Desrespeito ao outro versus desrespeito à lei

Hoje mais cedo, nas minhas tradicionais caminhadas pelas ruas de Coimbra, fiquei pensando as baboseiras abaixo:

A base do direito não deve ser o respeito à lei, mas o respeito ao outro. É lógico que o respeito ao outro pode levar ao respeito à lei, já que a lei pode e deve servir como “instrumento de compartição de liberdades” (Arnaldo Vasconcelos), a fim de permitir que cada pessoa possa exercer sua autonomia privada de modo mais amplo possível sem afetar os interesses de outras pessoas (Kant, Mill etc.). Mas o mero cumprimento da lei, por si só, não tem um valor intrínseco tão elevado. Uma lei que não seja útil para implementar essa regrinha básica – respeito ao outro – é destituída de significado. Pior ainda é uma norma que, ela própria, permita o desrespeito ao outro ou então não proíba o desrespeito ao outro. Esses tipos de normas não podem ser consideradas como jurídicas.

Para uma tese tão grandiosa, nada melhor do que um exemplo banal.

Nesses últimos dez anos, conheci sete países, entre países bem colocados no ranking do IDH (Holanda, Bélgica, França, EUA, Espanha, Portugal) e outros nem tanto (Brasil, Argentina).

Em todos, sem exceção, os pedestres descumprem uma lei básica do trânsito: a que proíbe passar quando o semáforo está vermelho. É um fenômeno universal: quando não vem carro, todo mundo atravessa a rua, mesmo que o semáforo de pedestres esteja vermelho.

Muitas explicações podem ser dadas para isso. Alguns diriam que a falta de uma sanção ou de fiscalização seria o fator preponderante. Outros diriam que as cidades que visitei eram turísticas e, portanto, quem descumpriu a regra foram os estrangeiros. Outros diriam ainda que o fator que levou ao descumprimento foi o costume. Discordo. Creio que nenhuma dessas hipóteses constitui o fator preponderante. Passo a apresentar a minha versão.

Acho que a principal razão é que o descumprimento dessa regra não prejudica outras pessoas. Aliás, não há prejuízo para ninguém. Prejuízo haveria se a pessoa ficasse parada, esperando, perdendo seu tempo, mesmo sabendo que não há qualquer perigo em atravessar a rua.

Não é o medo da sanção por uma razão muito simples. Nos países bem colocados no ranking do IDH, ninguém joga lixo no chão, mesmo sabendo que não há sanção ou fiscalização. Em regra, as pessoas procuram uma lixeira, ainda que estejam em um lugar isolado.

Por que, nesse caso, eles cumprem a regra? Creio que, nesse caso, descumprir a regra desrespeita outras pessoas, inclusive ele mesmo, na medida em que prejudica o meio-ambiente, deixa a cidade mais suja, entope os bueiros etc. Há uma cultura já arraigada de que esse ato não deve ser praticado. E essa cultura é respeitada porque tem algum sentido para a regra básica de respeitar o semelhante.

Por isso, creio que o fundamento último do direito não é o respeito à norma, mas o respeito ao outro – essa é a norma fundamental (Grundnorm). O papel do direito é permitir que as pessoas convivam livremente, sem se desrespeitarem mutuamente. E se a gente for mais além, verificaremos que essa Grundnorm de hipotética não tem nada. A seleção natural explica. Ah, e a Bíblia também… E aqui unimos Darwin com o Cristianismo!

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Aliás, acabei de receber um e-mail do Epicuro em que ele diz que, há mais de dois mil anos, ele já dizia que: “o direito natural é uma convenção utilitária feita com o objetivo de não se prejudicar mutuamente”.

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Outro upgrade:

“O altruísmo tem uma base biológica e revela-se vantajoso para a sobrevivência das espécies, em particular do género humano. Mas a experiência religiosa não se opõe ao património de altruísmo que é fruto da evolução biológica e cultural, apenas lhe aumenta o sentido”.

Dito por um padre…

16 comentários em “Desrespeito ao outro versus desrespeito à lei”

  1. “Prejuízo haveria se a pessoa ficasse parada, esperando, perdendo seu tempo, mesmo sabendo que não há qualquer perigo em atravessar a rua.”

