Cinco Pontos de Reflexão sobre a Judicialização da Saúde

Meu primeiro contato com o problema da judicialização da saúde foi em 1998, quando ainda era um simples estagiário de vara de fazenda pública. Desde então, nunca parei de refletir sobre essa questão e tive a oportunidade de vivenciar diversas etapas da evolução do problema.

Nos anos 1990, o clima era de ceticismo em relação à efetivação judicial do direito à saúde. Em geral, as decisões judiciais invocavam barreiras como a reserva do possível ou natureza programática dos direitos sociais ou a separação de poderes para negar a possibilidade de reconhecer direitos subjetivos com base no direito à saúde. Aos poucos, a jurisprudência foi superando esse entendimento para aceitar algum tipo de intervenção judicial concretizadora do direito fundamental, especialmente envolvendo fornecimento de medicamentos vitais para pessoas carentes. As primeiras decisões do STF sobre o assunto são do final dos anos 1990 e envolviam o fornecimento do coquetel de medicamentos para os portadores de HIV. A partir de 2000, consolidou-se de vez a ideia de que os juízes podem obrigar o poder público a adotar medidas para implementar o direito à saúde, seja num nível individual, seja num nível coletivo.

Hoje, pode-se dizer que a questão atingiu um ponto de saturação. O pêndulo, que começou com a eficácia zero do direito à saúde, oscilou para o extremo oposto. Vivemos um excesso de judicialização que alcançou um nível patológico. Afinal, quando os hospitais criam setores específicos para auxiliarem os pacientes a ingressarem com ações judiciais, é um claro sinal de algo não vai bem… (Curiosamente, um dos principais sintomas para diagnosticar um estado de coisas inconstitucional é verificar a necessidade de sempre ter que se buscar a tutela judicial para a obtenção do direito, algo que tem ocorrido no caso da saúde).

O presente texto é fruto de uma inquietação de alguém que lida com demandas da saúde quase diariamente. Mais ainda: é fruto de uma angústia de alguém que era entusiasta da judicialização da saúde, mas hoje tem plena consciência do caráter ambivalente desse fenômeno. Não se trata de ser absolutamente contra a judicialização da saúde, algo que parece demasiadamente contrafactual, mas de reconhecer os limites e os problemas que a judicialização tem acarretado. Portanto, os “pontos de reflexão” que serão aqui apresentados não têm por objetivo criar argumentos contra a judicialização, mas apontar algumas distorções que, atualmente, em nome da efetivação do direito à saúde, são cometidas.

1 – Prioridade de atendimento para quem tem ordem judicial favorável

Durante um plantão judicial, liguei para o coordenador de leitos de UTIs do meu Estado e perguntei como estava a situação da fila de espera. Ele me disse que, na “fila dos pacientes com liminar”, havia oito pacientes esperando leito. Na “fila dos pacientes sem liminar”, havia dezesseis pacientes, que somente seriam atendidos depois dos oito pacientes com liminares. Ou seja, o fator “com liminar”/”sem liminar” tornou-se um critério de classificação de prioridades!

Não há o menor sentido em se criar um lista de prioridade de atendimento que favoreça alguém pelo mero fato de ele ter uma ordem judicial a seu favor. Há critérios bem definidos, fundados na gravidade da situação do paciente, que estabelecem a ordem de atendimento nos leitos de UTIs. Pacientes no mesmo nível de gravidade são atendidos conforme a ordem cronológica.

Hoje, com a judicialização da saúde, tem havido um fenômeno interessante, pois, em muitos casos, esses critérios objetivos têm sido ignorados para favorecer um paciente que tenha obtido uma ordem judicial, ainda que esse paciente tenha chegado depois e sua situação não seja mais grave do que a dos demais pacientes. O único fator que o diferencia dos demais pacientes é o fato de ele ter uma ordem judicial determinando a sua internação em um leito de UTI.

A meu ver, tal tipo de discriminação é um absurdo. Em geral, nas minhas ordens judiciais, sempre incluo uma advertência dizendo que aquela decisão não deve ser interpretada de forma a autorizar uma quebra da ordem objetiva de prioridade. E por que eu concedo a liminar? Por uma única razão: se eu não conceder, corre o risco de esse paciente ser preterido por alguém que tenha uma ordem judicial. Então, tento, pelo menos, garantir que a sua posição na fila não seja prejudicada.

