A Força da State Action: mais uma pitada de Boston Legal

A idéia de eficácia horizontal (direta) dos direitos fundamentais não é aceita por outros países com tanta naturalidade como ocorre aqui no Brasil. Aliás, a maioria dos países entende que os direitos fundamentais incidem nas relações privadas apenas indiretamente, ou seja, através da regulamentação da matéria por lei ordinária.

Lá nos EUA, por exemplo, eles são enfáticos ao entenderem que os direitos constitucionais servem apenas para proteger o indivíduo contra o arbítrio estatal e não contra particulares. As chamadas liberdades civis previstas na Constituição não podem servir para limitar a autonomia privada, salvo se houver lei regulamentando a matéria. A única hipótese em que os direitos constitucionais podem ser diretamente invocados contra um particular é quando o particular está agindo como se poder público fosse. Essa teoria é conhecida como “state action”.

Um caso que bem ilustra a teoria da “state action” foi divertidamente narrado no seriado Boston Legal (S2E2).

Foi assim: um cantor ingressou com uma ação judicial contra uma casa de show alegando violação à sua liberdade de expressão. A boate havia proibido o cantor de incluir em seu repertório uma música que criticava a guerra.

Nos debates finais, a advogada da boate argumentou que se tratava de uma empresa privada e, por isso, tinha a liberdade de contratar o espetáculo que quisesse.

Já o advogado do cantor justificou seu ponto de vista argumentando que as ameaças contra a liberdade de expressão não vêm mais do governo, mas das corporações privadas; não se deveria tolerar a censura motivada pelo fator econômico.

Na sua sentença final, a juíza sintetizou bem o espírito da teoria da “state action” que prevalece naquele país. Eis suas palavras:

“Acho que a idéia de censurar a música é ridícula. A idéia de que uma mensagem antiguerra é antipatriótica é completamente absurda. No entanto, por mais que eu quisesse julgar favoravelmente ao cantor, e por mais que as empresas privadas sejam potenciais violadoras dos direitos constitucionais, considero que o dono de uma boate ainda tem o direito de controlar o conteúdo de seus próprios espetáculos”.

Certamente, a mera aceitação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais não significaria necessariamente reconhecer o direito do cantor. Especulo que, se o caso ocorresse aqui no Brasil, provavelmente a maioria dos juízes julgaria em favor da boate. No entanto, o que é importante assinalar nesse caso é que a liberdade de expressão é, nos EUA, um direito preferencial. Eles colocam essa liberdade acima de tudo. E mesmo assim, não consideram que ela possua uma eficácia horizontal. Esse é o espírito da “state action”. Nas relações privadas, vale tudo, até mesmo violar os mais básicos valores protegidos pela Constituição.

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A propósito, a música censurada foi esta:

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2 comentários em “A Força da State Action: mais uma pitada de Boston Legal”

  1. Ano passado, quando estava elaborando minha monografia (obstáculos ao acesso à justiça), tive acesso a uma pesquisa realizada em 2004, com juízes das varas da capital do Rio de Janeiro sobre o tema “direitos humanos”. Diz o autor da pesquisa que “as disciplinas relacionadas à temática dos direitos humanos não contam em geral com grande prestígio nos cursos de graduação das universidades; quando perguntados acerca da existência de alguma cadeira de direitos humanos durante o bacharelado, 84% dos magistrados responderam negativamente; dentre as respostas afirmativas, apenas 4% dos juízes tiveram a disciplina como obrigatória, enquanto para 12% ela havia sido opcional; a despeito da quase inexistência de oferta da disciplina nas faculdades, tendo em vista a relevância do tema, pediu-se aos juízes para manifestarem seu interesse pelos estudos relacionados aos direitos humanos.” Suas respostas: 42 magistrados (40%) nunca estudaram direitos humanos. Entretanto, os mesmos demonstraram interesse em participar de cursos relacionados aos direitos humanos: cerca de 73% estariam dispostos a estudar o tema. Quando indagados sobre algum tipo de vivência pessoal que pudesse fornecer uma experiência prática em relação aos direitos humanos, o resultado demonstrou um abismo ainda maior entre os juízes e o tema. Apenas 6% dos entrevistados revelaram já ter tido algum tipo de engajamento nessa área (CUNHA, José Ricardo. Direitos humanos e Justicibilidade: Pesquisa no Tribunal de justiça do Rio de Janeiro. Fonte http://www.surjournal.org/ conteudos/artigos3/port/artigo_cunha.htm. Acesso em 20/5/2007). Noto agora que os juízes da capital carioca (infelizmente) não estão tão isolados assim…

  2. Olá, muito boa a explicação sobre o assunto” eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, o uso do exemplo do seriado serviu bem para esclarecer a referida teoria.

    Parabéns!!!!

    karem

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