Antígona: Direito Positivo versus Direito Natural – Quem ganhou?

Quase todo estudante de direito é apresentado à peça “Antígona”, de Sófocles logo no início do curso, geralmente na disciplina “Introdução ao Estudo do Direito”, pois a obra é uma das primeiras a retratar o eterno embate entre o direito natural e o direito positivo, melhor dizendo, entre a justiça e a lei.

O enredo da peça todos conhecem: um sujeito chamado Polinície tenta realizar um golpe de Estado para tomar o poder em Tebas, no que foi assassinado. Quebrando as tradições da época, Creonte, o governante, determina que o morto não poderá ser enterrado e que quem descumprir a sua ordem também será assassinado.

Antígona, que era irmã de Polinície, não se conforma com aquela medida. Para ela, seria uma desonra inaceitável não enterrar o irmão. Por isso, em claro descumprimento da ordem de Creonte, Antígona resolve realizar todos os rituais fúnebres devidos em favor do morto.

Creonte, puto da vida, chama Antígona para uma conversinha em particular. O diálogo daí resultante é uma sinfonia para aqueles que defendem o direito natural. Ei-lo:

“Creonte – ô Antígona. Que parte da minha ordem “não pode enterrá-lo” você não entendeu? Vai dizer que não sabia?

Antígona: Estaria mentindo se dissesse que não conhecia a ordem. Como poderia ignorá-la? Ela era muito clara.

Creonte – Portanto, tu ousaste infringir a minha lei? Tá maluca?

Antígona – Descumpri mesmo. Quer saber por quê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a Justiça, sentada junto aos deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tenham algum dia prescrito aos homens, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que ele fosse, expor-me à vingança de tais leis?”

Eis, nesse diálogo, com algumas licenças poéticas, um bom exemplo do sentimento de indignação que surge toda vez que o ordenamento jurídico encontra-se fora de sintonia com o espírito de justiça presente na sociedade. Por isso, costuma-se dizer que a resposta de Antígona é uma das mais remotas defesas do direito natural.

No entanto, há outro diálogo, na mesma peça, que não é citado nos livros de introdução ao direito, que demonstra que o grande vitorioso desse embate entre direito positivo autoritário versus direito natural não foi nem um nem outro. Quem venceu foi o direito democrático.

O outro diálogo foi travado entre Creonte e Hémon, seu filho, que tinha uma quedinha por Antígona. Hémon, de forma até meio petulante, questiona a ordem do pai. O pai não arreda pé: disse que o que decidiu está decidido e ponto final. Antígona, portanto, deveria ser punida, conforme previsto na sua ordem.

Eis um trecho do diálogo:

“Creonte: Não está Antígona violando a lei?

Hémon: O povo de Tebas não concorda com você.

Creonte: Querias que a cidade me dissesse que ordens devo dar?

Hémon: Agora é você que fala como um menino. [Pouco antes, Creonte havia perguntado se cabia a seu filho ensinar-lhe sabedoria.]

Creonte: Deverei reinar conforme julgam os outros ou segundo meu próprio discernimento?

Hémon: Uma pólis governada por um só homem não é uma pólis.

Creonte: Então o Estado não pertence àquele que o governa?

Hémon: Sem dúvida, num deserto desabitado poderia governar sozinho”. (apud STONE, I. H. O julgamento de Sócrates. Companhia das Letras: São Paulo, 2005).

No final da peça, a vontade popular vence, levando o público ao delírio, pois foi uma clara vitória da democracia. Normalmente, dá-se pouca atenção a essa lição política contida na “Antígona”. No fundo, a moral da peça é que o povo não apenas tem o direito de se expressar, mas também o de ser ouvido: o governante que despreza as opiniões do povo põe em risco a cidade e a si próprio também. Logo, não foi o direito natural que venceu, mas o direito democrático.

Escrito em Porto Alegre/RS

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22 comentários em “Antígona: Direito Positivo versus Direito Natural – Quem ganhou?”

