Os Blogs no Banco dos Réus: afasta de mim esse cálice

Por George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional
Blog: direitosfundamentais.net

“Liberdade é passar a mão na bunda do guarda”
Casseta & Planeta

Já virou lugar-comum dizer que os blogs estão revolucionando a forma de se comunicar. A troca de informações nunca foi tão pulverizada, intensa e democrática. Há blogs de humor, de esportes, de direito, de religião. Há blogs de pessoas sem conteúdo, mas também de Prêmio Nobel. Enfim, de tudo muito. Hoje, com um pouco de paciência para separar o joio do trigo, é possível tranqüilamente substituir os meios de comunicação tradicionais pela mídia digital (aqui). Aliás, até mesmo a imprensa convencional já percebeu isso e se sente ameaçada. Tanto é verdade que o Estadão lançou uma pesada campanha contra os blogs, demonstrando que o inimigo existe e é forte.

A revolução dos blogs certamente trouxe inúmeras vantagens. Pessoas comuns tornaram-se quase celebridades na chamada blogosfera, justamente porque encontraram nessa ferramenta uma forma de se comunicar livremente para um número quase infinito de leitores, a um custo baixíssimo, algo inimaginável na mídia pré-internet. Assuntos que costumavam ficar de fora das notícias da imprensa hoje são debatidos com naturalidade. Por exemplo, os podres da mídia, raramente, eram divulgados. Atualmente, existem blogs especializados em criticar a impresa e os jornalistas, levantando questões que até então eram um tabu nos meios de comunicação (aqui, aqui e aqui). O humor negro, que costumava ser excluído das pautas jornalísticas tradicionais, hoje cresce em ritmo exponencial (aqui, aqui e aqui). A crítica política mais ácida, que a grande mídia tinha receio de estimular por medo de retaliações políticas e jurídicas, é feita com muito mais freqüência (aqui). Em países autoritários, onde praticamente não há liberdade de expressão, os blogs tornaram-se um dos instrumentos mais eficazes para criticar o governo (aqui).

Mas nem tudo são flores na blogosfera. Afinal, assim como a vida de Josef Klimber, a internet é uma caixinha de surpresas. E a mão que afaga é a mesma que apedreja, já dizia Augusto dos Anjos.

Se a imprensa tradicional tinha um grande potencial de causar danos à honra de terceiros, os blogs redimensionaram de tal forma a questão que há quem defenda até mesmo o fim da mídia digital ou então a imposição de restrições severas para banir eventuais excessos e abusos. É cada vez mais freqüente, inclusive com o aval do Judiciário, a censura à internet, muitas vezes por questões banais que nitidamente estariam protegidas pela liberdade de expressão. O TSE, por exemplo, chegou a editar uma resolução praticamente proibindo os blogs de políticos durante o período em que a propaganda eleitoral não pode ser realizada!

O objetivo principal deste post é justamente citar alguns casos polêmicos envolvendo essa questão para levantar a bandeira em favor da livre informação na internet. O princípio que inspira essa idéia é um velho chavão: se não pode vencê-lo, junte-se a ele, especialmente quando essa é a melhor solução, independentemente de qualquer coisa.

A primeira vez que ouvi falar em censura na internet foi em 1996 quando a internet comercial brasileira tinha apenas um aninho e ainda era discada.

Uma fã do Vinícius de Moraes desenvolveu um lindo site em homenagem ao Poetinha, disponibilizando poemas e letras de músicas para quem quisesse ler. Inconformados com aquela atitude, os familiares do Poetinha, que eram os titulares dos direitos autorais de suas obras, pediram, através de advogados, que a fã retirasse a home-page do ar. Sem alternativas, a fã deletou a página, colocando no seu lugar um comovente manifesto de protesto contra a atitude da família do poeta e lançou o primeiro manifesto em favor da liberdade de expressão na internet brasileira. Vários “internautas” do mundo inteiro se comoveram com o protesto e resolveram criar, da mesma maneira que a fã, páginas sobre Vinícius de Moraes em diversos países diferentes, divulgando gratuitamente e sem restrições inúmeras poesias. A tentativa dos advogados da família de Vinícius de Moraes foi infrutífera e teve um efeito contrário do esperado. (O caso pode ser lido aqui)

Nessa época, eu ainda estava no segundo ano do curso de direito e acabei fazendo um trabalho acadêmico sobre o assunto (bem fraquinho, por sinal), defendendo a fã do Poetinha, pois, na minha ótica, se não houvesse intuito de lucro, a divulgação da cultura deveria ser livre.

