Caso Pussy Riot: liberdade de expressão e ativismo criativo

“Abram todas as portas, tirem os uniformes, provem a liberdade conosco!”
Nadezhda Andreyevna Tolokonnikova, do grupo Pussy Riot

Está passando na HBO o excelente documentário “Pussy Riot: um Protesto Punk”, que trata da prisão e julgamento do polêmico grupo feminista “Pussy Riot” na Rússia.

O filme explora os limites do ativismo criativo e o enquadramento jurídico do protesto artístico alternativo. No caso, algumas garotas organizaram, em fevereiro de 2012, uma performance artística dentro da Catedral da Igreja Ortodoxa Russa, em Moscou, criticando, por meio da música punk, as relações entre a Igreja e o Estado. O protesto foi filmado e colocado no Youtube. Na música, a banda denuncia uma suposta “Sujeira de Deus”, que decorreria dessa relação, além de enaltecer o feminismo e criticar o governo de Vladimir Putin, que teria se unido aos ortodoxos na cruzada conservadora. Vale conferir o vídeo com legenda:

Por conta disso, três garotas foram processadas e condenadas a dois anos de prisão, em conformidade com as leis da Rússia. Até hoje, duas delas estão presas, pois uma conseguiu reverter a sentença em grau de apelação.

Esse julgamento sofreu críticas de vários setores do meio artístico e dos direitos humanos no mundo todo, sobretudo pela desproporcionalidade entre a pena aplicada e o ato praticado. O protesto foi assumidamente pacífico e não causou maiores transtornos, a não ser um incômodo temporário para os devotos presentes no momento da apresentação.

Trazendo essa discussão para o plano dos direitos fundamentais, parece-me um claro exagero criminalizar essa forma de protesto. A liberdade artística deve ser tratada como uma forma específica de liberdade de expressão, que, por sua vez, exige de todos um compromisso com a tolerância. A tolerância não é um valor fácil de ser cultivado, pois exige que respeitemos aquilo que pode nos desagradar e nos incomodar. Mas sem ela provavelmente não teríamos moral para exigir o respeito dos outros em relação às nossas próprias idiossincrasias. O comportamento das meninas do Pussy Riot pode ser extremamente incômodo para alguns. Porém, é provável que o comportamento dessas pessoas incomodadas também seja incômodo para outras pessoas, o que não significa que mereça ser reprimido. Estar aberto ao diferente é uma exigência de qualquer sociedade que se deseje plural e democrática. A tolerância deve ser de mão dupla, e algumas provocações devem fazer parte dos ônus assumidos por uma sociedade que não compactua com o preconceito e enaltece o direito de igual respeito e consideração. Ou será que tudo isso é apenas “da boca pra fora”, típico do efeito NIMBY que costuma orientar boa parte do discurso dos direitos?

Há, certamente, um fator que poderia ser invocado para agravar a situação das meninas: a apresentação do grupo não foi realizada em local público, mas dentro de uma Igreja. Isso, sem dúvida, dá aos proprietários da Igreja o direito de usar o desforço possessório para tirá-las de lá, mas não transforma aquela performance em crime. Crime seria se houvesse destruição da propriedade ou uso da violência física contra os devotos ou discurso de ódio. Não houve nada disso. O protesto, na minha ótica, foi pacífico e está perfeitamente inserido no âmbito de proteção da liberdade artística, sendo um despropósito manter alguém preso por tanto tempo tão somente porque ousou protestar dentro de uma Igreja. De certo modo, não há tanta diferença entre perseguir as meninas do Pussy Riot e a histórica perseguição sofrida pelos ortodoxos durante a fase mais autoritária do comunismo russo. Ambas atitudes são incompatíveis com um sistema comprometido com a proteção dos direitos fundamentais.

No mais, o ativismo criativo tem sido uma das ferramentas mais interessantes para denúncia da opressão estatal. Num mundo perfeito, talvez seja possível falar não apenas em um dever estatal de respeito e proteção, mas até mesmo em um dever estatal de promoção do ativismo criativo, inclusive quando o objetivo da arte seja criticar o governo. Para que chegamos a esse nível de maturidade precisamos, certamente, evoluir para perceber a importância desse tipo de arte. No caso do Pussy Riot, estou convencido de que não se trata meramente de um bando de malucas querendo aparecer. São garotas com uma visão crítica acima da média, cujas ideias, mesmo que não se concorde, merecem ser ouvidas. Aliás, os depoimentos que elas prestam em juízo podem ser considerados como um dos pontos altos do filme. Vale a pena conferir.

%d blogueiros gostam disto: