O caso do bolo de casamento gay

Mais um slide que publiquei lá no Instagram comentando um caso beem interessante: o caso do bolo de casamento gay (same-sex wedding cake case), julgado esta semana pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS).

É um julgamento muito importante, mas é preciso ter bastante cautela quanto ao real sentido do que foi julgado. O tema deve ser compreendido muito mais no contexto da liberdade de expressão do que do direito da antidiscriminação. Enfim, aqui vai o slide:

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Existe um direito fundamental de bloquear estradas?

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Publiquei lá no Instagram (@direitos_fundamentais_net) um post/slide sobre o caso Schmidberger v Austria, julgado em 2003 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
É um caso muito interessante para entender os limites do direito de manifestação quando o seu exercício pode causar transtornos ao trânsito de veículos ou à livre circulação de mercadorias. E o mais legal é que é uma espécie de versão invertida do protesto dos caminhoneiros a que estamos assistindo no Brasil.
Esse tipo de inversão é sempre útil para permitir uma análise mais imparcial do problema que queremos enfrentar, pois nos permite fixar balizas mesmo quando o “nosso lado” não é beneficiado. É uma forma prática de buscar um “acordo ou consenso por sobreposição” (Rawls), capaz de proteger imparcialmente todos os interesses em jogo, dentro da ideia básica de que todas as pessoas merecem ter seus direitos respeitados em igual medida.
Então, se você é a favor do exercício incondicional e ilimitado do direito de protesto no caso dos caminhoneiros, também deve adotar a mesma postura quando o protesto vier de outros grupos, inclusive prejudicando os caminhoneiros. Do mesmo modo, se você acredita que é preciso estabelecer alguns limites para minimizar os transtornos causados aos direitos de terceiros, então esses limites devem valer para outras situações semelhantes. Em outras palavras: em se tratando de limites para o exercício do direito de manifestação, não se pode estabelecer critérios ad hoc, que ficam mudando conforme a conveniência ou os interesses políticos em jogo. O que vale para um grupo vale para o outro.
Sei que o protesto dos caminhoneiros tem alguns componentes que dificultam a simplificação do debate. Mas considero, sim, que o caso deveria ser analisado à luz do direito fundamental de manifestação (com os limites a ele inerentes) e não como um caso de greve ou lock-out, já que a reivindicação não está relacionada a disputas trabalhistas. O movimento é um claro protesto contra o governo e não um conflito laboral. Sendo assim, deveria ser analisado à luz da liberdade de manifestação, reunião e expressão, com todos os ônus argumentativos que derivam da estrutura normativa dos direitos fundamentais.
Enfim… é apenas minha contribuição para o debate.

Aqui o slide originalmente publicado no Instagram:

 

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Os Pássaros Têm o Direito de Voar?

Copy of Como eu escrevo

Em outubro de de 2017, tive oportunidade de julgar um caso bem interessante.

A rigor, o ponto central do debate não tinha muita coisa a ver com a questão dos direitos dos animais. Era apenas um pedido de anulação de multa aplicada pelo IBAMA cumulado com um pedido de devolução de alguns pássaros silvestres criados em cativeiro que haviam sido apreendidos durante uma fiscalização.

O pedido de devolução dos pássaros não tinha como ser deferido por uma impossibilidade prática: os pássaros já haviam sido libertados e devolvidos à natureza. Apesar disso, optei por fazer uma análise indireta do direito dos pássaros à liberdade (de voar).

Sei que é um tema polêmico, mas, a meu ver, a criação de pássaros silvestres em gaiolas constitui, na maior parte das situações, tratamento cruel vedado constitucionalmente e foi por isso que fiz questão de incluir esse debate na sentença.

Eu podia ter aprofundado a argumentação ético-filosófica, até porque, em minha tese de doutorado, tratei da expansão do círculo ético e conheço muitos autores que reforçariam a minha posição. Mas optei por uma argumentação mais minimalista para não desviar o foco do problema de fundo. De qualquer modo, há uma sutil menção ao enfoque das capacidades (inspirado em Amartya Sen e, especialmente, Martha Nussbaum), que foi utilizado para sugerir a existência de um direito de voar dos pássaros.

Na fundamentação, há também o reconhecimento do chamado viés de confirmação para sustentar a violação do direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo. Como não se costuma encontrar alusões aos vícios cognitivos sendo utilizados como critérios jurídicos, acho que também é um ponto que merece destaque.

Aqui vai a parte essencial da sentença:

Processo nº 0006688-97.2010.4.05.8100 – 3a Vara Federal/CE

Juiz Federal: George Marmelstein

 1 RELATÓRIO

(…)

2 FUNDAMENTAÇÃO

Os seguintes fatos que motivaram a presente ação são incontroversos: (a) o autor é criador de pássaros silvestres; (b) após fiscalização do IBAMA, sete pássaros foram apreendidos e, em seguida, reintroduzidos em ambiente natural; (c) foi aplicada multa em razão das irregularidades apontadas pelo IBAMA.

Diante desses fatos, o autor pede, em termos sintéticos, o reconhecimento da nulidade da fiscalização do IBAMA, com a anulação da multa aplicada e a consequente devolução dos pássaros.

Quanto ao pedido de anulação da multa, a razão está com o autor. De fato, a multa foi aplicada antes mesmo de ter sido dada oportunidade de o autor apresentar a documentação que justificaria a posse das aves, o que representa uma clara violação do devido processo. Em outras palavras: o IBAMA aplicou a multa e apenas depois analisou a documentação. Mesmo que várias inconsistências na documentação tenham sido constatadas, o certo é que a punição somente pode ser aplicada após a apreciação da defesa do eventual infrator.

Além disso, o próprio IBAMA reconheceu que uma boa parte da documentação estava regular, ou seja, seis dos sete pássaros tinham origem legal. As inconsistências apontadas pelo IBAMA em sua contestação somente foram apontadas depois que a multa foi aplicada, indicando que o órgão ambiental primeiro aplicou a sanção para somente depois encontrar a infração. Em outras palavras: o órgão ambiental foi contaminado pelo chamado viés da confirmação, tentando encontrar razões para justificar sua atuação depois que a decisão de condenar já havia sido tomada.