Em todo caso, se o poder público adota um critério objetivo de atendimento e se tal critério é razoável, não me parece correto que um juiz conceda uma liminar para alterar a referida ordem sem levar em conta a posição preferencial dos demais pacientes.

Mas e se houver uma demora desarrazoada para o internamento de pacientes em leitos de UTI? Nesse caso, temos um problema estrutural que há de ser resolvido de forma estrutural. Não é reservando um leito de UTI para um paciente e quebrando a ordem de atendimento que o problema vai ser resolvido.

Perceba que, mesmo que a ordem seja para garantir àquele paciente em específico um leito de UTI em hospital particular, também está havendo aí uma quebra da igualdade, pois a ordem de atendimento está sendo, de qualquer modo, burlada. Qualquer ordem judicial, para ser justa, tem que observar se existem pacientes com o mesmo nível de gravidade que estão aguardando o surgimento de vagas a mais tempo. Estes pacientes não podem ser prejudicados apenas porque um outro paciente tem uma ordem judicial favorável, já que ter uma ordem judicial favorável não é por si só um fator relevante para estabelecer ordem de prioridade de atendimento.

2 – Prescrições Médicas (de médicos públicos) que Ignoram o Protocolo Oficial do SUS

Esse é um ponto complexo, mas o objetivo é fazer refletir. Aparentemente, no âmbito do SUS, os médicos não são instruídos a seguirem os regulamentos que estabelecem os protocolos clínicos oficiais. Será que os protocolos oficiais, estabelecidos por normas jurídicas, são totalmente equivocados do ponto de vista médico e, portanto, não devem ser mesmo seguidos? Será que os médicos são plenamente livres para prescreverem o tratamento que acharem mais adequados, ainda que violem a diretriz oficial? Como encontrar um equilíbrio entre a liberdade de prescrição do médico e o dever de funcionários públicos de seguirem os regulamentos administrativos?

O problema pode ganhar ainda mais complexidade, na medida em que diversos médicos do SUS prescrevem medicamentos que sequer foram aprovados pela Anvisa. Em vários países, esse tipo de conduta (prescrição de remédios não-aprovados pelo órgão de saúde) seria considerado crime. Aqui no Brasil, tornou-se uma espécie de procedimento padrão não-oficial. E isso nos leva a alguns questionamentos. Podem os médicos públicos fundamentarem suas prescrições em tratamentos ainda em fase de estudos? Estudos científicos preliminares são suficientes para garantir a um paciente o direito de receber um medicamento experimental? De que vale a aprovação da Anvisa aqui no Brasil?

Na minha ótica, o problema da judicialização da saúde somente será superado quando os próprios médicos perceberem que fazem parte de um sistema mais amplo. É preciso que se tenha algum tipo de vinculação, ainda que relativa, em relação aos protocolocos oficiais. As decisões médicas, assim como as decisões judiciais, não devem se basear em voluntarismos (por mais que tenham um suporte da literatura científica, que, convenhamos, nem sempre é unívoca). Em linha de princípio, as normas do sistema devem ser seguidas, salvo se houver razões superiores que justifiquem a sua não-aplicação. A não observância do padrão oficial há de ser devidamente fundamentada. O problema é que, muitas vezes, os médicos sequer conhecem as diretrizes oficiais, nem se sentem vinculados a elas. E os juízes tendem a seguir o que o médico prescreve. Se o médico não leva em consideração o protocolo oficial, o juiz também não levará, o que certamente causará, em algum momento, o colapso do sistema.

Os protocolos clínicos cumprem um papel, a aprovação da Anvisa também, a análise do Conitec idem… enfim, a meu ver, o problema da saúde deveria ser resolvido, primeiro, dentro de casa, com os próprios médicos refletindo sobre seus problemas e tentando desenvolver soluções para o sistema como um todo. Para isso, o poder público deveria, de algum modo, ser capaz de influenciar os médicos do sistema a seguirem as políticas públicas adotadas. Aliás, em várias audiências que fiz com médicos, eles mostraram desconhecimento dos protocolos aprovados pelo Conitec ou outras regras do Ministério da Saúde.

