O Direito Fora da Caixa

imagem.pngNeste ano de 2018, o blog DireitosFundamentais.Net completa 15 anos de existência. É provável que seja um dos mais antigos ainda em atividade. E para não deixar passar a data em branco, resolvi publicar um livro especialmente em homenagem a este blog.

O Direito Fora da Caixa é uma espécie de “bolo de aniversário” dessas quinze primaveras em que me dediquei ao DireitosFundamentais.Net quase ininterruptamente. Nele, selecionei 42 textos que foram publicados ao longo destes quinze anos e vários inéditos.

Os assuntos são bem variados, indo desde a jurisdição constitucional, passando pela judicialização da política, fundamentação das decisões, argumentação jurídica e assim por diante. O ponto comum em todos os textos é a leveza da linguagem e um propósito deliberado de fazer o leitor pensar. São textos provocativos, questionadores, não-conformistas, bem dentro do espírito dos posts que firmaram a identidade do blog.

Eu fiquei muito feliz em puder fazer essa homenagem e fiz questão de dedicar o livro a você, leitor do blog, que já me acompanha a tantos anos. Sei que é sempre meio chato fazer auto-elogios ou recomendar a própria obra, mas acho que o livro ficou legal mesmo. Espero que você possa se divertir lendo tanto quanto me diverti escrevendo.

No site da editora JusPodivm, é possível ver o sumário e ler algumas páginas de amostra, inclusive o primeiro texto na íntegra (Breaking The Law), que é uma espécie de “manifesto” em defesa de uma nova forma de pensar o direito. E que outro livro de direito começaria com uma música do Judas Priest?

 

O caso do bolo de casamento gay

Mais um slide que publiquei lá no Instagram comentando um caso beem interessante: o caso do bolo de casamento gay (same-sex wedding cake case), julgado esta semana pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS).

É um julgamento muito importante, mas é preciso ter bastante cautela quanto ao real sentido do que foi julgado. O tema deve ser compreendido muito mais no contexto da liberdade de expressão do que do direito da antidiscriminação. Enfim, aqui vai o slide:

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Existe um direito fundamental de bloquear estradas?

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Publiquei lá no Instagram (@direitos_fundamentais_net) um post/slide sobre o caso Schmidberger v Austria, julgado em 2003 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
É um caso muito interessante para entender os limites do direito de manifestação quando o seu exercício pode causar transtornos ao trânsito de veículos ou à livre circulação de mercadorias. E o mais legal é que é uma espécie de versão invertida do protesto dos caminhoneiros a que estamos assistindo no Brasil.
Esse tipo de inversão é sempre útil para permitir uma análise mais imparcial do problema que queremos enfrentar, pois nos permite fixar balizas mesmo quando o “nosso lado” não é beneficiado. É uma forma prática de buscar um “acordo ou consenso por sobreposição” (Rawls), capaz de proteger imparcialmente todos os interesses em jogo, dentro da ideia básica de que todas as pessoas merecem ter seus direitos respeitados em igual medida.
Então, se você é a favor do exercício incondicional e ilimitado do direito de protesto no caso dos caminhoneiros, também deve adotar a mesma postura quando o protesto vier de outros grupos, inclusive prejudicando os caminhoneiros. Do mesmo modo, se você acredita que é preciso estabelecer alguns limites para minimizar os transtornos causados aos direitos de terceiros, então esses limites devem valer para outras situações semelhantes. Em outras palavras: em se tratando de limites para o exercício do direito de manifestação, não se pode estabelecer critérios ad hoc, que ficam mudando conforme a conveniência ou os interesses políticos em jogo. O que vale para um grupo vale para o outro.
Sei que o protesto dos caminhoneiros tem alguns componentes que dificultam a simplificação do debate. Mas considero, sim, que o caso deveria ser analisado à luz do direito fundamental de manifestação (com os limites a ele inerentes) e não como um caso de greve ou lock-out, já que a reivindicação não está relacionada a disputas trabalhistas. O movimento é um claro protesto contra o governo e não um conflito laboral. Sendo assim, deveria ser analisado à luz da liberdade de manifestação, reunião e expressão, com todos os ônus argumentativos que derivam da estrutura normativa dos direitos fundamentais.
Enfim… é apenas minha contribuição para o debate.

Aqui o slide originalmente publicado no Instagram:

 

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O que é ativismo, afinal?

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Os juristas têm mania de conceituar e parecem fazer dessa atividade um jogo com vencedores e vencidos. Não se percebe que as palavras, por mais poderosas e importantes que sejam, são apenas ferramentas criadas culturalmente para facilitar a comunicação e nada mais do que isso. O uso de uma determinada palavra não pode ser qualificado de falso ou verdadeiro, nem de certo ou errado, mas apenas de adequado ou inadequado. Ou seja, se a transmissão da ideia foi atingida satisfatoriamente, pode-se dizer que as palavras cumpriram sua finalidade. Se, pelo contrário, a confusão terminológica impediu o mútuo entendimento, algo está errado, tornando-se necessário estabelecer algum tipo de pacto semântico para que a comunicação possa prosseguir a contento.

