Judi(cializ)ar a saúde: mais lenha para a fogueira do debate

banksy-doctor

Lá pelos idos de 2011, assisti, em Curitiba, a uma palestra do juiz Reinhard Gayer, do Tribunal Constitucional Alemão, sobre direitos sociais e reserva do possível. Ao término da palestra, quando se iniciaram os debates (que, infelizmente, não foram disponibilizados no youtube), questionaram-no se, na Alemanha, os juízes costumavam emitir ordens judiciais determinando que o poder público fornecesse medicamentos a uma pessoa doente que estaria a beira da morte. A resposta foi enfaticamente negativa. Seria impensável uma intervenção do Poder Judiciário no sistema de saúde alemão. Logo em seguida, foi perguntado o que um paciente deveria fazer se o hospital se negasse a fornecer o tratamento prescrito pelo médico. Depois de franzir os olhos como se não tivesse entendido a pergunta, o juiz respondeu perplexo: que hospital cometeria tamanha loucura de se negar a fornecer o tratamento prescrito por um médico?

Ao longo de minha vida acadêmica e profissional, dediquei muitas e muitas horas de reflexão para o tema da judicialização da saúde. Vivi várias “fases do D”, conforme ia amadurecendo as ideias. Já tive uma fase de deslumbramento, um tanto quanto romântica e ingênua, em que acreditava que o judiciário poderia ter um papel transformador e concretizador do direito à saúde, tendo como “evento confirmador” o sucesso na política de fornecimento de remédios para portadores de HIV, que foi impulsionada pela justiça nos idos de 1990. Depois, vivi uma fase de decepção, ao perceber os excessos e abusos que podem ser cometidos sob o pretexto de concretização do direito à saúde (como pessoas ricas querendo tratamento de ponta ou pessoas querendo furar filas de transplantes, isso sem falar nas fraudes). Já mais recentemente, passei a sentir um desencanto, ao compreender que as capacidades do judiciário são beeem limitadas nesse processo de efetivação do direito à saúde, havendo muitas situações em que uma comovente decisão judicial vale muito pouco para garantir um tratamento adequado. Depois, comecei a ter muitas dúvidas e uma certa desesperança, por perceber com cada vez mais nitidez que a judicialização pode até piorar o problema da saúde, em vários sentidos. Misturado com tudo isso, uma dose de desespero e desânimo com uma pitada de demência, por se sentir engolido por um sistema caótico, que se agiganta, sem um mínimo de racionalidade.

Diante desse cenário meio desolador, resolvi tentar colocar no papel algumas ideias que já venho adotando em minhas decisões mais recentes e que buscam dar mais unidade e coerência ao sistema de saúde. O pano de fundo talvez seja fruto da lição que extraí daquela palestra lá em 2011: a judicialização da saúde não faz o menor sentido quando o sistema funciona corretamente. O problema é que o sistema falha e, infelizmente, a falha costuma ser estrutural e generalizada. Mesmo assim, parece-me que é preciso repensar o papel da judicialização, pois, a meu ver, a solução judicial deveria mirar o resgate do sistema, ou seja, a sua correção, e não a sua substituição por um sistema paralelo que tende a tornar a situação ainda mais caótica.

Foi com esse espírito que, na preparação de uma palestra que proferi no 4 Congresso Médico e Jurídico, acabei escrevendo um artigo sistematizando alguns pontos de vista que tenho defendido. Disponibilizo aqui o texto preliminar para um debate prévio, antes de enviá-lo à publicação acadêmica. Quem puder contribuir para o debate, sinta-se convidado:

You Can’t Always Get What You Want: repensando a judicialização da saúde a partir do problema do fornecimento de medicamentos

O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI: apenas uma nova onda do verão constitucional?

Quadro do pintor colombiano Fernando Botero

O chamado Estado de Coisas Inconstitucional – ECI tem tudo para se tornar a nova onda do verão constitucional, depois de sua adoção pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347/DF, em que se discute a crise do sistema carcerário (ver informativo 798). Mas será que se trata de apenas mais um modismo passageiro ou há, de fato, algo de valioso a ser extraído dessa novidade?

O conceito de ECI (“Estado de Cosas Inconstitucional“) foi desenvolvido pela Corte Constitucional colombiana no contexto de violações sistemáticas de direitos fundamentais e possui um propósito bastante ambicioso: permitir o desenvolvimento de soluções estruturais para situações de graves e contínuas inconstitucionalidades praticadas contra populações vulneráveis em face de falhas (omissões) do poder público.

Em termos muito sintéticos, ao declarar o Estado de Coisas Inconstitucional, o Judiciário reconhece a existência de uma violação massiva, generalizada e estrutural dos direitos fundamentais contra um grupo de pessoas vulneráveis e conclama que todos os órgãos responsáveis adotem medidas eficazes para solucionar o problema. Nesse sentido, o ECI é uma forma de dizer que a situação está tão caótica e fora de controle que é necessário que todos os envolvidos assumam um compromisso real de resolver o problema de forma planejada e efetiva.

A própria Corte Constitucional colombiana, na decisão T 025/2004, sistematizou seis fatores que costumam ser levados em conta para estabelecer que uma determinada situação fática constitui um estado de coisas inconstitucional: (1) violação massiva e generalizada de vários direitos constitucionais, capaz de afetar um número significativo de pessoas; (2) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir os direitos; (3) a adoção de práticas inconstitucionais a gerar, por exemplo, a necessidade de sempre ter que se buscar a tutela judicial para a obtenção do direito; (4) a não adoção de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos; (6) a existência de um problema social cuja solução depende da intervenção de várias entidades, da adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações e da disponibilização de recursos adicionais consideráveis; (7) a possibilidade de um congestionamento do sistema judicial, caso ocorra uma procura massiva pela proteção jurídica.

A primeira decisão sobre o tema foi de 1997 (SU 559/97), envolvendo uma demanda de professores que questionaram judicialmente a perda de alguns benefícios sociais. Referida decisão, contudo, não traduz a real dimensão do instituto, pois, nesse primeiro caso, o ECI foi mobilizado principalmente como uma ferramenta para evitar a repetição de demandas individuais sobre o mesmo assunto. Como havia vários professores na mesma situação dos demandantes, a Corte optou por declarar o “estado de cosas” contrário à constituição e exigir que fosse construída uma solução uniforme para todos, evitando assim a propositura de várias ações judiciais individuais sobre o mesmo tema.

De qualquer modo, é notório que tal decisão abriu as portas para a superação de um modelo de proteção jurídica de índole individual, onde o Judiciário responde a cada demandante em particular, não podendo ir além dos limites do pedido inicial. Com a declaração do ECI, o comando judicial visa solucionar o problema não só daquelas pessoas que ingressaram com a ação, mas de todos os demais afetados. E mais: são chamados para o processo não apenas os órgãos que estão diretamente envolvidos na violação dos direitos dos demandantes, mas todos aqueles que possam, de algum modo, contribuir para buscar a solução global do problema.

Como se observa, houve, no contexto colombiano, razões de ordem processual para o desenvolvimento do ECI, pois sua função originária, pelo menos no caso acima citado, foi suprir a ausência de um mecanismo jurídico-processual coletivo ou mesmo abstrato de proteção dos direitos fundamentais. A ideia era que, ao constatar a violação generalizada e sistemática de direitos (comprovada pela propositura de diversas ações semelhantes sobre o mesmo tema), o juiz pudesse estender a proteção judicial para todo o conjunto de pessoas afetadas, mesmo que estas pessoas não tivessem ingressado com ações individuais, evitando assim uma sobrecarga do sistema judicial em razão da multiplicidade de demandas repetitivas.

Se o ECI se limitasse a isso, seria desnecessária a sua importação para o Brasil. Afinal, já existem medidas jurídico-processuais previstas na Constituição para a proteção de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. A própria ADPF parece que cumpre essa função a contento. Caso a medida envolva a elaboração de uma norma regulamentadora capaz de viabilizar o exercício do direito, tem-se o mandado de injunção. Em algumas situações de âmbito regional ou local, a ação civil pública também pode ser um instrumento adequado de proteção contra as violações sistemáticas a direitos fundamentais. Além disso, com a súmula vinculante, o STF poderia estender os efeitos de uma demanda individual para todos os que estivessem em situação semelhante, e a decisão seria vinculante também para demais os órgãos do poder público, mesmo que não fossem parte da ação originária.

Porém, com o desenvolvimento jurisprudencial, o ECI, na Colômbia, deixou de ser um mero instrumento para dar uma feição coletiva a uma demanda individual para se tornar uma fórmula mais complexa para a superação de situações de graves e sistemáticas violações de direitos fundamentais, através de um diálogo institucional, onde vários órgãos diferentes atuam em conjunto para resolverem um problema estrutural. E nesse aspecto, o modelo pode ser bastante promissor aqui no Brasil.

Essa evolução jurisprudencial ocorreu, originalmente, em um caso emblemático julgado em 1998 (T 153/98), envolvendo a crise dos presídios, cujos problemas de fundo eram muito semelhantes ao do Brasil (superlotação e privação de direitos). Em uma ação individual interposta por um preso que denunciava violações de seus direitos mais básicos, a Corte ampliou o escopo original da demanda e chegou à conclusão de que o problema não se restringia ao presídio em que o demandante estava, mas abrangia todo o sistema penitenciário colombiano. A partir daí, foram realizadas diversas diligências visando diagnosticar a situação carcerária do país, tendo sido constatada a violação massiva da dignidade dos presos. Esse foi o ponto de partida para a declaração do ECI e estabelecimento de um diálogo institucional entre todas as entidades envolvidas visando solucionar o problema.

Outra relevante ação em que houve a mobilização do conceito do Estado de Coisas Inconstitucional, com a busca de um diálogo institucional visando superar uma massiva e sistemática violação de direitos de um grupo vulnerável, foi no caso T 025/2004, em que se discutia a situação dos migrantes internos (“despazados“), ou seja, das pessoas que foram obrigadas a abandonar seu local de origem por razões da violência provocada pelos conflitos armados e buscaram refúgio em outra localidade dentro do mesmo país.

Esse caso foi um dos casos mais emblemáticos da histórica da Corte Constitucional colombiana e inaugurou, de fato, uma nova fase no processo de superação do Estado de Coisas Inconstitucional, estabelecendo aquilo que pode ser designado por ativismo dialógico, em que a principal função da corte é a de coordenar um processo de mudança institucional através da emissão ordens de “desbloqueio” que costumam emperrar a burocracia estatal e de um processo de monitoramento contínuo sobre as medidas adotadas pelo poder público (RODRIGUEZ GRAVITO E RODRIGUEZ FRANCO, 2010). Assim, ao invés de proferir decisões contendo ordens detalhadas sobre como os órgãos devem agir, a Corte criou mecanismos de desobstrução ou desbloqueio dos canais de deliberação, buscou a coordenação do planejamento e da execução das políticas públicas, desenvolveu espaços de deliberação participativa e estabeleceu incentivos e prazos para avançar na proteção dos direitos. Além disso, a Corte manteve a sua jurisdição sobre o caso para impulsionar o cumprimento de suas ordens, tendo proferido 84 decisões e realizado 14 audiências públicas entre 2004 e 2010, já na fase de execução do julgado, mantendo um diálogo permanente com os órgãos envolvidos.

Esse processo de diálogo institucional é o que se pode extrair de mais valioso do modelo colombiano. A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional é, antes de mais nada, uma forma de chamar atenção para o problema de fundo, de reforçar o papel de cada um dos poderes e de exigir a realização de ações concretas para a solução do problema. Entendida nestes termos, o ECI não implica, necessariamente, uma usurpação judicial dos poderes administrativos ou legislativos. Pelo contrário. A ideia é fazer com que os responsáveis assumam as rédeas de suas atribuições e adotem as medidas, dentro de sua esfera de competência, para solucionar o problema. Para isso, ao declarar o estado de coisas inconstitucional e identificar uma grave e sistemática violação de direitos provocada por falhas estruturais da atuação estatal, a primeira medida adotada pelo órgão judicial é comunicar as autoridades relevantes o quadro geral da situação. Depois, convoca-se os órgãos diretamente responsáveis para que elaborem um plano de solução, fixando-se um prazo para a apresentação e conclusão desse plano. Nesse processo, também são indicados órgãos de monitoramento e fiscalização que devem relatar ao Judiciário as medidas que estariam sendo adotadas.

A linha de ação segue o seguinte esquema: (a) identificação e prova do quadro de violações sistemática de direitos, por meio de inspeções, relatórios, perícias, testemunhas etc. → (b) declaração do Estado de Coisas Inconstitucional → (c) comunicação do ECI aos órgãos relevantes, sobretudo os de cúpula e aos responsáveis pela adoção de medidas administrativas e legislativas para a solução do problema → (d) estabelecimento de prazo para apresentação de um plano de solução a ser elaborado pelas instituições diretamente responsáveis → (e) apresentação do plano de solução com prazos e metas a serem cumpridas → (f) execução do plano de solução pelas entidades envolvidas → (g) monitoramento do cumprimento do plano por meio de entidades indicadas pelo Judiciário → (h) após o término do prazo concedido, análise do cumprimento das medidas e da superação do ECI → (i) em caso de não-superação do ECI, novo diagnóstico, com imputação de responsabilidades em relação ao que não foi feito → (j) nova declaração de ECI e repetição do esquema, desta vez com atuação judicial mais intensa.

Nesse processo, o ideal é que o Judiciário não estabeleça, em caráter impositivo, os meios para a solução do problema, pois quem deve estabelecer o como agir são os órgãos responsáveis pela execução do plano. O papel do Judiciário deve ser o de buscar o engajamento de todos na resolução do problema e criar obrigações de resultado, estabelecendo parâmetros para caracterizar a superação do ECI e adotando os mecanismos processuais para pressionar os agentes estatais a cumprirem a política pública elaborada pelos próprios órgãos envolvidos.

Há alguns princípios-guias a orientar o nível da intervenção judicial. O primeiro refere-se ao grau da inação dos órgãos estatais. Quanto maior for a situação de abandono e de descaso com a solução do problema por partes dos órgãos competentes maior será a intensidade da atuação judicial. O segundo está relacionado à vulnerabilidade das pessoas envolvidas. Quanto maior for o grau de vulnerabilidade das pessoas afetadas (em razão da privação de direitos e incapacidade de articulação política) maior será a necessidade de uma atuação judicial mais rigorosa. Outro princípio importante relaciona-se à essencialidade do direito afetado: quanto maior for a essencialidade daquele (do ponto de vista do respeito e proteção da dignidade), maior deverá a busca pela sua implementação. Em todo caso, a atuação judicial deve mirar um diálogo para que a solução do problema seja construída pelos próprios órgãos responsáveis. Quanto mais sincero e efetivo for o engajamento dos demais órgãos para a solução do problema, menor deve ser a intervenção judicial.

É provável que os demais poderes vejam nisso uma intromissão indevida do Judiciário nos assuntos de governo. Afinal, a solução, com mais ou menos intensidade, exige uma alocação de recursos humanos e financeiros que pode afetar a gestão administrativa, além de interferir na conveniência e oportunidade legislativas. Porém, a atuação judicial não é motivada apenas pela inação dos demais poderes, mas sobretudo pela constatação de que está ocorrendo uma violação sistemática dos direitos, que, de algum modo, reflete não só um desrespeito à constituição, mas afeta a própria funcionalidade da atividade judicial. Ou seja, a rigor, toda pessoa prejudicada pela falha na prestação dos serviços públicos poderia ingressar com uma ação judicial para resolver o seu problema particular e, obviamente, os juízes seriam obrigados a proferir decisões para proteger o demandante. Pela fórmula tradicional de tutela em situações assim, a solução se daria por meio de emissão de ordens pontuais para violação concreta e específica de um determinado direito, o que não parece ser adequado, pois, além de gerar a sobrecarga de trabalho, o problema persistiria num nível macro. Por isso, para evitar soluções fragmentadas e assistemáticas, proferidas caso a caso, busca-se por meio do ECI uma solução orquestrada de várias entidades distintas, sob a batuta judicial. Essa união de todos os órgãos que, de fato e de direito, podem fazer a diferença seria a melhor forma para tentar superar o estado de coisas inconstitucional em sua totalidade.

De certo modo, o modelo do ECI pode ser até útil para os demais poderes, na medida em que pode evitar a pulverização de soluções tópicas em muitos níveis diferentes que, sem dúvida, atrapalhariam a gestão do sistema. Ou seja, se o ECI for declarado, e o plano de ação elaborado e iniciado, os órgãos envolvidos poderiam, em tese, ter um maior controle da situação, favorecendo a racionalidade no processo decisório. Hoje, como qualquer situação de desrespeito à constituição é judicializada de forma isolada, é impossível alcançar soluções sistematizadas, reinando um verdadeiro caos que pode até aumentar o quadro de inconstitucionalidade. Basta ver o exemplo da judicialização da saúde, em que as microsoluções (caóticas) impedem qualquer planejamento das macrosoluções (sistemáticas). Uma declaração de ECI em matéria de saúde, com a apresentação de um plano de solução global, minimizaria o caos em que se vive hoje, onde qualquer paciente ingressa com ações judiciais para pedir qualquer remédio, inviabilizando a construção de um plano racional de longo alcance.

Por fim, uma observação mais crítica, com um tom realista. Como se nota, o ECI é um instituto bastante ambicioso, já que, por meio dele, busca-se resolver pronta e eficazmente problemas complexos de natureza estrutural de largas proporções. A prudência, porém, nos recomenda a ser mais cauteloso quanto às possibilidades do instituto. Cautela aqui em dois sentidos. Em primeiro lugar, na própria definição do papel do Judiciário nesse processo. O modelo só faz sentido se o órgão judicial tiver plena consciência dos limites de sua atuação. O propósito do ECI não deve ser o de transformar o Judiciário em um superórgão responsável pela elaboração e execução de políticas públicas.Deve ser justamente o oposto disso, pois, nesse modelo, os juízes não exercem um papel de substituição, mas de mera supervisão ou acompanhamento de um projeto que foi planejado pelos entes responsáveis, dentro de suas respectivas esferas de competência. (Nesse ponto, pode-se criticar o pedido formulado na ADPF 347/DF, que, claramente, deturpa parcialmente o modelo, já que são apresentadas medidas concretas de solução que seriam, caso deferidas, impostas pelo Judiciário sem uma análise dos órgãos responsáveis).

A segunda cautela é quanto à própria eficácia do instituto. Sem dúvida, o ECI não é o antídoto capaz de resolver todos os problemas da humanidade. Na verdade, ele é muito menos eficaz quanto se pensa. Basta ver que, no caso emblemático da situação dos presídios na Colômbia, a Corte Constitucional, em 2013, proferiu uma nova decisão (T 388-2013) reconhecendo que, apesar da decisão de 1998, o estado de coisas inconstitucional nos cárceres colombianos persistia (ainda que por razões distintas).

Não se pode supervalorizar o papel do judiciário na implementação de soluções de largo alcance. O poder judicial tem uma capacidade limitada de fazer valer os direitos fundamentais, sobretudo quando estamos diante de decisões de alta magnitude, como a que determina o fim das violações dos direitos dos presos ou a efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais. Mesmo decisões bem fundamentadas, convincentes e principiologicamente guiadas podem se tornar uma mera folha de papel sem qualquer poder de mudar o mundo se não houver um compromisso mais amplo para fazer valer o direito. Além disso, mesmo que se reconheça um papel restritivo da função judicial no modelo de superação da ECI, é de que se questionar se o judiciário brasileiro tem estrutura para tanto. E não vai ser apenas criando um instituto com um nome bonitinho que conseguiremos transformar a sociedade. A eliminação por completo das violações sistemáticas de direitos depende de fatores que vão muito além do voluntarismo judicial.

Fonte:

Além das decisões da própria Corte Constitucional colombiana, um bom livro sobre o tema, que foi, inclusive, citado pelo STF, é:

RODRIGUEZ GRAVITO, César e RODRIGUEZ FRANCO, Diana. Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia, 2010

Benefício Assistencial para Estrangeiro – Caso Mama Selo Djalo

Depois de um longo período sem postar, por absoluta falta de tempo, aproveito o feriado para voltar ao blog. E volto com um caso que me orgulho de ter julgado.

No final deste mês, finalizo meu mandato na Turma Recursal do Ceará, que já dura quatro anos. Desde que ingressei na turma, adotei o princípio de que meus votos seriam curtos, objetivos e sem academicismo, pois acredito que este é o espírito dos juizados especiais. No meu último voto, que é o que aqui vou apresentar, resolvi fazer diferente e votei com muito mais profundidade, até porque abri a divergência com o relator e, por isso, precisava enfrentar todos os argumentos que ele apresentou.

O caso é relativamente simples: um estrangeiro pediu um benefício assistencial, que foi negado pelo INSS em razão de ele não ser brasileiro. Portanto, a discussão básica é saber se um estrangeiro faz jus ao benefício. Há um elemento complicador: a situação do referido estrangeiro é precária. Ele ingressou no Brasil como turista e resolveu ficar, violando as leis de imigração. Existem outros fatores relevantes, como o fato de ele ser de Guiné-Bissau, ser portador de uma doença terminal, estar no Brasil há quase dez anos. Enfim, os fatos estão todos narrados no voto.

Vale a pena estudar esse caso, pois ele envolve argumentos de direito internacional, direito constitucional, de análise econômica do direito, de políticas de imigração e assim por diante. Espero que gostem. (Se preferir baixar o arquivo em PDF, é só clicar aqui).

PROCESSO 0507062-90.2009.4.05.8100
RECORRENTE: INSS
RECORRIDO: MAMA SELO DJALO

Voto (George Marmelstein)

Mama Selo Djalo nasceu em Guiné-Bissau, que, assim como o Brasil, também foi colônia de Portugal. O Brasil, contudo, teve a sorte de conquistar a independência desde 1822. Guiné-Bissau, por outro lado, só conquistou a independência em 1974 e, desde então, vive mergulhado em crises internas, guerras civis, golpes de estado e diversos problemas sociais sérios, típicos de diversos países que obtiveram uma descolonização tardia. Guiné-Bissau está entre os vinte países do mundo que possuem os piores Índices de Desenvolvimento Humano, ocupando a 173ª posição do raking do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Em 2001, em virtude dos problemas vividos em seu país, Mama Djalo resolveu sacrificar sua vida familiar, seu trabalho local, seus amigos, sua cultura e, apesar de todos os riscos, incertezas e custos, largou tudo em sua terra natal para tentar construir uma vida melhor no Brasil. Aportou aqui como turista e resolveu ficar de vez. Fixou residência, fez amigos e se integrou na comunidade. Já vive aqui por quase dez anos.

Em 2005, Mama Djalo contraiu uma doença renal crônica terminal (anexo 24). Seu fim seria a morte rápida, se não recebesse o tratamento adequado. Conseguiu ser inserido no sistema público de saúde brasileiro e está recebendo o tratamento na Santa Casa de Misericórdia. No mesmo período, quase foi deportado, pois não possuía visto de permanência e o seu visto de turismo já havia expirado (anexo 7). Graças à sensibilidade de um juiz federal, Dr. Alcides Saldanha, conseguiu garantir a sua permanência no país, por força de ordem judicial, até o fim do seu tratamento médico. Na referida sentença, o juiz federal consignou que: “a permanência do estrangeiro no território nacional revela-se como um dos únicos meios disponíveis, senão o único, para se garantir a continuidade do tratamento médico, mormente quanto ao fato de que o país de origem do autor (Guiné-Bissau) sabidamente não possui estrutura médico-hospitalar adequada para o combate à moléstia que o acomete (insuficiência renal crônica terminal por nefroesclerose hipertensiva)” (Proc. 2009.81.00.000642-6 – 10ª Vara/CE).

Foto de Mama Selo Djalo (Anexo 15)

Mama Djalo, antes da doença, vivia de bicos, pedia esmolas, vendia bebidas na noite boêmia de Fortaleza. Ganhava o suficiente para pagar o aluguel. Depois da doença, sua situação laboral mudou drasticamente, pois, agora, precisa passar boa parte de sua vida fazendo hemodiálise, a qual tem que se submeter durante três vezes na semana. Seu estado de saúde está cada vez pior, já que a doença é progressiva e irreversível. Mama Djalo não tem como trabalhar, pois está muito debilitado fisicamente. Vive da ajuda de amigos. O aluguel já está atrasado há vários meses (anexo 14). No desespero, procurou a Defensoria Pública da União que ingressou com a presente ação, no intuito de receber o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo mensal, previsto no artigo 203, inc. V, da Constituição Federal brasileira: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.

Partindo do pressuposto de que restou devidamente comprovado nos autos que Mama Djalo é portador de uma doença grave que o incapacita para o trabalho, impedindo-o de prover à própria manutenção, resta saber se faz jus ao benefício assistencial.  A questão não é simples, pois ele não é brasileiro e, a rigor, mesmo que fosse saudável, sequer poderia trabalhar em nosso país já que não possui formalmente o visto de trabalho.

A juíza federal Cíntia Brunetta, que costuma ser muito criteriosa na concessão de benefícios assistenciais, julgou o pedido procedente, fundamentando a sentença em diversos precedentes que garantem ao estrangeiro o direito ao benefício assistencial (anexo 27). O INSS recorreu, alegando que, por não ser brasileiro nato ou naturalizado, Mama Djalo não teria direito ao benefício. O Dr. Vidal, juiz desta Turma Recursal, após estudar a matéria cuidadosamente, apresentou seu voto acolhendo a tese do INSS, alegando que Mama era um imigrante ilegal que deveria ser deportado; logo, não deveria receber o benefício assistencial. Vidal ainda apresentou várias teses a respeito do benefício assistencial para estrangeiros, mas nenhuma seria útil ao autor da presente ação, pois ele não estaria em situação regular no Brasil. Para o Dr. Vidal, seria incoerente reconhecer a ilegalidade de sua permanência no Brasil e, ao mesmo tempo, concedê-lo um benefício de prestação continuada.

É lógico que há um forte apelo pragmático em favor dos argumentos apresentados pelo Dr. Vidal. Mama Djalo é um imigrante que, no momento, só gera ônus ao Brasil. Nenhum país do mundo seria tão generoso ao ponto de conceder para seus imigrantes ilegais um benefício financeiro mensal. Qualquer país que adotasse tal política certamente seria invadido por imigrantes necessitados. O Brasil não tem dinheiro para servir como fonte assistencial do mundo. Não poderíamos encarar o problema dos outros como se fosse um problema nosso. Há vários brasileiros em situação semelhante ou pior e não recebem qualquer tipo de ajuda estatal, e assim por diante. Enfim, os argumentos desenvolvidos pelo Dr. Vidal para negar o direito ao benefício são muito fortes.

Esses argumentos, de fato, seriam preponderantes se não fosse um detalhe que muda tudo: nossa Constituição nos obriga a não discriminar qualquer pessoa por conta de sua nacionalidade ou origem ou cor da pele ou condição social ou qualquer outro motivo (artigo 3º, inc. IV). Vigora, no Brasil, o princípio da equiparação de direitos e deveres entre nacionais e estrangeiros, com as exceções previstas na própria Constituição e na lei. Portanto, do ponto de vista constitucional, Mama Djalo não pode ser discriminado arbitrariamente. À luz do nosso ordenamento jurídico, não interessa se Mama Djalo é africano, brasileiro ou europeu: é um ser humano e como tal deve ser tratado.

Talvez as palavras acima possam ser consideradas demasiadamente utópicas, exageradas ou fora da realidade. De fato, nossa Constituição não é tão taxativa assim, nem tão “cega quanto à nacionalidade”. Ela própria faz inúmeras discriminações para beneficiar os brasileiros. De início, estabelece que os direitos previstos no artigo 5º só são garantidos “aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil”, não contemplando expressamente os seres humanos que não são residentes no Brasil. Mas esse não é o caso de Mama Djalo, que reside no Brasil há dez anos. Mama Djalo, portanto, deve ser considerado como um estrangeiro residente no país, sobretudo porque existe uma decisão judicial em seu favor garantindo a sua permanência no país. A situação atual de Mama Djalo não é de imigrante ilegal: ele está autorizado, por força de uma sentença judicial, a permanecer no país enquanto durar o tratamento médico. Some-se a isso o fato de que Guiné-Bissau, assim como o Brasil, faz parte da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP, que possuem um acordo específico sobre a concessão de visto temporário para tratamento médico, inclusive quando o cidadão da CPLP contraiu a doença após a entrada no país de destino (arts. 3º e 4º). Ressalte-se que os países membros da CPLP estão cada vez mais engajados na busca de uma integração maior entre os seus povos. Isso inclui uma série de medidas para facilitar a migração e a livre circulação no espaço da CPLP, bem como a concessão de direitos aos cidadãos da CPLP.

