Palestra: Discriminação por Preconceito Implícito*

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* Texto-base de palestra proferida no I Congresso Nacional de Direitos Humanos, proferida em 10/12/2016, em Balneário de Camboriú

 I – Introdução

Inicio esta apresentação com uma confissão pessoal da qual não me orgulho e que nunca expressei em público. Descobri que tenho tendências racistas. Para usar uma expressão mais precisa, tenho uma leve preferência automática por pessoas brancas. Sendo ainda mais específico, meu cérebro associa com mais facilidade expressões positivas – como paz, felicidade ou amor – com rostos de pessoas brancas do que com rostos de pessoas negras. Em contrapartida, associo mais rapidamente palavras negativas – como violência, guerra ou medo – com rostos de pessoas negras.

Descobri isso há cerca de um ano, depois de realizar o Teste de Associação Implícita, desenvolvido por pesquisadores de Harvard, que serve para medir o nível de preconceito implícito das pessoas em relação a determinados grupos estigmatizados (negros, mulheres, homossexuais, estrangeiros etc.). Tão logo recebi o resultado, fiquei em choque e decepcionado comigo mesmo. Afinal, eu não quero ser racista. Eu abomino o racismo. Eu não suporto pessoas racistas. Eu acredito firme e sinceramente que todos merecem ser tratados com igual respeito e consideração, e empenho minha vida no magistério e na magistratura para defender esse ideal.

O problema é que a minha vontade consciente nem sempre está no controle da situação. Nossas ações e decisões são influenciadas por fatores que estão fora do radar da consciência. Ou seja, a minha crença na igualdade de todos os seres humanos talvez não seja suficiente para me impedir de agir, inconscientemente, de forma discriminatória.

Hoje, eu tenho consciência do meu preconceito implícito e espero tentar convencê-los de que, infelizmente, o problema não é só meu. É bastante provável que você também tenha preferências raciais em favor dos brancos, ainda que não tenha consciência disso. Para dizer a verdade, esse tipo de preconceito está presente em cerca de 80% de pessoas brancas e até mesmo em cerca de 50% de pessoas negras. Sim: na nossa sociedade, o preconceito implícito é a regra e atinge até mesmo as vítimas do preconceito.

Pretendo, nesta apresentação, explicar o que é o preconceito implícito, tentando demonstrar que ele está em praticamente todas as nossas decisões, e como isso pode gerar comportamentos discriminatórios. Espero também ensaiar algumas ideais sobre como o direito pode ser mobilizado para combater a discriminação por preconceito implícito, indicando algumas fontes de pesquisa bem atuais.

II – Associações Implícitas como Fonte do Preconceito

Para iniciar, falarei sobre uma experiência meio inusitada, que demonstra como nosso cérebro processa informações de forma inconsciente e como isso pode gerar preconceitos implícitos.

A experiência envolve vinhos. Algumas pessoas foram convidadas para degustar e avaliar dois novos vinhos que seriam lançados no mercado. Seria uma degustação às cegas, ou seja, todas as informações relevantes foram ocultadas: o produtor, a região, a safra, o tipo de uva etc. A única informação que foi propositalmente indicada foi o preço de venda. Na primeira garrafa, foi colocada uma etiqueta informando que o vinho custaria 45 dólares. Na segunda garrafa, a etiqueta indicava que o vinho custaria 5 dólares.

Não houve qualquer surpresa no resultado da avaliação. Como esperado, o vinho mais caro recebeu uma nota média de 3,4, numa escala de 1 a 5, e o vinho mais barato foi avaliado em 2,3.

vinho

É provável que muitos já tenham intuído que o conteúdo das duas garrafas era absolutamente idêntico. O vinho era o mesmo em ambas as garrafas. A única diferença era a etiqueta. Ou seja, os degustadores foram sugestionados pelo preço, algo relativamente previsível, já que quem vive em um mundo capitalista sabe que as pessoas são influenciáveis e que o preço dos produtos exerce um enorme poder sobre nossas preferências de consumo.

Mas a grande surpresa dessa experiência ocorreu quando se verificou, a partir da leitura do mapeamento cerebral das pessoas que participaram da degustação, que, de fato, as percepções sentidas pelos degustadores variaram conforme a garrafa, apesar de o líquido ser exatamente o mesmo. Por incrível que pareça, foram duas experiências distintas, e o resultado da avaliação, em favor do vinho supostamente mais caro, traduziu as atividades sensoriais sentidas. Ao analisar o funcionamento do cérebro antes, durante e depois degustação, verificou-se que as conexões cerebrais relacionadas ao prazer foram mais intensas quando se degustou o vinho de 45 dólares. Por outro lado, quando se degustou o vinho de 5 dólares, eram as áreas do cérebro relacionados à aversão que estavam em atividade.

Pelo menos duas lições podem ser extraídas dessa experiência. A primeira é que sempre que você for oferecer um vinho para alguém diga que o vinho é caro. Isso melhorará o sabor, mesmo que o vinho seja um Sangue de Boi. Eu já fiz isso algumas vezes e posso garantir que dá certo. É uma mentirinha inocente e benéfica, pois, no fundo, você estará proporcionando uma experiência superior para o seu convidado, maximizando o prazer dele a um custo menor pro seu bolso. (Brincadeira!)

Mas a segunda é a que interessa: os julgamentos que realizamos se baseiam, muitas vezes, em associações implícitas que existem em nossas mentes e são automaticamente acionadas mesmo que não tenhamos consciência disso.

Associamos o preço do vinho à sua qualidade. Por isso, uma mera etiqueta indicando o preço pode colocar nosso cérebro em estado de alerta, para criar expectativas positivas ou negativas, conforme o caso. Identificaremos com mais facilidade as qualidades positivas de um vinho de 200 reais e deixaremos de perceber alguns defeitos que não são esperados em um vinho tão caro. Por outro lado, se o vinho custar 20 reais, serão os defeitos que se destacarão e eventuais qualidades não serão percebidas.

Nosso cérebro preencherá as lacunas informativas com os esquemas mentais embutidos em nossas mentes, tendendo a confirmar as expectativas previamente criadas.

A cor da pele, ou o gênero, ou características étnicas ou orientação sexual, funcionam como essas etiquetas ou esquemas mentais automáticos e são capazes de afetar nossos julgamentos, mesmo que não tenhamos consciência disso. As categorizações e os estigmas de grupo, socialmente construídos ao longo de séculos de dominação branca, heterossexual e masculina, fazem parte dos esquemas mentais de grande parte da população mundial, mesmo que, no nível da consciência, muitos abominem o preconceito.

III – Efeitos Discriminatórios do Preconceito Implícito

No início desta apresentação, falei brevemente do Teste de Associação Implícita, que é uma forma rudimentar de medir algumas preferências implícitas. O teste funciona como um jogo, em que temos que associar, no menor espaço de tempo, algumas palavras com determinadas categorias de pessoas. Ao final, é possível ter uma noção do nosso nível de preferências implícitas a depender da facilidade ou velocidade com que associamos os pares de palavras.

Mas há outros testes menos abstratos, como por exemplo um que foi desenvolvido para medir o preconceito implícito de policiais, conhecido como Police Office Dilemma. Neste teste, os policiais devem encarar um jogo virtual em que algumas situações dramáticas são simuladas e, em um curto espaço de tempo, devem decidir se atiram ou não em alguns suspeitos que ameaçam a sua vida ou a de outras pessoas. As situações são bem semelhantes entre si, mas, em algumas cenas, o suspeito é branco e, em outras, é negro. O jogo mede o tempo de reação do jogador para verificar sua capacidade de distinguir situações em que deve atirar ou não. Sem surpresa, o jogo demonstra que as pessoas têm mais facilidade de atirar quando o suspeito é negro, inclusive ao ponto de cometer erros de avaliação, como atirar em uma pessoa negra que está segurando um celular e não uma arma, por exemplo. No mesmo cenário, quando o suspeito é branco, poucas pessoas cometem o mesmo erro.

police

Eu fiz o teste, que também está disponível online, e, para minha infelicidade, mais uma vez fui reprovado, ou seja, atirei por equívoco em mais suspeitos negros, fui mais rápido em “não atirar” em suspeitos brancos e em “atirar” em suspeitos negros. Por sorte, não sou policial e não pretendo andar armado.

Mas até aqui ainda estamos caminhando por terrenos meio abstratos, de simulações e jogos virtuais e de computadores, apesar de serem situações de vida ou morte que muito provavelmente podem ter correspondência com o mundo real.

É claro que o preconceito implícito é sentido na pele por muitas pessoas no dia a dia, seja em situações mais banais, por meio de microexpressões faciais ou palavras de desprezo ditas involuntariamente, seja em situações mais sérias, como em uma abordagem policial, uma entrevista de emprego ou em um processo judicial.