Não é preciso nem mesmo adentrar no mérito sobre a possibilidade de fiscalização in loco realizada pelo IBAMA. Basta reconhecer que houve uma inversão processual em que o direito de defesa foi prejudicado pelo desejo do órgão ambiental de justificar a sua atuação.

Diante disso, o auto de infração deve ser anulado, inclusive com a suspensão da cobrança da multa aplicada.

Por outro lado, o pedido de devolução dos pássaros não pode ser acolhido. Primeiro por uma impossibilidade fática: conforme informações do IBAMA, os pássaros já foram reintroduzidos ao ambiente natural. Segundo por uma impossibilidade jurídica: é questionável o direito do autor de manter a posse dos pássaros.

Quanto a esse segundo ponto, há uma razão formal para negar o pedido. Conforme apontado pelo IBAMA, a documentação apresentada pelo autor possui diversas inconsistências que põem em dúvida a sua regularidade. Além de ter contradição entre os números das anilhas e as espécies de pássaros, também foram apontados problemas no nome dos proprietários, bem como no local de criação desses pássaros.

Além disso, há um aspecto que, embora não seja decisivo para a solução desse caso, é extremamente importante do ponto de vista da proteção dos animais: é bastante questionável se é válida uma licença ambiental que dá o direito a uma pessoa de criar um pássaro em cativeiro, sobretudo em gaiolas.

Os pássaros são seres sencientes que possuem a capacidade de voar. Nessa condição, qualquer medida que retire desses pássaros essa capacidade fundamental deve ser vista, em linha de princípio, como uma medida que submete os animais a crueldade e, nessa condição, viola o artigo 225, §1o, inc. VII, da Constituição Federal[1].

O Supremo Tribunal Federal tem sistematicamente anulado práticas que submetem os animais a crueldade, tal como ocorreu no julgamento do caso da Farra do Boi[2] e da Briga de Galo[3]. Mais recentemente, no julgamento da ADI 4.983/CE, o Supremo Tribunal Federal, conforme voto do Min. Luís Roberto Barroso, assinalou:

“A Constituição veda expressamente práticas que submetam animais a crueldade. O avanço do processo civilizatório e da ética animal elevou o resguardo dos seres sencientes (i.e. , capazes de sentir dor) contra atos cruéis a um valor constitucional autônomo, a ser tutelado independentemente de haver consequências para o meio – ambiente, para a função ecológica da fauna ou para a preservação das espécies” (STF, ADI 4.983/CE, voto do min. Luís Roberto Barroso).

Com relação à criação de pássaros em gaiolas, embora não exista nenhuma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a matéria não é nova na jurisprudência global. De fato, no Caso “People For Animals vs Md Mohazzim & Anr“, a Alta Corte de Delhi, na Índia, reconheceu expressamente que os pássaros possuem o direito de serem livres e que o seu aprisionamento em gaiolas viola esse direito[4].

Veja-se que, no presente caso, há várias outras razões, além do direito dos pássaros à liberdade, para se negar ao autor o seu pedido. De qualquer modo, é importante trazer esse tema ao debate até para que a sociedade possa refletir até que ponto criar pássaros em gaiolas é uma medida civilizatória ou não. Independentemente disso, seja por razões práticas, seja por razões jurídicas, os pássaros apreendidos não podem ser mais devolvidos ao autor.

3 DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DESTA AÇÃO tão somente para anular o autor de infração e a respectiva multa lavrada contra o autor. Quanto ao pedido de devolução dos pássaros, JULGO O PEDIDO IMPROCEDENTE.

O IBAMA arcará com as custas processuais e com os honorários de sucumbência, que arbitro em 15% sobre o valor atribuído à causa.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Fortaleza-CE, 24 de outubro de 2017

GEORGE MARMELSTEIN LIMA- Juiz Federal da 3ª Vara

[1] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

[2]A ementa do acórdão é a seguinte: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inc. VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF, RE 153.541-1-SC, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio).” Veja-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio, relator para o acórdão, que sintetiza o argumento vencedor: “é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada ‘farra do boi’, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. Não vejo como chegar-se à posição intermediária. A distorção alcançou tal ponto que somente uma medida que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal ensanguentado e cortado invadindo uma residência e provocando ferimento em quem se encontrava no interior. Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal”.

[3]“CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO: CRUELDADE. ‘BRIGA DE GALOS’. I. – A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre ‘galos combatentes’, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: C.F., art. 225, § 1o, VII. II. – Cautelar deferida, suspendendo-se a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro.” (STF, ADI no 1.856/MC, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/9/2000).

[4] Eis, no original, o trecho relevante do julgamento: “after hearing both sides, this Court is of the view that running the trade of birds is in violation of the rights of the birds. They deserve sympathy. Nobody is caring as to whether they have been inflicting cruelty or not despite of settled law that birds have a fundamental right to fly and cannot be caged and will have to be set free in the sky. Actually, they are meant for the same. But on the other hand, they are exported illegally in foreign countries without availability of proper food, water, medical aid and other basic amenities required as per law. Birds have fundamental rights including the right to live with dignity and they cannot be subjected to cruelty by anyone including claim made by the respondent. Therefore, I am clear in mind that all the birds have fundamental rights to fly in the sky and all human beings have no right to keep them in small cages for the purposes of their business or otherwise” (Disponível on-line: http://tinyurl.com/y8l97aox).

Judi(cializ)ar a saúde: mais lenha para a fogueira do debate

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Lá pelos idos de 2011, assisti, em Curitiba, a uma palestra do juiz Reinhard Gayer, do Tribunal Constitucional Alemão, sobre direitos sociais e reserva do possível. Ao término da palestra, quando se iniciaram os debates (que, infelizmente, não foram disponibilizados no youtube), questionaram-no se, na Alemanha, os juízes costumavam emitir ordens judiciais determinando que o poder público fornecesse medicamentos a uma pessoa doente que estaria a beira da morte. A resposta foi enfaticamente negativa. Seria impensável uma intervenção do Poder Judiciário no sistema de saúde alemão. Logo em seguida, foi perguntado o que um paciente deveria fazer se o hospital se negasse a fornecer o tratamento prescrito pelo médico. Depois de franzir os olhos como se não tivesse entendido a pergunta, o juiz respondeu perplexo: que hospital cometeria tamanha loucura de se negar a fornecer o tratamento prescrito por um médico?