O pacto semântico, em geral, não é explícito, até porque a imensa maioria das palavras não gera dúvida de compreensão. Há, porém, determinadas situações em que se torna importante esclarecer o uso de algumas expressões, sobretudo para evitar que palavras polissêmicas sejam usadas para se referir a fenômenos diferentes em um determinado contexto comunicacional.

No direito, cuja gramática está repleta de palavras ambíguas e com forte carga valorativa, a confusão linguística costuma ser constante. Por isso, o pacto semântico deveria ser uma atividade permanente e explícita, exercitado antes mesmo do debate de fundo prosseguir. Infelizmente, não é assim que ocorre. Em geral, os juristas assumem uma postura de arrogância semântica, como se fossem os donos das palavras, desenvolvendo conceitos com pretensões de serem os únicos verdadeiros e chamando de equivocados todos os usos diferentes daquela expressão que ele arbitrariamente se apropriou. E o pior é que nem sempre há um esclarecimento preciso sobre o uso daquela palavra, como se todos estivessem de acordo com os pressupostos linguísticos e teóricos assumidos implicitamente pelo interlocutor.

Os exemplos disso são múltiplos, mas fiquemos apenas com a palavra “ativismo judicial”, objeto do presente texto.

Nos anos 1980 e 1990, a expressão “ativismo judicial” era normalmente usada para se referir a uma atitude de “rebeldia” dos “juízes de esquerda” (alternativos), que faziam de sua atividade uma tentativa de transformar o mundo. Assim, aqueles que defendiam que a função judicial deveria buscar a emancipação social elogiavam o ativismo judicial. Por outro lado, os que criticavam essa contaminação ideológica da jurisdição repudiavam o ativismo judicial.

Já mais recentemente, a expressão “ativismo judicial” perdeu parte de sua polaridade direita-esquerda para se referir a uma atitude de voluntarismo judicial genérico. Nesse contexto, costuma-se usar a expressão “ativismo judicial” em um tom pejorativo, para criticar um tipo de jurisdição que não respeita seus limites funcionais. O juiz ativista seria um tipo de juiz “porra-louca”, que julga como quer e não presta contas a ninguém.

O problema é que a função jurisdicional, sobretudo com o avanço do constitucionalismo, passou por tantas transformações que é difícil estabelecer quais são seus limites funcionais. É papel do juiz negar-se a aplicar uma lei inconstitucional? E uma lei injusta? Pode o juiz se valer de argumentos pragmáticos ao tomar uma decisão? E elementos éticos? Na interpretação do texto normativo, deve o juiz simplesmente tentar captar o sentido semântico contido no texto ou deve se esforçar para ir além da interpretação gramatical? E se houver mais de um sentido semântico, como decidir qual deve prevalecer? Em matéria probatória, deve o juiz receber passivamente os dados indicados pelas partes ou deve buscar, mesmo de ofício, informações que possam enriquecer a compreensão da realidade? Enfim… são questionamentos sobre o papel da jurisdição que dividem os juristas e também os próprios juízes.

Dentro desse contexto, o que se nota é que a etiqueta “ativismo judicial” tem-se transformado em uma espécie de rótulo que serve para criticar todas aquelas situações que, na ótica do interlocutor, extrapolam a função jurisdicional. Com isso, a expressão perdeu grande parte de seu poder explicativo, pois seu uso, nesse contexto, pressupõe uma compreensão mais abrangente do papel da função jurisdicional, do sentido do direito, dos limites do constitucionalismo, das possibilidades do raciocínio jurídico e da atividade interpretativa etc. É óbvio que a compreensão disso tudo não é simples, como também não é simples, mesmo depois de muita reflexão, estabelecer limites precisos para o exercício da função jurisdicional.

Na ausência de uma abrangente teoria do direito que possa servir para estabelecer os limites da função jurisdicional, a expressão “ativismo judicial” não passa de um slogan emotivo para exprimir um sentimento de aprovação ou desaprovação de uma determinada decisão. Quando se concorda com a decisão, diz-se que o juiz não foi ativista, pois não extrapolou seus limites, interpretou corretamente o direito existente, exerceu a guarda da constituição de forma adequada e assim por diante. Por outro lado, quando a decisão não agrada, afirma-se que o juiz foi ativista, arbitrário, decisionista, usurpou o poder legislativo e outros epítetos nada elogiosos. A charge acima ilustra com perfeição esse fenômeno.

Para que o debate possa sair desse impasse, é preciso um pouco mais de rigor semântico e clareza na apresentação das ideias, tentando escapar desse jogo de subjetividade que orienta as preferências contingentes do interlocutor. Sem um prévio pacto semântico que possa possibilitar o entendimento mútuo, o atalho fácil do “ativismo é ruim”, “sou contra o ativismo” ou “ativismo é bom”, “sou a favor do ativismo” não satisfaz. É uma espécie de “ativismo semântico”, com o perdão do jogo de palavras.

Curiosamente, o problema não é restrito ao Brasil. Mesmo nos Estados Unidos, que vivem esse debate há séculos, ainda não se tem um sentido preciso do “judicial activism“, nem mesmo do seu contraponto, o “judicial self-restraint“.