Já há um amplo conjunto de estudos realizados para comprovar a ocorrência da discriminação por preconceito implícito em muitas áreas da vida (aqui). Citarei uma pesquisa envolvendo atendimento médico, que me impressionou por vários motivos. Primeiro, porque se trata da saúde humana e a medicina, um campo em que, em princípio, a cor da pele não deveria influenciar o tratamento. Segundo, porque envolve crianças, um grupo vulnerável que ninguém gostaria conscientemente de discriminar. Terceiro, porque envolve situações de dor, ocasião em que a empatia humana deveria funcionar para acionar os mais básicos instintos de cuidado.

Eis a pesquisa: foram analisados todos os atendimentos realizados com crianças que foram diagnosticadas com apendicite entre os anos de 2003 a 2010 em um hospital pediátrico nos Estados Unidos. Os pesquisadores descobriram que, quando uma criança negra chegava ao hospital se queixando de dor moderada, poucas recebiam analgésicos não-opióides, que são mais baratos, e menos ainda recebiam analgésicos opióides, que são mais caros. Ou seja, a maioria das crianças negras não recebia qualquer tipo de remédio para abrandar a sua dor. Curiosamente, se a criança fosse branca, havia mais possibilidade de receber analgésico não-opióide ou então de receber analgésico opióide, embora a queixa fosse a mesma, ou seja, uma dor moderada. Por sua vez, quando se tratava de criança negra se queixando de dor intensa, a maioria recebia analgésico não-opióide e poucas recebiam analgésico opióide. As crianças brancas que se queixavam de dor intensa, por outro lado, recebiam, em sua maioria, analgésico opióide, que é o tratamento mais eficiente, embora mais caro.

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Há, pelo menos, duas explicações possíveis para esse fenômeno: primeiro, pode haver uma menor empatia entre os médicos e as crianças negras, algo que foi demonstrado inclusive por meio de exames de mapeamento cerebral feito em alguns médicos. A outra explicação decorre de uma associação implícita que costuma existir entre a cor da pele e a capacidade de sentir dor. Talvez pelo histórico de violência e de imagens de negros “levando chicotadas e porradas” as pessoas criem uma percepção de que as pessoas negras são mais capazes de suportar a dor do que os brancos, e isso pode levar a uma diferença de tratamento para dor, em função do que está sendo chamado de superhumanização dos negros. É como se estes fossem portadores de algum poder especial que os torna imune à dor. Seja como for, o quadro é assustador.

IV – Tipos de Preconceito Implícito

Além da superhumanização das pessoas negras, já foram catalogados vários tipo de preconceito implícito.

Tem-se, por exemplo, a ameaça de estereótipo, que é um fenômeno que ocorre em função da pressão que determinados grupos estigmatizados sentem quando são comparados, em testes ou competições com outras pessoas, o que pode levar a uma piora no desempenho, derivada da ansiedade, que confirma a expectativa de inferioridade. Vários estudos demonstram que o resultado de testes de inteligência ou de conhecimento pode variar conforme a ameaça de estereótipo é ou não ativada. Por exemplo, quando negros ou mulheres fazem testes e são informados de que o objetivo do teste é fazer uma comparação de inteligência com homens brancos, o desempenho geralmente é pior do que quando tal fato não é informado. A ameaça de estereótipo é um dos fatores que põem em cheque as crenças tradicionais sobre a meritocracia, tema que abordado pela Fernanda Orsomarzo.

Outro exemplo de preconceito implícito deriva do chamado racismo aversivo, que surge a partir do desconforto mental, ainda que involuntário, que algumas pessoas sentem quando estão na presença de membros de grupos estigmatizados. Isso pode levar, por exemplo, um professor a prejudicar involuntariamente um aluno pelo fato de ele ser membro de uma minoria, tratando-o com mais severidade, desmotivando-o ou ignorando os seus méritos, o que pode prejudicá-lo pelo resto da vida. Ou pode levar uma pessoa negra a ser preterida em uma entrevista de emprego em razão do racismo aversivo do entrevistador, que torna o ambiente mais hostil e tenso, com pouca troca de palavras, distanciamento e encerramento prematuro, prejudicando o desempenho do entrevistado. Ou então pode levar um juiz a diminuir a credibilidade do depoimento de uma testemunha ou até mesmo a ser mais rigoroso ao julgar um réu, influenciado inconscientemente por preconceitos implícitos.  Existem muitos estudos que comprovam a existência do racismo aversivo em diversas áreas da vida.

Em todos esses casos, verifica-se a ocorrência daquilo que se pode chamar de injustiça epistêmica e hermenêutica, que pode ser conceituada como um tratamento injusto na avaliação de comportamentos e conhecimentos produzidos por determinadas pessoas. Por conta disso, haverá uma facilidade de percepção e memorização de erros praticados por grupos estigmatizados, ou então uma dificuldade de percepção e memorização dos seus acertos, de modo a confirmar os esquemas mentais implícitos.

Vejamos outra pesquisa bem a esse respeito, que é ainda mais interessante porque envolve o direito e a academia.

Foi distribuído para oitocentos alunos de uma faculdade de direito um determinado artigo científico, que deveria ser avaliado com base em critérios objetivos previamente estabelecidos. Os alunos deveriam identificar eventuais erros gramaticais, erros técnicos e factuais e a partir daí atribuir uma nota ao texto. Para metade dos alunos, foi indicado que o autor do texto era um advogado negro. Para a outra metade, foi dito que o autor seria um advogado branco.

O resultado foi o seguinte: o texto escrito pelo advogado branco recebeu uma nota de 4,1 (de um total de 5) e o do advogado negro 3,2. Além disso, os alunos identificaram muito mais erros gramaticais, técnicos e factuais no texto escrito pelo advogado negro, apesar de ser exatamente idêntico ao texto escrito pelo advogado branco.

artigo

Lembrem-se da experiência do vinho. É exatamente o mesmo fenômeno, mas a etiqueta “de qualidade” não é o preço e sim a cor da pele. O cérebro humano se prepara para enxergar as qualidades do texto escrito por um advogado branco, e os defeitos de um texto escrito por um advogado negro. Isso demonstra que critérios objetivos de avaliação nem sempre são tão objetivos assim, pois a lente do avaliador pode estar contaminada com preconceito implícitos.

V – O Papel do Direito

Seria possível continuar com vários exemplos e pesquisas semelhantes, mas para finalizar desejo apenas levantar algumas possibilidades de investigação jurídica desse fenômeno.

Em primeiro lugar, é possível estudar os impactos do preconceito implícito na própria atividade do jurista. Existem estudos muito interessantes sobre como os policiais, delegados, promotores, advogados, juízes, jurados, testemunhas podem ser afetados por preconceitos implícitos e como isso pode gerar discriminação contra determinados grupos estigmatizados praticada pelo próprio sistema de administração de justiça. Aprofundar esse tema é um dos meus projetos para 2017.

Além disso, é tentador pensar em incorporar o conceito de preconceito implícito no direito da antidiscriminação. Esse foi o campo de pesquisa em que me dediquei no semestre passado. Procurei compreender como seria possível desenvolver um sistema de responsabilidade civil decorrente da discriminação por preconceito implícito. Esse tema é interessante, pois exige repensar o papel da consciência e da intenção do agente na caracterização do ato ilícito. De um modo geral, os autores que têm escrito sobre o tema têm defendido um modelo de responsabilização próximo à ideia de negligência para alcançar também a discriminação por preconceito implícito. Assim, quando o agente não adota determinadas cautelas para evitar a influência do preconceito implícito, é possível presumir que os motivos de um tratamento discriminatório não justificado sejam baseados em preconceitos implícitos, a depender das circunstância do ato.

Há ainda um debate sobre a prova do preconceito implícito. Afinal, estamos lidando com um tipo de influência que não é tão visível, já que se manifesta fora do radar da consciência. O uso de ferramentas científicas para detectar e caracterizar o preconceito implícito também pode ser um campo muito promissor nesse debate, embora seja necessário reconhecer as suas falhas e limites, o que exige um olhar crítico sobre a força probatória (para fins judiciais) desse método. Os autores que já se dedicaram ao tema são muitos céticos quanto ao uso judicial de testes de associação implícita ou mapeamento cerebral como prova do preconceito implícito, por razões que não vem aqui mencionar. Tratei sobre isso no meu artigo sobre discriminação por preconceito implícito.

Finalmente, é preciso desenvolver deveres de cuidado e de prevenção que poderiam derivar da obrigação de combater o preconceito implícito. Na minha pesquisa, tentei catalogar alguns esforços que estão sendo realizados nesse sentido, que, a meu ver, é o ponto central da discussão.

