Comentários de Bruno Torrano ao meu Texto

O texto abaixo, escrito por Bruno Torrano, é um comentário ao meu texto sobre a prisão do senador Delcídio Amaral. O Bruno tem uma visão diametralmente oposta da minha sobre o direito, como tive oportunidade de saber ao ser convidado para escrever o posfácio de seu livro “Democracia e Respeito à Lei”. Ele é positivista “de carteirinha” (excludente e normativo!). Eu, por outro lado, ah, sei lá o que sou… Ou seja, há um bom debate pela frente. E esse caso é bem emblemático, pois exige um olhar crítico sobre a própria constituição, o que parece ser quase uma heresia entre os juristas.

Curiosamente, embora partindo de outros pressupostos (e distorcendo um bocadinho minhas ideias!), Bruno chega senão a resultados semelhantes, mas pelo menos às mesmas inquietações.

Enfim, leiam… Amanhã, posto minha “réplica”…

Para além das amarras dogmáticas: pode a prisão do senador Delcídio do Amaral ser considerada legítima mesmo contra o texto expresso da Constituição?

No dia 29/11/2015, o professor George Marmelstein postou, em seu excelente blog, um texto muito interessante sobre a prisão do Senador Delcídio do Amaral. O artigo não ratifica as razões de decidir adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e nem se propõe a seguir o raciocínio mainstream da dogmática jurídica: defende uma tese menos ortodoxa no sentido deque a prisão preventiva do parlamentar pode ser tida como legítima mesmo contra(!)a disposição literal do art. 53, § 2.º, da Constituição Federal. E isso em razão de normas jurídicas (e constitucionais) não-escritas que refletem pressupostos políticos e éticos fundantes do nosso ordenamento democrático.

 

Em verdade, a tese de que existe uma Constituição não-escrita tão normativa quanto a escrita só pode ser verdadeiramente chocante aos que nunca tiveram contato, sobretudo, com o direito constitucional português. O professor Marmelstein fez o doutorado em Coimbra e, posso arriscar, foi muito influenciado pela obra de Castanheira Neves. Eu fiz o mestrado em Lisboa e tive aulas com os geniais Paulo Otero e Luís Pereira Coutinho. Não fui influenciado por nenhum deles e levei uma paulada na banca por defender o positivismo anglo-americano. Mas todos esses autores sustentam algo como a suprapositividade de algumas normas não-escritas inegociáveis, as quais se antecipam e dão significância moral ao ordenamento jurídico, legitimando-o. Todas essas normas são tão “jurídicas” quanto quaisquer outras que passem por um teste fático de “pedigree”.

 

Abstraindo isso, um primeiro mérito do artigo do professor Marmelstein é notório: o texto caminha contra as soluções automáticas que alguns juristas interiorizam como dogmas inquestionáveis. Sim, há um percurso acadêmico perturbador: o sujeito entra na faculdade de direito com uma convicção inapelável, muitas vezes derivada da mera acumulação involuntária de informações desorganizadas; no decorrer do curso, ouve que a verdade absoluta é exatamente a contrária, pouco conhecida ou compartilhada em círculos não-jurídicos; logo a seguir, vem a ser consumido pela agradável sensação de participar de um grupo intelectualmente superior que vai contra o “senso comum”; e, por não mais se sentir no dever de realizar críticas reflexivas sobre suas novas concepções, usa o conteúdo de seu dogma como padrão de julgamento para qualquer caso futuro que apareça.

 

A premissa de que parte o professor Marmelstein é verdadeira. A cegueira seletiva proporcionada pelo apego radical a algumas ideias faz o indivíduo perder o senso de proporcionalidade sobre aquilo que normalmente acontece (casos centrais) e aquilo que é totalmente atípico (casos periféricos). Causa, no jurista, um “bloqueio hermenêutico” – o termo é utilizado por ele. Em casos mais patológicos, pode fazer com que o hipotético jurista rotule automaticamente qualquer outro sujeito com posições adversárias como “burro”, “antidemocrático”, “fascista” e assim por diante. E isso mesmo que a argumentação desse outro sujeito tenha sido construída após responsável reflexão sobre informações relevantes. (Dentre os que festejaram a prisão do Senador estão inteligentes e renomados cientistas políticos, filósofos, sociólogos e juristas. Não obstante, eu vi muitos gênios de Facebook apontando para a “burrice” de quem entendeu legítima a decisão do STF.)

 

Eu discordo do percurso jusfilosófico construído pelo professor Marmelstein. Os motivos não vêm ao caso no momento – somente após ler e refletir sobre sua tese de doutorado pretendo elaborar uma resposta ao “posfácio” do meu livro “Democracia e Respeito à Lei”, no qual ele, com ótimos argumentos, deu voadoras impiedosas na tese da “primazia do texto” por mim defendida. Quero apenas salientar alguns pontos complementares à reflexão geral proposta e sugerir que, mesmo em teorias mais radicais como o positivismo ético, as circunstâncias extremas em que ocorreu a prisão poderiam ensejar reflexões tendentes a questionar a pretensão de autoridade do art. 53, § 2.º, da Constituição da República.