O fato de Mama Djalo ser estrangeiro residente no Brasil não significa dizer que ele tem todos os direitos garantidos aos brasileiros. Ele não pode, por exemplo, votar ou ser votado, nem ocupar determinados cargos públicos, nem exercer determinados direitos que são garantidos apenas aos brasileiros natos ou naturalizados. Apesar disso, como princípio geral, o estrangeiro residente não poderá ser discriminado, exceto se houver uma justificativa constitucional ou mesmo legal para tanto.

Poderiam ser citadas algumas justificativas para se negar o direito ao benefício assistencial para estrangeiros residentes, já que esse direito tem uma natureza prestacional que gera custos e é financiado por brasileiros. O próprio Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) talvez contenha um dispositivo que poderia ser utilizado contra o direito de Mama Djalo. Ao mesmo tempo em que proíbe qualquer tipo de discriminação por motivo de origem nacional, o Pacto prevê que “os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais” (artigo 2º, item II).

Com base nesse dispositivo do PIDESC, o Brasil poderia, sem dúvida, negar o direito ao recebimento do benefício assistencial aos “que não sejam seus nacionais”. O Brasil é um país em desenvolvimento e certamente não teria condições de acabar com a miséria do mundo. Estamos, portanto, inseridos na exceção que o próprio PIDESC estabeleceu. Não estaríamos descumprindo qualquer compromisso perante a comunidade internacional se discriminássemos os “não nacionais” em relação aos direitos de natureza prestacional.

Porém, nosso sistema assistencial não adotou expressamente esse entendimento, pois, em nenhum momento, excluiu os estrangeiros residentes de sua abrangência. Existe um princípio básico na interpretação de tratados de direitos humanos: os tratados não podem ser invocados para piorar ainda mais a proteção institucional dos direitos. Logo, o PIDESC não pode ser invocado na presente hipótese, especialmente porque expressamente estabelece que: “não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob o pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau” (artigo 5º, item 2).

Nossa Constituição estabelece que o benefício assistencial é devido “a quem dela necessitar” (art. 203), não fazendo, em princípio, qualquer discriminação por conta de nacionalidade. A própria Lei Orgânica da Assistência Social determina que o benefício será devido “à pessoa portadora de deficiência” (art. 20). Pessoa, até onde sei, não é só o brasileiro, mas qualquer ser humano (artigo 1º, do Pacto de San José da Costa Rica). Se Mama Djalo é estrangeiro que reside no país e se não há uma norma expressa que o exclua do rol de beneficiários dos direitos assistenciais, o INSS não está autorizado a discriminá-lo na esfera administrativa por falta de suporte jurídico para tanto.

É certo que o artigo 1º, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), diz que a assistência social é “direito do cidadão e dever do Estado…”. A redação do referido artigo, segundo o INSS, indicaria que apenas os cidadãos brasileiros teriam direito ao benefício. É fácil refutar essa idéia. Em primeiro lugar, o INSS concede o benefício para menores de idade ou mesmo para portadores de graves deficiências mentais, que, a rigor, não são cidadãos no sentido técnico do termo. Além disso, é bastante claro que o texto não trata dos requisitos para a concessão dos benefícios, mas apenas adota uma linguagem retórica para dizer que todos têm o direito à assistência social. A cidadania não pode ser requisito para a concessão do benefício, até porque a própria Constituição não afirmou isso. Se apenas os cidadãos (i.e. os eleitores) pudessem receber benefício assistencial, tal restrição seria claramente inconstitucional.

Caso se entenda que o conceito de cidadania adotado no artigo 1º da LOAS é uma cidadania no sentido social e cultural, então não vejo porque excluir Mama Djalo da sua esfera de proteção, uma vez que ele já se integrou à sociedade brasileira. Mama Djalo há muito tempo já preencheu os requisitos para obtenção da nacionalidade brasileira. A CF/88 possui uma norma específica que visa facilitar a aquisição naturalização por parte daquelas pessoas que são originárias de países de língua portuguesa. O artigo 12, inc. II, “a”, estabelece que, para a aquisição da nacionalidade brasileira, “aos originários de países de língua portuguesa” deve ser exigida “apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral”. Há pelo menos oito anos, Mama Djalo já preencheu os requisitos para poder pedir a sua naturalização. Talvez não tenha pedido por desconhecimento de seus direitos.

É lógico, contudo, que o conceito de cidadania previsto no artigo 1º da LOAS nem tem um sentido técnico-eleitoral, nem um sentido sócio-cultural. Seu uso decorreu, provavelmente, de uma atecnia legislativa que evocou a palavra “cidadão” num sentido metafórico. Assim, o referido artigo não pode ser interpretado no sentido de exigir a cidadania brasileira como requisito para o recebimento do benefício.

O Decreto 6.214, de 26 de setembro de 2007, que autoriza a concessão do benefício assistencial para brasileiros naturalizados, também não pode servir como empecilho para o reconhecimento do direito aos estrangeiros residentes. Na verdade, o referido decreto é tautológico, já que a Constituição Federal é muito clara ao estabelecer que “a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituição” (art. 12, §2º). Assim, seria flagrantemente inconstitucional qualquer lei que concedesse benefícios sociais apenas a brasileiros natos. Perceba que, se o legislador brasileiro quiser, pode excluir os estrangeiros residentes do rol de beneficiários do amparo assistencial, mas jamais poderia excluir os brasileiros naturalizados. No caso, o legislador pátrio incluiu expressamente os brasileiros naturalizados (e não poderia ser diferente), mas não excluiu expressamente os estrangeiros residentes, devendo prevalecer, no caso, a regra geral de igualdade, à falta de norma específica.

Poder-se-ia alegar que nenhum país do mundo daria direitos sociais a um imigrante que ingressou ilegalmente no país. Não é bem assim. O mundo está mudando. Até mesmo um país geralmente acusado de ser xenofóbico, como os Estados Unidos da América, reconhece que os imigrantes ilegais não podem ser discriminados arbitrariamente, pois também estão protegidos pela cláusula da igualdade. No paradigmático caso Plyler v. Doe (1982), a Suprema Corte norte-americana estabeleceu que “seja qual for o seu estatuto ao abrigo da legislação de imigração, um estrangeiro é uma ‘pessoa’ em qualquer sentido comum do termo”, razão pela qual os estados-membros não poderiam se negar a matricular filhos de imigrantes ilegais nas escolas públicas. Os estrangeiros “mesmo os estrangeiros cuja presença no país é ilegal, têm sido reconhecidos como ‘pessoas’ e, por isso, não podem sofrer discriminação injusta”. Dito de outro modo: para os juízes norte-americanos, até mesmo os estrangeiros que estão em situação irregular no país podem ser considerados titulares de direitos de caráter social!

Na Europa, que é um continente onde a imigração é muito intensa, existem inúmeras políticas públicas de caráter social extensíveis aos imigrantes. Em Portugal e Espanha, por exemplo, os cuidados de saúde estão acessíveis a todos os imigrantes, independentemente do seu estatuto legal, o que significa que também os irregulares possuem esse direito. A grande maioria dos países reconhece que os imigrantes regulares podem receber os cuidados preventivos e de emergência fornecidos pelo poder público. De um modo geral, na Comunidade Européia, o direito à educação é garantido indistintamente a nacionais e a estrangeiros. Em alguns países, como a Suécia e Portugal, os imigrantes regulares também podem ser favorecidos por medidas financeiras de proteção social. Como regra, os imigrantes são titulares de inúmeros direitos fundamentais, embora, muitas vezes, os serviços sociais disponibilizados aos imigrantes irregulares sejam muito mais restritos. (Fonte: PNUD).

Porém, mesmo que nenhum governo no mundo reconhecesse direitos sociais aos estrangeiros, não creio que um erro de outros países deveria pautar a política brasileira. A toda hora, criticamos a política externa de países hegemônicos por não ser tão solidária. Por que devemos seguir esse exemplo negativo? Em muitos momentos, ficamos indignados com o tratamento discriminatório que os brasileiros recebem quando estão no exterior. Por que devemos repetir as mesmas práticas que censuramos nos outros? O Brasil se orgulha de ser um país hospitaleiro e sem preconceitos, mas parece que esse orgulho não passa de um jogo de marketing. Afinal, por que os antepassados de Mama Djalo, que vieram forçados em navios negreiros para o Brasil, podiam ingressar no país e agora são deportados, como se fossem um fardo indesejável?

É preciso enfatizar novamente que Mama Djalo não deve ser considerado, hoje, como um imigrante ilegal. Ele obteve, por decisão judicial, o direito de permanecer no país para se tratar. Enquanto essa decisão estiver em vigor, Mama Djalo não pode ser deportado e, por óbvio, para fins de proteção jurídica, deve ser considerado como um “estrangeiro residente no país”.  A sua condição, portanto, é de residente, tanto que lhe foi reconhecido o direito ao tratamento médico gratuito. Não é coerente reconhecer a ele o direito de ser tratado no Brasil e não lhe conceder os meios mínimos para a sua sobrevivência. Mama Djalo não pode trabalhar. Mas precisa se alimentar, pagar o aluguel e o transporte para o seu tratamento. O direito constitucional brasileiro previu o benefício assistencial exatamente para esse tipo de situação, onde a pessoa está em condições de extrema vulnerabilidade física e financeira. Negar a Mama Djalo esse direito só porque ele não nasceu em nosso país seria avalizar um preconceito por nacionalidade incompatível com qualquer noção de dignidade humana, especialmente quando não há qualquer norma constitucional ou legal que autorize claramente esse tipo de discriminação.

Seria uma atitude muito hipócrita proclamar, em belos discursos jurídicos, o princípio da igualdade, o combate ao preconceito, a proibição de discriminação e a idéia de que toda a vida humana possui o mesmo valor e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, adotar uma postura de falso patriotismo onde os nossos nacionais valeriam mais do que os demais seres humanos. Igualmente contraditório seria condenar o preconceito que os brasileiros sofrem em outros países e, aqui, fazermos o mesmo com pessoas de outras nacionalidades, especialmente de países ainda mais pobres que o nosso.

Em qualquer país civilizado, os imigrantes continuam sendo titulares dos direitos fundamentais básicos. Existem standards mínimos de proteção jurídica que nenhum ser humano pode ser privado. Os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à justa proteção jurídica são garantidos a todos os seres humanos indistintamente. Nossa Constituição, aliás, determina que os “brasileiros e estrangeiros residentes no país” podem invocar os direitos fundamentais em seu favor. O Pacto Internacional de San Jose da Costa Rica, de forma ainda mais abrangente, inclui qualquer pessoa na sua esfera de proteção (artigo 1º). E reconhece taxativamente que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana”. O Brasil, portanto, tem um dever de respeitar, proteger e promover os direitos de “toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”.

Entre os direitos fundamentais, certamente o direito à vida é um dos mais importantes, até porque é pressuposto para o exercício de todos os demais. E o direito à vida não tem apenas uma feição negativa, no sentido de que o poder público não pode privar um ser humano do direito de viver. O dever de proteger a vida humana também gera para o estado uma obrigação positiva, no sentido de adotar medidas concretas capazes de possibilitar a fruição desse direito para aquelas pessoas em situação de desvantagem sócio-econômica. Isso significa que o Estado tem o dever de fornecer os serviços básicos para a proteção do chamado mínimo vital. Existe, portanto, uma obrigação estatal de garantir que todos os seres humanos tenham acesso às necessidades básicas para a manutenção da vida. O fornecimento de medicamentos vitais para a sobrevivência de um determinado paciente é uma decorrência desse dever; do mesmo modo, pode-se mencionar o direito a uma renda mínima que lhe permita suprir as necessidades básicas para a sobrevivência, que é justamente o que se pede no presente caso.

Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, antes mesmo de ter sido editada a lei regulamentando a assistência social naquele país, reconheceu que o direito à renda mínima para os necessitados é decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição. Isso porque o princípio da dignidade humana não exige apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria existência da pessoa humana ficaria sacrificada (BVerwGE 1, 159, 24/6/1954, conforme: SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, especialmente pp. 283/300). Em decisão posterior, a mesma corte, invocando o princípio do estado social, decidiu que: “Com certeza a assistência social aos necessitados faz parte dos deveres mais evidentes de um Estado social (cf. BVerfGE 5, 85 [198]; 35, 202 [236]). Isto inclui necessariamente a ajuda social ao cidadão que, em razão de deficiência física ou mental, tem seu desenvolvimento pessoal e social impedido, sendo incapaz de prover seu próprio sustento. A sociedade estatal deve, em todo caso, garantir-lhe as condições mínimas para uma existência humanamente digna, e deve, além disso, esforçar-se para, na medida do possível, incluí-lo na sociedade, estimular seu adequado tratamento pela família ou por terceiro, bem como criar as necessárias instituições de cuidado” (SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 828).

É lógico que existem múltiplas formas de o estado garantir o mínimo vital para a sobrevivência de um indivíduo que esteja em condições de vulnerabilidade física e econômica, sendo o benefício social de prestação continuada apenas uma delas. Em linha de princípio, em deferência à separação de poderes, deve-se reconhecer que cabe ao governo federal estabelecer o melhor caminho para promover a dignidade humana, garantir o direito à vida e possibilitar a sobrevivência de pessoas necessitadas que estão sujeitas à jurisdição brasileira. Porém, no presente caso, o INSS, que é o órgão responsável pela Assistência Social, não apresentou qualquer medida alternativa que pudesse ajudar Mama Djalo, abandonando-o à própria sorte. Desse modo, à falta de opção melhor, a concessão do benefício assistencial mostra-se adequada e necessária para os fins a que se propõe.

Por fim, é preciso tecer algumas considerações sobre os argumentos do INSS envolvendo os aspectos econômicos do entendimento favorável à concessão do benefício assistencial para estrangeiros.