Há um certo consenso de que é possível minimizar a influência do preconceito implícito por meio de algumas medidas simples de cautela. Um exemplo interessante ocorreu nos anos 70/80, quando houve uma imensa reviravolta no processo de seleção de músicos para as orquestras sinfônicas. Em uma determinada seleção de músicos para uma importante orquestra sinfônica europeia, uma candidata foi desclassificada e alegou que foi preterida por ser mulher. Na sua ótica, ela seria mais qualificada do que outros músicos homens que teriam sido escolhidos na prova prática, que consistia em uma apresentação presencial para um grupo de jurados. Por força de uma ordem judicial, foi determinado que a seleção fosse repetida, mas dessa vez a audição fosse às cegas, ou seja, os avaliadores não poderiam ver se o músico era homem ou mulher. Nesse novo cenário, a candidata venceu os demais músicos homens, e, a partir daí, a audição às cegas passou a ser a regra nos processos de seleção de músicos nas principais orquestras. Essa simples mudança no arranjo decisório acarretou um aumento de 30% da participação de mulheres nas orquestras sinfônicas em várias partes do mundo.

Atualmente, várias grandes empresas, como a Google ou a Microsoft, possuem programas de treinamento de seus funcionários, inclusive disponibilizados gratuitamente na internet, tratando especificamente do combate ao preconceito implícito. Também já existem, nos Estados Unidos, cursos montados para juízes, policiais e outros servidores públicos, visando minimizar os efeitos desse fenômeno nos atos decisórios oficiais.

Para concluir, é preciso reconhecer que o primeiro passo para combater o preconceito implícito é ter consciência da sua existência.

Recomendo a todos que façam os testes. Verifiquem suas preferências implícitas e automáticas. Esses testes são gratuitos, simples, rápidos e estão disponíveis até mesmo em português. Talvez o resultado não seja muito agradável para o ego. Mas tenho certeza de que será uma experiência que mudará para sempre a sua forma de ver o mundo e interagir com outras pessoas.

Muito obrigado!

“A insustentável leveza do ser”: críticas ao artigo de Noel Struchiner e Ivar Hannikainen

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O objetivo central deste post é apresentar algumas críticas – de caráter propositivo – ao artigo “A insustentável leveza do ser: sobre arremesso de anões e o significado do conceito de dignidade da pessoa humana a partir de uma perspectiva experimental“, de Noel STRUCHINER e Ivar HANNIKAINEN, que pode ser acessado aqui.

Antes, porém, não se pode deixar de elogiar os autores pela tentativa de trazer a pesquisa experimental para dentro do direito, sobretudo em um tema tão importante e mal tratado quanto o conceito de dignidade. É impressionante como estamos demorando para assimilar a importância desse tipo de investigação, que tem produzido inúmeros frutos pelo mundo afora. Enquanto o método das ciências cognitivas e sociais tem evoluído a olhos vistos, modificando radicalmente a compreensão sobre o comportamento e o raciocínio humanos, parece que o pensamento jurídico ainda está na idade medieval, usando concepções sobre a natureza e a psicologia humanas que já foram refutadas desde o século XIX pelo menos. Enfim… talvez seja hora de não só olhar para o que está sendo produzido em outras áreas do saber, mas também tentar aproveitar o que há de bom em seus métodos de pesquisa.

O ensaio de Struchiner e Hannikainen é um esforço nessa direção. Os autores pretendem defender que algumas inconsistências sobre o uso do conceito de dignidade humana podem ser demonstradas por meio de uma pesquisa experimental.

A intuição básica é a de que o conceito de dignidade é afetado pelo chamado “paradoxo do abstrato e do concreto“, ou seja, pode haver uma compreensão diferente sobre o significado da dignidade a depender do contexto do uso daquele conceito: em cenários mais abstratos, a dignidade é usada em um determinado sentido, mas quando a mesma situação é apresentada de um modo mais concreto, pode haver uma mudança de entendimento sobre o que a dignidade significa.

Curiosamente, em algumas passagens de minha tese de doutorado, mencionei existir, nos discursos jurídicos e políticos, uma “síndrome dos consensos abstratos, desacordos concretos“. E citei como exemplo os casos envolvendo liberdade de expressão, em que o STF costuma ser extremamente generoso quanto ao âmbito de proteção desse direito no controle abstrato, mas, em casos concretos, tem proferido decisões pontuais que reduzem bastante a proteção da liberdade. Na ocasião, defendi que, “em matéria de liberdade de expressão, há um perceptível liberalismo no abstrato e um conservadorismo no concreto“. Não aprofundei a análise, mesmo porque o meu objetivo era apenas levantar uma hipótese de que algumas palavras de legitimação (a exemplo de liberdade e dignidade) tendem a gerar um amplo consenso em um nível abstrato que encobre profundas discordâncias em um nível mais concreto e, muitas vezes, são mobilizadas apenas como placebos argumentativos com o propósito de gerar um impacto psicológico vazio de conteúdo, provocado pela ilusão de consenso conceitual que existe no nível mais abstrato.

Mas a proposta dos autores é um pouco diferente, pois o objetivo é defender que pode haver uma mudança de sentido do uso da palavra em razão de uma mudança do grau de abstração do contexto problemático, gerando uma inconsistência entre o que as pessoas pensam sobre a dignidade em um nível abstrato para o que elas consideram mais próximo do conceito de dignidade um contexto mais concreto.

Para demonstrar que o sentido usual que atribuímos à palavra dignidade humana pode variar conforme o nível de abstração do contexto problemático, eles criaram um cenário de pesquisa baseado no caso do lançamento de anão. Primeiramente, montaram um questionário com duas concepções abstratas de dignidade: uma mais próxima da ideia de autonomia e outra mais próxima da ideia de não-coisificação. Depois, elaboraram duas perguntas concretas baseadas no caso do lançamento de anão, sendo uma mais detalhada e outra menos detalhada, incluindo, no cenário mais concreto, alguns elementos para dar mais realidade ao caso, como o nome, o local e a foto do anão.

A conclusão preliminar, a partir de uma amostragem ainda reduzida de dados coletados, sugere que as pessoas podem ter concepções diferentes de dignidade a depender do contexto. Mesmo aqueles que adotam, em um nível abstrato, uma concepção de dignidade como autonomia podem entender que o anão não tinha o direito de escolher ser lançado e, portanto, a atividade deveria ser proibida. E mesmo aqueles que aceitam, em um nível abstrato, uma concepção de dignidade como não-coisificação podem entender, em um contexto mais concreto, que o anão tinha o direito de escolher ser lançado.

Como os próprios autores informaram que o cenário montado ainda está em construção e que não foram observados os rigores metodológicos das pesquisas experimentais dignos de serem publicados em revistas científicas, acredito que as críticas que a seguir serão lançadas terão um efeito muito mais propositivo (como colaboração para o avanço das pesquisas) do que propriamente de refutação.

Pode-se dizer que, em abstrato (!), concordo com as conclusões gerais defendidas pelos autores no sentido de que há uma inconsistência interna e externa no uso da expressão dignidade e que o seu sentido pode variar conforme o contexto. A minha crítica dirige-se mais a algumas falhas do método adotado. É provável que, mesmo que fossem corrigidas alguns equívocos metodológicos (relacionados ao rigor científico), o resultado da experiência não levaria à conclusão apresentada. Ou seja, não é por meio do experimento por eles realizado que se provará a hipótese de que as pessoas usam o conceito de dignidade de um modo inconsistente. Esse uso inconsistente pode ser demonstrado por outros meios, que não aquela pesquisa em particular.

Vejamos, pois, alguns problemas na pesquisa realizada.