Ao longo de minha vida acadêmica e profissional, dediquei muitas e muitas horas de reflexão para o tema da judicialização da saúde. Vivi várias “fases do D”, conforme ia amadurecendo as ideias. Já tive uma fase de deslumbramento, um tanto quanto romântica e ingênua, em que acreditava que o judiciário poderia ter um papel transformador e concretizador do direito à saúde, tendo como “evento confirmador” o sucesso na política de fornecimento de remédios para portadores de HIV, que foi impulsionada pela justiça nos idos de 1990. Depois, vivi uma fase de decepção, ao perceber os excessos e abusos que podem ser cometidos sob o pretexto de concretização do direito à saúde (como pessoas ricas querendo tratamento de ponta ou pessoas querendo furar filas de transplantes, isso sem falar nas fraudes). Já mais recentemente, passei a sentir um desencanto, ao compreender que as capacidades do judiciário são beeem limitadas nesse processo de efetivação do direito à saúde, havendo muitas situações em que uma comovente decisão judicial vale muito pouco para garantir um tratamento adequado. Depois, comecei a ter muitas dúvidas e uma certa desesperança, por perceber com cada vez mais nitidez que a judicialização pode até piorar o problema da saúde, em vários sentidos. Misturado com tudo isso, uma dose de desespero e desânimo com uma pitada de demência, por se sentir engolido por um sistema caótico, que se agiganta, sem um mínimo de racionalidade.

Diante desse cenário meio desolador, resolvi tentar colocar no papel algumas ideias que já venho adotando em minhas decisões mais recentes e que buscam dar mais unidade e coerência ao sistema de saúde. O pano de fundo talvez seja fruto da lição que extraí daquela palestra lá em 2011: a judicialização da saúde não faz o menor sentido quando o sistema funciona corretamente. O problema é que o sistema falha e, infelizmente, a falha costuma ser estrutural e generalizada. Mesmo assim, parece-me que é preciso repensar o papel da judicialização, pois, a meu ver, a solução judicial deveria mirar o resgate do sistema, ou seja, a sua correção, e não a sua substituição por um sistema paralelo que tende a tornar a situação ainda mais caótica.

Foi com esse espírito que, na preparação de uma palestra que proferi no 4 Congresso Médico e Jurídico, acabei escrevendo um artigo sistematizando alguns pontos de vista que tenho defendido. Disponibilizo aqui o texto preliminar para um debate prévio, antes de enviá-lo à publicação acadêmica. Quem puder contribuir para o debate, sinta-se convidado:

You Can’t Always Get What You Want: repensando a judicialização da saúde a partir do problema do fornecimento de medicamentos

Palestra: Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais

Eis o vídeo da palestra que proferi em João Pessoa em 27 de maio de 2016, sobre “Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais”, na Conferência Internacional “Investimento, Corrupção e o Papel do Estado: um Diálogo Suiço-Brasileiro”.

Foi uma palestra curta (de vinte minutos), em que parto de uma obviedade (“as garantias devem ser respeitadas”) para defender uma ideia simples, mas poderosa: “a justiça não é perfeita, nem infalível, mas tem a capacidade de aprender com os erros do passado”.

A partir daí, tento explicar como algumas teses jurídicas nas grandes operações anticorrupção foram construídas e se desenvolveram, a exemplo da condução coercitiva e da adoção da abertura do sigilo processual como regra. Algumas ideias já haviam sido adiantadas aqui.

Espero ter demonstrado que há um processo de aprendizagem contínua em que os órgãos anticorrupção se aprimoram, inclusive em reação às críticas do garantismo, para tentar conciliar a efetividade do processo penal com o respeito aos direitos fundamentais, seja por razões de princípios, seja por razões estratégicas. Em outras palavras: as críticas de ontem ajudam a explicar as práticas de hoje, e as críticas de hoje certamente moldarão as práticas futuras.

Prisão após condenação recorrível e presunção de inocência: oscilações de uma jurisprudência esquizofrênica

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Alerta Preliminar: este texto é ensaboado.

Não é fácil falar sobre o acerto ou o erro da decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a execução da pena após decisão condenatória de segunda instância ainda recorrível. Apesar de envolver conceitos supostamente técnicos (presunção de inocência, execução provisória da pena, efeitos dos recursos não-ordinários etc.), o tema está inserido em uma rede ideológica mais ampla que abrange questões espinhosas como a legitimidade e os fundamentos do direito penal, a finalidade da pena, o escopo do processo penal, a eficiência da política de encarceramento, o respeito à dignidade dos presos, a confiança nos juízes e assim por diante. Então, é óbvio que uma pessoa minimante consciente das mazelas do modelo penal brasileiro deve sentir arrepios só de se pensar em mandar alguém pra prisão, sobretudo quando há um recurso pendente de apreciação e se sabe que os danos causados pelo encarceramento são sérios e irreversíveis.

Diante disso, aplaudir, sem um olhar crítico, o posicionamento do STF em favor da execução antecipada da pena tende a gerar uma certa conivência com uma prática de violações sistemáticas de direitos que cotidianamente são praticadas contra os presos, que já foi constatada pelos próprios ministros recentemente (ADPF 347/DF).

Por outro lado, também não se pode fechar os olhos para a impunidade seletiva que existe no Brasil. Há determinados réus que praticam determinados tipos de crime que jamais irão cumprir sua pena por uma razão muito simples: o sistema não consegue alcançá-los. Isso não é uma falha pontual do sistema. Qualquer advogado que conhece os labirintos do processo penal brasileiro é capaz de evitar, na maioria dos casos, a punição de seu cliente e, sem dúvida, a blindagem gerada pela interpretação que o STF vinha dando à presunção de inocência contribuía bastante para esse estado de coisas.

