de fatores que vão muito além do voluntarismo judicial.

Fonte:

Além das decisões da própria Corte Constitucional colombiana, um bom livro sobre o tema, que foi, inclusive, citado pelo STF, é:

RODRIGUEZ GRAVITO, César e RODRIGUEZ FRANCO, Diana. Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia, 2010

Efeito Backlash da Jurisdição Constitucional: reações políticas à atuação judicial

Em 1972, no caso Furman v. Georgia, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 5 a 4, que a pena de morte seria incompatível com a oitava emenda da constituição norte-americana, que proíbe a adoção de penas cruéis e incomuns.

O que parecia ser o fim da pena de morte nos Estados Unidos teve uma reviravolta surpreendente. A postura liberal da Suprema Corte, ao invés de gerar um amplo consenso em torno da perversidade dessa punição extrema, fortaleceu ainda mais o grupo conservador, que obteve, nas eleições seguintes, uma vitória política avassaladora, conquistando diversos cargos no parlamento e no executivo, tendo como bandeira política o endurecimento da legislação penal.

Ao conquistarem cada vez mais espaço político, os grupos conservadores conseguiram aprovar diversas leis aumentando o rigor da legislação penal, inclusive ampliando a prática da pena de morte.

Já em 1976, diante da mudança do cenário político, a Suprema Corte, reavaliando a decisão proferida em Furman v. Georgia, passou a entender que, observadas algumas condições, a adoção da pena de morte seria compatível com a oitava emenda da constituição (Gregg v. Georgia), permitindo que os estados continuassem a prever a pena capital para os crimes mais graves.

O curioso nesse processo é que, após a decisão proferida no caso Furman v. Georgia e a consequente vitória eleitoral do grupo favorável à pena capital, a quantidade de estados que passaram a adotar a pena de morte aumentou em relação ao quadro anterior. Ou seja, estados que antes não adotavam a pena de morte passaram a adotá-la graças à mudança na opinião pública provocada pela reação contra a postura liberal adotada pela Suprema Corte. Ao fim e ao cabo, a tentativa frustrada de acabar com a pena de morte por meio de uma decisão judicial teve um efeito indesejado, que prejudicou bastante o avanço da tese abolicionista.

Esse exemplo ressalta bem o que é o efeito backlash do ativismo judicial, que é uma espécie de efeito colateral das decisões judiciais em questões polêmicas, decorrente de uma reação do poder político contra a pretensão do poder jurídico de controlá-lo. O processo segue uma lógica que pode assim ser resumida. (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.

O efeito backlash pode gerar dúvidas sobre os reais benefícios da jurisdição constitucional na luta pela implementação de direitos fundamentais. Ou seja, mesmo aqueles que advogam teses liberais devem ter consciência dos riscos decorrentes da imposição forçada de uma solução pró-direitos fundamentais na via judicial. Como sugere Michael Klarman, decisões judiciais sobre questões que geram massiva resistência possivelmente acarretarão retrocessos, ao menos no curto prazo, além de produzirem efeitos imprevisíveis na arena política (ver artigo). Levando essa ideia ao extremo, Klarman deixa subentendido que a jurisdição constitucional pode não ser um locus eficiente para a implementação de direitos. Aliás, pode ser até mesmo um ambiente prejudicial à conquista de direitos, justificando uma autocontenção judicial em temas sensíveis, a fim de não atrapalhar a luta pelo direito na via política. Vale dizer: diante de um cenário de incerteza, em que não se sabe qual será o desdobramento político de um debate polêmico, seria melhor deixar o problema sem resposta jurisdicional, até que o tema esteja bem amadurecido na consciência social.

A questão que surge a partir daí é a seguinte: será que o mero risco de uma reação política conservadora, por si só, é motivo suficiente para justificar o abandono da arena judicial como espaço de luta para a implementação de direitos?

Entendo que não. Há vários outros exemplos que demonstram que o efeito backlash nem sempre acarreta um prejuízo para o grupo beneficiado pela decisão judicial. Pelo contrário. O caso da luta pela igualdade sexual é um exemplo que reforça a importância da via judicial para a proteção de minorias. Basta ver o desdobramento da luta dos homossexuais nos Estados Unidos.

Em 2003, quando a opinião pública estava bastante dividida a respeito da concessão de direitos decorrentes das uniões homoafetivas, a Suprema Corte decidiu, no caso Goodridge v. Department of Public Health, que não seria juridicamente válido qualquer tipo de discriminação entre casais homossexuais e casais heterossexuais. Referida decisão desencadeou uma forte resistência conservadora, fortalecendo o discurso contrário aos homossexuais. No contexto dos debates políticos, surgiram diversas propostas legislativas visando impedir o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E, de fato, graças ao crescimento numérico de candidatos eleitos com o discurso de intolerância, foram aprovadas, no âmbito estadual, leis ou até mesmo emendas constitucionais negando aos homossexuais alguns direitos, inclusive ao casamento.

Os desdobramentos do caso, porém, sugerem que o debate provocado por Goodridge v. Department of Public Health, ainda que tenha gerado retrocessos pontuais, permitiu, por outro lado, uma melhor compreensão da causa gay. Houve uma enorme mudança na opinião pública, a favor dos homossexuais, que fortaleceu a crença sobre a injustiça da discriminação por orientação sexual. Isso possibilitou que, em 2015, no caso Obergefell v. Hodges, a Suprema Corte reconhecesse o direito dos homossexuais ao casamento e invalidasse todas as normas que o proibissem, contando, dessa vez, com um apoio muito mais amplo da sociedade. Houve, nesse caso, um efeito backlash do efeito backlash, que minimizou os prejuízos sofridos pelos homossexuais.

Embora ainda não se possa ter certeza sobre as reações políticas que decorrerão do julgamento proferido em Obergefell v. Hodges, pode-se dizer que, até o presente momento, a luta pela igualdade sexual na arena judicial tem dado bons frutos. Nesse aspecto, portanto, embora seja possível reconhecer os riscos decorrentes do efeito backlash, a jurisdição constitucional tem tido um papel importante na luta dos homossexuais contra a discriminação.

Aqui no Brasil, também é notória a presença do efeito backlash, fruto da reação política ao aumento do protagonismo judicial nas últimas décadas. É perceptível a ascensão política de grupos conservadores, havendo, de fato, um risco de retrocesso em determinados temas. A cada caso polêmico enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, tenta-se, na via política, aprovar medidas legislativas contrárias ao posicionamento judicial. Assim, por exemplo, o reconhecimento da validade jurídica das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal tem gerado, na via política, o crescimento de vozes favorável ao chamado Estatuto da Família, que pretende excluir as relações homoafativas da proteção estatal. Do mesmo modo, a decisão do Supremo Tribunal Federal de não-criminalizar a antecipação terapêutica do parto, em caso de anencefalia do feto, bem como a decisão favorável à realização de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, provocou o fortalecimento político de grupos mais conservadores, favoráveis ao chamado Estatuto do Nascituro, cujo objetivo principal é proibir absolutamente o aborto e as pesquisas com células-tronco.

O que se nota, nesses casos, é que a postura liberal do STF tem contribuído, curiosamente, para a ascensão do conservadorismo. Mas isso não é necessariamente paradoxal. Em verdade, a mudança jurídica decorrente da decisão judicial obriga que os conservadores explicitem seus pontos de vista claramente e, nesse processo, um sentimento de intolerância que até então era encoberto pela conveniência do status quo opressivo tende a surgir de modo menos dissimulado.

Tome-se a situação dos homossexuais. Diante de um sistema jurídico excludente, o discurso de intolerância não precisa vir à tona, já que o status quo é conveniente ao pensamento reacionário. Ou seja, a discriminação é praticada “com discrição”, inclusive de forma oficial e institucionalizada, de modo que o preconceito fica latente, oculto e submerso na hipocrisia da sociedade. Nesse caso, como a situação é cômoda para aqueles que não fazem parte do grupo oprimido, não há como dimensionar a força numérica do conservadorismo. As decisões judiciais que afrontam esse status quo certamente acarretam uma reação contrária,  o que pode gerar uma maior adesão ao discurso discriminatório explícito. É nesse contexto que o efeito backlash pode gerar, de forma indesejada e imprevista, a vitória política dos conservadores, com a possibilidade de aprovação de leis que podem piorar a situação dos grupos oprimidos.

O problema é que, sem a decisão judicial, dificilmente se conseguiria a necessária mobilização social para que a situação fosse abertamente discutida. Nessa situação, inverte-se o ônus do constrangimento, pois quem tem que sair da situação de comodidade é o grupo reacionário que precisará assumir seus preconceitos sem subterfúgios. Desse modo, a decisão judicial exigirá, para o grupo reacionário, a necessidade de sair do esconderijo e defender abertamente a situação odiosa que era encoberta por um discurso dissimulado. Se isso pode gerar algum tipo de prejuízo aos homossexuais, decorrente de um eventual crescimento político dos conservadores com a possibilidade de aprovação de medidas discriminatórias, é um fator a ser ponderado pelos próprios defensores da causa antes de decidirem adotar a arena judicial como espaço de sua luta pela igualdade.