  • O caso escolhido (lançamento de anões) já é demasiadamente conhecido, especialmente no meio jurídico, o que pode gerar interferência de fatores externos estranhos ao escopo da pesquisa. É provável que alguns juristas que participaram da pesquisa já soubessem qual foi o resultado do julgamento da Corte Europeia de Direitos Humanos e tenham sido afetados pelo viés de autoridade. Outros podem saber que o caso se passou na França e, portanto, mesmo quando a variável do local foi alterada para dar mais proximidade ao evento, isso pode não ter tido a influência pretendida. O ideal seria formular um cenário menos conhecido e com maior possibilidade de isolamento das variáveis que se pretende analisar.
  • A diferença entre os dois relatos de caso apresentados não foi de mera abstração/concretude, mas de detalhamento. Os dois casos têm o mesmo nível de abstração. A diferença é que, no segundo caso, foi acrescentado o local, o nome do anão e a foto. Esse ponto pode gerar uma confusão sobre o que os autores pretendem demonstrar. Há dois tipos de inconsistências no uso do conceito de dignidade apontados pelos autores: uma interna e vertical (na mente de um único sujeito pensante), a ser analisada mediante uma comparação entre o conceito abstrato em que o caso concreto não é apresentado e o cenário concreto, em que o caso é de descrito. E outra inconsistência horizontal e intersubjetiva, em que são comparadas as respostas entre um caso concreto menos detalhado e outro caso concreto mais detalhado, a partir das respostas dadas por várias pessoas. Seria melhor que cada análise fosse objeto de uma pesquisa independente, para não gerar confusão na interpretação dos dados.
  • Além disso, quando se volta para a comparação entre o cenário menos detalhado e o cenário mais detalhado, o que está em jogo não é o uso do conceito de dignidade, mas a análise dos fatores circunstanciais que podem influenciar o julgamento. O fato de a apresentação do caso ser mais ou menos detalhada entra mais no campo da persuasão e do poder das circunstâncias do que na compreensão do conceito de dignidade.
  • Em experimentos de persuasão, já existe uma ampla demonstração de que pequenos detalhes podem ter grandes impactos no convencimento das pessoas. Como os próprios autores mencionaram, a personalização da vítima afeta bastante a forma como as pessoas podem intuir a solução do problema. O nome e a foto podem ter sido mais decisivos para o resultado do que o próprio sentido de dignidade pressuposto pela pessoa que respondeu o questionário. Aliás, há alguns estudos que demonstram que até a fonte utilizada no texto pode gerar algum tipo de viés!
  • O experimento realizado está mais relacionado com o processo de convencimento do que propriamente com o uso do conceito de dignidade humana, até porque o termo foi inserido nos questionários pelos próprios pesquisadores e não pelos que participaram da pesquisa. Explicando melhor: se o objetivo da pesquisa era verificar qual o uso comum da expressão dignidade humana em um discurso jurídico, deveria ser montado um cenário em que as próprias pessoas que participam da experiência usam a expressão de um modo espontâneo, a fim de verificar como a expressão é mobilizada em um contexto de justificação. No estudo realizado, o que estava em jogo era o julgamento do caso e não a sua justificação. Logo, a rigor, o uso da palavra dignidade teve pouca ou nenhuma influência para a solução do problema. Se ao invés de dignidade tivessem sido usadas expressões como integridade ou respeito, provavelmente o resultado seria equivalente.
  • Outro fator que impede a inferência realizada pelos autores é que o caso do lançamento de anão envolve diversos valores importantes, como a liberdade profissional, o acesso ao emprego e a estigmatização dos anões, que podem afetar o julgamento, independentemente do conceito adotado de dignidade. Logo, não é apenas o sentido de dignidade que entra em jogo (aliás, é praticamente impossível pensar em uma situação onde seja possível isolar a ideia de dignidade de outros valores que podem influenciar o julgamento).
  • Há um outro problema relacionado à formulação das perguntas abstratas sobre o conceito de dignidade que talvez seja o ponto crítico mais relevante. O propósito dos autores, no primeiro questionário (de perguntas abstratas), era, em última análise, verificar se as pessoas associavam mais a ideia de dignidade com a noção de autonomia ou com a noção de não-coisificação. A dignidade costuma ser usada nos dois contextos indistintamente e, na maioria das situações, não há contradição entre essas duas concepções de dignidade. O próprio Kant, que é o pai da ideia, tratava a dignidade ora como autonomia, ora como não-coisificação. O problema é que, algumas vezes, em situações concretas, como no caso do lançamento de anão, a noção de dignidade como autonomia pode se chocar com a noção de dignidade como não-coisificação. E todos nós sabemos que o choque concreto de valores abstratos nem sempre é solucionado de forma apriorística, podendo sim mudar conforme o contexto. Em alguns casos, a dignidade como autonomia pode ser considerada mais importante do que a dignidade como não-coisificação e vice-versa. Então, o que está em jogo não é saber qual o melhor uso da ideia de dignidade (seja como autonomia, seja como não-coisificação), mas qual dessas noções deve prevalecer naquela situação concreta de choque, e isso não resolve o problema do uso da palavra dignidade, nem demonstra necessariamente uma inconsistência interna entre os usos da dignidade por um mesmo sujeito. Alguém que prefira uma concepção abstrata de dignidade como autonomia pode entender que, no caso do lançamento de anão, a autonomia não é plenamente autêntica e, por isso, deveria prevalecer uma solução mais próxima da proibição de tratar o outro como objeto. Do mesmo modo, alguém pode considerar que a dignidade significa não coisificar o ser humano, mas pode entender que, no caso do lançamento de anão, a liberdade de escolha deve prevalecer, dada a necessidade de sobrevivência daquela pessoa ou até mesmo o caráter lúdico da atividade. Não há, necessariamente, inconsistência nisso.
  • O experimento, a meu ver, pode demonstrar que uma determinada concepção abstrata de dignidade não leva necessariamente a um resultado previsível de um julgamento concreto onde aquela concepção, se fosse aplicada de um modo esperado, levaria a uma solução diferente. Algumas vezes, essa discrepância pode ser creditada à inconsistência do sujeito. Outras vezes, pode ser creditada à presença de outros fatores que podem influenciar o resultado do julgamento concreto (a meu ver, no caso do lançamento de anão, é isso que ocorre na maioria das vezes). Essa é a principal crítica.

Era isso. Apesar dos problemas acima apontados, não se pode deixar, novamente, de reconhecer o grande mérito do estudo em incentivar um método de análise empírica e experimental sobre problemas jurídicos importantes (algo ausente na nossa tradição). É caminhando que se aprende a caminhar, e os primeiros passos são mesmo sempre meio desajeitados, ou seja, são essas primeiras incursões que poderão levar ao desenvolvimento dos métodos de pesquisa em solo brasileiro.

Liberdade de Expressão e Crítica aos Homossexuais

Eis um debate polêmico e interessante. Como distinguir o direito legítimo de crítica a um determinado grupo do preconceito juridicamente censurável? A questão não é nova no blog e já tive a oportunidade de citar um caso muito parecido ao que vou tratar aqui, mas que ocorreu nos EUA, onde um aluno foi punido com a suspensão, na escola em que estudava, por haver usado uma camisa com os dizeres “homossexualidade é uma vergonha” (clique aqui).

O caso que aqui vou narrar aconteceu em terras brasileiras. No interior de São Paulo, um grupo evangélico patrocinou o seguinte outdoor:

Essa publicidade causou indignação em grupos de defesa dos homossexuais, sobretudo porque foi divulgada a poucos dias da Parada Gay que ocorrerá na cidade e colocada em pontos próximos ao local do evento. Assim, a mensagem foi considerada uma provocação direta aos homossexuais, que pretendem ingressar com ação judicial para retirá-la. (ver a notícia completa na página do G1, enviada pelo meu amigo Leonardo dos Anjos).

Questiono aos leitores: qual a melhor solução para o caso? Os outdoors devem ser retirados ou não? Que valor há de prevalecer?

 

Mais um problema de eficácia horizontal

Saiu no Migalhas:

No último dia 3, informamos que o tradicional clube Paulistano iria apreciar o pedido de um sócio, médico, que quer ter como co-titular um companheiro, com quem agora vive (Migalhas 2.242). Dizíamos até que pelas piscinas e restaurantes do clube esse é o assunto mais comentado. Pois bem, sem não acalorado debate, o Conselho Deliberativo do clube, em reunião realizada no último dia 26/8, não acolheu o pedido do sócio. Assim, o clube que aceita que um casal, mesmo não casado no papel, tenha título dependente, não permitiu que isso se dê com pessoas do mesmo sexo. Segundo o clube, a decisão se deu por falta de amparo estatutário.

Holocausto no seu prato?

Esse é daqueles casos que funde a cabeça de qualquer um. Pegue todas as grandes polêmicas da teoria dos direitos fundamentais e jogue tudo num só processo. Vai resultar no caso abaixo. Envolve eficácia horizontal, liberdade de expressão em comerciais, direito dos animais, dignidade humana, direito à memória… Enfim, uma salada digna de uma análise mais profunda (quem sabe?).

O caso, em síntese, foi o seguinte: uma organização de proteção aos animais, a PETA (People for the Ethical Treatment of Animal), fez uma campanha publicitária bastante de mau-gosto, comparando a matança de animais para alimentação dos dias de hoje com o holocausto judeu. No google image, é possível encontrar alguns banners da propaganda: aqui, aqui e aqui. Detalhes sobre a campanha podem ser lidos aqui ou aqui.

Houve ação judicial, proposta pelo Conselho Central dos Judeus na Alemanha,  pedindo a proibição da referida campanha publicitária na Alemanha. A PETA perdeu nas instância originárias e recorreu para a Corte Constitucional alemã.

A decisão, proferida ontem pela Corte Constitucional alemã, foi no sentido da proibição da propaganda. Argumentou-se que houve violação à dignidade dos judeus que, no caso concreto, deveria prevalecer. (A decisão, em alemão, pode ser lida aqui).

E aí? O que acham?

Eis a notícia:

Berlim, 26 mar (EFE).- O Tribunal Constitucional alemão proibiu a veiculação de uma campanha publicitária da organização de proteção dos animais Peta que compara as condições da criação extensiva de gado com as das vítimas do Holocausto nos campos de concentração nazistas.