Do mesmo modo, não se pode deixar de reconhecer uma ambivalência do direito penal, onde ora ele funciona como um instrumento essencial para uma convivência ética entre as pessoas, ora funciona como um instrumento de opressão contra determinados grupos. Crimes são praticados contra bens jurídicos fundamentais (vida, liberdade, integridade física e moral etc.), e, portanto, deixar impunes essas violações de direitos transforma também o Estado em um violador de direitos por omissão (por não cumprir o dever de proteção). Ao mesmo tempo, há muito abuso cometido em nome do poder de punir, afetando especialmente os subcidadãos, para quem as garantias constitucionais costumam ser uma quimera. Tem-se aí, portanto, a ambivalência do direito penal. Por isso, é preciso evitar a todo custo um discurso maniqueísta do tipo: se você é a favor das garantias, é amiguinho dos bandidos; se você é contra as garantias, é um velhaco fascista. Menos. Nem toda punição é ilegítima, mas também não é legítima de per si. A polarização do debate, em que os extremos não se escutam, nem fazem questão de dialogar, parece ser uma das principais causas do fracasso do modelo criminal brasileiro.

É nesse cenário meio esquizofrênico que irei manifestar minha opinião. Vou me concentrar no lógica do sistema de imputação de responsabilidade penal e o que se pode extrair de relevante da garantia constitucional de presunção de inocência. Eis as teses a serem defendidas: (a) a presunção de inocência não impede a prisão após decisão condenatória recorrível; (b) por outro lado, o mesmo princípio não autoriza (na verdade, proíbe) a prisão automática (sem fundamentação) após decisão condenatória recorrível; (c) a prisão após decisão condenatória recorrível deve ser justificada à luz das circunstâncias do caso concreto e deve ter uma natureza cautelar e não de antecipação provisória da pena.

De início, é preciso desfazer alguns mal-entendidos.

Primeiro. É erro dizer que o STF sempre interpretou o princípio da presunção de inocência como uma cláusula proibitiva da prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Pelo contrário. A jurisprudência do STF, seguindo uma linha que parece ser a dominante no resto do mundo, sempre admitiu a prisão após sentença condenatória recorrível (de primeira instância!), só vindo a mudar esse posicionamento em 2009, quando passou a entender que a execução provisória da pena seria incompatível com a presunção de inocência. Logo, é exagero afirmar que o STF quebrou uma longa tradição ou rompeu com uma histórica garantia consolidada na consciência jurídica nacional. Longe disso. O STF apenas voltou atrás, mudando um entendimento que vigorou por cerca de seis anos.

Segundo. Mesmo depois de 2009, o STF admitia a prisão antes do trânsito em julgado em determinadas situações (e não me refiro apenas às prisões cautelares típicas ou à prisão em flagrante). Assim, por exemplo, era e continua sendo praxe no processo do júri que o réu vá preso após a decisão condenatória dos jurados, mesmo que interponha recurso. O mesmo também ocorre em relação a crimes violentos graves (roubo, latrocínio, estupro etc.), onde as prisões provisórias costumam ser mantidas por longo tempo antes e após a condenação, mesmo sem o trânsito em julgado. Assim, a jurisprudência que impedia a execução provisória da pena tinha um viés seletivo e beneficiava sobretudo os réus de crimes não-violentos (não necessariamente menos graves), cujos advogados eram capazes de manejar o processo penal para impedir o trânsito em julgado, o que não é algo tão difícil de fazer. Para a massa de presos provisórios que superlotam os presídios nacionais, esse vai e vem jurisprudencial tem um efeito muito pequeno.

Feitos esses esclarecimentos, vamos ao principal. Afinal, como compatibilizar uma prisão antes do trânsito em julgado com o princípio da presunção de inocência?

Essa é uma pergunta interessante e parece só fazer sentido no Brasil, pois, de um modo geral, a sentença condenatória, mesmo de primeira instância, já é suficiente para justificar o encarceramento na imensa maioria dos países que adotam o princípio da presunção de inocência (sobre isso, vale uma leitura no voto do Min. Zavascki, onde foi citado um estudo comparando o tratamento dessa tema em vários países).

A possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória na quase totalidade dos países que adotam esse princípio decorre da origem histórica dessa garantia. A expressão “ninguém será considerado culpado” está mais relacionada com o ônus da prova, no sentido de compete à acusação apresentar provas convincentes e suficientes da culpa (para além de qualquer dúvida razoável), demonstrando de modo consistente que o réu praticou o crime. Em caso de dúvida sobre autoria ou materialidade do delito, o réu deve ser inocentado. Assim, boa parte do desenvolvimento jurisprudencial humanitário global que se desenvolveu em torno da presunção de inocência gira em torno do direito probatório e não da decretação da prisão antes do trânsito em julgado.

Mas é óbvio que, ao afetar o direito probatório, a presunção de inocência também pode e deve influenciar a aplicação de medidas restritivas de direitos dos acusados. Em princípio, o réu não pode sofrer diminuição de seu status jurídico (perder bens, liberdade ou vida) sem que a sua responsabilidade seja aferida dentro do devido processo legal, com todas as garantias daí inerentes. Foi nesse contexto que, no Brasil, o princípio da presunção de inocência foi transferido, acertadamente, para o tema das prisões, visando evitar a decretação banalizada de medidas restritivas de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A decretação da prisão, portanto, em nome do princípio da presunção de inocência e da liberdade, deve ser tratada como medida excepcional.

Mas perceba que, mesmo quando incorporado ao debate sobre decretação de prisão, a presunção de inocência não tem o condão de impedir a restrição de direitos antes do trânsito em julgado. Há várias situações em que é possível a prisão sem que haja uma condenação definitiva, bastando lembrar a prisão em flagrante e a preventiva. Equiparar a expressão “ninguém será considerado culpado” com “ninguém será preso” ou “ninguém terá direitos restringidos” [antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória] é uma interpretação que não parece nem um pouco razoável, até porque a constituição expressamente prevê a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado (artigo 5o, inc. LXI).