Não há dúvida de que seria uma atitude inconseqüente se assumirmos um compromisso de financiar o combate a todos os males do planeta sem que tenhamos condições econômicas para tanto. Nesse aspecto, temos que ser realistas. O benefício assistencial gera um custo, e esse custo é distribuído por toda a sociedade brasileira. Por óbvio, os recursos são escassos e, por isso, a sua distribuição deve ser criteriosa e seletiva. Não seria razoável conceder o benefício a pessoas que sequer moram no Brasil ou então que estão aqui meramente de passagem ou então que estão apenas querendo se aproveitar da nossa boa vontade, pois certamente não foi esse o objetivo do legislador brasileiro. Mas esse não é o caso de Mama Djalo. Ele já está inserido na sociedade há mais de dez anos. Boa parte de sua vida foi vivida no Brasil. Ele trabalhou, ainda que informalmente, pagou impostos (tem até CPF – anexo 2) e criou laços de amizade. Com toda certeza, ele não pode ser considerado como um aproveitador que veio ao Brasil apenas para receber tratamento médico gratuito e ainda receber dinheiro do governo federal.

O argumento do impacto financeiro desaparece por completo diante desse fato. Não parece factível que o sistema assistencial brasileiro entrará em colapso em virtude do pagamento do benefício assistencial mensal, no valor de um salário mínimo, para Mama Djalo. É provável que o custo que o estado brasileiro terá com o pagamento desse benefício nesses últimos momentos de vida que lhe restam será inferior ao que teria com a sua deportação, já que só o custo da passagem aérea de Fortaleza para Guiné-Bissau pode chegar a cinco mil reais (via TAP), que é o suficiente para pagar quase um ano de benefício assistencial. Se acrescentarmos a isso os demais gastos que o processo de deportação acarreta, então, sob o ponto de vista financeiro, talvez seja melhor mantê-lo aqui.

E mesmo que se raciocine com a extensão do benefício para estrangeiros em situação semelhante, o que certamente resultaria em um impacto econômico maior, ainda assim não restou provado nos autos qual seria a conseqüência econômica daí resultante. A meu ver, o temor de um impacto excessivo é infundado. No Brasil, residem cerca de 500 mil estrangeiros, conforme dados do IBGE referentes ao ano 2000. A quantidade de estrangeiros residentes que estão com as condições financeiras e de saúde semelhantes à de Mama Djalo é irrisória. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD, de 1999, a imensa maioria dos estrangeiros residentes (92%) recebe mais de cinco salários mínimos. Uma quantidade muito pequena (3,3%) ganha menos de meio salário mínimo. Certamente, os que ganham menos de um quarto de salário mínimo e ainda estão incapacitados para o trabalho, representam uma população ainda mais insignificante, já que, entre a população brasileira, a quantidade pessoas que fazem jus ao benefício assistencial não chega a 1,5% do total, incluídos aqui os idosos. Por isso, não vejo aí qualquer possibilidade de exaustão orçamentária caso se interprete a Constituição e a Lei Orgânica da Assistência Social no sentido de que os estrangeiros residentes não podem ser excluídos, tão somente por sua nacionalidade, do rol de beneficiários do amparo social.

O Brasil, cada vez mais, eleva os gastos com ajuda humanitária para países mais pobres, numa elogiável atitude de solidariedade mundial. Seria um contra-senso enviar milhões de reais para o exterior, para ajudar pessoas necessitadas em outros países, e não ajudar os estrangeiros necessitados que residem no país. Se o Brasil pretende ser um país com alguma liderança no novo cenário mundial, tem que começar tendo uma atitude moral coerente e sincera, onde a preocupação com a miséria humana em todos os lugares do planeta não é apenas da boca pra fora.

O receio de que a concessão de benefícios assistenciais para estrangeiros residentes gere um aumento do fluxo de imigrantes ilegais também é infundado. O número de estrangeiros que buscam o Brasil para aqui fixar residência tem diminuído e não aumentado. Esse número já chegou a mais de 700 mil no início dos anos noventa e, no último censo do IBGE, realizado em 2000, girava em torno de 500 mil. Além disso, é muito improvável que uma pessoa que esteja em outro país, distante do Brasil, em uma situação de miséria financeira e com a saúde debilitada, tenha condições de arcar com todos os custos e riscos de uma viagem onerosa para vir ao Brasil receber um salário mínimo por mês. Em geral, as pessoas optam por morar em outro país para fugir de conflitos políticos ou então para buscar novas oportunidades de emprego e não por conta de possíveis benefícios sociais que possam lá receber.

O Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, relativo ao ano de 2009, tratou precisamente da situação dos imigrantes e do impacto da mobilidade humano no desenvolvimento dos países. No referido estudo, foi demonstrado que, ao contrário do que a maioria pensa, a imigração traz diversos benefícios não apenas para o imigrante, mas também para o país de destino. A mobilidade dos seres humanos entre os países do mundo é um fator que estimula o desenvolvimento humano. Por isso, não devemos encarar o estrangeiro como um inimigo, nem como alguém que não é bem-vindo, que gera encargos sociais ou então que traz insegurança e violência. A possibilidade de se deslocar, mudar de local de residência e tentar melhorar de vida em outro lugar deve ser considerada como uma componente fundamental da liberdade humana.

Hoje, é fato, o mundo está se globalizando. As fronteiras estão desaparecendo. A economia é uma só. A ética é uma só ou, pelo menos, almeja ser uma só. O mundo caminha para a construção de um projeto ético comum. Se a idéia de um código moral uniforme para todos os habitantes do planeta é uma utopia irrealizável e, em certo sentido, indesejável (por ser demasiadamente pretensiosa e arrogante), percebe-se cada vez mais a necessidade de se desenvolver um modelo de regulamentação internacional que possa, pelo menos, harmonizar a pluralidade de códigos morais existentes, rumo a uma convivência pacífica entre todos os povos, onde cada ser humano possa ser, de fato e de direito, tratado como igualmente merecedor de respeito e consideração, independentemente de qualquer qualificativo.

Mama Djalo é um africano, pobre, doente e sem familiares para ajudá-lo. Ele veio ao Brasil de boa vontade com o intuito de melhorar seu bem-estar e fugir das péssimas condições de vida em seu país de origem. Talvez para a maioria de nós seja difícil sentir empatia por alguém que vem de um local que nem sequer sabemos indicar no mapa. Mas a obrigação de qualquer ser humano é ajudar outro ser humano que esteja em necessidade. Essa obrigação, para nós que somos brasileiros, não é uma mera obrigação moral. Trata-se, na verdade, de uma obrigação constitucional, que está claramente prevista no artigo 3º da Constituição Federal: constitui objetivo da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem”. Em razão disso, por obrigação constitucional, deve ser mantida a sentença e reconhecido o direito de Mama Djalo receber o benefício assistencial enquanto permanecer no Brasil.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO AO RECURSO DO INSS.

Fixo os honorários de sucumbência em 10% sobre o valor atribuído à causa.

Fortaleza, 19 de abril de 2010

George Marmelstein Lima

Juiz Federal no Ceará

Aplicação Judicial do Direito versus Inércia Estatal

Fila nos JEFs (fonte: o Globo)

O texto do Júlio me estimulou a apresentar a minha própria opinião sobre a atual situação da “judicialização das questões sociais” no Brasil, em especial sobre essa superprocura dos juizados especiais federais para discutir demandas que não precisariam ser judicializadas se a administração fizesse seu trabalho corretamente.

Sempre defendi abertamente uma postura ativa do Judiciário, principalmente quando se está em jogo a efetivação de direitos fundamentais, sobretudo quando titularizados por pessoas e grupos com baixa capacidade de mobilização política. Entendo que um dos papéis mais relevantes do Poder Judiciário é proteger a Constituição, permitindo a efetivação de suas normas, ainda que, para isso, seja necessário, eventualmente, suprir vácuos legislativos ou mesmo corrigir, excepcionalmente, a resposta legislativa que não faça justiça ao caso concreto. Ativismo judicial, para mim, é isto: o reconhecimento de que o Poder Judiciário não precisa pedir licença a ninguém para efetivar a Constituição, nem mesmo ao legislador. Na verdade, basta substituir a expressão “ativismo judiciário” por “aplicação judicial de direitos” que o efeito é o mesmo. Aliás, talvez já seja o caso de começar mesmo a substituir a expressão ativismo judicial que gera preconceitos e confusões meramente terminológicas insuperáveis. Enfim…

Mas a postura judicial que defendo não é equivalente a um ativismo tresloucado e inconsequente. Sou mais um ativismo judicial “prudente para uma vida decente”, onde o papel do juiz é subsidiário, ou seja, só se justifica naquelas situações em que os demais poderes não estão cumprindo a sua função constitucional a contento. Não acho que o Judiciário deva ser o espaço democrático central, mas apenas mais um espaço de luta e de pressão popular, nem mais importante, nem menos importante – cabe à sociedade definir como usar o Judiciário para os seus propósitos. Por isso, a meu ver, não cabe ao próprio Judiciário julgar se está cumprindo seu papel: é a sociedade quem dispõe dessa faculdade de julgar os juízes.

Já que o ativismo judicial não é uma situação normal dentro de um modelo de democracia representativa, uma vez que uma postura atuante dos juízes tensiona o princípio da separação dos poderes, colocando em risco o próprio sentido de Estado Democrático de Direito, defendo que os juízes sejam muito cautelosos quando estiverem exercendo tal poder excepcional. As decisões devem ser superfundamentadas, sem joguinho de palavras ocas que só servem para camuflar o arbítrio. O processo deve ser superdialogal, dando amplas possibilidades de participação dos envolvidos na formação da decisão, forçando o juiz a agir de forma compreensiva, aberta, plural e sempre partindo do pressuposto de que os seus valores pessoais não são os únicos nem necessariamente os melhores. E, sobretudo, acho que o juiz deve saber que a sua atividade não é um fim em si mesmo. O Judiciário existe como instrumento: de limitação do poder, de controle social, de efetivação de direitos, de ampliação e desobstrução do debate democrático, de pacificação social, de solução de conflitos, de garantia da estabilidade institucional – mas sempre um instrumento, que precisa constantemente se legitimar perante a sociedade.

Como instrumento que é, o Judiciário não pode querer – e isso seria danoso para todos, inclusive para o próprio Judiciário – “colonizar” os demais poderes, agindo como se fosse administrador ou legislador. O Judiciário, nesse aspecto, é um instrumento de pressão e, como tal, pode, eventualmente, interferir na atividade do Executivo e do Legislativo sempre que isso seja necessário para efetivar direitos. A Constituição autoriza que os juízes exerçam esse papel claramente quando prevê o princípio da infastabilidade da tutela judicial e confere a guarda da Constituição aos órgãos judiciais. Mas, em momento algum, a Constituição diz que os juízes devem assumir o controle das políticas públicas, nem que devam exercer a função legiferante em caráter principal. Como afirmei, tal função deve ser vista como algo excepcional e deve ser utilizada tão somente para pressionar os demais poderes.

Não há dúvida de que, no Brasil, há uma intensa judicialização da política e da vida social, especialmente a partir do ano 2000, quando o Supremo Tribunal Federal chamou para si algumas responsabilidades e atribuições que já estavam no texto de 88, mas que ainda não vinham sendo postas em prática.

Na minha opinião, não acho que haja um excesso de judicialização. O que há é uma incapacidade estatal de reagir a essa judicialização, talvez até porque se trata de algo novo na nossa realidade. A judicialização, como instrumento de pressão, tem uma missão importante a cumprir. A história mundial fornece inúmeros exemplos positivos da atuação judicial pró-direitos fundamentais que foram capazes de revolucionar a vida social em países tão diferentes como os Estados Unidos e a África do Sul, por exemplo. Mas essa judicialização deveria funcionar só até o ponto de “cutucar” os demais poderes ou só até o ponto de dar um suporte de juridicidade às lutas sociais, tal como um combustível de catalisação da vontade constitucional. Mais do que isso, talvez fosse pernicioso para a democracia. Ninguém deseja que o Judiciário se torne o super-ego da sociedade.

Um exemplo positivo desse fenômeno pode ser dado com o caso do fornecimento de remédios para portadores do HIV. A questão começou judicial, com inúmeras ações forçando o poder público a agir de alguma forma para solucionar o problema, até que o Governo Federal assumiu para si a responsabilidade e criou uma das políticas públicas de saúde mais elogiadas do mundo para essa situação. Desde então, a atuação judicial, quando se trata de portadores de HIV postulando medicamentos ou tratamentos médicos, tornou-se limitada a situações excepcionais. É exatamente assim que as coisas deveriam funcionar.

Infelizmente, o exemplo acima é raro. O mais comum é que a judicialização gere mais judicialização. Um segurado entra na Justiça para conseguir um determinado benefício previdenciário e obtém uma resposta favorável da Justiça. No dia seguinte, ao invés de a Administração tentar se ajustar ao entendimento judicial, todos os demais segurados vão à Justiça para receber o mesmo benefício. Criam-se mais cargos de juízes, contratam-se mais servidores, instalam-se Juizados como se fossem Mcdonalds e cada vez mais aumenta a demanda. A demanda sempre cresce mais porque toda vez que um entendimento favorável ao segurado é consolidado, o mesmo fenônomeno se repete: chega à Justiça uma enxurrada de demandas individuais que poderiam perfeitamente ser evitadas se a Administração se antecipasse e ajustasse a sua ação à jurisprudência.

O mesmo ocorre com o fornecimento de medicamentos. Um paciente obtém uma resposta favorável da Justiça. Outro paciente, com o mesmo problema, comparece ao hospital público e o seu pedido é negado administrativamente. Solução: procurar o Judiciário. A coisa se torna tão mecânica e natural que, algumas vezes, o paciente vai direto do médico ao advogado.

Isso está certo?

Da parte do Judiciário, talvez esteja – pelo menos no momento inicial desse processo em que são estabelecidas as diretrizes interpretativas para a legislação aplicável. Trata-se de uma questão de legitimação política difícil de ser avaliada, mas que tem sido uma tendência mundial, sobretudo em países democráticos, o que demonstra que não é algo tão absurdo assim. O problema é o segundo momento: o da ampliação (generalização) desse entendimento para todos os demais casos semelhantes. O Estado brasileiro, em suas diversas esferas, não está sabendo como reagir a essa judicialização tão intensa. Falta aos órgãos estatais um “agente de ligação” que permita uma rápida adaptação das políticas públicas às decisões judiciais. (Deve-se ressaltar também a culpa do Judiciário em não uniformizar sua jurisprudência de forma rápida e estável).

Às vezes, uma mera portaria resolveria o problema, consolidando administrativamente o entendimento judicial, tal como ocorreu com o caso dos benefícios previdenciários decorrentes de uniões de pessoas do mesmo sexo. Houve uma ação civil pública favorável ao direito dos homossexuais, cujo cumprimento se deu com a edição de uma portaria que resolveu o problema a nível nacional. Com isso, alguns milhares de processos foram evitados.

