Quando resolvi publicar O Direito Fora da Caixa, não imaginei que ele fosse fazer tanto sucesso.
Toda vez que vejo os comentários no site da editora fico bem animado, pois é revigorante, para um escritor, perceber que a obra foi tão bem recebida e compreendida no seu propósito:
Quem me acompanha há mais tempo sabe que, desde a minha adolescência, sou viciado em aprender e em descobrir formas mais eficientes de dominar o que me interessa, sem desperdício de tempo e de energia.
Como resultado, escrevi um livro sobre SuperAprendizagem que deve ser publicado em breve (prometido pra agosto!) pela editora Objetiva (Companhia das Letras).
Enquanto o meu próprio livro não sai, deixo aqui uma lista comentada com 10 livros que podem servir para aqueles que também querem aprimorar seus métodos (não só de estudo) e iniciar sua experiência no mundo da aprendizagem de alto impacto.
10 – Ultra-Aprendizado / Scott Young. Eu acompanhava o canal do Scott Young (em inglês) bem antes de o seu livro ser publicado. Quando o livro foi lançado, eu já havia praticamente concluído a minha pesquisa e por isso não acrescentou tanto em relação ao que eu já sabia. Mas é um bom ponto de partida pra quem quer entrar no mundo da ultra-aprendizagem.
9 – Ferramenta dos Titãs – Tim Ferriss. Livro polêmico, que compila centenas de dicas de pessoas de alta performance em vários campos diferentes. É bem prático e incorpora a filosofia da super-aprendizagem, que nada mais é do que descobrir a melhor forma de viver melhor, testando novas ideias capazes de aprimorar o desenvolvimento.
8 – Motivação 3.0 / Daniel Pink. O livro é uma ode à motivação intrínseca, que é a principal mola propulsora da aprendizagem. Você só aprende se soltar das amarras da motivação extrínseca e descobrir formas espontâneas para querer aprender cada vez mais. Ideia simples e valiosa que levo comigo sempre.
7 – Trabalho Focado / Cal Newport. Todos os livros do Newport valem a pena, mas esse é o melhor. Ideia base: é melhor focar por poucas horas em trabalho de alta intensidade, sem distração e “deep work” do que ficar enrolando em horas e mais horas de trabalho superficial rodeado de distrações.
6 – Fixe o conhecimento / Roediger III. Apesar do título meio infantil e da capa mais descontraída, o livro é escrito por um dos principais pesquisadores da área e mostra o que tem sido produzido no campo da ciência da aprendizagem. Tenho meus senões com os estudos científicos nessa área porque minha forma de aprender foge muito do padrão, e os estudos científicos generalizam. Mas a espinha dorsal da super-aprendizagem está nos conceitos de “dificuldades desejáveis”, “repetição espaçada”, “variabilidade” etc. que vem daí.
5 – Direto ao Ponto / Anders Ericsson – Peak é o processo por trás da super-aprendizagem. O conceito central de “prática deliberada” foi desenvolvido por Anders Ericsson, junto com a sua famosa teoria das “10.000 horas”, que foi popularizada (de modo um tanto quanto equivocado e exagerado) por Malcolm Gladwell.
4 – Outliers / Malcolm Gladwell – Como fã de carteirinha do Gladwell, tinha que incluir este livro, que foi um dos primeiros que li sobre super-aprendizagem. Qual a fórmula dos grandes gênios da humanidade? O que faz com que algumas pessoas consigam ter um desempenho fora do comum? Será que nós próprios podemos aplicar algum tipo de modelo para também alcançar o sucesso? Após duas ou três páginas, quem começa a ler não consegue mais parar.
3 – Mindset / Carol Dweck – A ideia de mindset (prefiro traduzir e usar mentalidade!) já está bem desgastada e saturada por conta dos coachs que usaram e abusaram do termo. Mas é um ponto de partida importante para quem quer entrar num processo contínuo de aprendizagem de longo prazo e com eficiência.
2 – Quando / Daniel Pink – Sou fã do Daniel Pink e esse livro foi decisivo para moldar meu atual estilo de vida, sobretudo pela forma como nos ajuda a pensar sobre como usar o tempo com sabedoria, fazendo a distinção entre horários nobres e horários pobres de acordo com o cronotipo.
1 – Hábitos Atômicos / James Clear. Eu poderia sugerir o famoso livro do Duhigg sobre o Poder do Hábito, que também é excelente para entender a ciência da formação do hábito. Mas o livro do James Clear é mais prático, mais legal e mais completo. Vale muito a pena!
“I don’t have a short temper. I just have a quick reaction to bullshit” – Elizabeth Taylor
Um dos maiores avanços civilizatórios, ao lado da invenção da escrita, da máquina de Gutenberg e dos emojis, foi a conquista do direito fundamental de falar besteira. George Orwell dizia que “se a liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”. Indo mais no âmago da questão, Oscar Wilde arrematou: “posso não concordar com você, mas defenderei até a morte o seu direito de ser um idiota”.