É preciso ter consciência de que o efeito backlash, mesmo gerando resultados indesejados, faz parte do jogo democrático, o que não deve impedir, obviamente, uma análise jurídica sobre a validade constitucional de qualquer lei aprovada pelo parlamento, seja ela gerada ou não pelo efeito backlash. Também é preciso ter consciência de que o efeito backlash não é um mero processo de medição de forças, em que os juízes disputam com os políticos a prerrogativa de dar a “última palavra” sobre questões sensíveis. Há muito mais em jogo. Se não tivermos uma compreensão clara sobre os fatores que influenciam a legitimidade do poder, sobre o tipo de soluções institucionais que desejamos, sobre o papel da legislação e da jurisdição, com todos os seus defeitos e virtudes, dificilmente conseguiremos resolver os conflitos que surgem da constante tensão que existe entre o direito e a política, que está na base do problema aqui tratado.

Referência:

KLARMAN, Michael. Courts, Social Change, and Political Backlash. In: Hart Lecture at Georgetown Law Center, March 31, 2011 – Speaker’s Notes. Disponível on-line: http://tinyurl.com/bz4cwqk

Curando a ressaca acadêmica

Depois de um longo período de ressaca acadêmica, provocado pela conclusão e defesa da tese de doutorado, volto a postar aqui no blog. Há muito o que atualizar, pois, embora tenha sido uma fase de baixa produção acadêmica, foi um período em que muitas coisas aconteceram, com destaque para a própria defesa da tese – em 25 de abril de 2015 – que por si só mereceria um post narrativo. Isso sem falar no meu retorno à jurisdição cível (3a Vara/CE), que tem sido intelectualmente muito instigante e tem gerado diversas decisões e sentenças interessantes. Mas também houve atividades paralelas – conclusão de uma maratona! – que, mesmo sem ter uma feição acadêmica, acabam influenciando o que somos, fazemos e pensamos.

Mas o post de hoje não é especificamente voltado para minhas atividades, a não ser indiretamente. O que me motivou a voltar a este blog foi um texto que escrevi agora em julho, a convite de Bruno Torrano. Em junho, Bruno me convidou para escrever o posfácio de um livro que ele iria publicar em breve. Tive mais ou menos dez dias para ler o livro (de quase trezentas páginas) e escrever o posfácio. No início, aceitei o convite sem muita vontade. Na verdade, como o prazo era curto, seria fácil encontrar uma desculpa para não escrever. Mas acabei me empolgando com o livro. A inquietação intelectual que sempre me inspirou a escrever curiosamente voltou como o mesmo ímpeto de antes. E acabei escrevendo um posfácio mais longo do que o usual (cerca de 15 páginas).

Volto, então, às postagens com o referido posfácio. O livro “Democracia e Respeito à Lei: entre positivismo e pós-positivismo” (editora Lumen Juris), que ainda está no prelo , estará disponível para venda em 15 de setembro. No momento oportuno, farei a devida divulgação aqui no blog.

Por enquanto, fiquem com um pequeno aperitivo:

Um Brinde ao Bom Debate:

posfácio ao livro “Democracia e Respeito à Lei”, de Bruno Torrano

por George Marmelstein,

Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra

Mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Ceará

Juiz Federal no Ceará

Por mais que não exista um padrão de medida universal e incontestável para aferir a qualidade de um livro jusfilosófico, é possível reconhecer que os melhores são aqueles que nos fazem pensar, instigando a nossa curiosidade e acrescentando novas perspectivas ao nosso sempre limitado horizonte cognitivo. Mais ainda: são particularmente bons os livros que nos incomodam intelectualmente, desafiando nossas crenças mais arraigadas ao ponto de nos obrigar a sair do conforto de nossa poltrona dogmática.

Nesse sentido, é um alento ter em mãos – e com a nobre honra de oferecer um posfácio ao leitor – a obra de Bruno Torrano, que, certamente, ocupará um lugar de destaque na bibliografia jurídica brasileira, não apenas por seu estilo leve, claro e instigante, mas também pela profundidade, rigor, originalidade e seriedade com que os temas são tratados.

A obra investiga alguns problemas fundamentais da teoria jurídica, tendo como pano de fundo o debate anglo-saxão desenvolvido em torno do positivismo jurídico. Embora as premissas teóricas sejam quase todas “importadas” desse debate, a preocupação do autor é voltada para o Brasil: defender o positivismo jurídico dos ataques “pós-positivistas” e tentar resgatar a força normativa da legislação diante da emergência do chamado “neoconstitucionalismo”.

Como se vê, é uma proposta ousada e, de certo modo, arriscada. É ousada porque vai de encontro ao discurso padrão que dominou o pensamento jurídico desde a proclamada “ascensão do constitucionalismo”. Remando contra a maré, Bruno faz questão de fugir do lugar-comum sem se subjugar aos mantras repetidos pelos sábios de ocasião, proclamando em um tom incisivo os erros do “pós-positivismo” e de outras correntes filosóficas da moda. Por isso mesmo, é uma proposta arriscada, diante da má reputação do positivismo e do baixo nível dos debates acadêmicos em terras brasileiras. Paradoxalmente, são esses ingredientes de ousadia e de provocação que fazem do livro de Bruno uma obra tão necessária.

Em primeiro lugar, é necessária pela qualidade da pesquisa efetuada. São poucos os livros jurídicos brasileiros que podem contar com uma referência bibliográfica tão seleta e atual. O material de pesquisa foi escolhido a dedo, incorporando o highlight do debate contemporâneo, especialmente da já mencionada tradição anglo-saxã. Por sinal, o mero fato de estar atento à riqueza do debate anglo-saxão já coloca o livro numa posição de destaque em relação a boa parte dos estudos jurídicos publicados no Brasil, que ainda não conseguiram sair da fase mais infantil do debate “jusnaturalistas versus juspositivistas”.

Em segundo lugar, é uma obra necessária pela clareza com que as ideias são expostas. Em um tempo em que a obscuridade linguística tem gerado uma verdadeira ojeriza dos estudantes pela filosofia do direito, o esforço realizado por Bruno, ao tentar apresentar seu pensamento para um público mais amplo, é louvável, pois representa uma demonstração inequívoca de respeito ao leitor. É óbvio que o estilo de linguagem adotado não teve o propósito de apenas agradar a platéia ou de vender mais livros. A clareza na escrita demonstra, em verdade, um domínio sobre o tema tratado e uma confiança nos argumentos desenvolvidos. Somente quem sabe do que está falando pode se dar ao luxo de escolher as palavras certas para expor suas ideias com precisão. E somente quem acredita na qualidade de suas ideias tem coragem de apresentá-las sem subterfúgios.

E aqui já se pode avançar outra qualidade que torna a obra tão necessária: a qualidade dos argumentos apresentados. Se o vício da obscuridade linguística é um mal que afasta os não iniciados, o vício da má qualidade argumentativa é mais grave, pois afasta também os iniciados. O presente livro, nesse aspecto, é, para usar uma expressão da moda, um “ponto fora da curva” em relação à produção nacional, onde é cada vez mais raro encontrar livros que tragam algo de novo ou que não incidam em erros grosseiros, como confundir o positivismo jurídico com o legalismo formalista do século XIX ou acusar equivocadamente o positivismo de possuir uma perversidade intrínseca ao ponto de “legitimar” os regimes mais atrozes. Em geral, o que o público brasileiro recebe é uma versão caricaturesca do positivismo jurídico, criada artificialmente por pessoas que o repelem sem conhecer o sofisticado debate que se desenvolveu a partir de Hart. Bruno procura afastar essa visão deturpada do positivismo, fornecendo ao leitor brasileiro o que há de melhor neste debate.

Além disso, Bruno critica, com muita perspicácia, o chamado “pós-positivismo” brasileiro, apontando equívocos nessa abordagem que, a meu ver, são capazes de solapar seus alicerces. No mínimo, são suficientes para gerar fortes desconfianças em relação ao discurso que se tornou dominante. As críticas são ácidas e fortes, mas não exageradas. A título de exemplo, certeira foi a crítica do “narcisismo teórico” que contamina, de um modo geral, as propostas pós-positivistas: “a arraigada convicção de progresso teórico derradeiro, de construção jusfilosófica lapidada, que leva à desídia ou, quando menos, o pouco apreço pelas – ou completo desconhecimento das – teses conceituais contemporâneas do positivismo jurídico e, em casos extremos, a suspeitas acerca da própria inteligência ou boa-fé dos autores que defendem o juspositivismo, os quais, por vezes, são acusados de querer (ato de vontade) teorizar o direito sem estudar ou dar atenção à filosofia”. Igualmente precisas foram as críticas ao “pós-positivismo hermenêutico”, seja por se fundar em uma arrogância intelectual inaceitável (quem não adere aos seus pressupostos filosóficos está necessariamente equivocado!), seja por se basear em algumas premissas teóricas aceitas como verdadeiras (como as teses de Dworkin) para chegar a resultados diametralmente contrários ao que tais teorias defendem.

A adesão explícita ao positivismo jurídico não é, por si só, uma qualidade da obra, até porque, a meu ver, a defesa que Bruno faz do positivismo jurídico, sobretudo em sua pretensão normativa, é passível de inúmeras críticas. Mas a audácia de se assumir positivista, inclusive em sua feição ideológica (!) – e ter bons argumentos para fazê-lo – é um fator de destaque, pois não é fácil aqui no Brasil alguém conseguir sobreviver academicamente assumindo-se positivista.