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A sentença divulgada hoje proíbe a Peta de continuar com a campanha iniciada em 2004 com o slogan “O Holocausto em seu prato”, na qual comparava imagens de prisioneiros de campos de concentração nazistas vivos e mortos com as de animais enjaulados ou acorrentados em estábulos. Desta forma, o tribunal ratifica uma sentença anterior de uma corte da cidade de Berlim após um processo apresentado pelo Conselho Central dos Judeus na Alemanha e contra o qual a Peta tinha apelado. Embora considerem que a campanha não atenta contra a dignidade humana, os magistrados do Tribunal Constitucional alemão confirmam em sua sentença que os anúncios violam os direitos de personalidade e imagem dos judeus na Alemanha. Segundo os juízes do tribunal, de forma similar à negação do Holocausto, crime tipificado na Alemanha, a campanha da Peta “representa um grave atentado também contra a personalidade dos judeus de hoje”. EFE

Fonte: http://br.noticias.yahoo.com/s/26032009/40/mundo-proibida-campanha-publicitaria-compara-vitimas.html

Existe um direito fundamental de dispor sobre o próprio corpo?

Como os últimos posts foram bem interativos – e isso robustece o debate – vou prosseguir  nessa mesma linha, apresentando um dos pontos mais tormentosos dentro da idéia de liberdade, que é o direito de dispor sobre o próprio corpo. Já dá pra imaginar os problemas éticos daí decorrentes, sendo a eutanásia talvez o mais conhecido.

A pergunta que faço é: o artigo 13 do Código Civil – “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes” – é constitucional?

Aqui vai minha opinião, sujeita a críticas e amadurecimento:

O ser humano, por ser um animal com consciência, inteligência, memória e habilidade de comunicação, desenvolveu uma capacidade inata de tomar decisões racionais. É por isso que se diz que a autonomia da vontade ou liberdade de escolha é uma das notas mais importantes da dignidade da pessoa humana.

A autonomia da vontade é a faculdade que o indivíduo possui para tomar decisões na sua esfera particular de acordo com seus próprios interesses e preferências. Isso significa basicamente o reconhecimento de um direito individual de fazer tudo aquilo que se tem vontade, desde que não prejudique os interesses de outras pessoas. Para ser mais claro: cada um deve ser senhor de si, agindo como um ser responsável por suas próprias escolhas, especialmente por aquelas que não interferem na liberdade alheia.

Assim, por exemplo, cabe a cada indivíduo decidir por si mesmo que lugares que deseja freqüentar, qual a religião que deve acreditar, com quais pessoas queira se reunir ou se associar, qual a profissão que deseja seguir, quais os livros que pretende ler, e assim por diante. Daí os diversos direitos de liberdade: de locomoção, de religião, de associação e reunião, de profissão, de expressão etc. Logo, o valor da autonomia de escolha é inestimável, já que inúmeros direitos fundamentais decorrem diretamente desse princípio.

A proteção da autonomia da vontade tem como objetivo conferir ao indivíduo o direito de auto-determinação, ou seja, de determinar autonomamente o seu próprio destino, fazendo escolhas que digam respeito a sua vida e ao seu desenvolvimento humano, como a decisão de casar-se ou não, de ter filhos ou não, de definir sua orientação sexual etc. O outro lado da moeda é justamente a noção de auto-responsabilidade, indicando que cada ser humano deve ser responsável por seus próprios atos.

No campo teórico, um dos principais defensores da autonomia privada foi Stuart Mill, que no livro “Ensaio sobre a Liberdade”, escrito durante o Século XIX, sustentou que sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano.

Dentro dessa lógica, não cabe ao Estado, por exemplo, impedir que uma pessoa ultra-religiosa pratique atos de autoflagelação. Em princípio, pode ser um ato irracional e contrário às convenções sociais, que está certamente violando a integridade física daquele que o pratica. Mas a pessoa que opta por fazer isso acredita firmemente – de forma sincera e autêntica – que a autoflagelação lhe dará um conforto espiritual que compensará, no final das contas, o sacrifício. Logo, é uma escolha que lhe diz respeito, por mais irracional que seja.

Mais um exemplo: um militar que resolva participar de um treinamento de guerra para fazer parte da tropa de elite das forças armadas sabe que passará por inúmeras privações biológicas (fome, frio, calor, sede etc.) e psicológicas, podendo, em alguns casos, chegar até mesmo a sofrer violências físicas. No entanto, ele sabe que, quanto mais rigoroso for o treinamento, melhores serão suas condições de participar de uma guerra e maior será a sua auto-estima e reputação perante os demais membros do grupo social em que ele vive. Logo, caberá a ele sopesar os valores conflitantes e decidir se quer ou não participar do treinamento.

Do mesmo modo, se uma pessoa plenamente capaz resolve colocar um “piercing” ou então fazer uma tatuagem, está no legítimo exercício do direito fundamental de dispor do próprio corpo. Guardadas as devidas proporções, é uma decisão semelhante àquela tomada por uma mulher que aceita se submeter a uma intervenção cirúrgica meramente estética, como o aumento dos seios, por exemplo. Essa mulher certamente sabe dos riscos que está assumindo, sabe que haverá uma violação a sua integridade física, sabe que poderão existir complicações cirúrgicas e sabe que terá imenso sofrimento após a cirurgia. Se ainda assim resolve fazer a plástica, o Estado, em principio, não pode impedir.

Por isso, é de discutível constitucionalidade, pelo menos se interpretado à risca, o artigo 13 do Código Civil: “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Na verdade, toda pessoa que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais e tenha condições concretas e autênticas de tomar por si próprio as decisões que lhe dizem respeito tem o direito fundamental de dispor do próprio corpo da forma como bem entender, desde que não prejudique o direito de terceiros, não podendo o Estado, ressalvadas algumas situações bem peculiares, interferir no exercício desse direito.

O importante, para verificar a validade do ato, é saber se o exercício da liberdade de escolha está sendo autêntico. Se essa tomada de decisão for sincera, o máximo que o Estado pode fazer é desenvolver mecanismos para que o indivíduo tenha perfeita consciência da conseqüência do seu ato, mas jamais interferir na sua escolha, sobretudo quando a decisão não atingirá a dignidade de outras pessoas.


XLI: O “Inciso Esquecido” do Art. 5o da Constituição – Por Adriano Costa

Que o Estado Democrático de Direito em que vivemos é informado pelo valor fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), todos – especialmente os leitores do blog – de há muito sabemos.

Que nosso legislador constituinte dedicou atenção toda especial aos direitos fundamentais, é igualmente fácil constatar: basta a simples leitura do extenso rol de comandos inseridos no art. 5º (nada menos que setenta e oito!) e nos demais artigos do Título II da Lei Maior.

O que não se explica facilmente é o porquê do lamentável oblívio ao qual foi relegado, desde sempre, o inciso XLI do art. 5º, cujo incisivo texto determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”.

Chega a estarrecer que doutrinadores de certo renome (decerto, não no Direito Constitucional!) ainda defendam que o dispositivo em tela carece de eficácia jurídica, em razão da inexistência de norma específica para regulamentá-lo.[1] Nesse sentido opinou Sérgio Pinto Martins, para chegar à “brilhante” conclusão de que “não há impossibilidade da dispensa do doente de AIDS com fundamento na citada norma constitucional, que não é auto-aplicável”.[2]

Tenho como grave equívoco, dentro de um contexto hermenêutico-constitucional de máxima concretização dos direitos fundamentais, considerar-se que o inciso XLI é destinado apenas ao legislador. Seu significado é muito mais abrangente, pois reclama também de Executivo e Judiciário o respeito às liberdades civis. Mais do que isso, pode-se dele extrair o fundamento positivo dos deveres de proteção impostos ao Estado em prol dos direitos fundamentais – o que não é pouco!

Na jurisprudência do STF, todavia, poucos são os decisórios que se reportam de modo expresso a esse dever estatal de proteção – e nenhum, certamente, com amparo no inciso XLI. A doutrina, de hábito, lembra a Intervenção Federal nº 114/MT,[3] em que a corte vislumbrou omissão ilícita do Estado-Membro em evitar o linchamento de três suspeitos de crime na cidade de Matupá; em “A Constituição e o Supremo”, seleção de arestos disponível no site da corte, ao dispositivo em foco corresponde trecho da ementa do célebre caso “Ellwanger” (que, entretanto, é muito mais lembrado à luz do XLII, que repudia o racismo).

A partir do inciso XLI, a mensagem que a Constituição exprime é, na essência, que “o Estado protegerá os direitos fundamentais de qualquer violação, seja de natureza civil ou penal, quer provenha do próprio Poder Público ou de particulares”. Fosse assim redigido, o preceito certamente ocuparia lugar de honra na dogmática jusfundamental – eliminando, inclusive, a já superada discussão sobre o efeito horizontal. Ora, seria a redação atual assim tão substancialmente diferente, a ponto de subtrair-lhe todo o protagonismo devido no âmbito do art. 5º? Entendo que não.

Nesse aniversário de 20 anos de nossa Lei Maior, faço votos para que os aplicadores do direito descubram esse “gigante adormecido” no seio do texto magno, essa ferramenta tão pouco utilizada na defesa dos direitos fundamentais, e possam dignificá-lo com a grandeza jurídica a que faz jus.