 

Em primeiro lugar: o respeito à Constituição não é um valor intrínseco, mas um dever instrumental que deriva da reflexão sobre a qualidade moral geral de suas disposições textuais e de seus objetivos declarados. Entretanto, como constituições ideais são factualmente impossíveis, a existência de uma boa Constituição, criada por seres imperfeitos, nunca garante a prosperidade moral de todas as previsões normativas nela contidas. Podemos e devemos defender a alteração dessas cláusulas especificamente maculadas. Mas “como” deve ser feita essa modificação?

 

Em condições normais de sistemas democráticos como o nosso, os procedimentos legislativos devem ser respeitados. Mais importante do que avaliar a “verdade moral” de determinada inovação legislativa é verificar se, na elaboração do texto legal, foram respeitadas as condições procedimentais e discursivas. Afinal, uma das funções do direito democrático é, justamente, a de estabelecer, com base na deliberação da maioria, a prevalência circunstancial de posições específicas do “justo” ou do “moralmente adequado”. O “direito dos direitos” entra em jogo: a todos é conferido o direito de participar, em igualdade de consideração e respeito, da elaboração das normas que regem a vida comunitária. Mas há a contrapartida: nada garante que uma opinião, tida por um desses participantes específico como correta, será vencedora na deliberação legislativa. A regra, aliás, é exatamente a oposta: a existência, descritível como “fato social”, de diversas concepções concorrentes sobre “Justiça” implica inarredável seletividade institucionalizada. Em assembleias legislativas são catalisadas visões morais de milhões de pessoas. O fato de muitas normas jurídicas serem, na maior parte do tempo, “contra” a “minha” concepção pessoal de Justiça, longe de ser uma mera regularidade acidental, constitui parte integrante da lógica democrática.

 

Não posso aprofundar, aqui, a relação que existe entre essa seletividade institucionalizada dos conceitos de Justiça que devem “prevalecer” em dado tempo e espaço e a constatação, mais forte, de que isso deve levar à prevalência do Poder Legislativo. Não se trata, certamente, de uma implicação lógica. De todo modo, a conclusão, em suma, é a seguinte: o raciocínio moral solitário do magistrado, ou mesmo de pequenos colegiados (11 ministros continua sendo um pequeno colegiado quando comparado a 513 deputados e 81 senadores), não é, em regra, o meio adequado para realizar alterações sobre questões moralmente sensíveis que demandam debate público nas grandes assembleias deliberativas. Especialmente em áreas que abrangem direitos e garantias individuais informados pelo princípio da legalidade estrita, como no caso privilegiado do Direito Penal, as interpretações devem ser as mais restritivas possíveis, de forma a estabelecer rígidos limites ao poderio estatal. A punição deve dar-se à luz do devido processo legal. Isso vale para o ladrão de galinha. Isso vale para o estuprador. Isso vale para o sonegador de tributos. Isso vale para o político que consideramos mais repugnante.

 

Mas não existiriam exceções? Bem, ninguém seria capaz de defender o judicial constraint em ambientes iníquos como o nazismo. Ninguém estaria disposto (espero…) a aplicar normas jurídicas que determinam o assassinato de inocentes. Mas, dentro da dinâmica de um ordenamento democrático como o nosso, não seria também possível a existência de casos periféricos ou “atípicos” que demandam resposta diferenciada – porventura uma postura genuinamente moralizante(sic!) do Poder Judiciário?

 

Que um magistrado deva esforçar-se para encontrar o “ponto de vista moral do direito”, afastando a sua concepção pessoal de justiça, é uma proposição que depende de algumas constatações fáticas. Pressupõe, de um lado, que a elaboração da Constituição seja capaz de ilustrar a efetiva existência do “véu de ignorância limitado” que se espera de um procedimento supermajoritário que conduz à rigidez, estabilidade e durabilidade de um documento jurídico supremo. E, de outro, a eficácia sociológica, e não meramente jurídica, daquilo que se denomina “moralidade interna da democracia”. Não obstante a controvérsia deste último conceito, ele certamente abrange os direitos individuais e políticos sem os quais restaria impossibilitada a autonomia de deliberação e de crítica moral ao poder estabelecido. Mais do que isso, é difícil conceber uma moralidade mínima da democracia sem a noção de accountability. Aqueles aos quais transferimos o poder de legislar em nosso nome são, necessariamente, responsáveis por eventuais atos desviantes e devem, em qualquer caso, prestar contas de sua atuação da forma mais transparente possível.