É lógico que muitas decisões judiciais podem e devem estar erradas. Mas essa é outra questão a ser resolvida pelos  inúmeros mecanismos de controle da decisão judicial, que ainda são mais numerosos quando se trata de decisão proferida contra a fazenda pública.

Por fim, aqui vai minha conclusão, adaptando um trecho que escrevi em 2003:

O melhor seria que os Poderes Públicos levassem a sério a concretização dos direitos fundamentais e, com mais “vontade de Constituição”, conseguissem oferecer um serviço público de qualidade a toda a população independentemente de qualquer manifestação do Poder Judiciário. Como atualmente essa situação ideal está longe de ser realidade, é imprescindível a atuação jurisdicional para que pelo menos aqueles que batem à porta da Justiça possam usufruir, na mínima dimensão desejável, o direito conferido pela Constituição.

Feliz será o dia em que não for mais necessária a intervenção judicial na concretização dos direitos fundamentais. Enquanto esse dia não chegar, terá algum sentido em falar de efetivação judicial da Constituição.

Dez de Dezembro: um dia para comemorar

Há exatamente dez anos, eu era um simples estudante da graduação, sem lenço nem documento, querendo mudar o mundo. Mas foi o mundo que me mudou. E o principal responsável por essa transformação foram os direitos fundamentais.

Eu era estagiário da 2a Vara da Fazenda Pública. Talvez um pouco diferente dos estagiários de um modo geral. Meu trabalho era basicamente pesquisar jurisprudência e doutrina e minutar decisões e sentenças. E foi assim que aprendi a gostar do direito.

Uma das sentenças mais marcantes que, como estagiário, ajudei a minutar foi proferida no Proc. 980204610-8. Os fatos foram estes:

Uma pobre senhora de nome Maria teve o infortúnio de ser contaminada por seu marido com o vírus HIV. A doença já estava em estágio avançado e ela foi a um hospital público. O médico prescreveu uma série de remédios, pois apenas tomando o famoso coquetel de medicamentos inibidores da protease ela conseguiria prolongar sua vida. O custo era assustador para os padrões dela: cerca de cinco salários mínimos por mês. Ela estava desempregada. Seu marido ganhava apenas um salário mínimo. No hospital público, o medicamento existente não era suficiente para atender toda a demanda. Apenas uns poucos pacientes, já previamente cadastrados, tinham acesso à medicação gratuitamente, ainda assim com muita dificuldade, já que, vez ou outra, as drogas acabavam antes do tempo previsto.

Maria teve a sorte de encontrar uma organização não-governamental que atua em defesa das pessoas portadoras do HIV e, com auxílio da referida ONG, ingressou com uma ação na Justiça Estadual contra o Estado do Ceará. Na ação judicial, pedia apenas o cumprimento da Constituição, que garante o direito à vida e, no artigo 196, diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Com base na citada norma constitucional, defendia que Poder Público deveria lhe fornecer o coquetel de medicamentos que lhe permitiria sobreviver.

No processo judicial, a resposta do Estado do Ceará não poderia ser diferente: dizia que a norma constitucional que reconhece que a saúde é direito de todos seria meramente programática e, portanto, não geraria direitos subjetivos. Citou, inclusive, decisão do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido.

A sentença de procedência, que tive a honra de minutar, foi assinada no dia 10 de dezembro de 1998, exatamente cinqüenta anos depois da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Na sentença, procurei invocar a teoria da máxima efetividade das normas constitucionais, afastando a tese levantada pelo Estado de que o direito à saúde seria uma norma meramente programática que não geraria direitos subjetivos. No fundamento, não foram abordadas questões como a separação de poderes, os problemas orçamentários, a reserva do possível etc., até porque não foram argüidas na contestação.

O certo é que o Tribunal de Justiça confirmou integralmente a sentença e, hoje, provavelmente, a pobre Maria está recebendo a devida medicação por força de uma ordem judicial transitada em julgado.

Perceba que estamos falando de uma decisão proferida há dez anos. Essa história de máxima efetividade, concretização judicial de direitos sociais, exigibilidade dos direitos a prestações ainda estava começando. A mentalidade predominante era no sentido de que o direito à saúde era uma mera norma programática, que não poderia gerar direitos subjetivos.

Aliás, o Cretella Júnior, nos seus Comentários à Constituição, defendia precisamento isso:

“A proposição concretizada na regra ordinária civil ‘a todo direito corresponde uma ação que o assegura’ (C.C., art. 75), é válida apenas para a relação jurídica em que as partes são reciprocamente credores e devedores de direitos e obrigações. Na regra jurídica constitucional que dispõe que ‘todos têm direitos e o Estado tem dever’ – de educação, saúde -, na realidade, ‘todos não têm direito’, porque a relação jurídica entre o cidadão-credor e o Estado-devedor não se fundamenta em vinculum iuris gerador de obrigações, pelo que falta ao cidadão o direito subjetivo público, oponível ao Estado, de exigir, em juízo, as prestações prometidas, a educacional e a da saúde, a que o Estado se obrigara, por proposição ineficaz dos constituintes, representantes do povo. O Estado deve, mas o debet tem conteúdo ético, apenas, conteúdo que o bonus administrador procurará proporcionar a todos, embora a tanto não seja obrigado”.

As poucas decisões do STJ sobre o assunto, naquela época, também eram no mesmo sentido. Por exemplo:

“Normas constitucionais meramente programáticas – ad exemplum, o direito a saúde – protegem um interesse geral, todavia, não conferem, aos beneficiários desse interesse, o poder de exigir sua satisfação – pela via do mandamus – eis que não delimitado o seu objeto, nem fixada a sua extensão, antes que o legislador exerça o múnus de completá-las através da legislação integrativa. Essas normas (arts. 195, 196, 204 e 227 da CF) são de eficácia limitada, ou, em outras palavras, não tem força suficiente para desenvolver-se integralmente, ‘ou não dispõem de eficácia plena’, posto que dependem, para ter incidência sobre os interesses tutelados, de legislação complementar” (STJ, ROMS 6564/RS, DJ 17/6/1996, p. 21448).

De minha parte, nunca consegui me conformar com esse tipo de pensamento.

Normas constitucionais não-auto-aplicáveis, normas constitucionais de eficácia limitada ou simplesmente normas meramente programáticas: tudo isso, já naqueles tempos, soava como uma heresia constitucional para os meus ouvidos de estudante empolgado com a teoria dos direitos fundamentais.

Nunca aceitei a tese de que o legislador e o administrador seriam os únicos destinatários das normas garantidoras de direitos econômicos, sociais e culturais, restando ao Judiciário se curvar diante da inércia dos demais poderes. Sempre achei que a Constituição era norma jurídica e, enquanto tal, podia ser concretizada pelo Poder Judiciário.

Consegui convencer o Dr. Francisco Chagas Barreto Alves, juiz da 2a Vara da Fazenda Pública, a adotar o mesmo ponto de vista. E assim ele assinou a sentença que segue abaixo (percebam a data da sentença):

Vistos etc.

XXXXXXXXXXXXXXX, devidamente qualificada nos autos e por intermédio de advogados legalmente constituídos, sob o pálio da gratuidade processual, aforou as presentes AÇÃO ORDINÁRIA e AÇÃO CAUTELAR contra o ESTADO DO CEARÁ visando, em síntese, o fornecimento por parte do réu de uma gama de remédios (“coquetel”) para doentes da Síndrome da Imuno-Deficiência Adquirida (AIDS/SIDA), doença da qual é portadora a autora.

Na ação principal (fls. 02/10), a autora defende seu direito com base no art. 245 da Constituição Estadual e arts. 2o, 5o, 6o, 7o da Lei 8.080/90 que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde – SUS.

Na cautelar (fls. 02/12), sustenta a autora a mesma tese defendida na principal, requestando, de logo, medida liminar para compelir o Estado do Ceará a fornecer alguns remédios que lhe garantam a sobrevivência.

Com as iniciais das ações, foram acostados os documentos de fls. 11/17 (da principal) e 13/31 (da cautelar).

Despacho de fls. 33/34 da ação instrumental, concedendo a medida liminar requestada e determinando a citação do promovido.

Devidamente citado em ambas as demandas (fls. 20 e 37, respectivamente), o Estado do Ceará apresentou contestações às fls. 22/28 e 40/51, defendendo, em resumo, que o dispositivo constitucional que garante a todos o direito à saúde não tem o condão de compelir o Poder Público a fornecer os medicamentos requeridos, porquanto se trata de norma que se situa no campo moral e não jurídico. Ou seja: é norma sem caráter obrigacional.

Na cautelar, o Estado-réu, em sede de preliminar, pede a extinção do processo, sem julgamento do mérito, vez que a autora não indicou na inicial a lide a ser proposta e o seu fundamento, bem como questiona a natureza satisfativa da demanda.

Instada a se manifestar acerca das contestações, a autora apresenta réplica à contestação da cautelar na qual tenta refutar os argumentos ali expostos e reitera a súplica pela procedência da ação.

Petição autoral de fls. 116/117 da ação instrumental, requerendo que seja determinado a compra de mais medicamentos, haja vista complicações no estado de saúde da autora.

Despacho de fl. 122 da cautelar, deferindo o requesto autoral da petição supra referida.

Despacho de fl. 32 do pleito principal, determinando às partes dizerem se desejam produzir outras modalidades de provas além das documentais já carreadas. Do contrário, proceder-se-á o julgamento antecipado da lide.

Decorrido o prazo legal, nada foi apresentado pelas partes.

Empós informações de que a liminar requestada estava sendo rigorosamente cumprida e de que fora ajuizado agravo de instrumento junto ao Egrégio Tribunal de Justiça visando a suspensão da medida liminar, o Ministério Público apresenta parecer em ambas as demandas (fls. 34/40 e 149/155) opinando favoravelmente à pretensão autoral.

Daí, vieram-me os autos conclusos para julgamento.

RELATEI. Decido.

Trata-se de ações ordinária e cautelar aforadas com o desiderato de compelir o Estado do Ceará a fornecer uma gama de medicamentos (“coquetel”) à autora, portadora que é da Síndrome da Imuno-Deficiência Adquirida (AIDS/SIDA), vez que, nos termos das Constituições Estadual (art. 245) e Federal (art. 196), a saúde é direito de todos e dever do Estado, e, nos moldes da legislação infraconstitucional (Lei 8.080/90), o Sistema Único de Saúde tem por objetivo, dentre outros, a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção e recuperação da saúde com a realização integrada das ações asssistenciais e das atividades preventivas (art. 5o, III), e mais: estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde a execução de ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (art. 6o, I, d).

No tocante ao processo acessório, tem-se que as medidas cautelares se esteiam na fumaça do bom direito (fumus boni iuris) e no receio de prejuízo ao demandante, se demorada a prestação jurisdicional pleiteada. Assim, a necessidade do processo cautelar é justificada pela possibilidade de ocorrência de situações em que a ordem jurídica se vê posta em perigo iminente, de tal sorte que o emprego de outras formas de atividade provavelmente não revelaria eficaz para impedir a consumação da ofensa, seja mesmo para a reparar de modo satisfatório. Neste particular, deve o magistrado, presidente do feito, contentar-se com uma averiguação superficial e provisória da admissibilidade do direito subjetivo alegado, a fim de que esta possa conceder o requesto cautelar perquirido, desde que os resultados dessa pesquisa lhe permitam formular um juízo de probabilidade acerca da existência do direito suscitado, a par da convicção de que, na falta do pronto socorro, ele sofreria lesão irremediável e de difícil reparação. Nesse sentido, vale citar a lição dos eméritos juristas ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA e CÂNDIDO R. DINAMARCO:

“A atividade cautelar foi preordenada a evitar que o dano oriundo da inobservância do direito fosse agravado pelo inevitável retardamento do remédio jurisdicional (periculum in mora). O provimento cautelar funda-se antecipadamente na hipótese de um futuro provimento jurisdicional favorável ao autor (fumus boni iuris): verificando-se os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, o provimento cautelar opera imediatamente, como instrumento provisório e antecipado do futuro provimento definitivo, para que este não veja frustado em seus efeitos.” (Teoria Geral do Processo, 11a ed., p. 318)

Preliminarmente, alega o Estado-réu, na ação instrumental, que a cautelar deve ser indeferida de logo, pois a promovente não indicou na ação cautelar qual a ação principal a ser proposta e seu fundamento, conforme determina o art. 801, II do CPC.

Não procede tal argumento. O art. 801, III, do CPC, pelo qual a petição da cautelar deve “indicar a lide e seu fundamento”, nos vem do Código de Processo Civil/39 que dispunha, no art. 684, IV, “o objeto da lide principal e as razões que a determinam”. De outra parte, o inc. IV do art. 801 aduz que a petição deve também indicar a “exposição sumária do direito ameaçado e o receio da lesão”, deixando claro que o inc. III se refere ao “processo principal”, do qual depende e necessariamente o acessório.

Ensina HUMBERTO THEODORO JÚNIOR que “nem sempre é obrigatória a designação da ação de mérito por um específico nomem juris, mesmo porque pode ocorrer que o requerente da medida cautelar não tenha ainda definido, com exatidão, o remédio processual de mérito a utilizar. Nesses casos, identificará a lide pela designação de sua pretensão e da resistência que lhe opõe o requerido, indicando apenas o resultado prático que espera alcançar no processo de mérito” (Código de Processo Civil Anotado. 3ª ed., 3º/776, apud “RT”, 635/288, da 2ª Câmara Cível, por maioria, do TAMG).

GALENO LACERDA, no mesmo esteio, leciona que a exigência objetiva possibilitar ao Juiz “aquilatar a verossimilhança do direito alegado e à parte contrária a formulação de defesa”, sendo que o “fundamento” significa a indicação “dos fatos integradores da causa da relação litigiosa, não só visa a propiciar ao Juiz a avaliação da aparência do direito com vistas à concessão da medida, senão que lhe permite verificar se entre esta e a ação principal existe um indispensável nexo de pertinência” (Comentários ao Código de Processo Civil. Forense, 1981, VIII/294 e 298, t. II).