Para se ter uma ideia da dificuldade do problema, Thomas Sowell explica que há pelo menos sete fatores que costumam ser associados ao ativismo e à auto-restrição judiciais. Assim, um juiz poderá ser considerado ativista ou não conforme se afaste ou se aproxime: (1) da opinião pública dominante; (2) do legislador que representa a atual maioria popular; (3) das leis aprovadas pelo legislativo do presente ou do passado; (4) dos atos atuais do executivo ou das agências administrativas; (5) do significado das palavras contidas na constituição; (6) dos princípios e propósitos daqueles que escreveram a constituição; ou (7) dos precedentes estabelecidos por interpretações judiciais com base na constituição (SOWELL, Thomas. Judicial Activism Reconsidered. Stanford: Stanford University, 1989, p. 1).

Sowell esclarece que “no coração do conceito” de judicial activism encontra-se o medo de que o juiz imponha suas próprias preferências pessoais em suas decisões, deixando de lado a ideia de que a vida social deve ser regulada por um conjunto de regras previamente conhecidas e não por critérios ad hoc estabelecidos arbitrariamente pelo julgador. Assim, na sua ótica, o ativismo que deveria ser rejeitado é aquele que permite que os “valores substantivos” dos juízes orientem as decisões constitucionais (p. 32).

William P. Marshall também associa a expressão judicial activism a uma espécie de pecado, apontando sete tipos de ativismo que costumam ser mencionados pela literatura jurídica: (1) o ativismo contramajoritário (“counter-majoritarian activism”), que consiste na relutância das cortes de prestar deferência às decisões tomadas pelos órgãos democraticamente eleitos; (2) o ativismo não-originalista (“non-originalist activism”), decorrente de uma desconsideração pelos propósitos originais estabelecidos na constituição pelos constituintes (“framers”); (3) o ativismo de precedentes (“precedential activism”), que resulta da não observância dos precedentes consolidados; (4) o ativismo jurisdicional (“jurisdictional activism”), fruto da incapacidade dos tribunais de se curvarem aos limites jurisdicionais de seus próprios poderes; (5) o ativismo criativo (“judicial creativity”), resultado da criação de novas teorias e direitos na doutrina constitucional; (6) o ativismo corretivo ou remedial (“remedial activism”), que implica o uso do poder judicial para impor contínuas obrigações positivas aos outros poderes ou submeter outras instituições governamentais a uma supervisão judicial como parte do controle jurisdicional; (7) o ativismo partidário (“partisan activism”), que significa o uso do poder judicial para efetivar os objetivos ou o programa ideológico de um determinado partido político (MARSHALL, William P. Conservatives and the Seven Sins of Judicial Activism. In: Colorado Law Review vol. 73, 2002, disponível on-line: http://tinyurl.com/kvktazw).

Por outro lado, nem sempre a palavra ativismo é usada com essa conotação patológica. Algumas vezes, diz-se que um tribunal ou um juiz é ativista quando assume deliberadamente uma atitude proativa na decisão de casos concretos, desenvolvendo soluções inovadoras para além dos critérios normativos disponíveis (e, em alguns casos, até mesmo contra os critérios previstos). Em geral, essa atitude é assumida como uma parte indissociável da interpretação jurídica que há muito tempo superou a sua dimensão mais legalista e formalista. Outras vezes, é assumida como uma exigência do próprio judicial review e da proteção constitucional a ele inerente. O juiz, em nome da defesa da constituição, teria o dever jurídico de exercer o controle de constitucionalidade e até mesmo de racionalidade das leis, o que significa que não poderia ficar aprisionado ao conteúdo normativo estabelecido pelo legislador, devendo se guiar pelos comandos constitucionais, por mais genéricos e abstratos que sejam.

Em qualquer caso, o importante é perceber como é difícil estabelecer rótulos para qualificar a atividade jurisdicional. Toda decisão contém alguns componentes volitivos e toda interpretação carrega alguma dose de criação. Portanto, é quase impossível estabelecer limites precisos para diferenciar o “juiz ativista” do “juiz honorável”. Talvez o juiz honorável seja apenas um juiz ativista mais astuto, que soube fundamentar adequadamente a sua decisão. Ou talvez seja o contrário: o juiz ativista talvez seja apenas um juiz que não foi astuto o suficiente para esconder suas inclinações e preferências subjetivas. Enfim, o que eu sei é que, quando escuto alguém acusar um juiz de ser ativista, a primeira coisa que me vem à mente é: provavelmente, a decisão não agradou aquela pessoa. No fundo, o epíteto “ativista” é apenas uma espécie de manifestação emotiva de descontentamento com o conteúdo do julgado ou, na melhor das hipóteses, com o modelo de justificação da decisão. Sem uma rede mais ampla de informações, é possível afirmar que o ativismo está, de fato, apenas nos olhos de quem vê.