    É isso mesmo. Isso até é muito mais válido para ciclistas em Amsterdã. Se parar num sinal aonde não vem carro, você corre o risco de ser atropelado por outro ciclista!

    Acabei de colocar um post no meu blog sobre o caso Wilders, espero que goste.

  2. Além das normas jurídicas, regulam as nossas vidas outras espécies de normas sociais: aquelas mesmas que ainda em Introdução ao Direito I aprendemos.

    Aliás, George, vc está com a mania de tudo explicar pelas ciências naturais, essa de Darwin foi o suprasumo, ainda que na brincadeira. Até porque já seria um erro explicar o fato que observou apenas sob a ótima da ciência do Direito, desconsiderando outras ciências humanas.

    Não jogar lixo nas ruas ultrapassa uma explicação jurídica.

    Não estive na Argentina na época recente da bancarrota, quando até o arcaico escambo se tornou rotineiro, mas a violência, apesar da miséria que assolava aquele país, pelo que sei, nunca chegou a patamares sequer próximos a que ocorre no Brasil, e a explicação para essa diferença passa longe da ótica dos juristas, mormente os naturalistas, adentrando em outras searas como a educação.

    Em outro post anterior seu, assim que vencer a preguiça, explico melhor as cautelas que tenho a essa linha metodológico-naturalista (positivista mesmo do final do século XIX e meados do XX) que vc a algum tempo vem seguindo.

    A preguiça é porque infelizmente não tenho essa sua saudável compulsão de escrever.

  3. Não podemos nos esquecer de que, além do controle social levado a cabo por normas jurídicas (formal), existe aquele decorrente de normas sociais (social rules), classificado como controle social informal. Acho que é o caso do lixo na rua.

    Nesse caso, o respeito ao outro estaria sendo cumprido igualmente por via oblíqua.

    No mais, esse novo pensamento que lhe ocorreu (o direito se embasa no respeito ao outro) parece um meio salutar de superar concepções “funcionalistas” do direito, as quais estão arraigadas, em direito penal, nas modernas teorias de prevenção geral positiva, que encontra insignes defensores aí em Portugal (não sei se em coimbra).

  4. Muito bom!
    Matou a pau, mais uma vez e como sempre, Dr. George.
    Como li outro dia – nao me lembro o local e o autor, as pessoas têm que aprender que o outro eh a encarnaçao do limite. Tai o objetivo do Direito – garantir a convivencia social pacifica.

    Obs. Desculpe, meu teclado esta desconfigurado.

  5. Sabe porque a maioria dos leitores aqui entram nesse blog com muita ansiedade? pq vc transmite de forma cristalina, aquilo que nos sentimos, mas não conseguimos explicar.

    Prof.. Apoio esse seu modo de misturar tudo para obter o melhor para si, almejando também, que outras pessoas aceitam suas teorias, e assim, caminharemos juntos rumo ao sol, para um mundo melhor para todos, esse sim é o conceito de liberdade, que ate mesmo vc procurando outras ciências para poder explicar sua tese (não sei se vc enxerga elas não como apenas outras ciências, e sim como “separadas, mas em harmonia”), mostra que sua mente tem liberdade, não esta encarcerada apenas no mundo jurídico, porém esse é seu instrumento, e eu mesmo, como sou novo e moro sozinho, tenho a mania de misturar tudo para encher a barriga..rss (ate pq desconheço a moda culinária), e uso da mesma teoria para meus conhecimentos (tais matérias não vem ao caso aqui, se não o pessoal vai pensar que estou querendo me gabar, e ate pq não entendo nada, mas me esforço, pois tenho curiosidade para obter uma pequena noção desse mundo complexo).

    porem…

    Prof, eu penso que o respeito pressupõe varias coisas, no caso do Brasil, aquelas pessoas em estado de necessidade (fome, higiene, moradia etc…) em quase todos os sentidos, cada o respeito delas? certamente estão sendo desrespeitadas, então a norma que lhes protegem, não é jurídica?… pois existe uma omissão enorme por parte do estado e também da colectividade para poder virar o jogo, como mencionou Durkheim ” a solidariedade tem sua moral intrínseca”.. Será que os parlamentares devem formular normas que obriguem vc a ser solidário?,, ahhh sim, certamente essa seria também uma norma que jamais poderia ser chamada de jurídica, pois ninguém ia respeitar ela, a consciência coletiva, vem do respeito ao próximo, do respeito a natureza ou ate mesmo do respeito que vc tem de si mesmo, e que muitos almejando seu proprio respeito, criam tais leis…. Então observando seu modo de pensar, Talvez, ou ate com plena certeza que esse seja o DIREITO DO SECULO XXI, uma nova noção sobre direito.