De nada adianta existir um monte de órgãos técnicos para definir a eficácia e segurança de um medicamento, o custo-efetividade dos tratamentos ou os procedimentos a serem seguidos, se, na prática, ninguém dentro do sistema respeita essas decisões.

3 – Entrega de Medicamentos Diretamente ao Paciente

Esse pode parecer um ponto meramente operacional, mas há também um problema de fundo em jogo. Parte-se da crença de que o paciente X tem direito ao remédio Y e que, uma vez concedida a liminar, o remédio Y pertence a X. Em razão disso, o poder público entrega o remédio ao paciente, com todos os riscos que isso pode acarretar (acondicionamento inadequado, mau uso, desvio de finalidade etc.).

A meu ver, a concessão judicial de um direito a um tratamento não dá ao paciente o direito de propriedade sobre os insumos que vêm junto com o tratamento. O paciente tem direito ao medicamento na forma prescrita pelo médico, mas o medicamento pertence ao sistema de saúde e será ministrado enquanto tiver utilidade para o tratamento. Se o paciente tiver uma alergia imprevista ao medicamento, o remanescente continua no hospital e não na casa do paciente. Se o paciente morrer durante o tratamento, os sucessores não terão o direito de “herdar” os remédios que sobrarem. Hoje, na prática, o poder público tem fornecido medicamentos de alto custo diretamente aos pacientes, o que me parece um absurdo. Essa questão certamente é menor, mas demonstra como a judicialização pode gerar algumas distorções que quebram toda a lógica do sistema.

4 – Crença de que o estado tem o dever de prestar o melhor tratamento possível e imaginável, sem levar em conta o seu custo-efetividade

Os direitos sociais são, por natureza, direitos de realização progressiva. Há custos de implementação e, portanto, o fator econômico não pode ser ignorado, por mais valiosa que seja a saúde humana. Esse fator entra na equação sob o nome de “custo-efetividade”, que é uma metodologia de avaliação que compara tecnologias médicas levando em conta seus efeitos clínicos e seus custos. Existem critérios objetivos para medir o custo-efetividade e tal análise, em geral, é feita pelo Conitec quando resolve incorporar ou não uma nova tecnologia ao sistema público de saúde. As decisões tomadas pelo Conitec, quando não forem comprovadamente equivocadas, devem ser respeitadas. O mero fato de um tratamento ser mais eficaz não significa dizer que deve ser fornecido pelo SUS. É preciso analisar também seu custo-efetividade em comparação com outras tecnologias.

É preciso refletir se cabe ao poder público, sempre e em toda situação, fornecer um tratamento de ponta aos seus pacientes, sobretudo quando tal tratamento não pode ser universalizado, ou seja, estendido para todos os pacientes na mesma situação. Tão grave quanto negar um tratamento de ponta a todos os pacientes é conceder o direito apenas a alguns que tiveram a sorte de obter uma ordem judicial favorável.

Além disso, é de se questionar até onde o poder público deve ir para arcar com os tratamentos de “última esperança”, que são aqueles adotados quando todas as demais opções terapêuticas falham. Esse é um tema complexo, mas deve ser posto na mesa. Afinal, há um direito subjetivo de receber tratamentos extraordinários, às custas do poder público? O poder público deve jogar todas as fichas para salvar a vida do paciente, mesmo que as chances de fracasso sejam elevadas? A “obstinação terapêutica” é uma virtude médica ou, pelo contrário, um prolongamento desnecessário do sofrimento?

5 – Falta de Preocupação com Soluções Estruturais, Sistemáticas, Igualitárias e Universalizáveis

Situação hipotética: um grupo de médicos de um determinado hospital público retorna de um congresso científico empolgado com um novo estudo científico que comprovou os efeitos benéficos de uma droga experimental para uma doença grave. Eles resolvem padronizar o uso desse medicamento em seus pacientes apesar de não haver nenhuma diretriz do SUS autorizando. O problema é que o custo do tratamento é alto. O medicamento é importado e ainda não foi sequer aprovado pela Anvisa. Mesmo assim, eles resolvem padronizar e informam à direção do hospital. O diretor do hospital, contudo, avisa que não há verba para aquisição do referido medicamento. O SUS somente fornece R$ 1.000,00 por mês para cada paciente portador daquela doença grave e o remédio custa R$ 50.000,00. Ou seja, o hospital não tem como comprar.