[1] No campo penal, a Lei 7.716/89 definiu os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor. No cível, pelo menos uma lei pode ser apontada como consectária direta do presente inciso: a Lei 9.029/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho.

[2] In: Dispensa do Doente de Aids e Reintegração. Publicada no Juris Síntese nº 69, jan./fev de 2008. Porto Alegre: Síntese, CD-ROM.

[3] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A Evolução da Interpretação dos Direitos Fundamentais no STF. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 375-380.

Independente Futebol Clube: uma defesa da autonomia da vontade

“Não estatize meus sentimentos. Para o seu governo, o meu estado é independente”.

Uma explicação prévia: este post talvez seja um dos mais longos que já escrevi e certamente será um dos mais polêmicos, pois procurei demonstrar a coerência do meu pensamento sobre diversos temas de alta complexidade com base em um único fio condutor. Esse tipo de reducionismo certamente não é desejável. No entanto, adianto que minha intenção, ao escrever o post, não foi construir um edifício argumentativo todo bonitinho e mobiliado em defesa do meu ponto de vista. Quando muito, pretendi apenas tentar fincar uma base sólida num terreno extremamente arenoso, que ainda precisa de muito cimento para se tornar seguro.

Sei que não convencerei a muitos, talvez a maioria. Mas mesmo aqueles que não concordarem com o resultado final da minha argumentação, certamente aceitarão a premissa, que pode ser sintetizada nos belos versos de Renato Russo, na música Baader-Mainhof-Blues, acima transcritos.

Outra explicação prévia: este post estará em constante evolução e, portanto, esta não é a versão definitiva e acabada de meus argumentos. À medida em que meu pensamento for amadurecendo em um ou outro ponto, acrescentarei meu ponto de vista no corpo do texto.

Em defesa da autonomia da vontade

A idéia deste texto não é defender a autonomia da vontade como um valor absoluto nem mesmo como o valor constitucional mais importante de todos, mas tão somente apresentá-lo como um valor importante, nem mais nem menos “fundamental” do que outros valores.

O que me motiva nessa tarefa é saber que, apesar de ser um dos mais relevantes atributos da dignidade humana, a autonomia da vontade tem sido bastante negligenciada pelos teóricos brasileiros.

Na minha ótica, a solução de diversos problemas de alta complexidade jurídica envolvendo os direitos fundamentais passa, necessariamente, por uma correta noção do que seja a autonomia da vontade.

Diga-me qual a força que você confere à liberdade de escolha que te direi qual a sua opinião sobre eutanásia, aborto, homossexualismo, eficácia horizontal, renúncia de direitos fundamentais, só para ficar com alguns exemplos.

Ouso dizer que todos os direitos fundamentais decorrem, em alguma medida, dessa faculdade (alguns, como Virgílio Afonso da Silva, chamariam de competência). Por isso, a autonomia da vontade talvez seja um dos mais importantes atributos da dignidade humana, embora com toda certeza não seja o único, já que ninguém nega que as crianças e os doentes mentais sejam seres dotados de dignidade, apesar de não possuírem capacidade plena de discernimento e, portanto, não poderem exercer livremente a sua autonomia da vontade.

Vou tentar justificar meu ponto de vista.

Em primeiro lugar, vou tentar formular um conceito bem simples de autonomia da vontade. Vamos lá:

Uma definição de autonomia da vontade

Autonomia da vontade é a faculdade que o indivíduo possui para tomar decisões na sua esfera particular de acordo com seus próprios interesses e preferências.

Isso significa basicamente o reconhecimento do direito individual de fazer tudo aquilo que se tem vontade, desde que não prejudique os interesses de outras pessoas. Para ser mais claro: cada um deve ser senhor de si, agindo como um ser responsável por suas próprias escolhas, especialmente por aquelas que não interferem na liberdade alheia.

Esse conceito, sem dúvida, tem um forte apelo individualista. É por isso que os norte-americanos o idolatram tanto. Lá, quem melhor defendeu essa idéia foi Stuart Mill, no livro “Ensaio sobre a Liberdade”, escrito durante o Século XIX.

Mill sustentou que sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano. Para ele, as escolhas pessoais de cada um, desde que tomadas de forma verdadeiramente livre e que não sejam prejudiciais aos interesses dos outros, não devem sofrer interferências indevidas nem do Estado nem da sociedade como um todo.

Aqui no Brasil, por uma série de razões, a autonomia não é tão valorizada quanto nos EUA. Acredito que um dos principais motivos desse fato é a grande desigualdade econômica existente na nossa sociedade. É difícil acreditar que uma pessoa faminta e analfabeta seja completamente livre para tomar decisões importantes a respeito de sua vida sem ser influenciada por outras pessoas mais poderosas.

Por isso, o Estado brasileiro costuma ser mais paternalista do que o normal. Nós precisamos de uma legislação trabalhista para proteger o empregado, de um código para proteger o consumidor, entre outras normas que limitam a autonomia privada para evitar a prática de injustiças contra setores desfavorecidos. Veja bem: não estou criticando esse tipo de lei. Pelo contrário. Acho que elas são extremamente necessárias para equilibrar as forças e permitir que o exercício da autonomia privada se dê com igualdade de armas. O que quero dizer é que, em uma situação ideal, onde não houver desequilíbrio de forças, os cidadãos deveriam ser livres para pactuar entre si da forma como bem entenderem. Numa relação trabalhista ou de consumo esse equilíbrio natural é uma quimera, pelo menos diante da realidade brasileira.

A autonomia da vontade como fundamento dos direitos fundamentais

Afirmei anteriormente que a autonomia da vontade fundamenta praticamente todos os demais direitos. É verdade. A idéia que inspira a proteção da autonomia privada é a de que o Estado deve tratar as pessoas sob o seu domínio como agentes responsáveis e capazes de tomar por si próprios as decisões que lhes dizem respeito. Assim, por exemplo, cabe a cada indivíduo decidir por si mesmo que lugares que deseja freqüentar, qual a religião que deve acreditar, com quais pessoas queira se reunir ou se associar, qual a profissão que deseja seguir, quais os livros que pretende ler, e assim por diante. Daí os diversos direitos de liberdade: de locomoção, de religião, de associação e reunião, de profissão, de expressão etc. Logo, a positivação de inúmeros direitos fundamentais decorrem diretamente dessa idéia.

A autonomia da vontade é tão importante que as crianças de um modo geral sofrem uma série de restrições que as impedem de exercitarem inúmeros direitos fundamentais por lhes faltar a plena capacidade de discernimento. Assim, por exemplo, elas não podem trabalhar (salvo como aprendizes a partir de 14 anos), não podem freqüentar determinados lugares (como boates ou casas noturnas), não podem comprar produtos específicos ainda que lícitos (como cigarros ou bebidas, por exemplo), nem podem ter acesso a determinadas formas de manifestações artísticas destinadas ao público adulto (como revistas, filmes ou peças de teatro que contenham cenas de sexo, por exemplo). Essas restrições são justificadas em razão do fato de que uma criança, em regra, ainda não tem maturidade para exercer, com plenitude, a sua autonomia privada.

No mesmo contexto, pode-se dizer que o exercício da autonomia da vontade pressupõe que o indivíduo, ao tomar as decisões que afetem sua pessoa, esteja de posse de informações claras e corretas, de modo que ele possa conscientemente avaliar entre todas as escolhas possíveis aquela que melhor reflita seu ideal de vida. O direito privado considera que os atos jurídicos praticados com vícios de vontade em razão de erro, dolo, coação etc. podem ser anulados justamente porque a pessoa que foi enganada ou coagida não exercitou sua liberdade de escolha de forma autêntica.

A partir de agora, serão vistas algumas implicações práticas que demonstram a importância da autonomia privada para compreensão de uma série de fenômenos dentro da teoria dos direitos fundamentais.

Autonomia da Vontade e Contracepção

Assim como no Brasil, não há, nos EUA, nenhuma norma constitucional expressa protegendo a autonomia privada. Esse valor decorre essencialmente de uma construção jurisprudencial.

Uma das primeiras vezes em que a Suprema Corte norte-americana reconheceu a existência desse valor foi em 1965, no famoso caso “Griswold v. Connecticut”. Nele, ficou decidido que o poder público não poderia, nem mesmo por lei, proibir a comercialização ou a utilização de anticoncepcionais.

A lógica por detrás desse julgamento é a de que os casais deveriam ser livres para tomar as decisões ligadas à relação matrimonial, inclusive as questões ligadas à procriação, não cabendo ao poder público interferir nessas escolhas.

Aliás, esse entendimento é perfeitamente compatível com o espírito da Constituição brasileira que expressamente estabeleceu que “o planejamento familiar é livre decisão do casal (…) vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (art. 227, §7º, da CF/88).

Em outra oportunidade, tentarei demonstrar que o fundamento utilizado pela Suprema Corte norte-americana, no Caso Griswold, não foi bem a autonomia privada, mas o direito à privacidade. No entanto, o conceito de privacidade adotado pela Suprema Corte dos EUA em muito se assemelha à noção ora desenvolvida de autonomia da vontade.