    Lembrando que um cara chamado Paulo, ja mencionava sobre esse assunto, não preparou uma tese, mas fez em forma de musica. e pra quem duvida, é so dar uma olhada na letra e DEPOIS TER SEUS MINUTOS DE RELEXÃO “Formula Magica da Paz Racionais.Mcs”.

    Obrigado pelo espaço George, confesso que ainda nao sei me expressar muito bem, mas o que vale é agir.

    OBS: CUIDADO dak a pouco vem um nobre colega e faz igual fez comigo, QUEM DISSE??? porém se tiver boa fundamentação, vamos ao debate

    :—-)

  6. Muito me espanta um seguidor de Popper cogitar criar uma teoria dessa invergadura com base na inducao. E o mais grave: querer induzir a grande norma, o fundamento das demais normas juridicas, a partir da observacao despretenciosa de um unico fato juridico.

    O raciocinio proposto por vossa senhoria eh: se a LEI pode ser desrespeitada, desde que o infrator nao PREJUDIQUE TERCEIROS, o fundamento do Direito nao pode ser uma norma hipotetica, do tipo “se x, entao y”. Se um fato eh abonado pelo direito, ainda que contrario a lei, o fundamento do direito nao pode ser uma norma, e sim um VALOR: o mesmo que torna “legitimo” o desrespeito ao sinal vermelhor de transito, o qual prega o NAO DESRESPEITO A TERCEIROS.

    Ha dois erros graves na teoria cogitada. Primeiro, o desrespeito ao sinal vermelho nao eh fato fenomenico que escapa DA INCIDENCIA DA NORMA JURIDICA. Encaixa-se no suporte fatico da norma que prescreve: “se desrespeitar o sinal de transito, serah imputada ao infrator a pena y”.

    O fato de o guarda de transito ou, ate mesmo, o juiz nao aplicarem a sancao devida, por entenderem que o descumprimento nao prejudicou terceiros NAO REPRESENTA QUE A NORMA JURIDICA NAO INCIDIU AO CASO CONCRETO. Como alertou Pontes de Miranda, nao se deve confundir incidencia com aplicacao da norma. Sao dois fenomenos juridicos distintos. A aplicacao jah representa o cumprimento de outra norma juridica, que pode ser descumprida ou nao.

    Se o juiz nao encontrar PRINCIPIO CONSTITUCIONAL que o permita dispensar a aplicacao da norma, deve aplica-la. Nao pode simplesmente ESCANCARAR na sentenca que o valor “nao se deve punir quando a infracao nao ofender terceiros” impede a aplicacao da norma. Estaria decidindo de maneira errada. Pelo menos para os que sabem distinguir valores e as normas-principios que os consagram. Oras, nao eh o senhor, transplantando as ideias de Popper para o Direito, que DEFENDE ISSO?

    Alem disso. Ha normas juridicas que nao representam a consagracao desse valor humanistico. As normas que regulam a criacao das outras nao podem ser desobedecidas, ainda que nao haja prejuizo a terceiros com o seu descumprimento. Afinal, que prejuizo haveria EM APROVAR uma emenda por 2/3? Nao vale apelar para ofensa ao abstrato PODER CONSTITUINTE, nem para Ulisses e a corda que o mantem preso contra as tentacoes do mal.

    Popper jah criticava a inducao nas ciencias da natureza, EM QUE, por regra, DOS FATOS se criam teorias. Imagino como nao deveria ser sua AVERSAO AO MESMO TIPO DE RACIOCIO NO DIREITO. Induzir o FUNDAMENTO DAS NORMAS (mundo do dever-ser) a partir de um unico fenomeno do ser.