De toda forma, a coragem intelectual demonstrada com a adesão ao positivismo também aponta para outra qualidade de Bruno: uma pré-disposição para o debate de ideias que não é tão comum de presenciar em terras brasileiras. Aqui entre nós, muitos ainda parecem confundir crítica com desaforo, esquecendo-se de que a refutação é um pressuposto do crescimento intelectual. Bruno, pelo contrário, estando bem familiarizado com o estilo de debate que existe na tradição estadunidense, parece seguir a máxima de Santo Agostinho: “prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem”. (Não fosse isso, certamente eu não teria sido convidado para escrever este posfácio!).

Sendo assim, não se poderia concluir o presente posfácio sem tecer algumas críticas ao livro de Bruno. Críticas que, antes de reduzir os méritos da obra, demonstram a sua grandeza, pois somente o que é digno de crítica possui algum valor epistêmico. Melhor dizendo: críticas cujo propósito principal é o de convite ao debate, na esperança de que o fechamento físico do livro não signifique o fechamento intelectual da discussão. E obviamente é um convite extensível ao leitor.

As críticas poderiam se direcionar contra o positivismo jurídico em si, sobretudo o exclusivo, mas há um risco de o debate se tornar estéril. É que, nesse ponto, minha discordância talvez possa ser eliminada com alguns pactos semânticos acerca dos usos da palavra “direito” e com alguns esclarecimentos sobre o propósito da comunicação e sobre a perspectiva adotada. Explicando melhor: é possível que as principais divergências entre positivistas (exclusivos e inclusivos) e antipositivistas, no que se refere à descrição do fenômeno jurídico, talvez sejam menores do que aparentam, conforme vários pensadores – positivistas e antipositivistas – já perceberam. Podem existir, sem dúvida, diferenças de perspectivas, de metodologia e de propósitos na busca da natureza do direito. Mas tais diferenças não são tão radicais ao ponto de se poder afirmar categoricamente que um grupo está errado e o outro está certo. Em verdade, quando se deixam de lado os rótulos, as respostas oferecidas aos principais problemas sobre o direito costumam ser muito semelhantes.

Há muitas convergências na descrição do fenômeno jurídico realizada por positivistas e antipositivistas. Por exemplo, praticamente não há divergência quanto à constatação de que existem lacunas no sistema de legislação ou quanto à indeterminação dos textos legais. Com raríssimas exceções, quase ninguém defende que todas as leis e decisões judiciais são justas ou que os agentes do sistema agem sempre motivados pelo bem comum. Igualmente, poucos parecem negar que os valores morais podem influenciar a elaboração das leis. Do mesmo modo, há uma certa unanimidade quanto à constatação de que os juízes não decidem com base apenas na lei e que, com frequência, argumentos com forte conteúdo moral costumam ser mobilizados na solução de casos jurídicos. Aliás, hoje poucos negam que os princípios ocupam um papel de destaque no processo de realização do direito, embora existam, de fato, muitas divergências sobre o conceito, o uso e a natureza desses princípios.

Mesmo em uma questão que aparentemente está no centro do debate entre positivistas e antipositivistas, que é saber como agir diante de uma lei injusta, as soluções podem convergir, independentemente da adesão ou não ao positivismo. De um modo geral, tanto os positivistas quanto os antipositivistas reconhecem que não há, necessariamente, um dever de obedecer leis injustas, embora existam divergências quanto à natureza e extensão desse dever. A propósito, muitos defendem o positivismo justamente pela possibilidade de distinguir a obrigação jurídica de obedecer as leis da obrigação moral de obedecer as leis, abrindo espaço, de modo mais franco, para uma crítica moral do direito positivo.

Todas essas semelhanças e convergências sobre a descrição do fenômeno jurídico me levam a crer que os ataques que os positivistas lançam aos antipositivistas e vice-versa podem ser, em grande medida, superados com a adoção de alguns pactos semânticos sobre o uso da palavra “direito”. O profundo desacordo sobre a natureza do direito parece decorrer muito mais de uma diferença de metodologia, de perspectiva, de propósitos e de opção conceitual do que de um dissenso sobre o fenômeno analisado.

Hoje, estou convicto de que qualquer tentativa de refutação do positivismo jurídico, como proposta de compreensão do direito, é contraproducente, pois o que o positivismo busca, em última análise, é a adoção de uma determinada perspectiva para analisar o fenômeno jurídico com o propósito específico de descrevê-lo sem endossá-lo. Nesse sentido, não parece haver, de antemão, qualquer problema em aderir ou não ao positivismo, desde que o escopo dessa adesão não perca de vista o propósito original da metodologia, que é a descrição do fenômeno jurídico. O erro está em transformar o conceito positivista de direito em uma fórmula de obediência moral ou então em uma técnica decisória do tipo “o que é direito é moralmente correto e, por isso, deve ser obedecido por todos e aplicado pelos juízes“, pois isto está longe de representar o verdadeiro escopo do positivismo.

Assim, se o positivismo jurídico for considerado como uma perspectiva de compreensão do fenômeno jurídico orientada por um método analítico com um propósito descritivo, muitas de suas conclusões são derivações lógicas da própria perspectiva adotada, tornando-se praticamente impossível confrontá-las sem mudar o método e/ou a perspectiva. As próprias divergências internas entre positivistas (inclusivos versus exclusivos) decorrem mais da existência de desacordos quanto ao uso das palavras e quanto à elaboração de conceitos e arranjos linguísticos do que de profundos desentendimentos sobre a compreensão do fenômeno jurídico tal como ele se manifesta na realidade.

O problema, portanto, não está no positivismo em si, mas na transposição arbitrária de suas premissas e conclusões para outras perspectivas, principalmente a perspectiva do jurista engajado na solução de casos jurídicos. Aqui sim é possível senão refutar, pelo menos criticar ou desconfiar da adoção do positivismo, inclusive do conceito de direito elaborado pelos positivistas, para orientar o raciocínio do jurista solucionador de problemas concretos, pois a perspectiva, a metodologia e o propósito da atividade são bem diferentes daquela realizada pelo teórico positivista.

Como se sabe, a solução dos problemas jurídicos envolve um tipo de raciocínio que não se esgota nas leis. Veja que, quanto a isso, não há desacordo. O desacordo está na forma de lidar com as informações que não são estritamente derivadas das “fontes autoritativas”.

A fórmula que Bruno toma emprestada dos positivistas exclusivos para conceituar o direito é esta: “o direito é formado por um conjunto de normas que necessariamente vinculam o magistrado, mas nem todas as normas que vinculam o magistrado fazem parte do direito“. Em outras palavras: o que conta como direito é apenas o que reivindica autoridade (no sentido de autoridade desenvolvido por Joseph Raz), de modo que as razões que não reivindicam uma força especial capaz de excluir outras razões em sentido contrário não contam como direito, mesmo que eventualmente vinculem os juízes e sejam adotadas para a solução dos casos concretos. Ressalte-se que esse conceito tem, em um primeiro momento, uma pretensão meramente descritiva e não interfere em nada na atividade dos juízes, não devendo ser lida desde já como uma orientação sobre como os juízes devem decidir. O que os positivistas exclusivos estão afirmando é tão somente que, em se adotando um conceito estrito de direito (como algo que reivindica uma força ou autoridade especial), nem todas as razões mobilizadas pelos juízes são jurídicas, pois nem todas as razões mobilizadas pelos juízes reivindicam essa força ou autoridade especial. Trata-se, portanto, de uma opção conceitual para facilitar a descrição do fenômeno jurídico a partir da perspectiva externa. Se essa opção conceitual é a única possível ou mesmo se é a melhor entre todas as demais, não cabe aqui discutir. O que se pode concordar é que é uma opção conceitual que alcança seu objetivo, que é descrever o fenômeno jurídico desde uma perspectiva externa (em relação à perspectiva do juiz).

Porém, quando adotado a partir do ponto de vista interno (na perspectiva do juiz), esse conceito pode gerar algumas confusões. É que, na perspectiva daquele que intenciona uma solução correta para o problema jurídico, todas as informações que funcionam como parâmetro para a formação do juízo decisório são juridicamente relevantes. Conforme reconhecem os próprios positivistas exclusivos, existem muitas informações que, embora não reivindiquem uma força autoritativa, interessam ao jurista solucionador do conflito e, nessa qualidade, constituem uma parte integrante do processo de construção da solução dos problemas jurídicos. Se interessam ao jurista e fazem parte do processo decisório-judicativo, é recomendável, pelo menos do ponto de vista interno, que não sejam, de plano, excluídas do objeto de análise do jurista, por mais difusas que possam parecer. (Veja-se que aqui não há verdadeiramente uma objeção à adoção ao conceito positivista de direito, que, de resto, pode chegar a resultados semelhantes. O que há é apenas um receio de que a deliberada exclusão de informações relevantes do conceito de direito, apenas pelo fato de não reivindicarem a tal “autoritatividade”, possa acarretar, a partir do ponto de vista interno, um bloqueio mental do tipo “se não integram o direito, não podem orientar o raciocínio jurídico voltado à solução de problemas concretos“. Embora o positivismo exclusivo não defenda tal bloqueio, o seu conceito pode induzir um leitor apressado a pensar assim, já que trata muitas normas que vinculam o magistrado como material que não interessa ao conceito de direito e, portanto, à razão jurídica).