Especulações sobre o HC de Lula e a Judicialização da Megapolítica

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No post passado, expliquei a visão de Hirschl sobre judicialização da megapolítica e concluí que, mesmo que não se concorde com a ideia de “tudo é política”, precisamos reconhecer que pelo menos algumas decisões podem ser compreendidas em um contexto mais amplo de luta pelo poder, sobretudo quando o que está em análise são decisões judiciais que interferem no sistema político. E se ligarmos o desconfiômentro sugerido por Hirschl, poderemos encontrar várias situações em que a roupagem jurídica encobre finalidades ou pretensões de estratégia política, mesmo quando o foco do debate seja a interpretação de textos constitucionais.
Pois bem. O caso do HC de Lula, com certeza, é um caso que se encaixa com precisão no conceito de “judicialização da megapolítica” e vale a pena tentar enxergá-lo em um contexto mais amplo. É o que farei aqui como exercício meramente especulativo.
Primeiramente, não há dúvida de que o HC do Lula é, em vários sentidos, um caso de judicialização da megapolítica. Primeiro, porque Lula é o líder da esquerda política no Brasil há pelo menos quatro décadas e governou o Brasil por dois mandatos, sem falar na sua influência durante o período Dilma. Segundo, porque era (ou é) o principal candidato das esquerdas para a próxima eleição presidencial, liderando as pesquisas de voto, talvez o único representante da esquerda com reais chances de ser eleito. Terceiro, porque a decisão do HC do Lula tem reflexos sobre o futuro da Operação Lava-Jato, que é uma operação com elevados impactos políticos, inclusive sobre o atual Presidente da República, seus aliados diretos e vários membros da elite política e econômica do Brasil. Há muito em jogo na tese da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Logo, a decisão do HC teve e tem um peso político elevadíssimo.
Portanto, sendo o HC do Lula um caso de judicialização da política, vale a pena tentar especular quais são os fatores estratégicos que podem estar por trás de cada voto.
Não vou me deter em todos os votos, mas apenas nos que considero mais decisivos.
Inicialmente, é muito difícil, mesmo a título de especulação, apontar os fatores estratégicos que podem ter motivado cada ministro. Além disso, não é possível ter certeza se o que vou falar aqui corresponde à realidade, pois existem muitas informações de bastidores sobre esse caso que jamais virão à tona. Por isso, os meus comentários aqui são mesmo beeem especulativos.
Vejamos o caso do min. Gilmar Mendes. Parece-me que, no caso dele, o viés foi bastante estratégico não como forma de proteger o Lula, mas sim como forma de pavimentar o caminho para minar a Lava-Jato (e, obviamente, proteger os membros de seu grupo político e econômico que estão no olho do furação). O min. Gilmar é histórica e declaradamente antipetista e teria tudo para manter o seu posicionamento a favor da execução provisória da pena. Ocorre que ele já havia insinuado que ia mudar de posição mesmo antes do HC do Lula, justamente no momento em que os agentes econômicos e políticos da Lava-Jato começavam a ser condenados em segunda instância. Isso sem falar que ele é, dentro do STF, a principal voz contra a Lava-Jato, ao lado do min. Marco Aurélio. Nesse contexto, o min. Gilmar foi um dos grandes articuladores da inclusão em pauta do HC do Lula, seja para garantir a retomada do debate a respeito da execução provisória, seja para mudar de lado sem parecer oportunista (se bem que muita gente percebeu essa atitude, pois, falador como ele é, talvez seja o ministro mais difícil de esconder seus interesses). De todo modo, uma coisa é certa: ele definitivamente não mudou de lado para ajudar o Lula.
O min. Barroso também votou (e quase sempre vota assim em temas polêmicos) estratégica e pragmaticamente. Seu voto reafirmou a sua já conhecida verve retórica, mas talvez com um esforço de impactar além do normal, pois foram incluídos vários chavões e “anedoctal evidences” com o claro propósito de impressionar a plateia. Além disso, ele trouxe uma pesquisa estatística bastante impressionante do ponto de vista pragmático, demonstrando empiricamente como são raras as hipóteses de absolvição pelo STJ e pelo STF em sede recursal. Curiosamente, por se tratar de uma pesquisa interna e inédita, ainda não foi submetida a um debate acadêmico mais profundo. O certo é que ele claramente foi atrás de dados empíricos para convencer, se empenhando para além do normal para vencer o debate ou, pelo menos, para atingir uma grande parcela da população.
Difícil dizer quais os interesses políticos por trás dessa atitude, mas não considero que sua pretensão primária tenha sido prejudicar deliberadamente o Lula ou a esquerda, porque sua posição política parece ser bem afinada com a esquerda. É mais provável que o seu voto tenha um olhar para frente, para a dimensão política da Lava-jato. A defesa que o min. Barroso faz do fim do foro privilegiado e as suas decisões na ação criminal contra o Temer indicam que ele sabe que a disputa pelo poder passa necessariamente pelo que virá nas próximas etapas da Lava-Jato, especialmente as etapas que tramitam no âmbito do STF e envolvem a elite política que atualmente controla o poder estatal.
Parece-me que o voto do min. Fachin também teve uma preocupação com o futuro da Lava-Jato e com o legado de Teori Zavascki. O min. Fachin é um aliado histórico do PT e seu grupo de influência é predominantemente de esquerda. Logo, ele não tinha nenhum motivo político em particular para negar o HC do Lula. Muito pelo contrário. E humanista como é o min. Fachin, certamente poderia facilmente aderir à tese mais garantista contra a antecipação da execução da pena sem parecer contraditório. A não-adesão à tese de defesa demonstra uma forte convicção pela necessidade da prisão após a condenação em segunda instância e, provavelmente, esta forte convicção decorre de sua experiência prática como relator da Lava-Jato no STF. Com certeza, ele deve ter informações sensíveis sobre a alta corrupção que poucas pessoas possuem e sabe que o fim da execução provisória da pena significaria um grande baque para os processos sob sua condução.
Já a min. Rosa Weber, que foi a peça-central desse tabuleiro, talvez tenha sido mais influenciada por questões de micropolítica interna do próprio STF. Como se sabe, há um jogo de bastidores muito claro ali, e ela está do lado do min. Barroso, do min. Fachin e da min. Cármen Lúcia. Talvez esse tenha sido um dos fatores decisivos que a fez sacrificar seu entendimento pessoal em nome da “colegialidade”. Pode ter sido também algum tipo de pressão externa ou algum tipo de informação sensível que ela recebeu, sei lá. É muito difícil analisar os fatores reais de uma decisão quando esses fatores são encobertos por uma linguagem escorregadia como a dela. Os argumentos jurídicos que ela apresentou – de observância de precedentes, respeito à jurisprudência consolidada, risco de mudanças constantes de entendimento, colegialidade etc. – são bem pertinentes, mas esse nunca foi o forte do STF. Ou seja, ela poderia muito bem tê-los contornado e isso seria aceito com tranquilidade, até porque havia a expectativa de que a mudança de jurisprudência ocorreria. Mas acho que preferiu não entrar no jogo do min. Gilmar ou dos demais membros do grupo contrário ao dela, pois talvez ela saiba que a decisão sobre esse tema transcende e muito o caso do Lula em particular. De qualquer modo, o certo é que foi estranha a sua mudança de postura entre a primeira sessão que conheceu o HC e a segunda sessão que julgou o mérito.
Para mim, também surpreendeu o voto do Min. Alexandre de Moraes. Embora sua posição histórica fosse a favor da execução provisória da pena, sabe-se que o grupo político que o apoiou (PMDB e PSDB) tem interesse em mudar esse entendimento para “estancar a sangria” da Lava-Jato. Por isso, do ponto de vista da estratégia política, seria esperado que ele mudasse de entendimento e se aliasse ao grupo do min. Gilmar. Como ele manteve sua posição pessoal a favor da prisão após a condenação em segunda instância, é provável que o seu lado punitivista tenha falado mais alto. (Emoji de carinha pensante).
Enfim… aqui são apenas tentativas simplificadas de compreensão de um julgamento complexo onde o jogo de bastidores teve uma influência muito grande. Como é impossível ter acesso a todos os detalhes desse jogo, só resta especular. E torcer para que o Brasil volte a caminhar para frente.