    Popper com certeza se remexe na cova…

    Parece que, ao mesmo tempo em que quer RACIONALIZAR A SENTENCA, obrigando os juizes que sigam o metodo do falcificacionismo a cada pretensao resistida, quer TORNAR IRRACIONAL O DIREITO, querendo encontrar algo a mais que a norma como objeto do cientista do direito.

    Tambem pudera: se o juiz, como disse o sr. no seu paper, pode utilizar fundamentos SOCIOLOGICOS, psicologicos, em sua sentenca, EH PRECISO demonstrar que essas materias extra-juridicas tambem pertencem ao Direito.

    Com certeza, chegarah a mesma conclusao que Kelsen chegara no seculo passado: O JUIZ PODE utilizar fundamentos sociologicos, psicologicos, porque HA NORMAS com suporte fatico vago ou impreciso que o permite. O fundamento estah em norma comum, portanto, e nao na SUPOSTA GRANDE NORMA.

  7. Minotauro,

    vejo que você é um grande conhecedor de Popper e, mais ainda, conhecedor das minhas idéias. Talvez por isso consiga enxergar mais longe do que minhas limitadas percepções…

    Primeiro: basta ler a primeira frase para perceber que o que estou apresentando é uma mera conjectura.

    Segundo: esse conjectura não surgiu porque eu observei um fato e, a partir dessa observação, cheguei à conclusão que está no post. O pensamento meramente indutivo não existe. É impossível. Senão, todo mundo chegava à mesma conclusão. Foi preciso que, na minha mente, uma idéia tenha surgido, talvez influenciado pelas minhas observações. Enfim, não quero invocar Searle por enquanto, senão a viagem vai ser grande…

    No mais, gostaria que você me mostrasse a passagem em que Kelsen diz que o juiz pode usar na fundamentação argumentos sociológicos, psicológicos etc. Seria muito bom para complementar meu paper, pois eu ganharia um grande aliado.

    George

  8. Ingresso neste 02 de fevereiro no curso de Direito e percebo que é um universo grandioso a comportar as relações humanas com o fim principal de estabelecer e manter a pacificação entre as pessoas, além de interpretar coerentemente toda dinâmica da vida. Seu artigo é muito bom , pois nos leva a refletir acerca das várias possibilidades de interpretação de uma mesma situação. Parabéns!

  9. George,
    Concordo com você. O direito é compartição de liberdade. Não tem sentido se não houver o outro. E não tem sentido se for a mera dominação do outro. Confunde-se com a força, e faz do homem animal. Direito e força não se confundem, e não é esta que fundamenta aquele.
    Quanto à sua “teoria” ser indutiva, penso que a crítica é desarrazoada.
    Não interessa de onde você tirou a idéia de que o direito se funda no respeito. O que interessa é que os fatos observados, por enquanto, confirmam isso. Nada mais popperiano.
    E outra: você não questionou se a norma “incidiu ou não incidiu”. Você questionou o fundamento, o que é coisa diversa. A razão da obrigatoriedade. As pessoas não “se sentem obrigadas”, vale dizer, não há justificativa para o cumprimento da norma.
    Indo para outro campo, mas ainda na mesma temática, uma norma absurdamente injusta pode até incidir, diante da ocorrência de seu suporte fático, mas não gerar o sentimento de obrigatoriedade naqueles cuja conduta seria por ela disciplinada…
    Quanto ao Kelsen, ele realmente diz que o juiz pode usar de elementos sociológicos, políticos etc.. Mas ele diz que isso não seria “jurídico”. São os fatores que, para ele, inspiram a escolha de um dentre os vários significados do “quadro ou moldura” de sentidos possíveis que a abordagem científica oferece.