Portanto, o sentido da exigência, pelo prisma da parte adversária, é possibilitar-lhe melhor se defender em relação à própria cautelar, fiscalizando a legitimidade e interesse processuais de seu requerente, o que aponta para a insustentabilidade da tese de ser possível emendar a inicial após a contestação; e, pelo prisma do Juiz, identificar aquilo que, desde logo, é fundamental: o “nexo de pertinência”, ou nexo lógico entre meio e fim, ou seja, se a cautela pedida é adequada para assegurar o resultado prático do pedido a ser formulado na ação principal. Enfim, podemos concluir que o inc. III do art. 801 do CPC resta atendido, desde que, por algum modo, seja explícito, seja implícito, mas de óbvia constatação, seja mesmo pelo nomem juris da ação anunciada, fique evidenciado o resultado prático que será buscado e os fatos em que se baseará.

No caso em exame, a leitura da inicial da cautelar deixa claro o conflito que será travado na principal: a obrigação do Estado de fornecer medicamentos à autora, de forma regular e não precária, através de uma ação cuja condenação implicará em uma obrigação de fazer, conforme explicitado pela autora. Indefiro, pois, a preliminar argüida.

Ainda no que se refere à cautelar, defende, outrossim, o Promovido que a medida é satisfativa, pois esgota por completo o mérito da lide principal, devendo ser extinta sem julgamento do mérito, com esteio no art. 267, I e IV do CPC.

Mais uma vez não assiste razão ao Estado do Ceará. É que, sem receio de equívoco, afigura-se-nos evidente o caráter “não satisfativo” da presente medida cautelar. Não nos parece que a autora buscou através da medida cautelar “satisfazer” toda sua pretensão. Pelo contrário, buscou ela a tutela mínima, provisória, sem a qual inegavelmente seria impossível a propositura da ação principal, pois o que se pretendeu foi a garantia da sua própria sobrevivência. Que dano poderia ser maior do que o sacrifício da vida?

Por estas razões, a jurisprudência pátria, que é a “seiva que mantém vivo o direito”, vem reiteradamente admitindo medidas cautelares em casos paradigmáticos. Vejamos:

Ementa oficial: Ação Cautelar – Liminar contra o Estado – Fornecimento de “coquetel” de medicamentos para tratamento da AIDS – Admissibilidade – Estando presentes as condições especiais do processo cautelar, do fumus boni iuris e do periculum in mora, posto que o direito à vida é o maior deles e que a droga é de comprovada eficácia, porém custosa e fora das possibilidades econômicas dos enfermos, é dever do Estado custeá-la – Inteligência do artigo 196 da Constituição da República – Liminar mantida – Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 22.239-5 – São Paulo – Oitava Câmara de Direito Público – TJSP – 1996)

EMENTA: LIMINAR EM PROCEDIMENTO CAUTELAR – PRESENÇA DA APARÊNCIA DO BOM DIREITO E O PERIGO DA DEMORA – DIREITO DE RECEBER DO “SUS” MEDICAÇAO PARA TRATAMENTO DE AIDS – GARANTIA CONSTITUCIONAL. Agravo de Instrumento. Liminar em procedimento cautelar. No processo acessório, e através de uma medida prévia, o que se obtém é, apenas, a prevenção contra risco de dano imediato, capaz de afetar o interesse litigioso da parte e de comprometer a eventual eficácia da tutela definitiva a ser alcançada no processo de mérito. A saúde é um direito assegurado constitucionalmente às pessoas, dado que inerente à vida. O Estado tem o dever de prover às condições indispensáveis ao seu pleno exercício. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada, constituindo um sistema único. A Lei “F” 9.313/96 assegura aos portadores do HIV, e doentes de AIDS, o direito de receber, gratuitamente, do SUS, toda a medicação necessária a seu tratamento. Presentes a aparência do bom direito e o perigo da demora, justifica-se a concessão da medida liminar. Os agravados são pessoas desprovidas de recursos econômicos, que possam possibilitar-lhes a compra dos medicamentos indispensáveis à sua sobrevivência. A AIDS enseja o aparecimento de infecções, que tornam-se letais, em conseqüência do enfraquecimento do sistema imunológico, pelo vírus HIV, logo, não deve ficar sem tratamento, sob pena de provocar a morte rápida do paciente. Medida convenientemente justificada na decisão impugnada. Recurso improvido. (Agravo de Instrumento n° 4.911/96 – Rio de Janeiro – Sétima Câmara – TJRJ – 1997)

Desta forma, com a concessão da medida liminar no processo cautelar a medida restou eficaz, dependendo a solução definitiva da demanda da solução do mérito da principal; passemos, pois, à sua análise.

Cogita-se, aqui, em síntese, a amplitude da eficácia atribuída à norma constitucional garantidora do direito à saúde, insculpido no art. 196 da CF/88 e praticamente reproduzido no art. 245 da Constituição Estadual. Reza mencionado dispositivo:

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O Estado do Ceará, invocando doutrina de J. CRETELLA JÚNIOR, sustenta que tal dispositivo “não tem força para compelir o Estado do Ceará comprar medicamentos perseguidos na exordial, haja vista ser uma norma sem caráter obrigacional.”

Diz, ainda, que “o vocábulo dever significa exigência que se situa no campo ético, jamais no campo jurídico, razão pela qual dever significa apenas exigência moral.”

Ante a tais considerações indaga-se: seria mesmo que essa norma de hierarquia constitucional que diz ser a saúde direito de todos e dever do Estado meramente norma moral, sem nenhuma força coercitiva? Entendo que não.

NOBERTO BOBBIO, que dedicou boa parte de seus estudos aos direitos do homem, após analisar os fatores que dificultam a efetivação ou aplicação das normas jurídicas referentes a esses direitos, com um pouco de ironia e perplexidade, questiona:

“O campo dos direitos do homem – ou, mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem – aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem entre a posição da norma e sua efetiva aplicação. E essa defasagem é ainda mais intensa precisamente nos direitos sociais. tanto é assim que, na Constituição italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas pudicamente de “programáticas”. Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc, mas ordenam, proíbem e permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são adiados sine die, além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o “programa” é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado de ‘direito’?” (A Era dos Direitos. 8a ed. Campus: Rio de Janeiro, 1992, p. 77/78)

Realmente, é conhecimento elementar, até para quem se inicia no estudo da Ciência do Direito, que as normas jurídicas diferem-se das morais justamente pelo seu caráter impositivo, vale dizer, sancionatório. Dizer que uma norma constitucional não é norma jurídica é negar o próprio sistema jurídico que a Constituição fundamenta. Logo, sendo a norma constitucional norma jurídica, não resta dúvida quanto ao caráter imperativo de suas disposições.

Considerar o “direito à saúde” mera ‘pretensão’ do indivíduo para com o Estado, ficando ao léu das veleidades deste a efetivação desse ‘pseudo-direito’, seria o mesmo que dizer que a Constituição não é a Lei Maior, Lex Fundamentallis, Carta Magna, Estatuto Supremo do Estado, mas simples cartas de boas intenções destituída de força obrigacional. Nesse sentido, é sempre oportuno invocar o ensinamento do professor LUÍS ROBERTO BARROSO:

“As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências de insubmissão a seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nessa matéria, ao considerá-las prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não jurídico.” (Interpretação e Aplicação da Constituição. 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 226)

“Direito”, na lição de BOBBIO, “é uma figura deôntica e, portanto, um termo da linguagem normativa, ou seja, de uma linguagem na qual se fala de normas e sobre normas. A existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por “existência” deve entender-se tanto o mero fator exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigação” (Ob. Cit. p. 79). Portanto, o “direito à saúde” gera aos administrados o direito subjetivo de exigir do Estado sua efetivação. O Estado, por sua vez, tem a obrigação (jurídica e não apenas moral) de fazer cumprir a norma constitucional, independentemente de provocação dos interessados.

Importa frisar que, na atual fase de evolução da hermenêutica constitucional, a busca da máxima eficácia das normas constitucionais, ante as circunstâncias de cada caso, é o principal caminho que o intérprete e aplicador do direito deve trilhar.

O princípio da efetividade das normas constitucionais, ligado ao fenômeno da juridicização da Constituição, e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, segundo J. J. GOMES CANOTILHO, “pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.” (apud. BARROSO, Luís Roberto. Ob. Cit., p. 220)

Desta forma, se o próprio constituinte, “entregando-se, muitas vezes, a devaneios irrealizáveis, contribui para a desvaloração da Constituição como documento jurídico”, cabe ao jurista, ao se deparar com a inércia do Poder Público ante a um caso concreto de manifesto desrespeito à Constituição, “formular estruturas lógicas e prover mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas”. Ora, sendo o criador da lei individualizada ao caso concreto, diante de uma norma constitucional dita ‘programática’, o Juiz, ao sentenciar, deve encontrar meios de tornar esta norma eficaz e exeqüível e não, covardemente, negar-se a cumprir os mandamentos constitucionais sob o argumento de que não existe legislação integradora dispondo sobre a matéria.

No caso dos autos, não estamos apenas diante do direito à saúde, mas também do direito à vida, que é direito fundamental elencado no caput do art. 5o da CF/88 e, portanto, de aplicação imediata, nos moldes do § 1o, do mesmo art. 5o da Lei Fundamental. Mais: trata-se de direito universalmente reconhecido, em qualquer época ou lugar civilizados, incluso no rol da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que a título de curiosidade está completando cinqüenta anos exatamente no dia de hoje.

O direito à saúde é direito social de caráter positivo. Não basta somente a enunciação deste direito, insta fundamentalmente acioná-lo. É a obrigação do Estado promover os meios e remover os obstáculos de ordem econômica e social que se opõem à concretude dos direitos sociais (expansão moral e política de pessoa humana). O Estado deve empenhar-se ativamente para ajudar aos menos favorecidos a libertarem-se das necessidades. Esta é a lição de CAPPELLETI, apud RUI PORTANOVA, in Motivações Ideológicas da Sentença, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1992, p. 146). Assim, na conclusão de RUSCHEL:

“Se a Constituição confere um direito e o declara auto aplicável, mas o legislador ou o administrador é omisso em instrumentalizá-lo, o juiz deverá suprir o que falta e concedê-lo da melhor maneira possível. Nestes casos, cabe ao magistrado a responsabilidade de construir a norma concreta, guiado pela Constituição.” (apud, PORTANOVA, Rui. Ob. Cit. p. 146)

Ademais, mesmo que se considerasse, através de uma exegese desumana e mesquinha, o direito à saúde uma prerrogativa meramente programática, com força vinculante senão para o legislador infraconstitucional, ainda assim é inarredável a obrigação do Estado de fornecer o medicamento necessário à postulante. É que, com a descoberta e combinação de drogas (indinavir, ritonavir, saquinavir, AZT, 3TC, ddC, idovudine, etc.), vulgarmente conhecido como “coquetel”, para o combate ao HIV, no dia 13.11.96 veio à luz a Lei Federal 9.313, dissipando qualquer dúvida no que se refere ao direito da autora, cujo teor é o seguinte:

“Art. 1o – Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.

§ 1o – O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde.

§ 2o – A padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado.

Art. 2o – As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento”. – grifamos

Portanto, mesmo que se diga que o direito à saúde é norma meramente programática, com a promulgação da lei supra citada, o dever do Estado em fornecer medicamento aos portadores do HIV tornou-se obrigação legal e não apenas “moral”.

Por fim, para que esta sentença onde se encontra em jogo a vida de uma pessoa não se esgote em um emaranhado de elucubrações técnico-jurídicas e fique flutuando em devaneios meramente normativos, permito-me finalizar transcrevendo trecho extraído de artigo escrito pelo principal expoente, no Brasil, da conscientização da importância da solidariedade e da não discriminação aos portadores do HIV, o sociólogo HEBERT DE SOUSA (Betinho):

“Tudo isso significa que viver, ou morrer, em grande medida, depende do tratamento já existente. Quem se trata sobrevive. Quem não se trata morre. A vida cobra a conta. A morte iguala. Quem tem recursos pode apostar na cura que virá. Pode ter a alegria de viver a cura de uma epidemia que assustou e ainda assusta o mundo. Quem não tem recursos vai saber que seu tempo é do tamanho de sua conta bancária e que, no Brasil, viver ou morrer é em grande medida uma questão social, já que, no caso da AIDS, ser rico ou pobre significa viver mais, ou menos, tempo.

Para uma pessoa doente e pobre, estar com AIDS é um drama duplo: o de ser pobre e o de sofrer as conseqüências de uma epidemia que ainda está em processo de controle e a caminho da cura, e, principalmente, o de saber que seu tempo de vida vai ser tão roubado quanto seu salário, suas esperanças, sua qualidade de vida, sua cidadania.

Nesse quadro é triste ver como o poder público, em nível federal, estadual e municipal, em geral e com apenas raras exceções, está totalmente indiferente a essa tragédia. De costas para a epidemia, ignora o imenso sofrimento dos pobres e espera que a morte ocupe o lugar da vida, negando as possibilidades de tratamento, que só existem para uns poucos.

É triste saber que, até em relação à AIDS, o apartheid social existe e que aqui, entre nós, existe uma Beláfrica.” (extraído do artigo AIDS e POBREZA, disponível On-Line via URL: http://www.aids.gov.br/betinho/aids_pob.html)

Ante o exposto, considerando tudo o que nos autos consta e reconhecida a obrigação estatal de fornecer medicamentos aos portadores do HIV que não tenham condições financeira de arcar com os referidos gastos, julgo o pedido da presente ação ordinária PROCEDENTE para determinar que o Estado do Ceará forneça de forma regular os medicamentos à autora, garantido-lhe o acesso a todos os outros medicamentos que venham a ser prescritos posteriormente, nas vezes, quantidades e freqüências necessárias, nos termos por ela pretendidos.

Quanto ao requesto cautelar, dou-o também por PROCEDENTE ratificando e mantendo inalterados os efeitos da medida liminar concedida initio litis.

De resto, condeno o Estado do Ceará ao pagamento das custas processuais de ambos os processos e dos honorários advocatícios devidos aos advogados da autora, estes arbitrados em 15% (quinze por cento) sobre o valor de cada causa.

Decorrido o prazo para a propositura de eventuais recursos voluntários, remetam-se os processos ao Egrégio Tribunal de Justiça, de sorte que estão sujeitos ao duplo grau de jurisdição.

Traslade-se cópia desta sentença ao processo cautelar.

P.R.I.