Autonomia da Vontade e Aborto

Como conseqüência do Caso Griswold, a Suprema Corte dos EUA, em 1973, decidiu o polêmico caso “Roe versus Wade”.

No referido caso, a Suprema Corte norte-americana autorizou, por 7 votos a 2, a prática do aborto em determinadas situações. Basicamente, ficou decidido que: (1) os Estados possuem interesses legítimos em assegurar que a prática do aborto não coloque em risco a vida da mulher; (2) o direito à privacidade abrange o direito de a mulher decidir se interrompe ou não a gravidez; (3) o direito de interromper a gravidez não é absoluta, podendo ser limitado pelos interesses legítimos do Estado em manter padrões médicos apropriados e em proteger a vida humana em potencial; (4) o embrião não está incluído dentro da definição de “pessoa”, tal como usada na décima quarta emenda; (5) antes do fim do primeiro trimestre da gravidez, o Estado não pode interferir na decisão de abortar ou não; (6) ao fim do primeiro trimestre até o período de tempo em que o feto se tornar viável, o Estado pode regular o procedimento do aborto somente se tal regulação se relacionar à preservação da vida ou da saúde da mãe; (7) a partir do momento em que o feto se tornar viável, o Estado pode proibir o aborto completamente, a não ser naqueles casos em que seja necessário preservar a vida ou a saúde da mãe.

O fundamento que se pode extrair do caso Roe é o de que a mulher teria o direito constitucional de controlar seu próprio corpo, de modo que a opção sobre realizar ou não um aborto deveria ser, em princípio, uma escolha íntima e pessoal sua. Porém, ao mesmo tempo, foi reconhecido que o poder público também tem um legítimo interesse em proteger a vida “em potencial” do feto. Desse modo, na tentativa de conciliar os interesses conflitantes, decidiu-se que a liberdade de escolha da mulher somente seria pleno no estágio inicial da gravidez (equivalente aos três primeiros meses após a concepção), pois, quando o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero, a proibição do aborto seria legítima, exceto em algumas situações onde o parto pudesse colocar em risco a vida da mãe. Mesmo que não se concorde com o mérito da decisão, é inquestionável que houve, no caso, uma tentativa de prestigiar a autonomia da vontade da mulher.

Aqui no Brasil, por opção legislativa cuja constitucionalidade até agora não foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal, o aborto é proibido qualquer que seja o estágio da gravidez, exceto em caso de risco de vida da mãe ou quando a gravidez resulta de estupro.

Atualmente, está na pauta de julgamento do STF a questão do aborto de fetos sem cérebro (anencéfalos). Apesar de ser católico e acreditar na vida como um milagre (vide o artigo “O Princípio Antrópico como Justificativa para a Dignidade Humana”), creio que a solução mais compatível com os valores constitucionais é, realmente, a não criminalização do aborto em caso de anencefalia do feto. Na minha ótica, fere a Constituição punir criminalmente uma mulher que, diante de uma pressão psicológica tão grande, opte por interromper a gravidez.

Na ponderação de valores em si (vida do feto versus liberdade de escolha da mulher), até acho que a vida seja mais importante. Mas, no caso de fetos anencéfalos, a balança está tão equilibrada que punir a mulher seria uma grande injustiça. O melhor é que a escolha recaia sobre aquela pessoa que será a principal afetada por qualquer decisão: a própria gestante.

Por outro lado, para se perceber que não dou um caráter absoluto à liberdade de escolha, acredito que a não-criminalização do aborto em caso de gravidez resultante de estupro pode, em dadas situações, significar uma proteção insuficiente da vida do feto, especialmente naqueles casos em que a gravidez já se encontra em estado avançado e que exista viabilidade de vida extra-uterina. Nessa situação, ou seja, quando o feto já apresenta sinais que demonstram que ele pode sobreviver fora do útero, defendo que a liberdade de escolha da mulher deveria ser restringida em favor da vida. Essa questão ainda não foi judicializada aqui no Brasil.

Autonomia da Vontade e Opção Sexual

Outra questão interessante envolvendo a autonomia da vontade diz respeito à opção sexual. Até que ponto o Estado pode criminalizar a opção sexual do indivíduo?

Curiosamente, até o ano de 2003, a Suprema Corte norte-americana entendia que os Estados-membros seriam livres para criminalizar a sodomia e o homossexualismo. Era um posicionamento totalmente incoerente com a lógica adotada nos casos Griswold e Roe. Para ser mais direto: era uma solução hipócrita.

Para alegria geral da comunidade “raimbow”, em 2003, a Suprema Corte norte-americana, apesar de ser formado por juristas extremamente conservadores, mudou de opinião e anulou uma lei do Texas que punia criminalmente a prática do homossexualismo. Isso ocorreu no caso “Lawrence vs. Texas” (2003).

Na decisão, prevaleceu o argumento de que a sexualidade é uma opção íntima e pessoal que diz respeito a cada indivíduo em particular, sendo vedado ao Estado interferir nessa escolha quando tomadas consensualmente por pessoas adultas e plenamente capazes, já que, “no coração da liberdade”, está o direito de definir o próprio conceito de existência. Em outras palavras: “os adultos podem escolher determinado relacionamento na intimidade das suas casas e das suas vidas privadas e, ainda assim, manterem a sua dignidade como pessoas livres. Uma vez que a sexualidade se manifesta na conduta íntima com outra pessoa, essa conduta é apenas um elemento do comprometimento estável. A liberdade protegida constitucionalmente permite aos homossexuais fazerem esta escolha”. A decisão, na íntegra e em português, pode ser lida aqui.

Dentro dessa mesma lógica, a Suprema Corte norte-americana deve apreciar, em breve, a questão envolvendo o casamento gay.

No Caso Goodridge, julgado em 2003 pela Suprema Corte de Massachussetts, ficou decidido, por 4 votos a 3, que pares do mesmo sexo podem obter certidões de casamento a partir de maio de 2004. A polêmica decisão vale apenas para aquele Estado norte-americano.

Concordo plenamente com a decisão. Na verdade, sob uma ótica racional, nada justifica a proibição do casamento gay. A opção sexual de cada um não diz respeito ao Estado. Impedir que pessoas do mesmo sexo mantenham uma relação afetiva e se beneficiem dos mesmos favores legais que os casais entre homens e mulheres possuem significa uma discriminação desproporcional, totalmente incompatível com espírito libertário da atual sociedade pluralista e sem preconceitos que a Declaração de Direitos Humanos, desde 1948, pretendeu estabelecer em todo mundo.

Autonomia da Vontade e Pornografia

Dentro das inúmeras controvérsias geradas pela liberdade de expressão, insere-se a questão de saber se os materiais pornográficos estariam protegidos pela Constituição. Em caso afirmativo, as normas do código penal que punem a comercialização de obras com conteúdo obsceno seriam inconstitucionais.

Nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão tem uma proteção extremamente abrangente, a Suprema Corte decidiu, no caso “Miller vs. California” (1973), que o ato obsceno não desfrutaria de nenhuma proteção constitucional, mas deixou claro que o material com real valor literário, artístico, político ou científico ainda pudesse ser distribuído, mesmo que seu conteúdo fosse considerado como erótico. Trata-se, nitidamente, de uma decisão hipócrita e incoerente com diversas decisões envolvendo a liberdade de expressão daquela mesma Corte. Afinal, lá nos EUA, a liberdade de expressão é um direito preferencial e não há motivo algum para justificar a limitação desse direito constitucional por motivos de conservadorismo moral.

Trazendo o discurso para o direito brasileiro, observa-se que a pornografia é punida no artigo 234 do Código Penal. Perceba que o tipo penal é extremamente contra qualquer tipo de pornografia, proibindo até mesmo “escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”. No parágrafo único do referido artigo, chega-se ao cúmulo de punir qualquer “representação teatral ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter”, bem como as recitações de caráter obsceno!

Particularmente, penso que o tipo penal referido não está em sintonia com o caráter libertário contido na CF/88. Na nova ordem constitucional, a decisão sobre o que ler, ouvir, assistir, escrever, fotografar ou desenhar é uma escolha pessoal do indivíduo, que o Estado não deve se intrometer, salvo em situações excepcionais e tão somente para preservar outros valores constitucionais, dentro do critério da estrita necessidade. Não cabe ao Estado, nem mesmo ao juiz, definir o que tem valor artístico ou que é “pura pornografia”. É o indivíduo, plenamente consciente e eticamente responsável pelas suas escolhas, que deve exercer o juízo crítico e pessoal sobre aquilo que ele considera capaz de lhe engrandecer como ser humano.

Vale ressaltar que defender a proteção constitucional da pornografia não implica dar uma “carta branca” para a exploração sexual de seres humanos. Conforme se afirmou, a proteção que ora se defende decorre principalmente do livre exercício da autonomia privada, que pressupõe a plena capacidade de discernimento e a livre vontade de decidir. Sem esses pressupostos não há que se falar em proteção constitucional.

Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

A idéia de que os direitos fundamentais se aplicam não apenas nas relações entre o cidadão e o Estado (eficácia vertical), mas também nas relações privadas (eficácia horizontal), envolve, no fundo, uma colisão de valores em que, de um lado, estará sempre a autonomia da vontade.

É por isso que não se deve estranhar a doutrina da “state action” vigente nos EUA. Conforme se viu, os EUA valorizam sobremaneira a autonomia da vontade. Por isso, eles negam completamente a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, salvo se houver lei expressamente prevendo essa aplicação ou então se o agente privado estiver exercendo uma função estatal.

Entre nós, prevalece o entendimento bem mais favorável à incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, independentemente de lei dispondo a respeito. É a chamada eficácia direta.

Isso ocorre, sobretudo, em razão da desigualdade de forças já mencionada. Nem sempre as relações privadas serão 100% simétricas. Aliás, na maioria das vezes, haverá um agente privado com muito mais poder econômico tentando usar todo tipo de influência para lucrar à custa da parte mais fraca. Em regra, quem está em condições de inferioridade não consegue exercer a liberdade de escolha com plena autonomia. Daí porque é importante aceitar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais como forma de limitar os poderes privados.

E mesmo numa relação plenamente simétrica, não se deve afastar totalmente a possibilidade de incidência dos direitos fundamentais, sobretudo quando o valor constitucional em jogo seja de tal modo relevante que a sua limitação mereceria um repúdio do Estado. Como se disse, no final, tudo vai desembocar numa ponderação de valores.

Autonomia da Vontade e Renúncia de Direitos Fundamentais

Finalmente, um dos pontos mais delicados. A renúncia de direitos fundamentais.

Nove entre dez juristas afirmam que os direitos fundamentais são indisponíveis e irrenunciáveis. Discordo.

Renunciar e até mesmo negociar a direitos fundamentais é algo que ocorre com bastante freqüência. Na verdade, não permitir que uma pessoa, com plena capacidade de discernimento e livre de qualquer tipo de pressão, negocie ou renuncie a direitos fundamentais é violar a sua autonomia da vontade.

Logicamente, somente será possível aceitar uma renúncia de direitos fundamentais quando a pessoa estiver realmente em condições psicológicas de tomar uma decisão livre de pressões e com plena capacidade de discernimento. Um trabalhador, que no desespero para se manter no emprego, aceite trabalhar vinte horas por dia, sem direito a férias ou descanso, ganhando menos do que um salário mínimo, não está decidindo livre de pressões. Não há, aqui, verdadeira liberdade de escolha, razão pela qual é razoável não aceitar a renúncia.

A renúncia a um direito fundamental somente pode ser proibida quando o exercício da autonomia privada não for autêntico.

Por isso, é plenamente válida a regra que criminaliza a negociação de partes do corpo humano. Um sujeito que resolva vender uma parte do seu corpo (um rim, por exemplo) certamente não está realizando essa escolha com tranqüilidade de espírito. Provavelmente, a decisão de vender um rim é decorrente de graves privações financeiras, não havendo aí plena capacidade de discernimento. Por isso, a lei que proíbe o comércio de órgãos humanos deve ser considerada válida.

Por outro lado, dentro desse mesmo contexto, seria desproporcional, na minha ótica, punir alguém que optasse por vender, por exemplo, seus cabelos, já que a violação à integridade física é mínima, devendo prevalecer, no caso, a autonomia da vontade. Aliás, por incrível que pareça, existe um mercado intenso de compra e venda de cabelos para fabricação de perucas.

No fundo, a discussão em torno da possibilidade de renúncia de direitos fundamentais vai desemborcar, mais uma vez, no sopesamento de valores, onde, de um lado, estará a autonomia da vontade e, do outro, o direito a ser renunciado. Em alguns casos, prevalecerá a autonomia da vontade; em outros, o direito fundamental em jogo, conforme a importância de cada um desses valores no caso concreto. Geralmente, aceita-se com mais facilidade a renúncia de direitos fundamentais de cunho patrimonial. Já os direitos mais ligados à dignidade humana, como o direito à vida e à integridade física e moral, são bem menos flexíveis, mas ainda assim podem ceder em determinadas situações.

Observe, por exemplo, um esporte como a luta de boxe. Quase sempre, a luta ocorre com o consentimento dos envolvidos, ou seja, os lutadores estão ali por que querem, num exercício claro da autonomia da vontade. Por outro lado, é típico do esporte que ocorra lesão à integridade física dos esportistas. Mesmo assim, ninguém ousaria defender a proibição do esporte, nem a punição dos lutadores ou mesmo dos empresários que exploram o boxe. Aliás, há até mesmo um estímulo ao esporte, com patrocínios públicos e privados para aqueles que se dedicam a essa atividade.

O importante, para verificar a proporcionalidade do ato, é saber se o exercício da liberdade de escolha está sendo autêntico. Se essa tomada de decisão for sincera, o máximo que o Estado pode fazer é desenvolver mecanismos para que o indivíduo tenha perfeita consciência da conseqüência do seu ato, mas jamais interferir na sua escolha, sobretudo quando a decisão não atingirá a dignidade de outras pessoas.

Não cabe ao Estado, por exemplo, impedir que uma pessoa ultra-religiosa pratique atos de autoflagelação. Em princípio, pode ser um ato irracional e contrário às convenções sociais, que está certamente violando a integridade física daquele que o pratica. Mas se a pessoa que opta por fazer isso acredita firmemente – de forma sincera e autêntica – que a auto-flagelação lhe dará um conforto espiritual que compensará, no final das contas, o sacrifício, não cabe ao Estado embaraçar essa decisão, já que é uma escolha que diz respeito apenas ao indivíduo afetado, por mais irracional que seja.

Mais um exemplo: um militar que resolva participar de um treinamento de guerra para fazer parte da tropa de elite das forças armadas sabe que passará por inúmeras privações biológicas (fome, frio, calor, sede etc.) e psicológicas, podendo, em alguns casos, chegar até mesmo a sofrer violências físicas. No entanto, ele sabe que, quanto mais rigoroso for o treinamento, melhores serão suas condições de participar de uma guerra e maior será a sua auto-estima e reputação perante os demais membros do grupo social em que ele vive. Logo, caberá a ele sopesar os valores conflitantes e decidir se quer ou não participar do treinamento, sem prejuízo da punição dos organizadores do evento, caso fique demonstrada a prática de excessos criminosos.

Do mesmo modo, se uma pessoa plenamente capaz resolve colocar um “piercing” ou então fazer uma tatuagem, está no legítimo exercício do direito fundamental de dispor do próprio corpo. Guardadas as devidas proporções, é uma decisão semelhante àquela tomada por uma mulher que aceita se submeter a uma intervenção cirúrgica meramente estética, como o aumento dos seios, por exemplo. Essa mulher certamente sabe dos riscos que está assumindo, sabe que haverá uma violação a sua integridade física, sabe que poderão existir complicações cirúrgicas e sabe que terá imenso sofrimento após a cirurgia. Se ainda assim resolve fazer a plástica, o Estado, em principio, não pode impedir.

Por isso, é de discutível constitucionalidade, pelo menos se interpretado à risca, o artigo 13 do Código Civil: “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Na verdade, toda pessoa que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais e tenha condições concretas e autênticas de tomar por si próprio as decisões que lhe dizem respeito tem o direito fundamental de dispor do próprio corpo da forma como bem entender, desde que não prejudique o direito de terceiros, não podendo o Estado, ressalvadas algumas situações bem peculiares, interferir no exercício desse direito.

Eutanásia

Dentro desse contexto, já se pode intuir qual minha opinião a respeito da eutanásia. Entendo que a solução mais compatível com os valores constitucionais é que o Estado autorize a eutanásia voluntária, ou seja, aquela em que o sujeito expressamente manifesta seu desejo de não mais viver, mas, por razões físicas, não pode realizar a sua vontade. Parece-me que a decisão de como e quando morrer é uma das ‘mais íntimas escolhas pessoais que uma pessoa pode fazer na vida’, uma escolha que é o centro da dignidade e autonomia. Na minha ótica, fere a Constituição não permitir que alguém, diante de uma pressão psicológica e de um desgosto de viver tão grande, opte por abreviar o seu sofrimento.

Era isso. Como se disse, este post estará em constante evolução adaptativa, razão pela qual peço, se possível, comentários e críticas dos leitores.

Para aprofundar:

As idéias acima possuem uma forte influência do pensamento de Ronald Dworkin, em especial dois livros: “A Leitura Moral da Constituição” e “Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais”, ambos publicados no Brasil pela editora Martins Fontes.

Para finalizar, reproduzo a música que deu origem ao título do post:

“Se a gente está aqui

comendo capim

É porque a gente quer

Se não quiser

Nós somos livres

Independente Futebol Clube!”

Ultraje a Rigor, na música “Independente Futebol Clube”

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