  1. Caro George,
    Em um debate dessa ordem, acho que precisamos delimitar, primeiro, o que chamamos direito positivo, e o que chamamos direito natural.
    Se tivermos pelo segundo um conjunto de princípios imutáveis e sagrados, superiores e anteriores ao próprio homem, parece-me claro que o DP ganhou.
    Mas a idéia de um DN não é – faz muito tempo – essa.
    A questão é saber: o homem é um ser que só consegue ver as coisas como são?
    Não. O homem é um animal metafísico. Consegue imaginar as coisas não apenas como são, mas também como poderiam (ou deveriam) ser.
    Daí, quando examina algo, não pode ficar limitado a descrever, “proibido” de criticar, inovar, acrescentar, sugerir…
    É esse direito que você acha que seria melhor, e que é eventualmente diferente do positivado, que se pode chamar DN.
    E é claro que está permeado de influências culturais, sociológicas, econômicas etc. (seu “horizonte hermenêutico”).
    A questão, aí, como sempre, é da tensão entre segurança (seguir a lei como está) e justiça (fazer o que “for mais certo” em cada caso). Afinal, “o que for mais certo” para quem?!
    Aí entra a democracia, e a proporcionalidade. O justo é o “mais certo” para a maioria, e só prevalece sobre a segurança (direito legislado) em caso de injustiça evidente e absurda. Radbruch tem interessante passagem a respeito.
    O fundamento do direito não é a força, mas o consenso. A aceitação.
    Se o DP estiver contra isso, perde legitimidade, e, ultrapassado um ponto crítico, pode-se dizer que perde a juridicidade.
    Quem ganha no debate, então?

  2. Hugo,

    concordo com você que não se deve considerar o direito natural como sendo um direito sobrenatural.

    No entanto, na visão de Antígona, o direito natural é um direito “dos deuses”. Por isso, não acho que se deve idolatrar a peça como sendo uma vitória do direito dos deuses, pois aí a racionalidade humana vai para o inferno.

    Ou estou errado?

    George Marmelstein

  3. Depois da resposta dada a pergunta de Hugo consegui entender o que George quis dizer!
    Nunca tinha observadoque a Obra Antigona defendia a democracia!
    tezto muito bem escrito!
    Parabens

  4. Se o direito natural ê considerado como DIREITO apesar de as suas bases se apegarem a lei`natural ou divina devemos respeitar porque a pessoas que as compre e as respeita não so as poe em pratica.

  5. O interessante desta peça é o julgamento que Antigona recebu e o que sua atitude impensável teve de consequências como duas mortes dolorosas. Direito positivo, ou natural, o povo era a favor de antigona, porém, nem por isso, deixava de respeitar as ordens de seu rei,pois sabia das consequências que haveria;

  6. Acho que há um pequeno equívoco quanto ao assassinato de Polinices, não?! “O enredo da peça todos conhecem”: Polinices morre em combate contra seu próprio irmão, Etéocles.

  7. Caro Professor George
    Leciono Introdução ao Direito na UNIFOR. Também trabalhamos a obra ANTÍGONA, DE SÓFOCLES. Além do estudo da obra a partir de fichamento, propomos aos alunos ao final do semestre uma encenação teatral da tragédia. Ao mesmo tempo solicitamos que os alunos elaborem uma petição em defesa de antígona, a qual é lida ao final da peça. Tem sido um trabalho muito enriquecedor, trazendo grande motivação aos alunos que iniciam o estudo do Direito, já congugando teoria e prática, através da arte.
    paz e bem
    Prof. Carlos Eufrásio

  8. Caro professor,
    peço que o senhor coloque vosso entendimento a respeito da menção que ARISTÓTELES faz acerca da peça Antígona. Não estaria o discípulo de Platão a se referir ao embate entre o Direito positivo e o Direito natural?

    “Distingamos agora todos os actos de injustiça e de justiça, começando por observar que o que é justo e injusto foi já definido de duas maneiras em relação a dois tipos de leis e a duas classes de pessoas. Chamo lei tanto à que é particular como à que é comum. É lei particular a que foi definida por cada povo em relação a si mesmo, quer seja escrita ou não escrita; e comum, a que é segundo a natureza. Pois há na natureza um princípio comum do que é justo e injusto, que todos de algum modo adivinham mesmo que não haja entre si comunicação ou acordo; como, por exemplo, o mostra a Antígona de Sófocles ao dizer que, embora seja proibido, é justo enterrar Polinices, porque esse é um direito natural: Pois não é de hoje nem ontem, mas desde sempre que esta lei existe, e ninguém sabe desde quando apareceu. E como diz Empédocles acerca de não matar o quem tem vida, pelo facto de isso não ser justo para uns e injusto para outros: Mas a lei universal estende-se largamente através do amplo éter e da incomensurável terra. E como também o diz Alcidamante no seu Messeníaco: Livres deixou Deus a todos, a ninguém fez escravo a natureza.” ARISTÓTELES, Retórica,(1373 b).
    Com os melhores cumprimentos,
    Bernardo G.B. Nogueira

  9. Entendo que Antígona estaria descumprindo uma órdem advinda de um direito que para ela era secundário, pois era aquele direito ali mesmo produzido pelo homem, sem a participação de alguém supostamente superior. O direito que ela realmente conhecia e sentia-se na obrigação de cumprir, era aquele direito de órdem moral, religiosa, naturalmente posto com a anuência de um Deus que todos consideravam esistir e participar diretamente da vida e das decisões de todos os povos. Nesse caso em particular, entendo que o vencedor desse embate seria o Direito Natural, impondo ao positivismo uma derrota inevitável.