 

Judi(cializ)ar a saúde: mais lenha para a fogueira do debate

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Lá pelos idos de 2011, assisti, em Curitiba, a uma palestra do juiz Reinhard Gayer, do Tribunal Constitucional Alemão, sobre direitos sociais e reserva do possível. Ao término da palestra, quando se iniciaram os debates (que, infelizmente, não foram disponibilizados no youtube), questionaram-no se, na Alemanha, os juízes costumavam emitir ordens judiciais determinando que o poder público fornecesse medicamentos a uma pessoa doente que estaria a beira da morte. A resposta foi enfaticamente negativa. Seria impensável uma intervenção do Poder Judiciário no sistema de saúde alemão. Logo em seguida, foi perguntado o que um paciente deveria fazer se o hospital se negasse a fornecer o tratamento prescrito pelo médico. Depois de franzir os olhos como se não tivesse entendido a pergunta, o juiz respondeu perplexo: que hospital cometeria tamanha loucura de se negar a fornecer o tratamento prescrito por um médico?

Ao longo de minha vida acadêmica e profissional, dediquei muitas e muitas horas de reflexão para o tema da judicialização da saúde. Vivi várias “fases do D”, conforme ia amadurecendo as ideias. Já tive uma fase de deslumbramento, um tanto quanto romântica e ingênua, em que acreditava que o judiciário poderia ter um papel transformador e concretizador do direito à saúde, tendo como “evento confirmador” o sucesso na política de fornecimento de remédios para portadores de HIV, que foi impulsionada pela justiça nos idos de 1990. Depois, vivi uma fase de decepção, ao perceber os excessos e abusos que podem ser cometidos sob o pretexto de concretização do direito à saúde (como pessoas ricas querendo tratamento de ponta ou pessoas querendo furar filas de transplantes, isso sem falar nas fraudes). Já mais recentemente, passei a sentir um desencanto, ao compreender que as capacidades do judiciário são beeem limitadas nesse processo de efetivação do direito à saúde, havendo muitas situações em que uma comovente decisão judicial vale muito pouco para garantir um tratamento adequado. Depois, comecei a ter muitas dúvidas e uma certa desesperança, por perceber com cada vez mais nitidez que a judicialização pode até piorar o problema da saúde, em vários sentidos. Misturado com tudo isso, uma dose de desespero e desânimo com uma pitada de demência, por se sentir engolido por um sistema caótico, que se agiganta, sem um mínimo de racionalidade.

Diante desse cenário meio desolador, resolvi tentar colocar no papel algumas ideias que já venho adotando em minhas decisões mais recentes e que buscam dar mais unidade e coerência ao sistema de saúde. O pano de fundo talvez seja fruto da lição que extraí daquela palestra lá em 2011: a judicialização da saúde não faz o menor sentido quando o sistema funciona corretamente. O problema é que o sistema falha e, infelizmente, a falha costuma ser estrutural e generalizada. Mesmo assim, parece-me que é preciso repensar o papel da judicialização, pois, a meu ver, a solução judicial deveria mirar o resgate do sistema, ou seja, a sua correção, e não a sua substituição por um sistema paralelo que tende a tornar a situação ainda mais caótica.