Além disso, o contexto problemático que justificou a adoção da presunção de inocência, conforme já dito, não estava relacionado ao uso de prisões antes do trânsito em julgado, mas à inversão do ônus da prova contra o réu. Confesso que não conheço nenhum país que interprete a expressão “ninguém será considerado culpado” como uma blindagem jurídica a impedir qualquer medida restritiva contra o réu durante a tramitação do processo criminal. Sobre isso, lanço o seguinte desafio: há algum país que interprete a garantia de presunção de inocência como uma proibição de decretação de prisão após sentença condenatória recorrível? Que tal levar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos para ver o que ela diz?

O que a presunção de inocência exige, em matéria não-probatória, é que a restrição de direitos seja precedida do devido processo, respeitando-se as garantias daí inerentes, especialmente o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade do julgador e o dever de fundamentar a decisão. Antes do trânsito em julgado, o juiz pode, por exemplo, sem violar a presunção de inocência, determinar, de forma fundamentada, o bloqueio ou sequestro de bens do acusado, a suspensão de algumas atividades, a prisão preventiva, a quebra de sigilo de dados pessoais, a interceptação telefônica, a busca domiciliar, dentre inúmeras outras medidas restritivas.

Assim, na minha ótica, quando aplicado ao campo das prisões, o princípio da presunção de inocência tem sim alguma relevância, mas não ao ponto de impedir, por completo e em absoluto, a restrição da liberdade de locomoção. A presunção de inocência é capaz de, por exemplo, gerar a inconstitucionalidade das leis que exigem o recolhimento à prisão como pressuposto de admissibilidade de recursos ou então quando estabelecem que a sentença condenatória é suficiente para justificar, sem outras considerações, a decretação automática da prisão. De certo modo, a jurisprudência de 2009, ao mudar o posicionamento anterior e proibir a execução provisória da pena, teve, pelo menos, o mérito de deixar claro que as técnicas anteriormente adotadas (que banalizavam a decretação da prisão antes do trânsito em julgado) eram inconstitucionais. O erro naquela ocasião foi jogar o pêndulo para o extremo oposto, sem prever qualquer possibilidade de decretação da prisão após a condenação recorrível, mesmo diante de uma eventual risco de inefetividade da tutela penal ou mesmo diante do manifesto caráter protelatório dos recursos interpostos.

A nova decisão (de 2016), ao permitir a execução provisória da pena após decisão de segunda instância recorrível, aparentemente joga de volta o pêndulo para o lado contrário, talvez de um modo desastrado, pois não foi capaz de assimilar as críticas que justificaram o movimento pendular. Certamente seria melhor, para a busca de um equilíbrio, admitir a possibilidade da decretação da prisão após decisão condenatória apenas em determinadas circunstâncias. Ou seja: ao invés de autorizar a prisão automática após a decisão condenatória de segunda instância, seria melhor desenvolver parâmetros capazes de justificar a decretação da prisão, de natureza cautelar, após a condenação em segunda instância, para “assegurar a aplicação da lei penal”, como está inclusive previsto no artigo 312 do CPP.

E que parâmetros seriam esses?

A meu ver, os parâmetros propostos no Projeto da Ajufe são  um bom ponto de partida para um debate mais qualificado. Ao invés de autorizar a execução provisória da pena após a confirmação da sentença condenatória em segunda instância, o projeto prevê uma possibilidade de decretação da prisão preventiva ou outra medida cautelar após o acórdão condenatório, apenas para determinados crimes e somente em determinadas circunstâncias.

Os crimes que justificam a decretação da medida cautelar são de natureza bem grave, como os crimes hediondos, de tortura, de terrorismo, de corrupção etc.

Além disso, a prisão poderá ser substituída por medida cautelar “se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações penais se permanecer solto“.

No Projeto da Ajufe, a decretação da prisão ou da medida cautelar não é automática, devendo ser fundamentada com base, por exemplo, na culpabilidade, antecedentes, consequências e gravidade do crime, bem como no fato de o produto do crime ter sido recuperado ou não e o dano reparado ou não.

Também são previstos mecanismos de controle de validade da decisão que decreta a prisão preventiva ou a medida cautelar, como a possibilidade de atribuição do efeito suspensivo aos recursos extraordinários e especiais interpostos contra o acórdão condenatório. Aliás, nesse ponto, está prevista uma interessante possibilidade de se evitar a decretação da preventiva diante da propositura de recursos especiais ou extraordinários que apresentem questões jurídicas relevantes. Caso seja possível verificar a probabilidade de sucesso do recurso, o próprio tribunal recorrido poderá conceder o efeito suspensivo e evitar a decretação da prisão ou da medida cautelar. Por outro lado, um recurso meramente protelatório, que apenas reproduza argumentos já rechaçados da jurisprudência consolidada, não terá efeito suspensivo em relação às medidas cautelares decretadas.

Há, portanto, uma vantagem qualitativa (do ponto de vista das garantias) entre o projeto proposto pela Ajufe e a solução dada pelo STF. A decisão do STF permite a execução provisória da pena de um modo automático após a condenação em segunda instância, sem estabelecer qualquer parâmetro para isso. A mera decisão de segunda instância já é suficiente para decretar a prisão. A proposta da Ajufe impõe uma série de critérios para justificar a prisão preventiva ou medida cautelar que tenha como base a decisão condenatório de segunda instância e só vale para determinados tipos penais.

Diante disso, para concluir:

(a) a decisão do STF que permitiu a execução provisória da pena talvez não tenha sido a melhor solução para o problema, mas não foi necessariamente absurda se tivermos em mente o sentido jurídico da presunção de inocência em outros países e mesmo no Brasil antes de 2009;

(b) do ponto de vista semântico, tão relevante quanto debater qual o sentido de “antes do trânsito em julgado” é debater o sentido normativo de “ninguém será considerado culpado”, que certamente não pode se confundir com “ninguém será preso” ou “ninguém poderá ter direitos restringidos”;

(c) a decretação da prisão antes do trânsito em julgado continua sendo medida excepcional e, mesmo após a confirmação da segunda instância, precisa, na minha ótica, ser fundamentada;

(d) mesmo após a decisão do STF, me parece que, em determinadas situações, nada impede que o recurso especial ou extraordinário interposto contra acórdão condenatório seja recebido com o efeito suspensivo, sobretudo quando houver probabilidade de êxito do recurso, aferido pela relevância jurídica dos argumentos desenvolvidos;

(e) apesar da decisão do STF, a decretação da prisão antes do trânsito em julgado deve ser tratada como uma prisão de natureza cautelar, aplicando-se-lhe, portanto, o regime jurídico das medidas cautelares, inclusive a substituição da prisão preventiva por outras menos drásticas, desde que adequadas e necessárias.