A liberdade de expressão representa, de fato, não só o direito de dizer coisas banais que todos aceitam ouvir, mas também, e sobretudo, o direito de expressar ideias “odiadas”, para fazer alusão à famosa citação de Holmes.
Odiamos, de um modo geral, o embuste, a ignorância e a estupidez, que são os ingredientes daquilo que a epistemologia contemporânea tem denominado de bullshit, uma das principais commodities no mercado de ideias em que vivemos.
Harry G. Frankfurt, no seu tratado filosófico On Bullshit (“Sobre Falar Merda”, na tradução portuguesa), sugere que uma bullshit possui dois componentes essenciais: a intenção de convencer e a indiferença em relação ao valor de verdade da mensagem (FRANKFURT, 2005, p. 58). O mentiroso (lier) difere do falador de merda (bullshiter) porque o mentiroso conhece a verdade, mas se esforça intencionalmente para escondê-la e deturpá-la. Já falador de merda (bullshiter) está pouco se lixando para a verdade. Para ele, não interessa os rigores de uma hipótese metodologicamente testada, nem a crença validada pelos experts daquela área de conhecimento. O único interesse do interlocutor é persuadir, impressionar e obter vantagem com isso. Ele irá produzir bullshit sempre que seja proveitoso se manifestar sobre algum tópico que exceda o seu conhecimento e não terá qualquer pudor em apresentar suas opiniões absurdas como “verdade”, mesmo que seja um completo ignorante no assunto.
Bullshits costumam ser tão disparatadas que chamam a atenção e, portanto, dão um bom retorno de audiência para quem as propaga. Ninguém dará muita bola para um vídeo da NASA no Youtube que demonstra que a Terra é redonda. Porém, se alguém divulga um vídeo com “a prova definitiva de que a Terra é plana”, muitas pessoas vão cair nesse clickbait e perder o seu precioso tempo assistindo às parvoíces do espertalhão. E na economia da atenção, vence quem consegue capturar o foco das pessoas por mais tempo.
É relativamente fácil refutar uma bullshit. Basta ter um mínimo de discernimento, uma capacidade básica de pensar analiticamente e o cuidado de consultar fontes confiáveis. Porém, mesmo sendo fácil desmascarar um propagador de bullshit, é uma tarefa que demanda tempo. E convenhamos: em pleno século XXI, quem é a pessoa minimamente capacitada que vai gastar tempo, caracteres e energia mental para discutir com alguém que acredita que a Terra é plana?
Há até um princípio metadiscursivo criado para se referir a esse fenômeno: a Lei de Brandolini, também conhecida como “princípio da assimetria de bullshit”. De acordo com esse princípio, “a quantidade de energia necessária para refutar uma bullshit é uma ordem de magnitude maior do que para produzi-la”.
Como a energia para desmascarar uma bullshit é sempre maior do que a energia para produzi-la, a tendência é que as bullshits passem a ocupar cada vez mais e mais espaço. Em um jardim que não é devidamente cuidado, são as ervas daninhas que crescem com mais facilidade.
Seria tentador pensar em simplesmente proibir a propagação de bullshit. Afinal, se uma bullshit é uma mentira absurda, irracional e sem sentido, por que permitir que ela seja divulgada livremente?
O problema é que até mesmo as bullshits podem ter algum valor epistêmico. Acompanhe o raciocínio.
Em um debate científico, um pesquisador sem prestígio defende que o álcool em gel não funciona para combater o coronavírus. Ele sustenta que, como o álcool evapora rápido, o vírus irá se propagar em alta velocidade em um ambiente repleto de álcool, aumentando, portanto, a taxa de contaminação. É uma hipótese completamente disparatada e contrária às crenças do conhecimento científico atual. Para a comunidade científica, o álcool mata o vírus e, portanto, dificulta a sua propagação. Logo, a hipótese seria considerada absurda, uma verdadeira bullshit.
Porém, mesmo sendo bullshit, a proposta poderia ter o efeito de estimular a pesquisa sobre a eficácia do álcool em gel. Talvez, por conta disso, os cientistas poderiam descobrir qual a forma mais eficiente de usar o produto, qual a duração da proteção, quais são os efeitos colaterais e problemas do uso excessivo e assim por diante. Ou seja, a hipótese disparatada estaria a produzir um claro ganho epistêmico, contribuindo, ainda que indiretamente, para o avanço do conhecimento científico.
Daí porque a censura pura e simples das bullshits, pelo mero fato de serem bullshits, não é a melhor solução. Há diversas opções mais promissoras.
Por exemplo, refutar racionalmente pode ser uma boa estratégia, embora demande tempo, esforço e paciência (e uma dose de sangue frio para ouvir asneiras sem embrulhar o estômago). Mas mesmo a refutação tem uma externalidade negativa: ela proporciona um efeito de holofote no propagador da bullshit, aumentando a sua fama que é exatamente o que ele pretende. Por isso, ignorar é outra estratégia bem razoável, e tem sido a que costumo adotar na maioria das vezes. Ridicularizar de acordo com o grau de absurdidade da bullshit também está valendo como forma de baixar o nível do debate para equalizar as armas discursivas. E até xingar pode ser uma boa alternativa, já que, muitas vezes, a vontade que dá mesmo é simplesmente mandar os propagadores de bullshit para o quinto dos infernos. Mas proibir a livre expressão será, em linha de princípio, uma saída não recomendada. Como diria George Washington, “quando a liberdade de expressão nos é tirada, logo poderemos ser levados, como ovelhas, mudos e silenciosos, para o abate”.