Mas não é sobre a questão dos direitos autorais que quero falar, até porque hoje o problema ganhou uma dimensão bem diferente. Basta dizer que é possível baixar não apenas os poemas e letras de qualquer artista, mas até mesmo os livros inteiros e a discografia completa , através do sistema “peer to peer“, de forma gratuita.

O que quero destacar nesse caso é o espírito colaborativo e corporativo que existe na internet, sobretudo a partir da chamada “Web 2.0“. Se um blog é censurado, pode ter certeza de que surgirão centenas ou milhares de outros blogs reproduzindo a mesma matéria no mundo todo. Não dá pra censurar todos os blogs do mundo!

Outro exemplo que bem demonstra isso ocorreu com o caso “Xô Sarney”.

A Justiça Eleitoral do Amapá mandou tirar do ar um blog por reproduzir a foto abaixo, que mostra uma caricatura do então candidato José Sarney. Por força da decisão judicial, iniciou-se entre inúmeros blogueiros uma campanha que ficou conhecida como “Movimento Xô Sarney”, que se espalhou rapidamente pela internet.

Outro caso mais antigo foi o do site Cocaboa. O Mr. Manson (Wagner Martins), que é o responsável pelo Cocadaboa, gosta de provocar, a começar pela escolha do nome do site. Quando a blogosfera ainda não passava de meia dúzia de sites, o Cocadaboa teve problemas com a Coca-Cola, por utilizar um logotipo parecido com a da famosa marca (clique aqui).

O Cocadaboa também teve problemas com um tal de Marcos Mion. Nesse caso, Mr. Manson amarelou, pois poderia muito bem ter comprado a briga, assim como o Larry Flynt comprou a briga com o reverendo Falwell. Se bem que não posso nem reclamar, pois também já amarelei.

Já que se falou em Cocaboa, não se poderia deixar de mencionar seu arquiinimigo, o site Kibeloco, comandado por Antônio Tabet. O Kibeloco também enfrentou problemas semelhantes, especialmente com a Preta Gil, que era (e ainda é) constantemente alvo de chacotas. O Antônio Tabet, ao contrário do Mr. Manson, teve mais coragem e, apesar das ameaças dos advogados, continuou fazendo brincadeiras pesadas com a celebridade (o trocadilho não foi proposital).

Houve situações mais drásticas ainda. O blog Leite de Pato, que lamentavelmente já saiu do ar, teve problemas com a Polícia Federal quando um leitor incluiu um comentário fazendo apologia a facções criminosas.

Em 2004, o blog “Imprensa Marrom” também passou por problemas semelhantes, tendo sido um dos primeiros blogs brasileiros a ser bloqueado em razão de processo judicial. No caso em questão, o mais curioso é que o problema jurídico teve origem não em razão de um post escrito pelo blogueiro, mas de um comentário deixado por um leitor que supostamente seria ofensivo à honra de um determinado empresário. Vários outros blogueiros denunciaram o caso como um claro exemplo do despreparo do Judiciário para lidar com essas questões e como uma afronta à liberdade de expressão (aqui, aqui, aqui e aqui). O relato do próprio blogueiro censurado pode ser lido aqui.

Houve ainda um caso mais engraçado, envolvendo a Fiat e o Sr. Maritônio, um consumidor insastifeito que resolveu criar um site criticando aquela empresa automibilística e, por conta disso, foi alvo de alguns processos judiciais, inclusive tendo que trocar o site de provedor algumas vezes (aqui e aqui).

Tudo isso sem falar no conhecido caso Cicarelli, que conseguiu a façanha de tirar o Youtube do ar por um dia e no caso Barrichello, que conseguiu excluir todas as comunidades do Orkut que criticavam seu desempenho na Fómula 1.