O que deveriam fazer os médicos? Acionar os instrumentos do sistema para que o remédio possa ser incorporado ao protocolo oficial e, a partir daí, tentar alterar o valor disponibilizado pelo SUS para o tratamento daquela doença.

Como o sistema não responde de imediato ao apelo dos médicos, o que eles, de fato, fazem? Orientam seus pacientes a procurarem um advogado (ou a defensoria pública) e assim surge a judicialização… Alguns pacientes vão conseguir liminar e vão receber o medicamento; outros não…

Esse é um tipo de problema que deve ser resolvido de forma estrutural. Se há uma droga nova que não está sendo fornecida pelo SUS, as perguntas fundamentais são: (a) por que a medicação ainda não foi aprovada pela Anvisa? Qual o prazo previsto para aprovação (b) por que o Conitec não a incorporou como uma droga a ser fornecida? Já foram iniciados os estudos necessários? (c) quais são os tratamentos oferecidos pelo SUS para aquela doença? Os tratamentos oferecidos são inadequados? O tratamento novo tem custo-efetividade? Enfim…há diversas questões de alta complexidade que devem ser tomadas antes de se decidir se o SUS fornecerá ou não o medicamento.

Logicamente, é possível controlar judicialmente a validade do procedimento de incorporação, bem como o procedimento de aprovação na Anvisa, inclusive para verificar a razoabilidade da demora da análise. Mas o Judiciário somente deveria atropelar essas etapas em situações excepcionalíssimas, evitando ao máximo tomar uma decisão no lugar das autoridades médicas. Atualmente, a desconsideração dos processos de incorporação e aprovação de medicamentos tornou-se banalizada. Os médicos não aguardam a conclusão dos processos, e os juízes, com base na prescrição dos médicos, concedem liminares de modo automático. É como se os órgãos responsáveis fossem figurativos.

Aliás, a situação chegou a um ponto em que a concessão da liminar já se tornou a resposta esperada. A judicialização criou um sistema paralelo de concessão de medicamentos que funciona com base na expectativa da resposta judicial favorável. Muitas vezes, negar a liminar é quebrar a lógica desse sistema paralelo, na medida em que vários pacientes, em situação semelhante, estão recebendo a medicação com base em ordens judiciais. Assim, se um juiz deixa de conceder a liminar, pode até mesmo estar violando a igualdade, pois o que era para ser a exceção virou a regra.

Se investigarmos a origem do problema, provavelmente encontraríamos a sua fonte na atitude dos médicos que resolvem prescrever a medicação sem levar em conta o funcionamento do sistema em si (ou seja, sem levar em conta as regras oficiais e os procedimentos de incorporação de novas tecnologias). Pode-se dizer que eles são os primeiros responsáveis pela quebra do sistema e talvez até o façam de modo consciente, pois o sistema não tem respondido satisfatoriamente às suas demandas. Assim, só resta a eles estimular a judicialização.

Para um juiz é muito difícil mudar esse quadro. Primeiro, porque lhe falta conhecimento especializado. Segundo, porque a profissão médica possui um enorme prestígio e, portanto, o juiz tende a seguir a opinião do médico. Terceiro, porque seus pares estão concedendo liminares para casos semelhantes e, portanto, seria uma injustiça privar o demandante do mesmo direito. Quarto, porque o processo de concessão entrou numa linha de produção automatizada que não requer muito esforço de raciocínio. Quinto, porque a negação do direito provavelmente vai ser reformada pelo tribunal. Assim, a solução mais cômoda é a concessão da liminar.

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Muito mais poderia ser dito sobre a judicialização da saúde e a sua ambivalência. Seria interessante, por exemplo, ressaltar que as regras padronizadas pelo SUS não costumam estabelecer cláusulas de exceção para situações singulares, que seria um ponto onde provavelmente a judicialização teria alguma importância. Explicando melhor: certamente, a judicialização da saúde pode ter algum sentido quando se está diante de situações peculiares (doenças raras ou situações inusitadas), pois possibilitará alguma flexibilização dos procedimentos sem que se quebre de modo absoluto a lógica da padronização.