Presunção de Inocência ou Blindagem Jurídica?

Em recente decisão, o STF entendeu que um candidato ao cargo de agente penitenciário não pode ser excluído do concurso público apenas pelo fato de ter uma condenação criminal que ainda não transitou em julgado. Tal exclusão, segundo o STF, vulneraria o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, inc. LVII, da CF/88. (Clique aqui).

Referido precedente reforça uma interpretação que vem sendo adotada já há algum tempo pelo STF no sentido de que o princípio da presunção de inocência implica uma espécie de blindagem jurídica àquele que responde a um processo criminal ainda não transitado em julgado. Assim, antes da formação da coisa julgada penal, o acusado não poderia sofrer qualquer tipo de restrição à sua liberdade ou ao seu patrimônio jurídico, seja na instância criminal, seja em outras instâncias (eleitoral, administrativa, cível etc.).

Esse entendimento, a meu ver, precisa ser analisado com bastante cautela, sob pena de levar a absurdos gritantes, pois parte de uma equivocada noção de monopólio do juízo criminal para apurar responsabilidades. A rigor, referida posição condiciona a aplicação de sanções administrativas e civis ao término do processo penal, desrespeitando a necessária independência entre as diversas instâncias de julgamento. Explico.

Um mesmo fato jurídico pode configurar, a um só tempo, um ilícito penal, administrativo e civil. Por exemplo, alguém que, ao dirigir embriagado, atropela e mata um pedestre responderá pelo crime de homicídio, pela infração administrativa de embriaguez ao volante e, civilmente, por ter causado dano a outrem. O crime de homicídio, a ser apurado na instância penal, poderá resultar na aplicação de uma pena restritiva da liberdade. A embriaguez ao volante, a ser verificada na instância administrativa, poderá resultar na pena de suspensão da habilitação. A responsabilidade civil, por sua vez, poderá gerar o dever de reparar o dano causado. Há, como se nota, três instâncias de apuração de responsabilidades – a penal, a administrativa e a civil – que são, nesse caso, independentes entre si. Como os processos correm “em paralelo” e são conduzidos por diferentes órgãos de julgamento sem hierarquia entre si, nada impede que sejam aplicadas as sanções administrativas e civis, mesmo antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Para isso, basta que ocorra a respectiva apuração da responsabilidade (administrativa e civil) nas instâncias competentes. Aliás, como os critérios de apuração de responsabilidades não são exatamente idênticos, é possível que o acusado seja até mesmo inocentado na esfera penal e, mesmo assim, seja condenado a reparar o dano civil e a cumprir a devida pena administrativa.

O STF costuma rejeitar a possibilidade de restrição de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória sob o argumento de que o princípio da presunção de inocência se aplica a todas as áreas e não apenas à área penal, sendo dotado de efeito irradiante. Do mesmo modo, justifica esse entendimento com base na ideia de que o princípio da presunção de inocência não pode ser relativizado por conveniências sociais. Está parcialmente correto em ambas ponderações, pois é claro que o princípio da presunção de inocência se aplica à esfera administrativa/civil e não pode ser relativizado em nome de um fantasioso interesse público.

Porém, o raciocínio aqui desenvolvido não abre mão da aplicação do princípio da presunção de inocência fora da instância penal, nem implica qualquer tipo de relativização contingente desse direito fundamental. O que estamos tentando demonstrar é que não se pode extrair do princípio da presunção de inocência a conclusão de que nenhuma restrição de direitos, na esfera administrativa ou civil, pode ser aplicada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sob pena de desconsiderar a independência entre as respectivas instâncias.

Afirmar que a solução definitiva do processo penal é condição indispensável para imputação da responsabilidade civil e administrativa é ignorar o real significado do princípio da presunção de inocência, sobretudo quando conjugado com o princípio do devido processo. De fato, ninguém pode sofrer qualquer tipo de restrição jurídica sem ter chance de participar efetivamente de um processo justo, seja na via judicial, seja na via administrativa. O processo justo exige que ninguém seja considerado culpado antes de ter sido comprovada em definitivo a prática da conduta antijurídica. Em outras palavras: não pode haver uma condenação prematura, que desconsidere arbitrariamente o estado de inocência da pessoa a ser afetada. Assim, ressalvados os ônus processuais normais, a pessoa que responde a um processo – judicial ou administrativo – não pode sofrer qualquer restrição no seu patrimônio jurídico, inclusive na sua liberdade, sem que exista um juízo definitivamente formado sobre a ilicitude de sua conduta.

Mas a formação do juízo de culpa ocorre, de forma autônoma, em cada esfera de apuração de responsabilidade. Sempre partindo de uma presunção quanto ao estado de inocência da pessoa a ser afetada pela decisão, a autoridade competente somente pode imputar a responsabilidade penal, civil ou administrativa e aplicar a respectiva sanção após reunir elementos de prova suficientes que demonstrem que aquela pessoa, de fato, praticou a conduta ilícita. A verificação da prova dos fatos não é de exclusiva competência da instância criminal, pois cada esfera de julgamento praticará atos processuais destinados a apurar o cometimento do ato ilícito em suas respectivas áreas.