Foi com esse espírito que, na preparação de uma palestra que proferi no 4 Congresso Médico e Jurídico, acabei escrevendo um artigo sistematizando alguns pontos de vista que tenho defendido. Disponibilizo aqui o texto preliminar para um debate prévio, antes de enviá-lo à publicação acadêmica. Quem puder contribuir para o debate, sinta-se convidado:

You Can’t Always Get What You Want: repensando a judicialização da saúde a partir do problema do fornecimento de medicamentos

Palestra: Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais

Eis o vídeo da palestra que proferi em João Pessoa em 27 de maio de 2016, sobre “Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais”, na Conferência Internacional “Investimento, Corrupção e o Papel do Estado: um Diálogo Suiço-Brasileiro”.

Foi uma palestra curta (de vinte minutos), em que parto de uma obviedade (“as garantias devem ser respeitadas”) para defender uma ideia simples, mas poderosa: “a justiça não é perfeita, nem infalível, mas tem a capacidade de aprender com os erros do passado”.

A partir daí, tento explicar como algumas teses jurídicas nas grandes operações anticorrupção foram construídas e se desenvolveram, a exemplo da condução coercitiva e da adoção da abertura do sigilo processual como regra. Algumas ideias já haviam sido adiantadas aqui.

Espero ter demonstrado que há um processo de aprendizagem contínua em que os órgãos anticorrupção se aprimoram, inclusive em reação às críticas do garantismo, para tentar conciliar a efetividade do processo penal com o respeito aos direitos fundamentais, seja por razões de princípios, seja por razões estratégicas. Em outras palavras: as críticas de ontem ajudam a explicar as práticas de hoje, e as críticas de hoje certamente moldarão as práticas futuras.

Lava-Jato e o Efeito Bumerangue do Garantismo

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Já adianto que o presente post não é sobre o acerto ou erro das decisões proferidas na Lava-Jato, embora algumas questões polêmicas daquele processo servirão para ilustrar a tese central. Também não é pretensão deste texto tentar justificar ou legitimar a condução do processo pelo Juiz Sérgio Moro, mas apenas auxiliar a compreender como algumas teses processuais foram construídas. O propósito central é demonstrar que alguns posicionamentos envolvendo, por exemplo, o protagonismo judicial na fase de investigação, a condução coercitiva durante o cumprimento de mandados de busca e apreensão ou a abertura do sigilo das interceptações telefônicas se originaram de preocupações garantistas ou, pelo menos, foram desenvolvidas em resposta a uma jurisprudência garantista que se firmou nos tribunais superiores.

Dada a polaridade de visões sobre a condução da Lava-Jato (alguns vendo o Juiz Sérgio Moro como “herói”; outros, como “fascista”), não espero que concordem com o que eu digo, mas garanto que minha preocupação não é esta. A função deste texto é mais descritiva do que normativa. Tentarei demonstrar, a partir de exemplos, que algumas soluções criticadas por serem anti-garantistas são, na verdade, uma evolução de práticas ainda menos garantistas. Ou seja, as decisões estão inseridas em um contexto jurisprudencial ainda não muito bem definido (e, portanto, em um limbo jurídico à espera de definição), mas que procuram alcançar um tipo de equilíbrio entre a efetividade do processo e as garantias processuais. (O quanto essa preocupação em conciliar a efetividade do processo com as garantias individuais tem sido bem-sucedida é um ponto que deixo ao leitor decidir).

Como ponto de partida, temos que perceber que o modelo processual penal brasileiro não foi arquitetado para o combate à macrocriminalidade e, portanto, não temos uma larga experiência em lidar com demandas desse tipo. Somente nos últimos 10 ou 15 anos é que começaram a ser regulamentados alguns institutos de combate à organização criminosa (como a delação premiada ou a escuta ambiental, por exemplo) e alguns processos de grande complexidade, envolvendo organizações criminosas poderosas, passaram a ser alvo de ações planejadas, sendo que, muitas delas, foram anuladas em grau de recurso justamente porque não havia ainda uma jurisprudência bem consolidada sobre os limites da investigação. Foi construída, em torno disso, uma jurisprudência garantista, que, dentre outras coisas, estabeleceu que diversas medidas invasivas estariam sujeitas à chamada reserva de jurisdição e, portanto, somente poderiam ser autorizadas por um juiz. A aplicação rigorosa da tese da proibição de provas ilícitas reforçou ainda mais a necessidade de cautela nesta fase, tornando o juiz uma figura central na investigação da macrocriminalidade, pois as autoridades responsáveis pela investigação, com receio de que suas condutas fossem anuladas judicialmente, passaram a se socorrer do judiciário sistematicamente, a fim de respaldar suas ações.