Do mesmo modo, é preciso refletir também sobre a falta de articulação e coordenação entre os órgãos envolvidos, que tem gerado diversos problemas de legitimidade, competência e efetivação das decisões judiciais. Aliás, a própria ausência de efetividade das decisões judiciais mereceria uma análise à parte. Além disso, é urgente desenvolver mecanismos processuais eficientes para enfrentar os problemas estruturais, que, atualmente, são os mais frequentes e os mais difíceis de serem superados. Enfim… Talvez eu volte a falar disso em outra oportunidade. Aqui, deixo apenas um último ponto de reflexão.

O que percebo, com esse fenômeno da judicialização da saúde, é que, cada vez mais, os médicos estão perdendo o controle sobre as decisões envolvendo as políticas públicas de saúde (num nível macro) e, por isso, estão agindo propositadamente num nível micro (individual). Pode ser impressão minha, mas me parece que os médicos deixaram de se sentir parte de um sistema e, por isso, agem de forma isolada, sem se preocuparem com o todo. A preocupação imediata é com aquilo que consideram ser o melhor para o seu paciente e não com o funcionamento do sistema em si. E como eles perceberam que os juízes costumam estar aberto às demandas individuais, resolveram estimular a judicialização, ainda que isso possa significar, em última análise, a renúncia da autonomia da medicina ou a “colonização da saúde pelo direito”. No final, nem se tem uma justiça bem feita, nem uma prestação de saúde minimamente satisfatória.

12 comentários em “Cinco Pontos de Reflexão sobre a Judicialização da Saúde”

  1. Concordo com a alienação dos médicos. Discordo de que o juiz pouco pode fazer. Quando concede essas liminares, o magistrado não age muito diferente do clínico e contribui em igualdade com a judicialização do sistema.

  2. A judicialização da Saúde deveria ser realizada para corrigir o funcionamento regular dos Hospitais e Ambulatórios públicos; não para atendimento de pacientes distantes do atendimento rotineiro. É imperioso o desequilíbrio do atendimento, com a priorização dos contribuintes com enfermidades comuns em detrimento daqueles com necessidades extraordinárias. Atualmente, são estes últimos os beneficiários, prejudicando a maioria da população.

  3. Excelente postagem, mas, e o Ministério Público nessa história?
    Fica aqui meu pedido para tocar nessa tecla.
    Abraço.

  4. George, depois de quinze anos de advocacia e quase três de magistratura, vejo que não só na questão da judicialização da saúde o Judiciário “passou da conta”, ou seja, nos últimos vinte anos, se meteu demais em muitos assuntos e, em vez de contribuir para o melhoramento da administração púbica, fê-la mais ineficiente. Na Justiça Estadual e em uma comarca de interior é que temos um dimensão muito real do quanto essas incursões em várias esferas da gestão da coisa pública – não só na questão da saúde – fez com que tudo hoje se leve à discussão no Judiciário, até problemas de disciplinar escolar. O resultado mais visível é um acervo processual fantástico e uma sociedade infantilizada e incapaz de resolver, por outros meios, seus conflitos mais corriqueiros. É hora de repensar o papel do Judiciário como um todo, o quanto ele se agigantou e destruiu os demais poderes e instituições, com poucos resultados positivos e muitos negativos. É preciso, enfim, fazer a administração pública funcionar pelos seus próprios meios, e não substituí-la por meio de decisões judiciais.

  5. Estou enfrentando resistência de um plano com o fornecimento de CPAP para tratamento da síndrome de apneia e hipopneia obstrutiva do sono. Não estou aqui para tratar de meu caso, mas para mostrar algo curioso sobre o objeto dele e o que consta acima: esse aparelho para tratar dessa doença não consta no rol de procedimentos do SUS, mas consta nele para tratamento de outros problemas de saúde. O curioso mesmo é que a CONITEC estava avaliando justamente para aquilo, concluiu que é recomendado (inclusive em atenção domiciliar), mas encerrou o procedimento porque já constava no rol. Está neste link: http://conitec.gov.br/images/FichasTecnicas/CPAP.pdf. Perceberam o equívoco? Tem uma publicação do Ministério da Saúde no DOU 131, de 2005, especialmente p. 58 e 60, sobre os benefícios e necessidade do uso em certos casos. Mas ficou por isso mesmo e não fornecem, só judicialmente. Ou seja, a CONITEC pode falhar miseravelmente e prejudicar um paciente. Um outro estudo que vi para o caso (a peça ficou boa) trazia dados e um “artigo” do Conjur de um médico falando sobre os avanços tecnológicos e a demora em atualizar a lista dos procedimentos e medicamentos oferecidos pelo SUS e que, na visão dele, a judicialização ocorria sobretudo por este motivo. Muitas vezes o Judiciário acaba na vanguarda por causa disso, e talvez até force de certa forma o Estado se atualizar. O assunto é instigante academicamente e quis trazer outros pontos para reflexão.