O que todos esses casos demonstram é que o Judiciário ainda tem muito o que aprender sobre o ciberespaço. Os juízes devem rever seus conceitos sobre a internet e sobre a liberdade de informação que é o signo do território digital. Por isso, faço um apelo aos meus caros colegas juízes: não queiram ser o super-ego da sociedade digital, pois será um tiro no pé na nossa já tão arranhada reputação.

Não quero dizer que os blogueiros devem ser considerados como uma espécie de 007 com licença para ofender à vontade. Qualquer sociedade minimamente evoluída deve ter como base a idéia de responsabilidade. Aquele que causa danos a terceiros tem que responder por seu ato e, sendo o caso, sofrer as conseqüências jurídicas daí decorrentes. A liberdade de expressão também deve ter limites. Mas a banalização da censura é inadmissível, sobretudo em matéria política ou em relação às críticas e aos costumes sociais.

O que se tem notado – analisando a questão sob uma ótica mais jurídica – é um abuso da utilização do artigo 20 do Código Civil brasileiro, que autoriza a limitação da liberdade de expressão em dadas situações. Com base nisso, o Judiciário tem cerceado a livre manifestação do pensamento tão somente para proteger interesses de pessoas públicas que não querem ser criticadas ou então de autoridades e políticos que não querem que escândalos envolvendo a sua pessoa sejam divulgados. Certamente, em situações assim, a liberdade de expressão deveria prevalecer, já que o direito de falar mal das instituições, dos políticos e das celebridades faz parte da essência da democracia (cf. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008).

Acredito – e aqui estou meramente especulando – que o mundo globalizado tenderá a compartilhar os mesmos valores fundamentais no que se refere à liberdade de expressão. E provavelmente, há grande chance de se seguir o modelo norte-americano, já que eles costumam ditar as regras do mundo cibernético.

Lá nos EUA, prevalece o “laissez-faire, laissez-passer” em matéria de liberdade de expressão, ou seja, o Estado não deve intervir nessa seara, salvo em raras ocasiões. Os norte-americanos acreditam fortemente que as idéias ruins e equivocadas devem ser censuradas não pelo Estado, mas pela própria sociedade, através da manifestação natural de repugnância e desprezo, sem necessitar de qualquer repressão jurídica ao pensamento. Para eles, não cabe ao Estado, nem mesmo ao juiz, definir o que é bom ou ruim em termos de idéias. É o indivíduo, plenamente consciente e eticamente responsável pelas suas escolhas, que deve exercer o juízo crítico e pessoal sobre aquilo que ele considera capaz de lhe engrandecer como ser humano. Por isso, tirando situações excepcionais em que a manifestação das idéias pode ocasionar violência (“hate speech“), é totalmente livre a liberdade de expressão, sobretudo para criticar o governo, as pessoas públicas e os costumes.

Com toda certeza, os EUA não irão mudar de opinião em matéria de “freedom of speech”, que para eles constitui motivo de orgulho nacional, só porque um punhado de juízes brasileiros acham criticar político ou brincar com celebridades é ilícito. Certamente, a tendência será o Judiciário verde-amarelo se adequar ao espírito da internet e não o contrário, sob pena de ficarmos isolados do mundo. E se ainda há juízes que pensam que podem controlar o ciberespaço, lamento dizer uma triste verdade:

Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone. You are not welcome among us. You have no sovereignty where we gather” (Manifesto pela Independência do Ciberespaço, escrito por John Perry Barlow em 1996).

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6 comentários em “Os Blogs no Banco dos Réus: afasta de mim esse cálice”

  1. A velha maxima de que o que é bom para os EEUU é bom para o brasil só é aplicada quando é conveniente ao interessado…

  2. A internet vem minando o poder das grandes corporações de mídia há anos.
    O que é maravilhoso!
    As mega-corporações de mídia nunca agiram em prol da sociedade, sempre tomaram partido de seus interesses, completamente desconectadas de seu suposto papel social.
    Quer saber? Não necessitamos mais delas, a sociedade está mostrando na internet que tem uma voz própria e sabe usá-la.
    Parabéns pelo post.

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