 

Suponhamos, agora, na linha dos críticos da prisão do Senador Delcídio do Amaral, que a decisão do STF é constitucionalmente insustentável. Ela está errada. Ela ignora, digamos, a literalidade do art. 53, § 2.º, da Constituição da República, que permite a prisão de parlamentar só, e somente só, na hipótese de prisão em flagrante por crime inafiançável. E a situação fática descrita na decisão não se enquadra no conceito técnico de flagrância (o crime de organização criminosa não pode ser considerado “permanente”) e de inafiançabilidade (o art. 324, inciso IV, do Código de Processo Penal não trata de crimes de natureza inafiançável, e sim de circunstâncias que obstam o arbitramento de fiança para crimes afiançáveis). Vamos abstrair, também, o fato de a decisão ter sido ratificada pelo próprio Senado.

 

Enfim: o que resta no nosso raciocínio? Simples: que é legalmente impossível, custe o que custar, decretar a prisão preventiva de um parlamentar ou de um grupo de parlamentares que praticam, incansavelmente, dia após dia, atos corruptos com o único intuito de satisfazer seus interesses particulares – patrimoniais ou políticos – e de inviabilizar investigações criminais sobre esses mesmos atos. Dado que, pela interpretação da nossa legislação, crimes como obstrução de investigação sobre organização criminosa, corrupção ativa, prevaricação, peculato etc. não possuem natureza inafiançável, seria simplesmente inviável impedir, com o efeito neutralizador da prisão preventiva – ou de qualquer outra medida cautelar –, qualquer hipótese de reiteração delitiva, mesmo em casos de nítida ofensa à ordem pública, à ordem econômica, à instrução criminal ou à garantia de aplicação da lei penal (pagamento de propina a delatores, queima de arquivo, planejamento de fuga para a Espanha, etc.). Tudo isso em benefício exclusivo de quem? Dos próprios parlamentares e de seus “amigos íntimos”.

 

Com tudo isso considerado, vemos como é oportuna e instigante a reflexão feita pelo professor Marmelstein. Pode até ser que tamanha extensão da imunidade parlamentar fosse defensável em 1988 para fins de estabilização democrática. Mas também o era nos tempos da Emenda Constitucional nº 35/2001, que conferiu ao art. 53, § 2.º, a redação atual? Ou pior, é plausível no contexto de hoje? Ou constitui um privilégio inescusável? Não há, aí, uma cláusula de blindagem de accountability? Não estamos diante de condutas gravíssimas ensejadoras de “um afastamento do caso quanto aos propósitos originais da norma”, para usar a expressão do professor George? Não há, aí, uma incontornável violação ao véu de ignorância limitado que se pressupõe de um sistema baseado na igualdade perante a lei? Não se trata de um caso verdadeiramente atípico? Não se trata de um perigo concreto aos fundamentos do próprio sistema republicano? A moralidade interna da democracia pode conviver com uma regra em que o Poder limita-se a retroalimentar a própria irresponsabilidade do Poder? E, convenhamos: quais são os incentivos realistas, sobretudo em um contexto de investigações policiais generalizadas em que ninguém põe a mão no fogo por ninguém, para que os parlamentares, agindo de forma rápida e eficiente, elaborem e coloquem em pauta uma proposta de emenda constitucional que altere a redação do art. 53, 2 .º, de modo a viabilizar a decretação de prisões preventivas contra eles próprios(!)? Não soa quase como piada?

 

“Isso pode abrir um perigoso precedente favorável ao arbítrio estatal!”, bradará o leitor mais cético. Talvez seja verdade. Mas não há como negar que a distinção entre casos centrais e casos periféricos não pode ser afastada em automático apenas porque você dogmatizou, em todos os aspectos de seu raciocínio, máximas que seu professor disse serem intrinsecamente democráticas. Aqueles que defendem a legitimidade da prisão do Senador contra o texto expresso da Constituição têm um argumento: você não pode considerar verdadeiramente democrática a inviabilidade jurídica, prevista no texto do documento máximo do sistema normativo, de obstar cautelarmente a prática, por parte de detentores do poder, de uma sequência espúria de crimes que colocam em risco a própria estabilidade republicana. O que incomoda minhas convicções, até então assentadas e adormecidas, é justamente o fato de não se tratar só de um argumento fortuito, e sim de um bom argumento.

Uma consideração sobre “Comentários de Bruno Torrano ao meu Texto”

  1. George,
    não seria Vossa Excelência mais positivista que o seu rebatedor, a ponto de acreditar na empiria de que o ordenamento é completo, e de que cabe ao intérprete superar todas as lacunas e contradições do sistema?
    A segunda: não seria o critério da “vontade do legislador” falseado pela impossibilidade de questionar a constitucionalidade da lei diante de votos comprados ou mesmo diante do parlamentar que vota sem nada saber, enfim, tal argumento que propõe não estaria fora de propósito diante do próprio racionalismo de Weber, que supõe a forma de exercício do poder sob o império do Direito?
    A terceira: o argumento da vontade do legislador não estaria ultrapassado? Sei que há uma tendência, no direito constitucional, a procurar pela vontade dos constituintes (founding fathers), mas essa tese é sujeita a diversas críticas no âmbito da teoria geral do direito. O que pensa a respeito?

    João Paulo.

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