Uma crítica semelhante pode ser lançada em relação ao dever de desobedecer leis injustas. Parece ser muito mais vantajoso, sob a ótica daquele que esteja diante de um dilema real a ser resolvido, que tal dever seja tratado como um dever não apenas moral, mas também jurídico, pois isso permitirá que os juristas possam desenvolver, dentro do próprio método jurídica, critérios mais precisos para definir quando uma lei injusta deverá ser aplicada ou não. Se tal dever de desobedecer uma lei injusta for tratado como algo estranho ao mundo do direito, como se fora uma decisão de cunho personalíssimo e restrita exclusivamente às escolhas morais, o pensamento jurídico não será capaz de lidar com essa situação de forma adequada. Em verdade, negar o caráter jurídico do dever de desobedecer a uma lei injusta significa retirar do direito a capacidade de solucionar seus problemas de forma autônoma, transferindo a sua principal função (que é a de resolver o conflito) para outros sistemas normativos. Muito mais promissor, sobretudo se o propósito da abordagem for solucionar o conflito existente, é trazer o problema da lei injusta para dentro do pensamento jurídico, tratando-o como uma questão genuinamente jurídica. Ao fim e ao cabo, a solução adotada pode ser em tudo semelhante à solução proposta pelo positivismo (no sentido de que a lei injusta não merece ser obedecida), mas com uma vantagem: havendo um dever jurídico de controlar a validade das leis injustas (ao lado do dever moral de desobediência que poucos questionam), a comunidade jurídica assumirá, em conjunto, como algo inerente à atividade dos juristas, a responsabilidade de construir modelos mais seguros e objetivos de eliminação/afastamento das leis injustas sem haver necessidade de se apelar para a esfera moral/subjetiva do decisor. De certo modo, a incorporação, pelo pensamento jurídico, de conceitos como proporcionalidade, controle de constitucionalidade, eficácia irradiante (dimensão objetiva) dos direitos fundamentais, interpretação conforme a Constituição, níveis de escrutínio do controle judicial (“levels of judicial scrutiny“) etc. representa uma tentativa de conciliar o dever jurídico de aplicar as leis aprovadas pelo parlamento com o dever (jurídico!) de não aplicar uma lei injusta (um breve parêntesis: isso não nos impede de reconhecer – e de lamentar – que ainda não alcançamos um nível minimamente aceitável de objetividade na aplicação desses conceitos. Pelo contrário. É possível concordar que muitas dessas construções funcionam, na prática, como subterfúgios retóricos desenvolvidos apenas para dar uma aparência de juridicidade às preferências pessoais dos julgadores. Mas, embora isso possa dizer muito sobre a astúcia dos juristas, não altera em nada o conceito de direito).

É certo que a constatação de que os juristas têm desenvolvido mecanismos para afastar, no interior do próprio método jurídico, a aplicação de uma lei injusta não significa uma refutação do positivismo, já que a tese do fato social tem a impressionante capacidade de se adaptar a qualquer situação. A propósito, é esta mesma a tarefa do positivismo: tentar descrever a realidade tal como ela se manifesta, o que lhe permite acompanhar a dinâmica da evolução sócio-cultural e “redesenhar” o seu sistema conceitual conforme as mudanças percebidas. Assim, se o direito contemporâneo valoriza a força normativa da constituição, reconhece a aplicação imediata dos direitos fundamentais, relativiza a supremacia da lei e amplia o foco de informações da atividade judicial, isso não tem qualquer influência sobre o positivismo enquanto proposta de descrição do fenômeno jurídico, embora possa afetar o que conta como material juridicamente relevante (vale dizer: o que pode influenciar a tomada da decisão jurídica) na perspectiva daqueles que são responsáveis pela solução dos conflitos sociais.

De todo modo, o que se questiona não é o positivismo em si, nem mesmo o conceito positivista de direito, mas a adoção das premissas e conclusões do positivismo para orientar a atividade do jurista interessado na solução das controvérsias práticas do mundo do direito. Nesse aspecto, pode-se redirecionar as críticas às principais teses do livro aqui analisado, pois, nessa transposição do positivismo descritivo para o positivismo normativo, as divergências de fundo entre o meu pensamento e o de Bruno se acentuam de um modo nítido. Para ser mais preciso, a divergência é tão profunda que eu precisaria de, pelo menos, umas 680 páginas para justificar meu ponto de vista! Aliás, espero poder publicar em breve minha tese de doutorado, onde explico melhor minha visão sobre esses problemas. Aqui, serei mais conciso, limitando-me a apontar alguns problemas na própria teoria de Bruno, sem defender detalhadamente meus pontos de vista, até porque o livro não é meu.

De início, é preciso reconhecer que, mesmo havendo divergências profundas, também há alguns pontos de convergência, pelo menos em relação ao diagnóstico da atual situação brasileira. Bruno, com muita sagacidade, descreve um quadro crítico que parece correto em linhas gerais. De fato, vivemos um momento de “ressaca pós-positivista” (a expressão é minha), causado por um excesso de judicialização e por um abuso principiológico, que justifica, sem dúvida, uma reavaliação de nossas práticas e teorias. E essa reavaliação deve ser mesmo no sentido de estabelecer limites mais precisos à atuação judicial, com vistas a combater o decisionismo, o déficit argumentativo e o paternalismo judicial. Um pouco de humildade intelectual também precisa ser estimulada (não só entre os juízes, mas entre todos os que fazem parte do mundo jurídico) para que se afaste a crença ilusória de que a solução para todos os problemas do mundo pode ser alcançada em um debate forense.

Além disso, é preciso combater qualquer tipo de idolatria em relação à jurisdição e aos juízes. Afinal, o mundo judicial não é tão “cor de rosa” quanto alguns imaginam. Não existe mesmo a tal superioridade moral e intelectual dos juízes em relação a quem quer que seja, sendo um perigo tratar os membros do Judiciário como uma espécie de “vanguarda iluminista” (conforme a infeliz expressão que Luís Roberto Barroso usou para justificar o protagonismo judicial em temas sensíveis) ao ponto de lhes conferir a prerrogativa de serem os árbitros supremos dos mais intensos conflitos morais.

Fundamental também é enfatizar o compromisso e a responsabilidade dos demais poderes (legislativo e executivo) pela concretização dos direitos fundamentais, forçando que cada ente estatal cumpra adequadamente sua função constitucional. Não se pode aceitar, pura e simplesmente, a substituição de papéis, muito menos a transformação do Judiciário em uma espécie de “poder tapa buraco”, ocupando os espaços que são (e devem ser) preenchidos pelos demais poderes. As disfunções democráticas não devem servir de pretexto para a judicialização de tudo.

Assim, não se discute que é necessário repensar o papel da jurisdição e da própria legislação, seja para estabelecer parâmetros mais objetivos para orientar a atividade jurisdicional (limitando-a!), seja para tentar criar um ambiente político mais “funcional” (para usar a expressão de Waldron), estimulando a participação popular autêntica e efetiva na formação da vontade comunitária.

O problema é que a solução proposta por Bruno, ao levar o pêndulo para o extremo oposto (o remédio para o excesso judicial é conferir todo poder ao legislador), coloca em risco a tolerância e o pluralismo que, supostamente, orientam seu modelo institucional. Vejamos os motivos.

Para Bruno, o representativismo e o majoritarismo são genuínas fontes da autoridade estatal legítima, e, com base nessa premissa, as principais conclusões são desenvolvidas, como a defesa da primazia do texto, o resgate da dignidade da legislação e a restrição dos poderes judiciais. Aqui o modelo é muito próximo do positivismo ideológico, ainda que mitigado por algumas concessões decorrentes do constitucionalismo e da teoria dos princípios (obviamente, uma teoria dos princípios mais sofisticada e adequada ao positivismo). Do mesmo modo, a proposta ganha uma enorme elegância com a adoção de um consistente embasamento teórico a partir de algumas ideias de Shapiro (planos), Raz (autoridade) e Waldron (dignidade da legislação), embora, em alguns aspectos, as conclusões de Bruno não configurem uma decorrência necessária da aceitação dessas ideias (sobretudo as de Raz e Shapiro). A conclusão central é que os juízes estão obrigados a aplicar a constituição e todas as leis que forem aprovadas em conformidade com a constituição, sendo inaceitável qualquer “correção” do texto constitucional ou legal com base nas preferências subjetivas ou filosóficas do julgador. Mesmo quando a solução proposta resultar em uma injustiça, o juiz deve suspender seu juízo de censura moral para decidir conforme a previsão legislativa, preservando assim a vontade dos representantes do povo.

De minha parte, discordo quase globalmente dessas conclusões, pois me parece que uma reavaliação do papel da jurisdição, visando estabelecer limites mais precisos e estritos da atuação judicial, não deve levar necessariamente a uma valorização da legislação nos moldes defendidos por Bruno, muito menos a uma primazia do texto.