Então, perceba que o protagonismo do judiciário ainda nesta fase de investigação já nasce de uma preocupação garantista. A atuação judicial na decretação de quebra de sigilo, busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica e ambiental, é uma exigência que funciona como limite aos poderes das autoridades responsáveis pela investigação. Certamente essa fórmula não é um remédio capaz de impedir completamente eventuais abusos cometidos até mesmo pelos juízes. Mas não há dúvida de que há uma preocupação garantista nesta exigência de reserva de jurisdição, sobretudo quando acompanhada de outras exigências garantistas relacionadas ao exercício da jurisdição (imparcialidade, independência, dever de fundamentação, direito ao recurso etc.).

Um ponto que pode ser passível de questionamento é saber até que ponto um juiz que participa diretamente da investigação, autorizando uma série de medidas invasivas contra os investigados, julgará o caso com isenção, já que pode haver uma tendência psicológica de querer confirmar o acerto de suas decisões passadas. Não tenho dúvida de que, no futuro, pode haver uma evolução no sistema para impedir que o juiz que atua na fase de investigação julgue a ação penal, possibilitando uma maior imparcialidade na avaliação das informações colhidas durante a investigação. Hoje, o modelo processual adotado no Brasil não estabelece nenhum tipo de impedimento para que o juiz que atuou na fase de investigação também participe do processo e julgamento, o que pode ser considerado como uma falha do sistema.

Outra tese garantista para evitar abuso da investigação foi construído em torno da decretação da prisão temporária. Em regra, quando havia a necessidade de se realizar uma busca e apreensão em vários locais ao mesmo tempo e evitar a destruição de provas ou a conversa entre os investigados antes da tomada dos depoimentos, decretava-se a prisão temporária. A medida, em muitas situações, era excessiva e funcionava (como, em alguns casos, ainda funciona) como uma forma de humilhação pública do investigado. É nesse contexto que o garantismo, corretamente, denunciou (como ainda denuncia) a banalização das prisões temporárias.

A reação a isso foi a construção da tese da condução coercitiva como medida substitutiva da prisão temporária. Ao invés de se decretar uma prisão de 5 dias, o juiz concede uma ordem para que o investigado tenha a sua liberdade de locomoção restringida pelo prazo necessário para o cumprimento dos mandados de busca e apreensão e para a tomada do depoimento. Após isso, o investigado é liberado independentemente de qualquer ordem judicial. Veja-se que a função dessa condução coercitiva é relativamente distinta da condução coercitiva de testemunhas e investigados que se recusam a comparecer perante a autoridade para serem ouvidos, pois, nestes casos, sequer é preciso ordem judicial, e a mera recusa de comparecimento já é, por si só, fundamento bastante para se autorizar a condução coercitiva. No caso da condução coercitiva como forma de garantir a eficácia do cumprimento dos mandados de busca e apreensão e evitar a comunicação entre os investigados, o que se tem, a rigor, é uma prisão temporária com prazo mais curto, o que, obviamente, exige ordem judicial e deve ser fundamentada (o nome “prisão temporária de curtíssimo prazo” não é adotado justamente para não gerar um estigma capaz de diminuir a posição do investigado perante a sociedade. Aliás, nem mesmo os juízes chamam essa condução coercitiva de prisão e provavelmente não concordarão com isso, mas, no fundo, sua função é de restringir a liberdade de locomoção para possibilitar a coleta de dados necessários à investigação, o que, na minha ótica, é uma quasi-prisão).

No caso da condução coercitiva do ex-Presidente Lula, há uma série de controvérsias fáticas (e políticas!) que tornam a análise mais difícil. De qualquer modo, é preciso que se tenha em mente que o objetivo da condução coercitiva decretada judicialmente não foi somente a tomada do depoimento do investigado, mas também a facilitação da coleta dos demais elementos de provas, como meio substitutivo da prisão temporária. Mesmo que se considere inconstitucional a condução coercitiva de um investigado para ser ouvido perante a autoridade policial, já que ele possui o direito ao silêncio ou o direito de não colaborar com a investigação contra si, isso, em princípio, não afasta a outra finalidade da condução coercitiva em casos assim: evitar a comunicação com os outros investigados durante o cumprimento dos vários mandados de busca e apreensão. Se isso é juridicamente possível ou não, é algo a se discutir. O certo é que a autorização para a condução coercitiva condicionada à recusa de acompanhamento voluntário teve, por incrível que possa parecer, uma preocupação garantista de evitar a decretação da temporária (que, aliás, foi pedida pela acusação, mas indeferida pelo juiz) que certamente seria uma medida bem mais gravosa.

Ressalto que não há como ter certeza se a própria adoção de medidas invasivas contra o ex-Presidente eram necessárias ou não, ante a falta de informações completas que levem a uma avaliação mais ampla do ocorrido. Não é possível afirmar categoricamente que o juiz errou ou acertou sem conhecer todos os fatos detalhadamente, a não ser se você partir de posições absolutas do tipo “o juiz pode tudo” ou “contra o ex-Presidente nada pode ser feito”. De qualquer modo, repito que não é minha intenção avaliar a decisão judicial ou não, mas tão somente explicar que até mesmo a condução coercitiva tem uma origem “garantista”, como forma de evitar a prisão temporária.

E a abertura do sigilo processual? Como isso pode ser fruto de uma tese garantista?

