Tornar-se ministro do STF é relativamente fácil. Basta ser brasileiro nato, possuir entre 35 e 65 anos, notório saber jurídico, reputação ilibada e ter a sorte de cair nas graças do(a) Presidente da República. O notório saber jurídico e a reputação ilibada não possuem uma definição precisa, de modo que podem ser moldados ao gosto do freguês. A ausência de títulos acadêmicos ou a condenação em eventuais improbidades administrativas ou ações criminais não têm sido suficientes para descaracterizá-los. A indicação (essencialmente política), seguida da sabatina no Senado (meramente simbólica), tornam o potencial candidato inteiramente apto a ocupar o posto máximo do Judiciário brasileiro. Nesse jogo aleatório, às vezes surgem excelentes nomes, embora o oposto também possa ocorrer.
Seja como for, o processo de escolha é um processo essencialmente de bastidores, que segue a lógica da fabricação das salsichas: é melhor não saber como são feitas. Na prática, o que se têm são potenciais candidatos que se engajam na conquista de apoio político capaz de fortalecer o seu nome, e trabalham junto a parlamentares, membros do governo, ministros, governadores para tentar convencê-los a apoiar sua indicação. Muitas vezes, a população de um modo geral sequer sabe quem são esses potenciais candidatos, nem seus apoiadores, a não ser por meio de conversas de corredor, de forma especulativa.
No percurso até a indicação, o candidato precisa assumir alguns compromissos políticos que podem afetar sensivelmente a sua futura independência. Veja-se, por exemplo, o processo de escolha de um ministro do STJ para a vaga de advogado, que é diferente do processo de escolha de um ministro do STF, mas também envolve a formação de diversas alianças. Numa primeira etapa, o candidato há de angariar o apoio de seus pares para conseguir ingressar na lista sêxtupla elaborada pela OAB. Após a lista sêxtupla, o candidato submete-se ao crivo nada transparente da lista tríplice elaborada pelos ministros do STJ. Aqui, o candidato terá que escolher um dos grupos que dividem o STJ, a fim de conquistar a maior soma de votos possíveis. Depois, há o processo político propriamente dito, em que o candidato terá que obter a simpatia do governo (e dos políticos da base do governo). Em cada uma dessas etapas, são firmados diversos acordos de cavalheiros, cuja fatura poderá ser cobrada na hora devida. O resto é intuitivo.
É claro que esse processo, além de afastar de antemão excelentes nomes da disputa, pode tornar os potenciais candidatos (isto é, aqueles que estão dispostos a aceitar as regras desse sistema) reféns de um jogo de poder totalmente incompatível com os valores éticos que hão de pautar a atuação jurisdicional, sobretudo a independência. Mas o pior de tudo é que todo o processo se desenvolve em função dos humores daqueles que participam do processo de escolha, à margem de qualquer controle popular. Problemas jurídicos de alta relevância social serão decididos por pessoas que a maioria da população sequer conhece e não faz a menor ideia de como chegaram ali.
A não-eletividade dos membros do Judiciário pode ser considerada, de certo modo, como uma virtude da atividade jurisdicional. Afinal, seria desastroso para o direito se as decisões judiciais fossem tomadas para agradar os eventuais eleitores dos juízes. Por isso, em um Estado de Direito, espera-se que os juízes decidam com imparcialidade e independência, o que significa garantir um ambiente de deliberação livre de qualquer pressão político-eleitoral. Porém, a não-eletividade não deveria significar a total ausência de participação popular no processo de escolha. Ao povo interessa e muito saber quem serão os membros do Poder Judiciário, sobretudo em uma realidade como a nossa, onde, em nome da “guarda da Constituição”, tem havido uma transferência do centro decisório de inúmeras questões sensíveis para os órgãos judiciais de cúpula.
A participação popular na escolha dos ministros não precisa ocorrer necessariamente pela via eleitoral. Aliás, talvez seja possível ampliar a participação popular nesse processo independentemente de qualquer mudança constitucional específica, embora também seja possível imaginar vários melhoramentos no sistema atual que precisariam de alteração na ordem constitucional. Por exemplo, para citar algumas propostas que precisariam de mudança constitucional, poder-se-ia estabelecer uma maior representatividade e pluralidade na composição dos tribunais, prevendo-se a participação de não-juristas, de variados setores da sociedade (acadêmicos, médicos, economistas, engenheiros, ambientalistas, jornalistas etc) capazes de enriquecer os debates. O sistema de mandato também seria uma boa solução, sobretudo para eliminar o sentimento de apropriação e perpetuação do poder que a vitaliciedade provoca. Do mesmo modo, o incremento da democracia interna traria novos ares ao Judiciário, possibilitando que os membros da base participem dos rumos da instituição, inclusive da escolha dos órgãos dirigentes, o que traria um maior engajamento coletivo em favor da causa da justiça. Enfim, a criatividade é o limite quando se está conjecturando mudanças na Constituição.
Porém, para além de mudanças constitucionais formais, é possível também imaginar algumas mudanças culturais que poderiam ser implementadas desde já, sem a necessidade de qualquer emenda constitucional. Em primeiro lugar, seria preciso lançar luzes nesse processo de escolha, retirando-o da obscuridade que circunda os bastidores do poder. Os nomes dos “indicáveis” devem vir à tona antes da indicação. Ou seja, o Executivo deveria, de algum modo, apresentar uma lista de possíveis candidatos ao público para que tais nomes possam ser submetidos a algum tipo de controle popular. Os candidatos convidados, a partir daí, participariam de debates em universidades, entrevistas em programas de televisão, visitas a instituições públicas e privadas, sempre no intuito de se apresentarem à população. Certamente, tal participação popular não seria capaz de gerar qualquer tipo de obrigação forte para o Executivo, que ainda teria a liberdade de indicar aquele que mais agrada ao governo. Porém, não há dúvida de que alguns constrangimentos podem surgir dessa abertura, o que será bastante saudável para a democracia.
Além disso, é fundamental pensar em um modelo de sabatina no Senado mais efetivo e mais próximo da sociedade. Com um nome já escolhido pela Presidência da República, o Senado deveria assumir um papel ativo no intuito de ampliar a participação popular no processo de escolha. A realização de audiências públicas com o candidato em diferentes centros urbanos, respondendo perguntas formuladas não só por parlamentares, mas também por membros da sociedade civil, certamente poderia ampliar a sensação de participação popular, ainda que timidamente. O candidato deveria ser compelido a expor suas ideias em alguns pontos de interesse público, permitindo uma comparação com a sua futura atuação jurisdicional. Afora isso, o candidato deveria ser estimulado a apresentar o nome dos seus apoiadores, a fim de que se possa verificar se a atividade jurisdicional será usada para beneficiá-los. Os autos do processo de indicação deveria ser acessível ao público, a fim de que todos possam consultá-lo e analisar quem formalizou apoio ao candidato. Enfim, como diria Brandeis, quando o poder está em jogo, a luz do sol continua sendo o melhor desinfetante.
O certo é que o modelo atual precisa ser mudado para possibilitar um maior controle popular nesse processo de indicação dos membros do Poder Judiciário. Não queremos que a escolha de um ministro seja como o processo de fabricação de salsichas. Melhor que seja como a fabricação de pães, feita pelo povo ou, pelo menos, acompanhada pelo povo. Afinal, se a justiça é o pão do povo, como já anunciava Brecht, quem deve prepará-lo é povo, “bastante, saudável diário”.