Quanto à primazia do texto, falta, na proposta de Bruno, um maior desenvolvimento sobre a teoria da interpretação jurídica, o que prejudica o pleno entendimento desse tema. De qualquer modo, há um erro de base na sua compreensão da atividade jurídica, que é suficiente para minar as suas conclusões. Para ele, a índole da atividade jurídica é essencialmente interpretativa (de compreensão de texto) e orientada para aplicação da norma obtida a partir desta interpretação. O erro aqui é tanto sob o aspecto empírico-descritivo (pois não é assim que os juízes decidem, de fato) quanto sob o aspecto prescritivo (não é assim que os juízes devem decidir). A índole da atividade jurídica é prático-normativa, que se inicia a partir de um caso concreto (o ponto de partida não é a norma, mas a controvérsia real) e se orienta pela busca de uma solução intencionalmente válida para o problema (sobre isso, bastante úteis são as lições de Castanheira Neves). O sistema normativo fornece, sem dúvida, os critérios técnico-operacionais (normas jurídicas) que hão de orientar e fundamentar a formação do juízo decisório, mas sem nunca perder de vista as especificidades do caso concreto. Isso, obviamente, não significa negar a importância do texto para a compreensão da norma. Significa apenas reconhecer que as perguntas metódicas fundamentais, dentro do processo de interpretação de um dado texto normativo, não miram a significação das palavras ou mesmo a intenção do legislador. As perguntas fundamentais são de outra natureza, voltadas mais para o contexto problemático pressuposto pela norma. O que se busca, na compreensão do texto, é o “para quê” da norma (finalidade) e, principalmente, o seu “porquê” (fundamento de validade), a fim de verificar que tipo de problema a norma pretende solucionar para comparar com o tipo de solução exigido pelo caso concreto. Para isso, não é tão importante descobrir o sentido do texto, mas obter um critério normativo-jurídico axiologicamente fundado e validado pelo sistema normativo e, simultaneamente, adequado às especificidades do caso a ser decidido. Nesse sentido, o valor do texto é necessariamente relativo. Em primeiro lugar, é relativo porque um critério normativo só deve ser mobilizado nas circunstância de sua tipicidade, não fazendo sentido aplicar uma norma em contextos problemáticos que não guardam sintonia com o seu “plano” original (aqui faço questão de usar o conceito de Shapiro, pois essa ideia de plano parece ser de todo incompatível com o textualismo defendido por Bruno. Afinal, para alguém disposto a seguir um plano, o texto escrito parece ser o menos importante). Em segundo lugar, é relativo porque precisa passar por correções e adaptações conforme as exigências do caso concreto e a evolução social, não sendo razoável seguir fielmente um plano diante do surgimento de um dado novo até então não previsto. Em terceiro lugar, é relativo porque está sujeito a uma constante avaliação de sua compatibilidade com o restante do sistema normativo, podendo ser invalidado se violar as normas fundamentais do sistema. Assim, a correção axiológica de uma norma não precisa ser fundada nas preferências morais ou filosóficas do julgador (o que, realmente, é um absurdo), pois o sistema normativo também possui uma fundamentalidade material que pode servir de parâmetro para tal atividade.

Quanto à supremacia do legislador, a proposta defendida por Bruno, alicerçada na representação política, no majoritarismo e na primazia do texto, fundamenta-se em um modelo de legitimação do poder que pode ser designado por consentimento político, que tem profundas falhas seja quando a representação política “funciona mal”, seja quando “funciona bem” (deixo para o leitor julgar se a visão de Bruno, no sentido de que a democracia brasileira funciona razoavelmente bem, é correta ou não). É aqui que se encontra o principal perigo da proposta de Bruno, pois as falhas do consentimento político levam, invariavelmente, a um modelo institucional pouco tolerante, repressivo e contrário à diversidade.

Essas falhas do consentimento político ocorrem, dentre outros motivos, porque, nesse modelo, os conflitos morais são resolvidos a partir de um processo político-legislativo de medição de forças em que as teses que conseguem mais votos vencem (e se tornam a representação do lícito) e as teses derrotadas são eliminadas (tornando-se o ilícito). O grupo que consegue transformar sua concepção moral em lei pode usar a força do estado para obrigar a todos os demais a seguirem seus próprios valores, transformando o sistema normativo em um mecanismo de repressão institucionalizada. Ao fim e ao cabo, esse tipo de proposta obriga o sujeito ético a se curvar à vontade dominante, criando, artificialmente, um padrão comportamental uniforme e com pouca diversidade, que comporá o código legal da sociedade.

Além disso, o método baseado na soma de votos individuais (majoritarismo) possui uma inquestionável propensão à opressão, na medida em que seu principal fator de decisão é estritamente quantitativo, ou seja, o conteúdo da deliberação não é, por si, relevante. Potencialmente, as minorias derrotadas nesse jogo serão menosprezadas, marginalizadas, excluídas de qualquer tipo de proteção jurídica, perdendo uma parcela essencial de sua dignidade-autonomia, ao ponto de afetar até mesmo a sua condição de pessoa. Com muita frequência, os comportamentos que se afastam da concepção moral da maioria vitoriosa são criminalizados, e a força do estado é utilizada para amoldar as condutas individuais ao código moral dominante, que passa a ser institucionalmente incorporado ao direito positivo após a deliberação política. Essa repressão estatal ao diferente acarreta graves danos à sua própria identidade, diminuindo a sua condição de ser humano e, consequentemente, estigmatizando-o como alguém inferior, anormal, sub-humano, que não merece respeito nem consideração. Por sua vez, esse estigma priva-o de alguns benefícios jurídico-sociais, o que acentua ainda mais a sua imagem de inferioridade. Curiosamente, essa inferioridade artificialmente produzida pelo estigma costuma ser invocada para justificar a repressão legislativa, num círculo vicioso em que o produto vira a causa da exclusão. O status legal dos negros, das mulheres, dos índios, dos homossexuais, dos estrangeiros, das minorias religiosas etc., ao longo dos séculos, reflete esse fenômeno com muita clareza.

Assim, se a pretensão de Bruno, com a sua proposta, é defender um sistema jurídico que garanta o pluralismo e a tolerância, certamente não é apelando para um modelo que, potencialmente, permite a eliminação da divergência através do uso da força político-jurídica que se alcançará tal desiderato. Perceba que a crítica aqui não é uma crítica quanto à “moralidade interna da democracia”, pois não se pode abrir mão de um sistema político que permite o livre debate de ideias na esfera pública e o controle popular por meio do sufrágio. O que se critica é a ideia de que os conflitos morais devem ser resolvidos com a imposição da moral dominante através da lei (ou mesmo através de uma decisão judicial!).

A crítica, portanto, envolve a tese de que os conflitos morais devem ser resolvidos sempre através de uma solução impositiva (legislativa ou judicial), que obriga o perdedor a seguir a concepção moral vitoriosa. Nem juízes nem legisladores devem ser agir como se fossem o “superego da sociedade” (na sagaz expressão que Ingborg Maus usou para criticar o paternalismo do Tribunal Constitucional Federal alemão, mas que também poderia ser adotada para criticar a crença no paternalismo legislativo). O que está em jogo, portanto, é a própria legitimidade do Estado e da coletividade, seja através dos juízes, seja através dos legisladores, para usurpar a autonomia pessoal ou então para discriminar “doutrinas morais razoáveis” (conceito aqui emprestado de John Rawls). Esta é a única maneira de se levar a sério a defesa da tolerância e do pluralismo. Em última análise, o que se deve buscar, para garantir a harmonia na pluralidade, não é um modelo político de fortalecimento de instituições legislativas ou jurisdicionais, mas de fortalecimento do sujeito ético. Isso significa retirar dos juízes, dos legisladores e dos governantes de um modo geral o poder de decidir pelo sujeito ético, pelo menos naquelas questões que dizem respeito ao sujeito ético.

Nesse sentido, pode-se compreender melhor o papel da jurisdição, fazendo uma distinção entre a jurisdição enquanto arranjo institucional destinado a limitar a regulação normativa da sociedade sobre as pessoas e a jurisdição enquanto mecanismo de regulação da sociedade. No primeiro caso, a jurisdição exerce uma função de valorização do sujeito ético, estabelecendo um tipo de barreira de proteção jurídica ao poder normativo que nem mesmo a coletividade institucionalmente organizada pode ultrapassar. No segundo caso, a jurisdição assume-se, ela própria, como instituição dotada de um poder normativo autônomo, com pretensões de estabelecer normas gerais a todos os membros da sociedade em substituição à regulação normativa tradicionalmente exercida pelo legislativo. A diferença entre essas duas funções assumidas pela jurisdição é notória, pois as principais objeções democráticas à jurisdição são claramente pertinentes no segundo caso, mas muito mais tênues no primeiro. Afinal, um órgão que devolve ao sujeito ético uma capacidade que lhe foi tomada pela coletividade ou pelo grupo de poder que, ocasionalmente, controla a sociedade não pode ser acusado de estar usurpando um poder normativo, pois, a rigor, quem usurpou o poder do sujeito ético, com base na força física ou na força política, foi o legislador. A jurisdição, quando assim age, funciona como um contrapoder com ambições normativas limitadas, pois a sua principal pretensão é estabelecer parâmetros capazes de ajudar a compreender até onde a legislação pode avançar sem violar a independência ética. (As implicações dessa ideia foram melhor desenvolvidas em minha tese de doutorado).

Para finalizar, uma última observação crítica. Bruno está parcialmente certo quando discorre sobre a desconfiança em relação aos juízes, indicando que foram criados vários arranjos institucionais, pelos designers do sistema, para conter os abusos da jurisdição. Isso é verdadeiro em parte, porque, por outro lado, também foram depositadas muitas esperanças no poder judicial, talvez até mesmo de forma ingênua e exagerada. Basta mencionar o epíteto quase místico atribuído ao STF como “guardião da Constituição”, a ênfase na inafastabilidade da tutela jurisdicional, os inúmeros instrumentos processuais de proteção dos direitos, inclusive contra as omissões legislativas (p. ex., o mandado de injunção!), as amplas possibilidades de fiscalização de constitucionalidade, seja por meio do controle difuso, seja, principalmente, por meio do controle concentrado, bem como o reconhecimento da força normativa dos precedentes, culminando com as súmulas vinculantes.

Além disso, Bruno esquece de mencionar que, no modelo brasileiro, a “economia da confiança” alcança talvez até com mais intensidade a atividade legislativa. Ou seja, a economia da confiança não justifica apenas uma maior limitação da atividade dos juízes, mas também um maior controle sobre a atuação dos parlamentares. Se o princípio da legalidade é a máxima expressão da desconfiança em relação aos juízes, o controle de constitucionalidade é a máxima expressão da desconfiança em relação aos legisladores. Sendo assim, como Bruno não defende o fim do controle de constitucionalidade, a premissa positivista por ele adotada (respeitar a constituição) não justifica tamanha deferência ao legislador, a não ser que haja uma renúncia das principais técnicas de controle de constitucionalidade até então desenvolvidas ou então uma releitura totalmente arbitrária do texto constitucional. No frigir dos ovos, se o método de interpretação jurídica defendido por Bruno for observado à risca, o “respeitar a constituição” dificilmente pode ser conciliado com a supremacia do legislador nos moldes propostos neste livro, pelo menos à luz do atual modelo constitucional brasileiro.

São estas, em linhas gerais, as minhas considerações sobre o livro “Democracia e Respeito à Lei”, de Bruno Torrano. Muito mais poderia ser dito (a favor e contra), mas, obviamente, por uma razão de “economia de espaço e de tempo”, só foi possível oferecer um breve aperitivo do amplo debate que a obra pode proporcionar. Assim, só resta brindar o momento e agradecer pela oportunidade de poder fazer parte dele. É um brinde com sabor de celebração e com a certeza de muitos outros virão. Salut!

Julho de 2015

Salsichas, Pães e Ministros: uma reflexão crítica sobre o processo de escolha dos membros do STF

Tornar-se ministro do STF é relativamente fácil. Basta ser brasileiro nato, possuir entre 35 e 65 anos, notório saber jurídico, reputação ilibada e ter a sorte de cair nas graças do(a) Presidente da República. O notório saber jurídico e a reputação ilibada não possuem uma definição precisa, de modo que podem ser moldados ao gosto do freguês. A ausência de títulos acadêmicos ou a condenação em eventuais improbidades administrativas ou ações criminais não têm sido suficientes para descaracterizá-los. A indicação (essencialmente política), seguida da sabatina no Senado (meramente simbólica), tornam o potencial candidato inteiramente apto a ocupar o posto máximo do Judiciário brasileiro. Nesse jogo aleatório, às vezes surgem excelentes nomes, embora o oposto também possa ocorrer.

Seja como for, o processo de escolha é um processo essencialmente de bastidores, que segue a lógica da fabricação das salsichas: é melhor não saber como são feitas. Na prática, o que se têm são potenciais candidatos que se engajam na conquista de apoio político capaz de fortalecer o seu nome, e trabalham junto a parlamentares, membros do governo, ministros, governadores para tentar convencê-los a apoiar sua indicação. Muitas vezes, a população de um modo geral sequer sabe quem são esses potenciais candidatos, nem seus apoiadores, a não ser por meio de conversas de corredor, de forma especulativa.

No percurso até a indicação, o candidato precisa assumir alguns compromissos políticos que podem afetar sensivelmente a sua futura independência. Veja-se, por exemplo, o processo de escolha de um ministro do STJ para a vaga de advogado, que é diferente do processo de escolha de um ministro do STF, mas também envolve a formação de diversas alianças. Numa primeira etapa, o candidato há de angariar o apoio de seus pares para conseguir ingressar na lista sêxtupla elaborada pela OAB. Após a lista sêxtupla, o candidato submete-se ao crivo nada transparente da lista tríplice elaborada pelos ministros do STJ. Aqui, o candidato terá que escolher um dos grupos que dividem o STJ, a fim de conquistar a maior soma de votos possíveis. Depois, há o processo político propriamente dito, em que o candidato terá que obter a simpatia do governo (e dos políticos da base do governo). Em cada uma dessas etapas, são firmados diversos acordos de cavalheiros, cuja fatura poderá ser cobrada na hora devida. O resto é intuitivo.

É claro que esse processo, além de afastar de antemão excelentes nomes da disputa, pode tornar os potenciais candidatos (isto é, aqueles que estão dispostos a aceitar as regras desse sistema) reféns de um jogo de poder totalmente incompatível com os valores éticos que hão de pautar a atuação jurisdicional, sobretudo a independência. Mas o pior de tudo é que todo o processo se desenvolve em função dos humores daqueles que participam do processo de escolha, à margem de qualquer controle popular. Problemas jurídicos de alta relevância social serão decididos por pessoas que a maioria da população sequer conhece e não faz a menor ideia de como chegaram ali.

A não-eletividade dos membros do Judiciário pode ser considerada, de certo modo, como uma virtude da atividade jurisdicional. Afinal, seria desastroso para o direito se as decisões judiciais fossem tomadas para agradar os eventuais eleitores dos juízes. Por isso, em um Estado de Direito, espera-se que os juízes decidam com imparcialidade e independência, o que significa garantir um ambiente de deliberação livre de qualquer pressão político-eleitoral. Porém, a não-eletividade não deveria significar a total ausência de participação popular no processo de escolha. Ao povo interessa e muito saber quem serão os membros do Poder Judiciário, sobretudo em uma realidade como a nossa, onde, em nome da “guarda da Constituição”, tem havido uma transferência do centro decisório de inúmeras questões sensíveis para os órgãos judiciais de cúpula.

A participação popular na escolha dos ministros não precisa ocorrer necessariamente pela via eleitoral. Aliás, talvez seja possível ampliar a participação popular nesse processo independentemente de qualquer mudança constitucional específica, embora também seja possível imaginar vários melhoramentos no sistema atual que precisariam de alteração na ordem constitucional. Por exemplo, para citar algumas propostas que precisariam de mudança constitucional, poder-se-ia estabelecer uma maior representatividade e pluralidade na composição dos tribunais, prevendo-se a participação de não-juristas, de variados setores da sociedade (acadêmicos, médicos, economistas, engenheiros, ambientalistas, jornalistas etc) capazes de enriquecer os debates. O sistema de mandato também seria uma boa solução, sobretudo para eliminar o sentimento de apropriação e perpetuação do poder que a vitaliciedade provoca. Do mesmo modo, o incremento da democracia interna traria novos ares ao Judiciário, possibilitando que os membros da base participem dos rumos da instituição, inclusive da escolha dos órgãos dirigentes, o que traria um maior engajamento coletivo em favor da causa da justiça. Enfim, a criatividade é o limite quando se está conjecturando mudanças na Constituição.

Porém, para além de mudanças constitucionais formais, é possível também imaginar algumas mudanças culturais que poderiam ser implementadas desde já, sem a necessidade de qualquer emenda constitucional. Em primeiro lugar, seria preciso lançar luzes nesse processo de escolha, retirando-o da obscuridade que circunda os bastidores do poder. Os nomes dos “indicáveis” devem vir à tona antes da indicação. Ou seja, o Executivo deveria, de algum modo, apresentar uma lista de possíveis candidatos ao público para que tais nomes possam ser submetidos a algum tipo de controle popular. Os candidatos convidados, a partir daí, participariam de debates em universidades, entrevistas em programas de televisão, visitas a instituições públicas e privadas, sempre no intuito de se apresentarem à população. Certamente, tal participação popular não seria capaz de gerar qualquer tipo de obrigação forte para o Executivo, que ainda teria a liberdade de indicar aquele que mais agrada ao governo. Porém, não há dúvida de que alguns constrangimentos podem surgir dessa abertura, o que será bastante saudável para a democracia.

Além disso, é fundamental pensar em um modelo de sabatina no Senado mais efetivo e mais próximo da sociedade. Com um nome já escolhido pela Presidência da República, o Senado deveria assumir um papel ativo no intuito de ampliar a participação popular no processo de escolha. A realização de audiências públicas com o candidato em diferentes centros urbanos, respondendo perguntas formuladas não só por parlamentares, mas também por membros da sociedade civil, certamente poderia ampliar a sensação de participação popular, ainda que timidamente. O candidato deveria ser compelido a expor suas ideias em alguns pontos de interesse público, permitindo uma comparação com a sua futura atuação jurisdicional. Afora isso, o candidato deveria ser estimulado a apresentar o nome dos seus apoiadores, a fim de que se possa verificar se a atividade jurisdicional será usada para beneficiá-los. Os autos do processo de indicação deveria ser acessível ao público, a fim de que todos possam consultá-lo e analisar quem formalizou apoio ao candidato. Enfim, como diria Brandeis, quando o poder está em jogo, a luz do sol continua sendo o melhor desinfetante.

O certo é que o modelo atual precisa ser mudado para possibilitar um maior controle popular nesse processo de indicação dos membros do Poder Judiciário. Não queremos que a escolha de um ministro seja como o processo de fabricação de salsichas. Melhor que seja como a fabricação de pães, feita pelo povo ou, pelo menos, acompanhada pelo povo. Afinal, se a justiça é o pão do povo, como já anunciava Brecht, quem deve prepará-lo é povo, “bastante, saudável diário”.

Do Consentimento Político ao Ético

 

Este é mais um daqueles posts escritos para não serem compreendidos. É uma espécie de “braimstorm”, sem muita lógica, destinado a apenas lançar idéias soltas para tentar, no futuro, organizá-las de uma forma mais coerente. Mas quem quiser me acompanhar, seja bem-vindo.