Para deixar ainda mais claro esse ponto de vista, imagine a situação de um servidor que tenha praticado um ato que, a um só tempo, seja enquadrado como um ilícito penal e administrativo. Tal servidor será chamado a responder por sua conduta tanto na esfera penal quanto na administrativa. As duas esferas poderão apurar a responsabilidade do servidor de forma independente, cada qual ouvindo testemunhas, analisando documentos e realizando os demais atos de instrução pertinentes. Os processos judicial e administrativo tramitarão “em paralelo” e serão julgados por órgãos distintos. Em geral, o processo administrativo tramita mais rápido, pois os critérios de prova são menos rigorosos. Diante disso, é perfeitamente possível que a pena administrativa seja aplicada antes da condenação penal, não sendo preciso que se aguarde o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para aplicar uma sanção administrativa. O importante é que a instância administrativa tenha seguido todas as etapas do processo justo e concluído que há elementos suficientes para a formação da culpa em relação ao ilícito administrativo. Não é possível – nem deve ser possível – condicionar a aplicação da pena administrativa ao fim do processo criminal, até porque os critérios de apuração da responsabilidade são diferentes.

Não conheço os detalhes do caso julgado pelo STF, que levou à reinclusão de um candidato condenado criminalmente em um concurso para o cargo de agente penitenciário. Por isso, não tenho como formular qualquer juízo de valor sobre o acerto ou equívoco da decisão, nem pretendo fazê-lo. No entanto, se a análise da vida pregressa do candidato é uma parte importante no processo de seleção para o cargo de agente penitenciário, é preciso compreender bem o papel da comissão do concurso no desempenho típico dessa função.

A meu ver, um candidato pode ser, motivadamente, excluído do certame na fase de investigação da vida pregressa, caso existam razões fortes que justifiquem tal medida. O erro é considerar que a mera existência de um processo penal ou mesmo de uma condenação penal não-definitiva seja razão, por si só, suficiente para excluir alguém de um concurso. Não é por vários motivos: a pessoa pode ter sido condenada por um fato banal, que não justificaria a exclusão; a pessoa pode ter sido condenada sem provas; a pessoa pode ter sido condenada por um juízo incompetente. Enfim, há vários motivos que impedem uma automática exclusão do candidato tão só pelo fato de responder a uma ação criminal. Por exemplo, se o candidato tivesse sido condenado em primeira instância por um crime contra a honra ou por um crime qualquer que não significasse um óbice ao exercício do cargo de agente penitenciário, uma eventual exclusão do concurso seria, a meu ver, arbitrária.

Por outro lado, seria necessário ligar o “sistema de alerta” se o candidato tivesse sido condenado por associação com organizações criminosas ou outro crime que colocasse em dúvida a sua integridade para o exercício do cargo, sendo dever da comissão do concurso analisar com mais detalhe referida situação. Nessa hipótese, a comissão poderia levar em conta os elementos de prova produzidos na instância penal (prova emprestada) para avaliar a capacidade moral do candidato. Se os fatos que levaram à condenação criminal forem capazes de justificar a exclusão do referido candidato, não há qualquer problema em impedir a sua participação, sobretudo pela natureza específica daquele cargo.

Mas é preciso evitar outro erro: mesmo que o candidato responda a um processo por algum crime grave, é preciso que, na etapa da investigação da vida pregressa, a comissão formule um juízo autônomo de culpa (independente do juízo criminal), dando-se ampla chance de defesa para que o candidato possa apresentar suas razões, seguindo todas as exigências do contraditório e da ampla defesa. Formado o juízo de incapacidade moral na esfera administrativa, no sentido de concluir que aquele candidato praticou atos incompatíveis com a posição de um servidor público que atuará dentro de um presídio, parece-me perfeitamente possível excluí-lo do certame, ainda que a apuração criminal não tenha sido concluída em definitivo. Mas insisto: essa exclusão não pode ser motivada apenas com base na condenação criminal, pois é essencial que haja uma devida apuração dos fatos também na instância administrativa pela comissão do concurso. Em todo caso, é obviamente possível haver o controle judicial dos motivos adotados pela comissão.

Em conclusão: não se deve interpretar a presunção de inocência como um mecanismo de blindagem jurídica a impedir qualquer sanção administrativa ou civil antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, pois isso seria tratar a instauração do processo penal como uma espécie de prêmio concedido ao acusado. A esfera penal não é a única fonte de imputação de responsabilidade, nem pode ser tratada como um óbice para atuação das demais instâncias de julgamento. O princípio da presunção de inocência não permite, de fato, que a mera existência de processos criminais não-definitivos justifiquem automaticamente a restrição de direitos, mas não impede que os fatos que estão sendo objeto da apuração criminal possam ser mobilizados para justificar a restrição de direitos em outras searas.

Profecias Jurisprudenciais: um dia de Nostradamus

Os realistas jurídicos costumam dizer que a atividade do jurista consiste em fazer previsões acerca daquilo que os juízes vão decidir, a fim de possibilitar que os indivíduos possam ter uma idéia mais precisa das conseqüências de suas ações. “As profecias sobre o que os tribunais farão de fato, e nada mais pretensioso, são aquilo que quero dizer com direito” (Oliver Wendell Holmes Jr., “The Path of Law”, p. 427).

Particularmente, penso que essa concepção realista está equivocada por uma série de razões, que não convém aqui mencionar. Mesmo assim, gostaria de pegar esse mote para fazer uma análise sobre as “profecias” que fiz em meu Curso de Direitos Fundamentais que se materializaram na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Na semana passada, o STF relativizou a coisa julgada em uma ação de investigação de paternidade. O autor da ação ingressou com a ação nos anos 80 e perdeu por falta de provas, já que não tinha dinheiro para fazer o exame de DNA e, naquela época, o poder público não era obrigado a arcar com esse custo em caso de justiça gratuita. Com a aprovação de uma lei que obriga o estado a pagar o referido exame para os que estão na assistência judiciária, o autor da ação propôs nova ação, apesar de o caso já haver transitado em julgado contra ele. O STF aceitou a relativização da coisa julgada e permitiu que a questão fosse rediscutida em nome da descoberta da verdade. Veja aqui a notícia.