Fortaleza, 10 de dezembro de 1998, aos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

DR. FRANCISCO CHAGAS BARRETO ALVES,

Juiz de Direito da 2a Vara da Fazenda Pública

Mínimo Existencial, Reserva do Possível e Direito à Saúde

Devo dar o braço a torcer. Fazia tempo que não ficava animado com decisões proferidas pelo Chief Justice Gilmar Mendes, mas, dessa vez, ele me surpreendeu positivamente, duas vezes na mesma semana.

Os dois casos que serão aqui comentados giram em torno do mesmo tema: efetivação judicial do direito à saúde, que é um assunto que me acompanha desde 1998. Apesar do tema em comum, a discussão jurídica travada em cada caso é relativamente diferente. No primeiro (STA 238), debatia-se a teoria do mínimo existencial; no outro (STA 278), tratava-se da reserva do possível.

STA 238 – Uma interpretação máxima ao conceito de mínimo

No pedido de Suspensão de Tutela Antecipada 238 – TO, o que estava em jogo era saber se o Judiciário poderia obrigar o poder público a arcar com os custos de um tratamento odontológico de uma criança portadora de deficiência mental. As instâncias ordinárias reconheceram o direito da criança, tendo a decisão sido confirmada pelo Min. Gilmar Mendes.

De acordo com ele,

“ante a impreterível necessidade de ponderações, são as circunstâncias específicas de cada caso que serão decisivas para a solução da controvérsia. Há que se partir, de toda forma, do texto constitucional e de como ele consagra o direito fundamental à saúde”.

Não se pode deixar de contrastar o referido entendimento com a teoria do mínimo existencial. Por essa teoria, apenas o conteúdo essencial dos direitos sociais teria um grau de fundamentalidade capaz de gerar, por si só, direitos subjetivos aos respectivos titulares.

Sempre critiquei essa teoria por dois motivos básico: (a) ela não é totalmente compatível com a realidade constitucional brasileira; (b) ela pode levar a uma neutralização, pela via interpretativa, dos direitos sociais reconhecidos pela Constituição. Mas não vem ao caso aprofundar essas críticas.

O importante é que, mesmo que se aceite a teoria do mínimo existencial, deve-se tentar ampliar ao máximo o núcleo essencial do direito, de modo a não reduzir o conceito de mínimo existencial à noção de mínimo vital. Afinal, se o mínimo existencial fosse apenas o mínimo necessário à sobrevivência, não seria preciso constitucionalizar os direitos sociais, bastando reconhecer o direito à vida.

Em alguns textos, já defendi o que se segue:

“Para além desse patamar básico, garantido pelo mínimo existencial e pelo princípio da dignidade da pessoa humana, é possível que o Judiciário reconheça a nota de fundamentalidade de outros direitos socioeconômicos, levando em conta as peculiaridades do caso concreto. (…)

Nessas situações, parece possível permitir uma ação judicial, mesmo na ausência de lei, cabendo ao juiz verificar, caso a caso, se está presente um direito fundamental a ser protegido, à luz das informações contidas no processo judicial. São as circunstâncias do caso concreto que irão fornecer ao juiz os elementos necessários para tomada de decisão, cabendo ao juiz se munir do maior número de informações possíveis para julgar com correção, sempre observando a proporcionalidade e a reserva de consistência”.

No caso julgado pelo Min. Gilmar Mendes, parece que a lógica adotada foi a mesma. Os tratamentos odontológicos, em princípio, não estão abrangidos pela noção de mínimo existencial. No entanto, tratando-se de criança carente, portadora de deficiência mental, que sofria fortes dores em virtude do problema dentário, parece que a atuação judicial nada mais fez do que concretizar o seu direito à saúde.

STA 378 – Reserva do Possível e Ônus da Prova

No segundo caso, o que estava em jogo era a reserva do possível, em particular a questão em torno do ônus da prova de sua ocorrência como fator impeditivo da concretização dos direitos sociais.

Fatos: foi concedida antecipação de tutela contra o Estado de Alagoas, obrigando-o a fornecer o medicamento Mabthera para uma paciente, portadora de leucemia, que estava em tratamento quimioeterápico. O tratamento foi orçado em mais de cento e cinqüenta mil reais. O medicamento não estava previsto no protocolo do SUS.

Na sua decisão, o Min. Gilmar Mendes confirmou a ordem judicial concedida pelas instâncias ordinárias. A linha de raciocínio que ele seguiu foi muito parecida com a que adotei em minha dissertação de mestrado. Eis a decisão na íntegra.

Aqui, quero apenas enfatizar um aspecto da decisão que também defendi: o ônus da prova nas alegações de reserva do possível.

O Min. Gilmar Mendes, ao indeferir o pedido do Estado de Alagoas, disse claramente que o Poder Público não provou a ausência de capacidade financeira para cumprir a decisão judicial. É justamente isso que defendo:

Aliás, isso está no meu Curso de Direitos Fundamentais. Confira:

“Apesar de a reserva do possível ser uma limitação lógica à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos, o que se observa é uma banalização no seu discurso por parte do Poder Público quando se defende em juízo, sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir a decisão judicial.

Por isso, as alegações de negativa de efetivação de um direito econômico, social e cultural com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. (…)

Assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental” (MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. Ed. Atlas: São Paulo, 2008).

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É preciso lembrar que as idéias acima já haviam sido defendidas pelo Min. Celso de Mello, que foi o primeiro ministro do STF a tratar longamente sobre o assunto. Confira algumas decisões por ele proferidas:

ADPF 54

REAGR 410715

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Finalmente, vale ressaltar que as decisões do MIn. Gimar Mendes e do Min. Celso de Mello ainda não resolvem o problema. Primeiro, porque eles não são os únicos ministros a votarem, embora tenham grande influência perante os demais membros da Corte. Segundo, porque as referidas decisões apenas estabelecem que o Judiciário pode efetivar o direito à saúde, mas não define até onde.

Sempre fui um grande defensor da plena justiciabilidade do direito à saúde. Isso desde que comecei a estudar os direitos fundamentais, lá pelos idos de 1998. Hoje, percebendo que essa tese tem prevalecido, vejo com mais cautela as possibilidades e os limites do Judiciário.

Uma coisa é o Judiciário ajudar a concretizar o direito à saúde de forma subsidiária. Outra coisa, totalmente diferente, é transformar o Judiciário no principal responsável pela alocação de verbas em matéria de políticas públicas. Na área da saúde, essa preocupação é ainda maior quando se trata de tratamento experimental. Há muitos interesses em jogo aqui, alguns nem sempre honestos. Por isso, certamente, ainda haverá muito espaço para discutir os limites e as possibilidades dos juízes nessa seara.

Josef Klimber e os Benefícios Assistenciais

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Este post é dedicado ao leitor Roberto Bolanhos que, mesmo sem querer, me lançou o desafio de fazer um post sobre os “Melhores do Mundo” e o direito.

Eis o comentário totalmente mal-humorado que ele fez no post passado:

Pelos dialogos que mostrou, nao sei como transformar o BOSTON LEGAL em algo interessante… Transformar PIADA em algo juridico. Era soh o que faltava… Por que nao faz o trabalho com os MELHORES DO MUNDO? Facilitaria, nao precisaria traduzir nada“.

Não seja por isso. Vamos começar.

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O vídeo acima foi um dos mais assistidos pelos internautas brasileiros desde que surgiu essa história de web 2.0.

Assim que o vi, lembrei logo das freqüentes discussões jurídicas envolvendo a concessão de benefícios assistenciais para portadores de deficiência.  Neste post, pretendo analisar esse tema para mostrar que a interpretação das leis, assim como a vida de Josef Klimber, também é uma caixinha de surpresas.

Pode tirar o sorriso do rosto que, a partir de agora, é sério.

A CF/88 contém vários instrumentos jurídicos que procuram beneficiar as pessoas portadoras de deficiência. Houve, no caso, uma nítida preocupação do constituinte em facilitar a vida dessas pessoas, prevendo medidas de discriminação positiva no intuito de aumentar as suas chances de vencer na vida e se integrar socialmente.

Foi nesse contexto que foi criado o benefício assistencial para portadores de deficiências. O constituinte determinou que toda pessoa portadora de deficiência que comprove não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família terá direito a receber  um salário-mínimo por mês da Assistência Social (art. 203, inc. V, da CF/88).

A Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/93 – LOAS) regulamenta o dispositivo constitucional, estabelecendo que, para receber o benefício, “a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho” (art. 20, §2º, da Lei 8742/93). Quem concede ou não o benefício é o INSS, geralmente com base em perícia médica realizada no requerente, que leva em conta uma série de fatores, como escolaridade, capacidade de locomoção, capacidade de praticar os atos da vida diária etc.

O conceito de “incapacidade para o trabalho e para a vida independente” tem gerado inúmeras controvérsias que muito freqüentemente deságuam na Justiça Federal.

Em alguns casos, o INSS adota uma interpretação tão rígida desse requisito que somente as pessoas em estado vegetativo teriam direito ao benefício. É como se eles olhassem para a pessoa e dissesse: ora, você não é tão incapaz assim; afinal, se Josef Klimber foi capaz de tudo aquilo, por que você não pode trabalhar? Que tal trabalhar como lambedor de selos para os Correios? Já pensou em trabalhar como peso de papel? O Stephen Hawkings é muito mais incapacitado do que você e é um dos maiores físicos do mundo.

Em virtude dessa postura adotada pelo INSS, milhares de pessoas portadoras de deficiência batem às portas da Justiça Federal para conseguir obter a concessão judicial do benefício assistencial que fora negado administrativamente. Os juízes federais costumam adotar, de um modo geral, uma postura mais favorável a essas pessoas, criando um conceito mais flexível de “incapacidade para o trabalho e para a vida independente”. Nesse sentido, a TNU – Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais aprovou o seguinte enunciado:

“Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento”.

A própria Advocacia-Geral da União se curvou a esse entendimento e aprovou a seguinte súmula administrativa:

Enunciado nº 30 – “A incapacidade para prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da incapacidade para a vida independente, conforme estabelecido no art. 203, V, da Constituição Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993”.

O que se nota é uma tendência em mitigar o conceito de “incapacidade para vida independente”, de modo a permitir que pessoas que são capazes de realizar os atos da vida diária por conta própria (como lavar-se, alimentar-se, vertir-se etc.) também possam receber o benefício assistencial caso não tenham condições de trabalhar por causa de sua deficiência.

Há várias situações em que a deficiência incapacita para o trabalho, mas não incapacita para a vida independente. É o caso, por exemplo, de uma empregada doméstica que esteja em tratamento quimioterápico de câncer. Pode até ser que, nessa situação, não exista incapacidade para vida independente, mas, com certeza, essa pessoa não pode trabalhar, pelo menos não em trabalhos braçais. E como a escolaridade das empregadas domésticas geralmente é parca, então é praticamente impossível que ela consiga exercer uma atividade que não exija esforços físicos. Ela dificilmente conseguirá sobreviver se não receber o benefício assistencial.

O enunciado da TNU acima citado facilita, sem dúvida, a concessão do benefício e ajuda a cumprir o objetivo constitucional de se construir uma sociedade mais justa e solidária.

Mesmo assim, ainda não é fácil a tarefa de definir quem tem e quem não tem direito ao benefício. Enquanto juiz, sinto grande dificuldade ao analisar esse tipo de processo.  É que, em muitos casos, a concessão do benefício pode gerar uma situação de dependência paternalista da pessoa portadora de deficiência em relação ao Estado, que não é desejável. Há deficiências e deficiências. Conceder o benefício assistencial para quem tem uma deficiência menos grave nem sempre é uma solução justa, pois se estará estimulando a ociosidade e certamente não foi isso que o constituinte tinha em mente quando criou o “loas”.

Uma pessoa tetraplégica certamente faz jus ao benefício. Mas uma pessoa que só tenha um braço também faz? É justo que uma pessoa tetraplégica receba o mesmo valor que uma pessoa de um só braço? Uma pessoa que tenha o “pé torto” deve receber o benefício? E uma pessoa que tenha escoliose? E uma pessoa que sofra de epilepsia? E uma pessoa que ainda esteja nos estágios iniciais da AIDS, que pode trabalhar, mas não consegue emprego por causa da discriminação e do estigma?

Esses são alguns dilemas que os juízes federais enfrentam diariamente, especialmente os que atuam nos juizados especiais federais. Curiosamente, esse tipo de causa é  considerado  como de “menor complexidade”. Na minha ótica, são as causas mais complexas e difíceis que um juiz pode decidir.

Já perdi algumas noites de sono por conta de causas desse tipo. Uma delas já narrei aqui, onde, de forma deliberada e consciente, preferi sacrificar a técnica processual em favor da dignidade humana.

Outra causa marcante em minha vida foi quando ouvi o depoimento de um portador do vírus HIV de uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Norte. Depois de ser expulso de casa após sua família descobrir a doença, ficou vagueando pela cidade até que, literalmente, foi mandado embora a pedradas pela população daquele pequeno município, que não queria um aidético homossexual perambulando por suas ruelas. Vivendo como mendigo em Mossoró, sobreviveu graças à ajuda de uma entidade religiosa que o deu abrigo. Pediu o benefício assistencial ao INSS. Negado, pois ele não era incapaz para o trabalho. Ingressou na Justiça, e o perito judicial deu a mesma resposta, embora reconhecesse sinais de fraqueza, dificuldade respiratória e incapacidade para realização esforços físicos. Não tive a menor dúvida em conceder o benefício, apesar dos laudos médicos, pois visivelmente aquele ser humano já tinha chegado na escala mais baixa da sua dignidade. O “loas”, para aquele cidadão, cujo valor não chegava nem a uma diária recebida por um juiz, era o mínimo que o Estado lhe devia. Ele chegou ao fundo do poço. Se eu negasse o benefício, com certeza ele teria todo o direito de repetir a última frase dita por Josef Klimber.

 

DESCs em Portugal – Colaboração do Júlio Coelho

Estava olhando uns e-mails antigos e encontrei um texto que o meu amigo Júlio havia me enviado desde o início do ano. Foi um paper que ele escreveu no seu curso de mestrado em Portugal tratando dos direitos econômicos, sociais e culturais naquele país.

O tema é interessante, e eu já tive a oportunidade de comentar resumidamente o pensamento de alguns juristas portugueses na minha dissertação de mestrado (aqui).

O Júlio abordou o tema com muito mais conhecimento de causa, já que ele está pesquisando diretamente na fonte, ou seja, no direito português.

Eis o texto:

O REGIME DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: O PROBLEMA DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS (DESC).