O tema comum da filosofia, da política, da ética e do direito é o exercício do poder. Transformando isso em problema: o que justifica que alguns homens governem outros homens? O que faz com que alguns tenham a prerrogativa de criar normas de conduta a serem seguidas pelos demais? Por que temos que obedecer as ordens vindas de pessoas nem sempre tão virtuosas?

A força como fundamento do poder é a resposta óbvia, e ninguém pode negar que ela está sempre presente quando se trata de exercício do poder. Mas a força como justificativa para o exercício do poder parece ser incompatível com a idéia de que o ser humano é um ser racional capaz de tomar decisões e agir conforme a sua própria consciência. De fato, se não formos capazes de se revoltar contra o poder arbitrário, ainda que baseado na força, perdemos a nossa dignidade, que é capacidade de traçar nosso próprio destino a partir de nossas reflexões. Se somos capazes de nos revoltar contra o exercício do poder, então a força não pode ser o único fundamento do poder. Ela sustenta o poder no curto prazo, mas a constância do poder precisa de algo mais para ser exercida ao longo do tempo.

Até aqui não estou dizendo nada de tão original. A questão é: se o fundamento do poder não pode ser apenas a força, o que sobra então?

O iluminismo levantou a bandeira do consentimento político como fundamento do poder. Nessa ótica, o poder legítimo seria o poder consentido. A teoria do contrato social está na base dessa idéia. Aderimos às regras que, racionalmente, podemos concordar. E concordamos porque elas proporcionam a preservação de nossas vidas no longo prazo. Se os homens não vivessem sob o império de regras, dificilmente seria alcançanda a paz social e, portanto, restaria inviabilizada a convivência entre seres racionais.

Essas idéias forneceram os alicerces teóricos para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, com todos os seus pressupostos básicos: o princípio da legalidade, a separação de poderes e soberania popular. A partir daí, o poder político foi formalmente limitado pelo poder jurídico. A vinculação do poder à lei, previamente aprovada por uma assembléia popular, seria capaz de fechar o ciclo de validade da justificação do poder. O poder deixava de ser heterônomo, ou seja, estabelecido por estranhos, para ser autônomo, ou seja, estabelecido pelos seus próprios destinatários. E assim, o poder estatal faria as pazes com a dignidade-autonomia que todo ser racional possui. O povo seria auto-legislador de si próprio.  Como o próprio povo participa da elaboração das leis que devem reger a sociedade, as leis não poderiam ser más, pois ninguém seria irracional ao ponto de fazer regras gerais que prejudiquem seus próprios interesses.

O problema é que, além de a idéia do consentimento fundado no contrato social ser uma ficção (logo, uma mentira), os seres humanos são seres facilmente sugestionáveis e, portanto, manipuláveis. O consentimento político nunca é totalmente autêntico, e o poder legislativo apenas com muita ingenuidade pode ser considerado como uma representação fiel da soberania popular, especialmente diante das conhecidas falhas do processo legislativo contemporâneo.

Ao longo do século XX, o mito do “bom legislador” ou do “legislador razoável” foi destruído junto com a queda dos regimes nazi-fascistas. A humanidade percebeu de forma nítida, que, nos momentos de desespero, os interesses de grupo falam mais alto, e os detentores do poder são capazes de fazer qualquer coisa para alcançar seus objetivos, ainda que, para isso, seja necessário passar por cima dos opositores. E o grupo beneficiado pelo exercício do poder não terá qualquer crise de consciência em dar seu aval legitimador às práticas mais atrozes, se isso for capaz de satisfazer as suas necessidades e desejos imediatos. Quando isso ocorre, o poder legislativo pode tornar-se uma máquina de opressão super-eficiente que, ao invés de limitar o poder político, fornece o manto de legalidade para que a culpa individual seja expiada pela culpa coletiva. Os funcionários responsáveis pela aplicação das leis, nessa ótica, ganham um potente anestesiante ético para praticarem as mais cruéis violências contra outros seres humanos, sem serem incomodados de forma tão intensa pela norma moral que cada um carrega dentro de si.

O defeito maior desse modelo é que tudo se baseia na vontade da maioria. E a maioria, quando manipulada ou mal-informada, pode se tornar opressora. Os pensadores clássicos do iluminismo não conseguiram elaborar nenhum mecanismo capaz de substituir a vontade da maioria por uma vontade eticamente comprometida. O modelo clássico de separação de poderes – onde há dois momentos distintos de realização do direito: a aprovação da lei geral pelo parlamento e a sua aplicação no caso concreto pelo juiz – não é um método satisfatório para alcançar soluções eticamente comprometidas, justamente porque o combustível que move a vontade parlamentar é o voto, e a força das urnas tende a calar a minoria politicamente enfraquecida.

Não se pode negar que, do ponto de vista prático, um modelo político que se baseie exclusivamente na vontade da maioria é muito mais fácil de ser compreendido e implementado. Toda vez que surge um conflito social, submete-se o problema a uma assembléia popular, e o que os representantes do povo decidirem vale como lei. Quem não ficar satisfeito tenta se mobilizar politicamente para mudar os parlamentares, se conforma convenientemente com a situação ou então arruma as malas e vai embora. Parece ser uma lógica bem simples, até porque o voto, que é o instrumento por excelência do consentimento político, é matematicamente mensurável: quanto mais votos, maior é a adesão; e quanto maior a adesão a uma determinada tese, maior será a sua legitimidade política.

É uma lógica simples, mas perigosa. Ela funciona bem em sociedades onde os valores sociais são relativamente homogêneos. Na verdade, esse modelo tende a gerar uma uniformização dos valores sociais, na medida em que apenas protege o pensamento dominante. Se a maioria da população votante considera que o homossexualismo é uma prática censurável, é fácil aprovar uma lei criminalizando a conduta. Se os eleitores majoritariamente seguem uma cultura monogâmica, basta criminalizar a poligamia e o adultério. Se um grupo puritano consegue obter uma maioria política, criam-se regras limitando a prática da prostituição e o comércio de pornografia e assim por diante.

A lógica do princípio majoritário também tende a favorecer grupos com forte poder de mobilização política, ainda que não sejam numerosos. Industriais, comerciantes, sindicatos, associações corporativas costumam ser favorecidos por esse sistema e podem conseguir que sejam aprovadas leis que beneficiem seus interesses, ainda que o conteúdo dessas leis possa gerar um choque de interesses com as necessidades de outros grupos ou indivíduos. Assim, a proteção incondicional do princípio majoritário pode gerar soluções injustas, na medida em que podem discriminar grupos conforme o seu poder político e econômico.

Essa distorção do princípio majoritário ocorre porque as pessoas costumam votar conforme o interesse próprio. Conquista-se o voto, em geral, pela sedução, pelas promessas de uma vida melhor para o eleitor aqui e agora. O incentivo primordial dos eleitores é o benefício de curto prazo. E os agentes políticos tenderão a explorar ao máximo essa característica do sistema eleitoral. Isso faz com que o consentimento político-eleitoral nunca seja capaz de representar, com absoluta precisão, a vontade geral, conforme já havia alertado Rousseau. Apenas eventualmente, a soma das vontades individuais, que fundamenta o consentimento político, coincidirá com o interesse de todos, que está na base da vontade geral.

Como então contornar esse problema?

O desenvolvimento de um sistema de proteção jurisdicional dos direitos fundamentais surgiu como uma forma de remediar essa situação. O consentimento político continuou a ser a base do exercício do poder estatal, mas a vontade da maioria, a partir daí, passou a encontrar limites formais e materiais previstos em normas constitucionais rígidas, que tentam conciliar o exercício do poder com o respeito à dignidade humana, inclusive daqueles que não têm voz nem vez no processo eleitoral.

Por esse modelo, incorpora-se no texto constitucional um conjunto de valores que, em princípio, não podem ficar à disposição da vontade majoritária. São os direitos fundamentais, que, na feliz expressão de Dworkin, configuram “trunfos da minoria”. Esses direitos fundamentais contêm uma dimensão ética que se confunde com a idéia de dignidade humana, baseada na premissa kantiana de autonomia e auto-responsabilidade. Essa dimensão ética dos direitos fundamentais limita materialmente o poder político, funcionando como um escudo de proteção de cada ser humano contra a força institucionalizada.

Esse modelo gera uma série de discussões polêmicas. Em primeiro lugar, o poder legislativo não é mais completamente livre para solucionar os problemas sociais da forma como bem entender. Se antes o legislador tentava criar um código moral uniforme para toda a sociedade, conforme os gostos ideológicos da maioria dominante, no novo modelo o legislador sabe que não pode simplesmente censurar o comportamento divergente a seu bel prazer. A busca da homogeneização dos valores sociais é substituída pela exaltação do pluralismo cultural, pela aceitação das diferenças. Tenta-se não mais impor uma determinada moral ao restante da sociedade, mas permitir que as diversas concepções morais existentes possam conviver dentro do mesmo território.

Mas para que o modelo possa funcionar, é necessário que exista um órgão responsável pela guarda da Constituição. Esse órgão não pode, em princípio, ser eleito pelo povo, pois, se assim fosse, haveria uma repetição dos mesmos vícios apenas com uma roupagem diferente. No fundo, o que se deseja é impedir que a vontade da maioria oprima a minoria. E o voto nada mais faz do que espelhar a vontade da maioria, que pode ser justa ou injusta para com aqueles que não têm força política. Daí porque é necessário um órgão de controle, cujos membros não devem ficar reféns da vontade das urnas. Esse órgão tem a prerrogativa de excluir do mundo jurídico as leis que violem os direitos fundamentais.