    1. Aplicável a Súmula nº 102 do TJSP: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”. O rol de procedimentos médicos estabelecidos pela ANS ostentra natureza meramente exemplificativa (“numerus apertus”), não se constituindo em rol taxativo (“numerus clausus”), qualificando-se, em verdade, como simples referencial indicativo de cobertura mínima. Não afasta, bem por isso, outros procedimentos indicados como adequados para maior eficácia no enfrentamento da doença.

      1. Grato pela atenção, MAG. Isso aí é um parâmetro, tem também jurisprudência do STJ sobre o paralelo “cobrir a doença/cobrir o tratamento recomendado”. O plano é estatal e não se submete “diretamente” à ANS. As peças estão bem fundamentadas, restaria saber se alguém vai ler. Mas note que não quis discutir o meu caso aqui, só demonstrar que a CONITEC falha e que é comum o Judiciário se antecipar às atualizações do rol de medicamento/procedimentos fornecidos, justamente porque há demora nelas.

  6. Prezado Dr. George Acompanho seu blog há muito tempo,e percebo a base sólida de suas colocações. Sou médica e advogada atuante em ambas as áreas, e  essa judiciliacao,vista no caso concreto é assustadora. Com frequência,atuando como advogada,recebo alguém que quer entrar com uma ação pois acha que uma pessoa próxima não está recebendo o tratamento adequado. Em alguns casos,é verdade…mas em muitos,o tratamento é adequado ,apenas os parentes crêem que deveria ser outro….e querem acionar o judiciário….. Há claro,culpa dos médicos,que não pensam no sistema,não entendem o sistema,e querem que tudo se exploda…. Perfeitas suas colocações, mas não vejo luz no fim do túnel para resolver tal estado de coisas. Parabéns pelas colocações sensatas. Áurea Serrano Rodríguez Rio de Janeiro.

  7. MUTO BOM O ARTIGO! COMO ADVOGADO VEJO QUE A JUDICIALIZAÇÃO TOMOU FORÇA, JUSTAMENTE POR FALTA DE POLÍTICAS MAIS EFICIENTES NA GESTÃO DA SAÚDE EM TODO SEU FUNCIONAMENTO. FALTA DE MÉDICOS, EQUIPAMENTOS, REMÉDIOS. NO TOCANTE AOS TRATAMENTOS A MATÉRIA DEIXA CLARO A FALTA DE PADRONIZAÇÃO, VISTO QUE AS PRÓPRIAS AGÊNCIAS REGULADORAS NÃO ATUAM EM CONJUNTO. ISSO FAZ COM QUE A BUSCA DO JUDICIÁRIO SEJA FREQUENTE, PELA SIMPLES RAZÃO DOS PACIENTES NÃO PODEREM ESPERAR, E A PRESERVAÇÃO DA VIDA É PRINCÍPIO FUNDAMENTAL EM AMBAS ÁREAS.

  8. infelizmente sem vocês juízes seria pior, pois muitos médicos não seguem o MÍNIMO do que deveriam fazer,têm vários empregos e prescrevem sem noção do que estão fazendo…Outros abandonam seus pacientes (e não acompanham a evolução da doença) Uma doença que tem uma pequena melhora já é motivo para se dar ALTA…É assim que as coisas funionam, por isso os juízes são necessários para que muitos médicos entendam quais seus verdadeiros papéis…Acredito que os médicos deveriam acompanhar seus pacientes até o MOMENTO DE PLENA CAPACIDADE, do contrário a DEFENSORIA continuará agindo…Os juízes estão aí para corrigir todos os tipos de falhas e as falhas médicas, ao meu ver são mais graves quando estes se OMITEM em seus laudos…Muitos procuram definir as doenças de uma forma símples se utilizando de códigos que nem entendemos direito o tal CID…Infelizmente não temos uma solução no horizonte.

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