  10. Meu querido você não leu a tragédia certa. Na Antígona a vontade do Creonte prevalece e ela morre. Além do noivo dela Hêmom e sua mãe. Pesquise e leia mais sobre o assunto que desejas falar e publicar uma resenha na internet.

  11. Carolina, infelizmente o importante em uma obra como esta não é o resultado expresso nesta, mas a interpretasão.Creonte é tido como tirano na cidade e o próprio povo acaba por ficar do lado de Antígona entendendo a importancia de se sepultar o seu falecido irmão.

    O próprio Creonte ao fim da obra reconhece seu erro.Tome mais cuidado ao realizar uma critica.Não se prenda apenas a leitura, interprete, entenda, entre no contexto.

  12. Querida Carolina NÃO, a vontade de Creote não prevaleceu. Antígona se suicida e Creonte não é o responsável por sua morte. Ele coloca comida necessaria para uma dia e depois desse periodo arrepende-se e volta atras ela por sua inflexibilidade em excesso (sua býbris) ja tem tirado sua própria vida. É isso que caracteriza a tragédia grega.

  13. De um ponto de vista da ética, creio que o mais importante, tendo em vista a tragédia descrita, não é a de nos colocarmos na condição de juízes na tentativa de optarmos por uma ou outra posição do direito (se natural ou positivo). Para levar o seu opositor à morte, Creonte agiu fundamentado em que? Sua ação contava com respaldo legal na época, ou foi motivada pelas paixões e pela força? Se não havia respaldo legal, agiu como um ditador corrente. Vamos supor que a morte do opositor naqueles termos estivesse respaldado em leis, mas isto lhe permitiria a Creonte proibir o sepultamento do corpo conforme previam os costumes da época, inclusive válidos para ele e para os seus parentes? O direito positivo deve trabalhar com a perspectiva pedagógica no sentido de mudar certos costumes sociais ou deve sempre prevalecer pelo lado da força?

  14. Oi
    gotaria de saber se é errado analisar assim esse trecho da obrar:

    Já no campo do direito positivo podemos exemplificá-lo dentro do texto, com o seguinte trecho:
    Antígona – Ajudarás estes meus braços a transportar o cadáver?
    Ismênia – Queres tu, realmente, sepultá-lo, embora isso tenha sido vedade a toda a cidade?
    Antígona – Uma coisa é certa: Polinice era meu irmão, e teu também, embora recuses o que eu te peço. Não poderei ser acusada de traição para com o meu dever.
    Ismênia – Infeliz! Apensar da proibição de Creonte?
    Antígone – Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!
    Nessa reposta de Ismênia, ela não possui da mesma coragem que sua irmã ao descumprimento das leis da cidade impostas por Creonte, pois se diz incapaz de suportar a pena cominada ao descumprimento da mesma.

  15. No final da peça, Antígona, Hémon e sua mãe morrem. Embora não consiga ver um “triunfo” da democracia neste contexto, Sófocles parece aludir ao tema – sem, contudo, oferecer-nos uma verdadeira vitória, como Ésquilo fizera n’As Eumenides.
    A peça é, antes de tudo, sobre os dilemas morais/trágicos enfrentados por Antígona e Creonte, bem ao estilo de Sófocles; foi a influência da filosofia política e jurídica moderna (e as traduções feitas nesse sentido) que a transformou no paradigma do conflito direito natural/positivo. Uma interpretação filosófica/jurídica mais fiel seria a de M. Nussbaum n’A Fragilidade do Bem.
    Fica mais interessante interpretá-la depois de ler As Eumênides. Orestes, depois de matar sua mãe, busca refúgio das Erínias vingadoras junto a Atena e sua cidade; ele alega inocência, pois só teria agido a mando de Apolo. O resultado do júri é um empate, mas Orestes é absolvido, pois o voto de Atena é de qualidade; as Erínias/Fúrias ficam fulas, mas aceitam a proposta da deusa e, mediante um ritual, passam a ser as Veneráveis, guardiãs da Justiça. Novamente, não há um único e simples conflito entre duas concepções do direito; mas temos um final feliz, quase que por sorte, graças a uma espécie de combinação entre perdão, democracia e responsabilidade.

  16. caro professor, estou preste a presentar um trabalho da obra antigona, como fazo uma petiçao inicial defendendo creonte, e preciso uma jurisprudencia da atualidade comparando estes autores

  17. excelente a forma coloquial do texto, bastante compreensivo e ótima analise sobre a obra, embora tanto o direito natural quanto o direito positivo existem e ambos tem formas de pensar, onde um traz mal o outro traz bem e vise-versa, a obra foi mais para criticar o absolutismo um governo ditador.

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