  10. George,
    Você lembra da justificativa que deu para a natureza, digamos, mais informal, de alguns comentários que fez à minha tese, a partir de certa altura?
    Pois é. Estes têm fundamento análogo. Veja pela hora em que são postados, considerando o dia, e o fuso, naturalmente. Hoje a internet está em todos os lugares, e não é só o Rodrigo que resolve intempestivamente ligar para o Juraci ou para o Martônio, para tratar do Batman ou das causas de algum suicídio, respectivamente. Outras pessoas podem ser perturbadas, conquanto não acordadas em tempo real.
    Brincadeiras à parte, o que quero dizer é que as meias verdades são perigosas.
    Digo isso para quem o comparou aos positivistas do início do século XX, de influência sociológica (v.g., o Pontes de Miranda do “sistema de ciência positiva do direito”).
    Veja. Se uma parte morre, por acaso, enquanto é interrogada por um juiz, posso dizer simplesmente que a parte morreu enquanto era interrogada, deixando no ar que a morte deveu-se aos métodos pouco ortodoxos usados pelo juiz… Pode parecer que o juiz a matou, por passar da conta no uso do saco plástico asfixiante. Saber toda a história, contudo, revela que não foi bem assim. Ela morreu por acaso enquanto era normalmente interrogada. Pelo menos assim circulou a versão oficial.
    Pois bem.
    Você se estriba em constatações das ciências naturais. E, fugindo de um normativismo estéril, funda-se, por conseguinte, nos fatos. Até aí, verdade. Mas meia.
    É que você, diversamente dos positivistas sociológicos, conquanto valorize os fatos, não despreza, pelo menos até onde compreendi suas idéias, os valores. Eis aí a grande diferença. Os fatos são JULGADOS. E isso ostensivamente.
    Ou não?

  11. George,
    Aqui estah o trecho:

    “Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato. Só assim não seria se o próprio Direito positivo delegasse em certas normas metajurídicas como a Moral, a Justiça, etc. Mas, neste caso, estas transformar-se-iam em normas de Direito positivo.” pag. 249 do Teoria Pura do Direito…

    Nao sei em que a CONSTACAO DE KELSEN pode te ajudar.

    Quando a norma geral eh vaga ou remete para fatores psicologicos, sociologicos, a escolha de qual norma concreta a ser aplicada nao pertence a ciencia do direito. Eh ato de vontade, opcao politica do orgao julgador.

    A razao para o desprezo de Kelsen pelo ATO DE VONTADE EH SIMPLES: nunca se poderia considerar FALSA SOB O PONTO DE VISTA JURIDICO a escolha da norma concreta contida na moldura da norma geral. Dai por que soh a opiniao do orgao julgador (interprete autorizado) interessa. Em termos popperianos, a escolha da decisao aplicavel nao estah sujeita a falsificacionismos, pelo menos nao sob fundamentos juridicos. Se nao estah sujeita a falsificacao, nao pode ser estudada pelo cientista do direito.

    A proposito, como voce consegue sair dessa sinuca de bico, George: Se a norma oferece “x” possibilidades, a escolha de qualquer delas, com fundamentacao NAO ABSURDA, sem os rigores do metodo POPPERIANO, estah correta.
    Como considerar ERRADA uma decisao que representa o cumprimento de sua norma imediata e hierarquicamente superior?

    Mais duas: O que propoe eh apenas um MANUAL TECNICO PARA FUNDAMENTACAO DE SENTENCAS ou ha alguma pretensao de alterar algo na Teoria do Direito? Nao acha que o feeling eh dispensavel ?… nao discuto a tese fatica de que os juizes, na maioria dos casos, IMAGINAM QUAL A SITUACAO mais justa e buscam todos os fundamentos possiveis para legitima-la… e sim a necessidade de ESCANCARAR NA SENTENCA a decisao justa para, posteriormente, submete-la ao falsificacionismo.
    O criterio do feeling, a tal JUSTICA SENTIDA PELOS JUIZES (ai ai ai ui ui!!), eh ainda mais problematico: jah imaginou o caso do Rei Salomao, analisado segundo a atual legislacao, sendo resolvido segundo o seu metodo:
    Ha duas mulheres que alegam ser MAE de um bebe. Nao ha DNA, e estah vigente a regra que proibe o non liquet…

    Salomao, do alto de sua sabedoria, propoe a decisao que considera mais justa:

    Sentenciar no sentido de que a crianca seja cortada ao meio, e que seja dada metade para cada pretensa mae, com a condicao suspensiva, SABIAMENTE nao escancarada na sentenca, de que a primeira mae que se pronunciasse nos autos abrindo mao da metade da crianca seria, na verdade, a verdadeira mae; devendo ser-lhe atribuida a crianca por inteiro…

    Alem da proposicao da decisao que fosse a mais justa, SALOMAO, num achismo “de lascar’, considerou que a VERDADEIRA MAE TERIA AMOR pelo FILHO, preferindo ficar sem o filho vivo a ficar com sua metade morto.