No meu Curso de Direitos Fundamentais, defendi a mesma tese, desenvolvendo um exemplo hipotético praticamente idêntico. Na ocasião, após citar um acórdão do STJ que não admitiu a relativização da coisa julgada em ação de investigação de paternidade (RESP 107248/GO), assinalei o seguinte: “Vale ressaltar que, nesse caso, havia uma sentença transitada em julgado reconhecendo a paternidade e, posteriormente, o exame demonstrou o erro do julgado. Por isso, preferiu-se prestigiar a coisa julgada em detrimento da prova científica. Imagine, porém, a situação inversa: uma sentença não reconhecendo a paternidade e um exame posterior informando o contrário. Nesse caso, parece-me indiscutível a relativização da coisa julgada, em favor da descoberta da verdade”.

Outro entendimento polêmico que defendi em primeira mão no livro foi a possibilidade de invasão domiciliar noturna quando não houver outro meio de obtenção da prova. Afirmei que “não se pode excluir, de plano, a possibilidade de, em casos excepcionais, devidamente justificados, ser autorizado judicialmente o cumprimento de um mandado de busca e apreensão fora desse período diurno, naquelas hipóteses em que a prova a ser colhida somente está disponível durante a noite”. Como se sabe, o STF, na Operação Hurricane, aceitou a invasão domiciliar noturna, em escritório de advocacia, a fim de se colocar escutas ambientais naquele local, adotando exatamente a mesma lógica e quase as mesmas palavras que utilizei. (Eis aqui a íntegra do acórdão do STF).

Também fui certeiro quando defendi a titularidade de direitos fundamentais por estrangeiros não residentes no país, antes mesmo de o STF haver se pronunciado taxativamente sobre o tema. Defendi que “até um estrangeiro que nem mesmo esteja no território brasileiro pode, eventualmente, ser titular de direitos fundamentais. Imagine, por exemplo, a situação de um estrangeiro que tenha investimentos no país. Naturalmente, ele é titular de inúmeros direitos decorrentes de sua condição, como o direito de propriedade, os direitos tributários, os direitos processuais etc. e pode invocá-los em seu favor perante os tribunais nacionais sem qualquer problema”. Adotando precisamente esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal expressamente reconheceu que um investidor russo, radicado na Inglaterra, que estava sendo processado no Brasil, podia ingressar com habeas corpus e deveria ter seus direitos processuais respeitados pelas autoridades judiciárias brasileiras, apesar de aqui não ter residência. (Eis a decisão).

Outra profecia que acertei em cheio e por unanimidade foi a equiparação das uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis entre homem e mulher. Muito antes da decisão proferida pelo STF na ADPF 132/RJ, eu havia escrito em meu Curso que as uniões homoafetivas deveriam ser equiparadas às uniões heteroafetivas, assinalando que “nem vejo como necessária uma mudança legislativa expressa nesse sentido (embora o ideal seja o debate nas vias democráticas. Basta uma análise do Código Civil à luz dos direitos fundamentais para concluir que o reconhecimento das uniões homoafetivas é sim possível”.

Do mesmo modo, o que está em meu livro sobre a efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais corresponde, quase com as mesmas palavras, àquilo que depois foi decidido pelo plenário do STF na SL 47. Nesse caso, a profecia não foi tão visionária assim, até porque já existiam decisões do ministro Celso de Mello no mesmo sentido do que escrevi. O relevante é que a matéria foi decidida pelo plenário do STF.

Também fiz algumas previsões interessantes aqui no blog. Por exemplo, antevi, num tom assustadoramente profético, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos iria reverter o entendimento do STF sobre a lei de anistia. Vários meses antes da decisão da CIDH, afirmei o seguinte: “Digamos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos venha a decidir que a lei de anistia, promulgada após a ditadura militar brasileira, seja incompatível com os tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil por impedirem a punição de crimes contra a humanidade eventualmente praticados por autoridades militares. Como conciliar uma hipotética decisão que venha ser proferida nesse sentido com a decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do mesmo assunto que julgou que a lei de anistia está valendo e não viola os tratados internacionais? Qual decisão há de prevalecer: a da CIDH ou a do STF?”

E disse também, sem titubear, antes mesmo do início do julgamento da homoafetividade, que “acho bastante difícil que o STF não reconheça, para fins jurídicos, a possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo”. Aliás, a minha premonição nesse caso foi ainda maior, porque previ até mesmo a interposição da ADPF sobre o assunto, quando a petição sequer tinha sido ainda distribuída.

Outra profecia materializada foi a declaração da constitucionalidade da Lei de Biossegurança, que autorizou a pesquisa com células-tronco. Disse, num tom categórico, que o STF validaria a referida lei e cheguei muito perto de acertar, nominalmente, o voto de cada um dos juízes.

E para que esse texto não fique apenas em previsões do passado, que são sempre mais fáceis de acertar, bastando ser suficientemente aberto na linguagem e minimamente antenado nas tendências, faço aqui algumas previsões para o futuro.

* Ainda este ano, o Supremo Tribunal Federal decidirá, por maioria, que o Código Penal brasileiro não pode ser interpretado no sentido de criminalizar o aborto de fetos anencéfalos.

* O Supremo Tribunal Federal decidirá, por unanimidade, que os programas de ação afirmativa como o estabelecido pelo Prouni são, em princípio, constitucionais. É provável, porém, que alguns critérios adotados pelo governo para selecionar os beneficiados sejam considerados como irrazoáveis.

* O Supremo Tribunal Federal passará a entender que os servidores públicos possuem direito subjetivo à revisão geral anual de seus vencimentos (art. 37, inc. X, da CF/88), de modo que a não concessão do referido reajuste gerará o direito à indenização pelos danos decorrentes da omissão constitucional.

* A idéia de discriminação indireta será acolhida pelo STF a fim de reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 235 do Código Penal Militar, que tipifica a pederastia.

* O STF passará a admitir a possibilidade da execução antecipada da pena em caso de condenações decorrente de julgamento pelo tribunal do júri.

* Numa perspectiva de médio prazo, será reconhecido às uniões estáveis poligâmicas o status de entidade familiar.

* Numa perspectiva de longo prazo, será reconhecida aos animais mais evoluídos (que sentem dor e prazer) a condição de sujeitos de direitos.

Quem viver, verá…

 

 

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