Esse é um ponto bem interessante, porque, no passado, a regra era a manutenção do sigilo do processo durante toda a investigação, inclusive para os advogados. Em alguns casos, o sigilo era mantido mesmo depois da decretação da temporária, o que violava claramente o direito de defesa, pois os advogados não tinham acesso a qualquer informação para questionar a medida. Foi nesse contexto que surgiu a tese garantista de que os advogados teriam direito de acesso aos elementos de provas já documentados necessários ao exercício do direito de defesa (súmula 14 do STF).

A súmula 14 gerou uma situação curiosa, pois o sigilo da investigação geralmente era decretado para garantir a eficiência da coleta de dados, sobretudo de interceptações telefônicas. A partir do momento em que o advogado passa a ter o direito de acesso aos dados coletados, o sigilo parece perder o sentido (pelo menos do ponto de vista da investigação), pois, obviamente, de nada adianta uma interceptação de um investigado que sabe que está sendo gravado. Além disso, como várias pessoas diferentes passaram a ter direito de acesso às informações interceptadas, o risco de vazamento tornou-se muito maior.

Diante disso, alguns juízes passaram a defender (isso muito antes da Lava-Jato) que, uma vez coletados os elementos de prova, a tramitação sigilosa do processo não faria mais sentido. Há vários fundamentos para isso: (a) a constituição impõe, como regra, a publicidade do processo; (b) a sociedade tem o direito de saber o que se passa nos autos (seja para fiscalizar a atuação do juiz, seja para ter conhecimento dos dados processuais, sobretudo quando envolve pessoas politicamente expostas); (c) a manutenção do sigilo restringe o direito de informação e a liberdade de imprensa etc…. Sobre isso, vale muito a pena analisar os argumentos desenvolvidos pelo Nagibe Melo para justificar a abertura do sigilo das interceptações.

Assim, a abertura do sigilo pode ser, em algum sentido, uma medida salutar que, a um só tempo, permite o cumprimento da súmula 14 do STF e garante maior transparência na divulgação das informações de interesse público, evitando, em tese, o vazamento seletivo de apenas parte dos dados e proporcionando acesso igualitário da imprensa ao conteúdo dos elementos de prova coletados. Veja-se que essa prática começou bem antes da Lava-Jato e hoje tem sido uma medida adotada até mesmo pelo ministro Teori Zavaski. Muitas informações divulgadas durante as diversas fases da Lava-Jato, onde houve acusação de “vazamento seletivo”, nada mais foi do que a abertura do sigilo processual que ocorre em relação a todos os atos processuais realizados. (Se a imprensa usa esse material de forma seletiva, para fins políticos, aí são outros quinhentos. Mas, a rigor, todos os depoimentos tomados estão disponíveis ao público, até mesmo aqueles que podem eventualmente constranger o próprio julgador).

É óbvio que se pode questionar a abertura do sigilo quando há informações de caráter privado ou a divulgação tendenciosa que viola a presunção de inocência. Também é de se questionar a própria validade da interceptação realizada, sobretudo em relação a eventuais conversas que ocorreram quando já havia uma ordem judicial determinando a interrupção da interceptação. Mas ao afirmar isso já estamos entrando em um nível mais avançado do debate, que é partir para a correção ou não das decisões concretas, o que depende de uma análise mais detalhada dos dados fáticos que embasaram as decisões, algo que foge aos escopos do presente texto.

Como se vê, há todo um contexto mais amplo por detrás de cada posicionamento judicial adotado. Isso não significa que tais posicionamentos sejam corretos, nem que atingiram o nível ideal de equilíbrio entre a efetividade e a garantia. Pelo contrário. Como disse, não foi o meu objetivo defender essas práticas, mas apenas descrever o desenvolvimento dos posicionamentos adotados para contribuir para o amadurecimento do debate. Por mais questionáveis que sejam as técnicas investigativas adotadas durante as grandes Operações Policiais, inclusive a Lava-Jato, não se pode negar que tem havido, por parte da jurisprudência, uma preocupação com as garantias individuais e, em muitos casos, os posicionamentos que atualmente são acusados de serem anti-garantistas são reações ou respostas à jurisprudência garantista até então dominante nos tribunais superiores. Pode ser que essas medidas venham a ser tidas como inconstitucionais, mas é preciso saber que elas já são uma segunda etapa da primeira onda que houve nas grandes operações policiais, que foram anuladas por violação das garantias. É por isso que os advogados de defesa sentem dificuldades em mudar as decisões da Lava-Jato. De algum modo, as decisões tentam se amoldar à jurisprudência garantista firmada durante a “primeira onda” e trazem inovações que ainda não foram suficientemente amadurecidas pela jurisprudência.

É importante que essas questões sejam mesmo submetidas a um escrutínio público mais amplo, para verificar o seu erro ou o seu acerto. É preciso sim verificar se houve abusos e controlá-los pelas vias recursais previstas. Como existem, pelo menos, três instâncias de julgamento acima do juiz de primeiro grau, há ampla margem de debate jurídico sobre a correção de todas as decisões judiciais, seja sob o aspecto da correta avaliação dos fatos, seja pelo aspecto da correta avaliação do direito aplicável. É preciso também desconfiar do poder, independentemente de quem o exerce. O que não me parece saudável é criar rótulos sem se dar ao menos ao trabalho de conhecer com mais profundidade o contexto das teses adotadas.

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