    Nao ha duvida de que a decisao de SALOMAO eh a mais justa possivel, desde que nao exista o exame de DNA. No entanto, indago: Serah que vale apena iniciar uma sentenca com essa hipotese para sujeita-la ao falcificacionismo mais a frente? Como admitir uma sentenca com condicao sob segredo? Como admitir que a condicao seja uma DEMONSTRACAO DE AMOR… excluindo o egoismo, algo tambem inerente ao ser humano? Que tal pular o FEELING( a justica sentida, os valores aceitos pela sociedade) e partir logo para o que interessa, poupando papel e tempo?

    Que tal considerar a fundamentacao com as solucoes constitucionalmente possiveis, qualquer delas ( sem essa de mais JUSTA), ao acaso, em caso de processo objetivo, e pelas pretensoes do reu e do autor tal como eh feito atualmente? Ficando a escolha do metodo ao talante do julgador, seja usando Popper ou qualquer outro metodo racional, ateh mesmo o que fosse inventando no momento pelo julgador.

  12. Hugo,

    confesso que precisaria também estar “inspirado” para responder à altura.

    Confesso que não gosto de rótulos do tipo “positivista”, “jusnaturalista”, “pós-positivista” e por aí vai. O meu modo de pensar é bem bagunçado. Tem o amor pelo argumento lógico, ainda que também aceite a lógica informal; procura objetividade; procura a crítica constante; procura uma ideologia emancipatória; procura o pluralismo, inclusive o pluralismo normativo; procura a simplicidade das idéias, procura o respeito ao outro; procura o respeito à Constituição, enfim… Não há como encaixar num rótulo específico.

    George

  13. Minotauro,

    confesso que eu já conhecia essa passagem. A idéia da moldura de Kelsen é bem conhecida e concordo, em grande parte, com essa idéia (menos que o ato do juiz é sempre um ato de vontade arbitrário). Mas o que eu gostaria era de uma afirmação por parte de Kelsen no sentido de que o juiz pode se valer de argumentos extra-jurídicos e ainda assim agir de forma correta. Pelo que você conhece de kelsen, ele diz isso em algum lugar? O que li de de Kelsen até agora foi em sentido contrário.

    George

  14. Muitos “confessos” nas respostas acima… Confesso que devo estar com algum “tique” linguístico… :-)

    george

  15. George,

    Qualquer escolha dentro da moldura estarah correta, segundo Kelsen. A RAZAO eh simples: como afirmado no proprio trecho, nao ha fundamentos juridicos (normativos) para considerar incorreta decisao que representa os varios cumprimentos possiveis de norma imediata e hierarquicamente superior.

    No entanto, penso que o seu objetivo eh justamente o contrario: buscar fundamentos para considerar INCORRETAS as demais opcoes da moldura que nao seja a FEITA SEGUNDO O SEU METODO. Soh assim conseguirah demonstrar que Kelsen estava errado quando afirmava que a escolha eh livre (qualquer delas eh correta) pelo cientista do direito.

  16. Caros Minotauro e George,

    Não sou expert no assunto, mas vou arriscar um palpite.

    Na verdade, para Kelsen, ao jurista não interessa se a norma ditada pelo juiz está CORRETA ou NÃO. A pretensão de correção ou justeza seria algo fora do Direito, que contaminaria sua pureza. Segundo Kelsen, o importante é saber se a norma é VÁLIDA ou INVÁLIDA.

    Assim, estando dentro da moldura, a norma é válida. Se ela é correta ou errada, justa ou injusta, vá indagar a um filósofo, sociólogo, psiquiatra ou algo que o valha. O jurista kelseniano não se preocupa com isso.

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