Por Júlio Coelho, juiz federal no Ceará e mestrando em direito constitucional em Portugal

A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 trata os Direitos Fundamentais em sua Parte I, uma das mais extensas e densas da Constituição, na qual estão consagrados direitos pertencentes às várias “gerações” de direitos fundamentais, desde os clássicos direitos de liberdade aos mais recentemente consolidados direito ao ambiente (art. 66, CRP) (chamados direitos de quarta geração ou dimensão).[1]

Com isso, rejeita o regime anterior da Constituição de 1933, em que os direitos fundamentais eram sumariamente enunciados e passíveis de restrições legais de natureza absoluta[2]. Ao retirar os Direitos Fundamentais da esfera de disponibilidade do legislador ordinário, a CRP reconhece que, por sua importância, não podem eles ficar sujeitos à uma simples maioria parlamentar ocasional, conforme lembra Robert Alexy[3].

Esse tratamento reflete a natureza do Estado português como de direito democrático (art. 2º, CRP), pois, segundo Canotilho e Vital Moreira, os Direitos Fundamentais e o princípio do Estado de direito democrático são inerentemente ligados, o que se reflete em toda a ordem constitucional.[4] Reflete, especialmente, a fundamentação da República portuguesa no princípio da dignidade da pessoa humana, cuja positivação constitucional (art. 1º, CRP) traduz seu valor jurídico-normativo, apto a suscitar importantes conseqüências no ordenamento constitucional, tais como fator de integração e de orientação hermenêutica, mas essencialmente como fator de unidade axiológica da constituição[5].

Um dos grandes temas de discussão quanto aos direitos fundamentais em Portugal, que vem gerando uma série de debates acadêmicos e também políticos, é a questão da existência de uma suposta divisão dual dos direitos fundamentais entre Direitos, Liberdades e Garantias (DLG) e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC).

Na doutrina portuguesa, poucos questionam a fundamentalidade dos DESC[6], até mesmo porque eles são extensivamente disciplinados pela CRP. A Constituição portuguesa, aliás, em estudo comparativo realizado por Ben-Bassat e Momi Dahan[7], ocupou o primeiro posto no ranking de constituições analisadas no que diz respeito ao seu compromisso com os DESC, seguida pela Constituição Federal brasileira de 1988.

No caso brasileiro, a doutrina majoritária defende, com base em seu tratamento constitucional, que os DESC têm tratamento equivalente aos DLG quanto a sua força normativa (art. 5º, § 1º, CF/88), não sendo cabível sequer uma discussão acerca de um suposto regime jurídico diverso no campo dos Direitos Fundamentais.[8]

Em Portugal, entretanto, não obstante essa extensa previsão constitucional, a maior parte dos autores[9] defende regime jurídico bastante diferenciado para os DESC em relação aos DLG, com base em uma série de argumentos.

Em uma síntese apertada, defende a doutrina majoritária que, enquanto os DLG, como clássicos “direitos de defesa” (liberdade negativa de intervenção estatal), gerariam deveres omissivos do Estado, os DESC seriam fonte de obrigações concretas (prestações positivas) para o Estado. Por isso, os DLG independeriam da disponibilidade material do Estado, ao passo que os DESC estariam sujeitos à presença de pressupostos materiais, pressupostos materiais, nomeadamente orçamentários.

Como argumento subseqüente, os DLG seriam considerados “direitos fortes”, de conteúdo concreto, que teriam aplicação direta e cuja observância depende unidamente da vontade política do Estado, de modo que o Poder Judicial poderia anular atos que violassem essa obrigação de se abster. Os DESC, por sua vez, seriam “direitos fracos”, não sindicáveis judicialmente em face da impossibilidade do Poder Judicial impor condutas de dar ou fazer ao Estado, sempre condicionadas à reserva do possível política (do legislador e do Executivo) e financeira[10].

Ademais, no campo formal, o ordenamento português teria positivado os DLG e os DESC em títulos diversos (II e III, respectivamente), sendo que somente os primeiros teriam força nomativa plena e eficácia imediata (art. 18, n. 1, CRP)[11], enquantos as normas de DESC seriam aspiracionais ou direitos programáticos[12], sujeitos à concretização legal, em vez de direitos subjetivos concretamente definidos.

Essas considerações, embora bem construídas, não se sustentam sob um exame mais minucioso, o que, aliás, já vem sendo observado por parte da doutrina portuguesa.

Muitos dos direitos consagrados tradicionalmente no rol dos DLG requerem ações positivas estatais, sem os quais não podem ser exercidos como, por exemplo, o acesso aos tribunais (art. 20.1), direito de antena (art. 40) ou o direito de sufrágio (art. 49), dentre outros. Os “direitos de defesa”, portanto, não podem ser entendidos num sentido puramente negativo[13].

Ao mesmo tempo, embora os DESC de fato de caracterizem por predominância de prestações positivas, leciona Jorge Miranda que eles podem implicar obrigações omissivas estatais, como o de não impedir o acesso e fruição de serviços públicos sociais existentes[14]. Logo, todos os DF estruturalmente apresentam uma vertente negativa (direito de defesa) e uma atuação positiva em relação ao Estado.

Quanto aos custos, observa-se que a escassez de recursos é limite fático para todos os direitos, sejam DLG ou DESC, e ambos exigem recursos estatais para sua aplicabilidade. Todos os direitos têm custos financeiros públicos. É certo que as prestações de cunho social têm custos financeiros mais diretamente visíveis, mas os DLG implicam em despesas gerais e difusas para sua proteção, que são menos visíveis, mas nem por isso, inexistentes. Como exemplo, temos os elevados gastos com a proteção da propriedade privada, com a organização de eleições, dentre outros[15].

O aspecto formal de positivação na ordem constitucional, por sua vez, embora possa servir de instrumento de auxílio de interpretação, é critério muito restrito para classificação de DF, uma vez eles não constituem parte isolada da Constituição e não podem ser observados fora do contexto sistemático. A divisão tópica entre DLG e DESC na constituição lusa tem origem no contexto histórico de sua elaboração, e não resulta em critérios dogmáticos. Observam Canotilho e Vital Moreira que não há critérios únicos para classificação de um direito como DLG ou DESC, quer por seu objeto, quer por sua natureza. Há direitos eminentemente prestacionais no Título II (cf. art. 35, CRP) e direitos estruturalmente similares aos DLG no Título III (cf. art. 62, CRP), sem falar na existência de outros DF difusos no texto constitucional (cf. art. 271, n. 1, CRP)[16].

No tocante à força normativa, observa Reis Novais que somente o n. 1 do art. 18 não se aplica aos DESC, de modo que o regime de proteção desses direitos é o mesmo dos DLG. Estão, portanto, protegidos de uma liberdade de conformação legislativa absoluta e qualquer atividade restritiva devem respeitar seu conteúdo essencial e os princípios estruturantes da Constituição, como o da igualdade, da proteção da confiança, da proibição do excesso e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana[17].

Retomando o conceito de dignidade como fator de unidade axiológica, tem-se que todos os DF são vinculados a esse princípio, independentemente de origem ou geração. Observa Isabel Moreira que, na verdade, os DESC são por vezes muito mais ligados à dignidade da pessoa humana que os DLG, no momento em que eles visam proteger um mínimo para existência condigna[18].

Surge assim a resposta para o problema da judiciabilidade: não obstante a concretização legislativa seja geralmente imprescindível para a efetiva concretização dos DESC, preservado o amplo poder de conformação fundado no princípio democrático, sua ligação com a dignidade da pessoa humana permite que, em situações limite e considerando as circunstâncias concretas, seja reconhecido um direito subjetivo a uma prestação positiva mínima do Estado que venha evitar a vulneração da dignidade[19].

Apesar desse discurso desse indivisibilidade, que tem caracterizado a moderna doutrina dos DF, os DLG ainda são, de forma geral, legal e politicamente privilegiados em relação aos DESC, quer no ordenamento positivo[20], quer na conduta administrativa.

Contudo, embora se reconheçam diferenças estruturais entre DLG e DESC, elas não podem dar ensejo a uma mitigação da força normativa desses últimos, uma vez que os todos os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana de caráter fundamental devem ser interpretados como integrantes de um único sistema, com igual força normativa e iguais dificuldades de concretização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. 2ª ed. Madri: Editorial Trotta, 2004.

ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais: introdução geral. Estoril: Princípia, 2007.

ALEXY, Robert. A theory of constitucional rights. Trad. por Julian Rivers. Oxford: Oxford University Press, 2004.

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra: Almedina, 2004.

CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. CRP – Constituição da República Portuguesa anotada. Vol. I. 4ª. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007

HOLMES, Stefhen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 2000.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000.

MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional. Tomo I. Coimbra: Coimbra: Coimbra ed. 2008.

______. Fiscalização da constitucionalidade e garantia dos direitos fundamentais: apontamento sobre os passos de uma evolução subjetivista. In: MENEZES CORDEIRO, Antonio et al. (org.). Estudos em homenagem ao professor doutor Inocêncio Galvão Telles. Vol. V, Coimbra, Almedina, 2002, p. 85-113.

MOREIRA, Isabel. A solução dos direitos: liberdade e garantias e dos direitos econômicos, sociais e culturais na Constituição Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2007.

NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 2007.

REIS NOVAIS, Jorge. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra editora, 2006.

______. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed., 2004.

SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007

______. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais: funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra: Coimbra Ed., 2006.


[1] Arts. 12 ao 79 da CRP.

[2] A CRP de 1976 deriva justamente do sucesso do movimento revolucionário de 25 de abril de 1974,conhecida como a Revolução dos Cravos, que acabou por derrubar o regime autoritário que durou 48 anos, sob o comando de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, sob o regime da Constituição de 1933.

[3] ALEXY, Robert. A theory of constitucional rights. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 434 e ss.

[4] CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. CRP – Constituição da República Portuguesa anotada. Vol. I. 4ª. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 307-308.

[5] A respeito da dignidade da pessoa humana, e sua relação com os direitos fundamentais, cf. MARTINEZ, Miguel Angel. La dignidad de la persona como fundamento del ordenamiento constitucional español, Leon, 1996; ROUSSEAU, Dominique. Les libertes individuelles et la dignité de la personne, Paris: Montchrestien, 1998; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001; REIS NOVAIS, Jorge. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

[6] Segundo José Ignacio Martinez Estay, em artigo denominado “Valor e sentido dos direitos sociais”, os DESC não seriam direitos fundamentais, pois, em razão de sua indeterminação quanto ao seu conteúdo especifico, ou mesmo inexistência de conteúdo essencial, não poderiam ser considerados como normas jurídicas geradoras de direitos. (In CUNHA, Paulo Ferreira da (org). Direitos Humanos. Coimbra: Almedina, 2003.

[7] BEN-BASSAT, Avi; DAHAN, Momi. Social rights in the Constitution and in practice apud MARMELSTEIN, George. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Dissertação de mestrado. Disponível em: <http://direitosfundamentais.net&gt;.

[8] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999; SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007

[9] Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais: introdução geral. Estoril: Princípia, 2007; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional. Tomo I. Coimbra: Coimbra: Coimbra ed. 2008; dentre outros.

[10] Blanco de Morais, por exemplo, resuma assim a referida dualidade: “De um lado, teremos os direitos, liberdades e garantias, como direitos de primeiro grau, em conseqüência do seu regime de aplicação directa e de vinculação de entidades públicas e privadas; da reserva de lei que envolve a respectiva disciplina; e da necessidade de a sua restrição se processar mediante lei geral e abstracta, não retroativa, respeitadora do núcleo do direito tributário do princípio da proporcionalidade. De outro, os direitos econômicos, sociais e culturais, como direitos de segundo escalão contidos em normas programáticas as quais, na qualidade de directrizes dirigidas ao legislador, se encontram sujeitas à reserva do possível e conferem ampla discricionariedade ao decisor normativo para sua concretização.” (Fiscalização da constitucionalidade e garantia dos direitos fundamentais: apontamento sobre os passos de uma evolução subjetivista. In: MENEZES CORDEIRO, Antonio et al. (org.). Estudos em homenagem ao professor doutor Inocêncio Galvão Telles. Vol. V, Coimbra, Almedina, 200, p. 86.

[11] “Art. 18, n. 1: Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

[12] Sobre o tema da eficácia das normas na teoria geral da constituição, Cf. CRISAFULLI, Vezio. La Costituzione e sue disposizioni di principio. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1952; SILVA, José Afonso, Aplicabilidade das normas constitucionais, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999; BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição – fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

[13] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital, op. Cit., p. 314-315.

[14] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Direitos fundamentais. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 112.

[15] Sobre a temática do custos dos direitos, cf. HOLMES, Stefhen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 2000; AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos do direito: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 2007.

[16] CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Op. Cit. p, 308-309.

[17] REIS NOVAIS, Jorge. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra editora, 2006, p. 197 e ss.

[18] Estas são as palavras de Isabel Moreira: “na verdade, pontapeando a estafada caracterização dos direitos negativos, parece poder afirmar-se sem rodeios que os direitos econômicos, sociais e culturais são muito mais exigidos pela dignidade da pessoa humana que os direitos políticos; ou seja: encontramos direitos sociais mais intimamente ligados à dignidade da pessoa humana que certos direitos de liberdade, o que põe em crise a distinção abstrata entre uns e outros direitos baseada numa mais intensa ligação à dignidade da pessoa humana por parte dos direitos de liberdade”. MOREIRA, Isabel. A solução dos direitos: liberdade e garantias e dos direitos econômicos, sociais e culturais na Constituição Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2007, p. 138.

[19] Sobre o tema, vale conferir o paradigmático precedente do Tribunal Constitucional português (Acórdão 509/2002).acerca do Rendimento Social de Inserção (RSI), no qual se reconhece o direito subjetivo ao mínimo para existência condigna. Disponível em: <www.tribunalconstitucional.pt>.

[20] A dualidade no tratamento positivo dos direitos fundamentais, além de adotada no ordenamento constitucional português, conforme mencionado, também ocorre na regulação internacional dos direitos fundamentais pelas Nações Unidas, que ocorre pelo Pacto de Direitos Pessoais, Civis e Políticos (PIDCP) e pelo Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966. Contudo, vale observar que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia de 2000 transcende essa tradicional dicotomia legislativa entre os direitos fundamentais, agrupando todos os direitos fundamentais em um mesmo documento, divididos em categorias inéditas: dignidade, liberdades, igualdade, solidariedade, direito dos cidadãos e justiça.

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