A existência de um órgão jurisdicional responsável pelo controle de constitucionalidade das leis, cujas decisões não são orientadas meramente por critérios eleitorais, cria uma espécie de “sistema de alerta” para o legislador, que pensará duas vezes antes de aprovar uma legislação que possa conflitar abertamente com as normas constitucionais. Por outro lado, por pressupor uma desconfiança do legislador, também há o risco de um esvaziamento ou enfraquecimento do poder político-eleitoral. O desprestígio do legislador poderá fazer com que os parlamentares deixem de se sentir responsáveis pelas decisões políticas mais polêmicas, preferindo se omitir quando a matéria não gerar dividendos eleitorais, já que haverá um órgão jurisdicional para suprir esse papel sem os ônus da prestação de contas eleitoral. Com isso, há um grave risco de se transformar o órgão jurisdicional no órgão centralizador do processo de tomada de decisão, excluindo quase por completo a possibilidade da participação popular na elaboração das normas jurídicas mais relevantes.

O modelo de jurisdição constitucional não tem como premissa o consentimento político, manifestado pelo voto da maioria da população, mas o consentimento ético, que se manifesta por meio de um processo argumentativo onde os responsáveis pelo julgamento tentarão convencer os destinatários da norma que a solução adotada é a melhor possível numa perspectiva que leve em conta o interesse de todos. A estratégia de convencimento ocorre por meio de expedientes retóricos e argumentativos variados. Esse processo argumentativo pode ser chamado de consentimento ético porque não busca insuflar o interesse próprio das partes envolvidas, tal como o sistema eleitoral faz, mas sim apelar para sentimentos mais nobres, baseados na justiça da solução. Os julgadores não invocam argumentos do tipo “é do seu interesse aceitar a decisão” ou “você tem tudo a ganhar se cumprir o que for decidido”; o argumento, pelo contrário, costuma ser do tipo “a presente solução é a que melhor promove o bem comum”, “em nome da eqüidade, julgo em tal ou qual sentido”, “considerando a justiça social e os valores constitucionais mais importantes, decido o que se segue…” e assim por diante. Na base de tudo isso, está a idéia de que todo ser humano merece ser tratado com igual respeito e consideração e, portanto, os interesses de um determinado indivíduo ou grupo não podem passar por cima dos interesses de outros grupos ou indivíduos.

É lógico que, nos meios políticos, essa forma de mensagem também é utilizada para convencer a platéia, especialmente quando os interlocutores estão diante de uma assembléia mais ampla. Porém, o que vai funcionar como o fiel da balança eleitoral é, sobretudo, o interesse próprio dos eleitores, que avaliarão as propostas dos candidatos de acordo com as vantagens que poderão receber em curto prazo e tenderão a escolher aquelas que lhes tragam o máximo de benefício no menor espaço de tempo. Naturalmente, na seleção natural do jogo político, os candidatos que consigam seduzir o maior número de eleitores com esse tipo de discurso terão muito mais chances de ganhar a eleição. É por isso que há uma grande diferença entre o discurso político e o discurso aqui chamado de “ético”. No discurso político, a invocação das virtudes sociais – honestidade, preocupação com bem comum, solidariedade – não tem um peso tão decisivo na conquista dos votos. O interesse próprio “conta” mais e desequilibra a balança. No discurso ético, por sua vez, a invocação das virtudes sociais tem um peso maior, sendo considerado um despropósito invocar argumentos de interesse próprio para justificar uma decisão.

Isso não significa dizer que a dissimulação não exista no discurso ético. Pelo contrário. Justamente porque os argumentos egoístas não costumam ser bem-vistos nesse modelo argumentativo, as chances de dissimulação são ainda maiores. Com muita freqüência, os julgadores mascaram preferências subjetivas em um discurso cheio de jargões grandiloqüentes supostamente bem intencionados. Assim, sob o pretexto de concretizar a justiça, o bem-comum, os direitos fundamentais, a solidariedade ou qualquer outro valor social relevante, decide-se em favor de determinados grupos de interesse, muitas vezes perpetuando os valores que os juízes carregam desde o berço, sob a forma de “preconceito hereditário”. Mesmo assim, retirando a possibilidade real e freqüente de dissimulação ética, não há dúvida de que as razões argumentativas utilizadas para convencer alguém a dar o seu aval ético são  diferentes da razões argumentativas utilizadas para convencer alguém a dar o seu aval político.

Alguém poderia questionar a palavra “consentimento”, embutida na expressão “consentimento ético”. Afinal, quem está consentindo o quê? Como falar em consentimento, se não há uma forma de “validação popular” da deliberação judicial?

De fato, enquanto no consentimento político baseado em um sistema eleitoral o voto tem elevado valor simbólico de fácil identificação, o modelo fundado num consentimento ético carece de um mecanismo para garantir o “de acordo” popular.

Certamente, essa objeção atinge em cheio a jurisdição constitucional, tal como praticada no mundo contemporâneo. Os juízes julgam, e o povo fica de mãos atadas diante da solução escolhida, seja ela qual for. O máximo que o povo pode fazer é espernear, escrever textos desaforados e esperar que a mídia replique o descontentamento. Se os juízes aceitarem bem as críticas, são capazes até de mudar de opinião e rever o julgamento. Mas a aura de superioridade que circunda a magistratura, na maioria das vezes, impede que os juízes ouçam os gritos das ruas, ainda que sejam gritos consistentes e coerentes.

Parece não restar dúvida de que o modelo atual ainda está muito longe de representar um consentimento ético no sentido mais ideal do termo.  Não que a opinião pública seja um mecanismo fiel. Longe disso. O consentimento ético pressupõe algo muito mais do que a revolta da multidão. Pressupõe uma assembléia de anjos ou quase isso.

Ainda não foi desenvolvido um mecanismo que consiga conciliar plenamente a soberania popular com o respeito aos direitos fundamentais. Uma terceira via – que não seja o modelo de legislação nem o modelo de jurisdição – certamente surgirá. Enquanto isso não ocorre, é preciso tentar fazer com que o modelo atual de jurisdição constitucional, com suas imperfeições, possa alcançar resultados melhores.

Sem me comprometer incondicionalmente com o pensamento de John Rawls, entendo que a sua reformulação da teoria do contrato social consubstancia um inegável avanço para a solução do problema que estamos enfrentando. Melhor dizendo: a proposta de Rawls não ajuda a solucionar o problema, mas oferece alguns caminhos para dribá-lo.

Para ele, o problema do exercício do poder seria contornável se o produto da atividade estatal pudesse receber um consentimento, ainda que meramente hipotético, concedido por agentes livres e racionais. A teoria do contrato social se transformaria em um mero método de raciocínio para permitir que os seres racionais verifiquem se seriam capazes de concordar com a estrutura política da sociedade, inclusive com as leis aprovadas pelas instâncias competentes e com as decisões proferidas pelos juízes.

Com isso, seríamos obrigados a voltar ao nosso ponto de partida: nem o poder legislativo, nem o poder judicial, seriam, necessariamente, legítimos, pois estariam sujeitos a uma avaliação ética por parte dos seres racionais que somente dariam seu aval legitimador se fossem obedecidas algumas condições de justiça imaginadas a partir de uma situação hipotética de plena imparcialidade e eqüidade. Essas condições de justiça desenvolvidas por Rawls, a partir de seu próprio método de raciocínio, seriam, em síntese, alguns direitos fundamentais básicos, como a máxima proteção da liberdade, a defesa da igualdade de oportunidades e a redução das desigualdades sócio-econômicas. E o curioso é que Rawls chegou aos seus famosos princípios de justiça a partir de um raciocínio essencialmente fundado na teoria da escolha racional, que tem como ponto de partida a idéia de que os agentes racionais tentarão sempre maximizar os seus próprios interesses pessoais na hora de decidirem.

Seja como for, parece que a sua proposta conseguiu substituir o mero consentimento político, que era a base das teorias contratualistas tradicionais, por um consentimento mais preocupado com o produto ético das deliberações políticas, já que os agentes racionais terão que pensar nos interesses alheios quando estiverem deliberando.

Obviamente, sua preocupação não era fornecer uma base teórica para justificar a jurisdição constitucional. Mas, pelo menos indiretamente, ele forneceu bons elementos argumentativos para que os juízes responsáveis pela jurisdição constitucional possam utilizar quando estiverem fiscalizando o produto das deliberações legislativas. Também forneceu algumas ferramentas intelectuais para que os indivíduos possam, por si só, avaliar a justiça ou injustiça de uma decisão ou de uma lei,  bastando para isso que sejam capazes de se colocarem na “posição original”, cobertos com o “véu da ignorância”.

O maior problema prático disso tudo é que ainda não há um procedimento seguro – tão fácil de mensurar quanto o voto – capaz de permitir o reconhecimento de que o povo, coletivamente, concedeu, de fato, o seu consentimento ético a uma determinada norma ou decisão. Tudo fica no campo das hipóteses e das especulações filosóficas, cercado de ficções e alegorias, como a idéia de “posição original” e “véu da ignorância”, que apenas uns poucos iluminados conseguem, honestamente, alcançar.

Se algum dia fosse criado um prêmio Nobel para a filosofia, certamente este iria para aquele pensador que conseguisse desenvolver um método prático capaz de detectar, com segurança, o consentimento ético.

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