Embora silenciar um discurso na marra seja, em princípio, uma péssima ideia, mesmo os mais fervorosos defensores da liberdade de expressão acreditam que há alguns discursos que não merecem ser protegidos. Por exemplo, Oliver Wendell Holmes Jr., que já citamos no início do texto como autor da máxima de que a liberdade expressão protege até mesmo ideias que odiamos, também é o autor de outra frase famosa: “a proteção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem que falsamente gritasse fogo em um teatro, causando pânico”. Dentro dessa lógica, um discurso que tivesse o potencial de criar um perigo claro e imediato não estaria protegido, sendo legítimo ao poder público estabelecer mecanismos de controle para prevenir e reprimir a sua propagação.
Outro ícone da liberdade de expressão é John Stuart Mill, que tinha um poderoso argumento contra toda forma de censura. Para ele, devemos sempre manter uma humildade intelectual para aceitar opiniões divergentes, já que somos falíveis e nada pode garantir que a nossa visão é a correta. Além disso, mesmo as mensagens mais absurdas podem conter alguma dose de verdade que não foi devidamente percebida pela opinião dominante. E mesmo que não contenha verdade alguma, seria um erro reprimi-las, pois a expressão da falsidade tende a tornar mais clara e mais vívida a compreensão da realidade. Apenas o choque de opiniões antagônicas é capaz de permitir que a verdade venha à tona, razão pela qual deveríamos sempre encorajar o confronto de ideias e não tolher a liberdade de pensamento. O silêncio forçado poderia até produzir “uma espécie de pacificação intelectual”, mas isso ocorreria às custas do sacrifício de “toda a coragem moral da mente humana” (MILL, 2003).
O próprio John Stuart Mill, contudo, relativiza a sua defesa eloquente de um mercado livre de ideias com o princípio do dano. De acordo com ele, seria legítimo ao estado estabelecer restrições à liberdade para evitar que as pessoas causem danos umas às outras. Por exemplo, não seria aceitável permitir um discurso de incitação à violência ou tolerar que alguém instigue uma multidão furiosa a praticar algum ato pernicioso contra outro ser humano. Desse modo, mesmo na perspectiva de um autêntico expoente do liberalismo, a fala poderia ser limitada quando causar uma violação direta e clara a direitos de terceiros.
A questão é que nem toda bullshit possui um potencial danoso. Muitos absurdos que são propagados nos dias de hoje são inofensivos. Talvez ofendam a inteligência humana, mas, a rigor, não causam danos no sentido estrito do termo. Por exemplo, defender que a Terra é plana é um absurdo equivalente a achar que Elvis não morreu. É um completo nonsense, mas não interfere de modo negativo no direito de quem quer que seja.
Por outro lado, há situações em que a bullshit pode produzir danos. Em questões de saúde, por exemplo, a propagação de absurdos pode ter um enorme efeito prejudicial à população, inclusive ao ponto de colocar em risco vidas humanas.
Vamos a um exemplo hipotético para depois voltar ao debate real. Imagine que um médico fale a um paciente que a sua doença será curada se ele ingerir uma elevada dose de cicuta. O paciente, cumprindo a recomendação do médico, compra o veneno e ingere exatamente a dosagem prescrita. Alguns minutos depois, ocorre a sua morte fulminante. Nesse caso, o médico deve ser responsabilizado pela morte, não podendo invocar a liberdade de expressão ou de prescrição para defender o seu direito de recomendar a cicuta a seus pacientes.
No caso acima, a relação de causalidade entre o discurso do médico e a morte do paciente entra no conceito de plausibilidade extrema. É fácil inferir que, quando um médico recomenda uma alta dosagem de cicuta, a sua prescrição irá causar a morte do paciente que tomar o veneno. O discurso, portanto, produz não só um perigo claro e imediato, mas um dano efetivo, dada a influência do médico sobre o paciente. John Austin diria que o ato de fala do médico teria uma elevada força perlocutória, ou seja, de motivar a ação, já que os pacientes tendem a seguir a orientação médica.
Porém, nem sempre é fácil estabelecer a relação de causalidade entre o discurso e o dano. Se uma pessoa sem qualquer credibilidade defender que beber cicuta cura o câncer, provavelmente ninguém irá seguir a sua recomendação. Nesse caso, o potencial danoso da bullshit é bem limitado, pois pessoas com baixa credibilidade não costumam influenciar o comportamento alheio. John Austin diria, nesse caso, que o ato de fala teria pouca força perlocutória, já que ninguém dá bola a uma pessoa sem credibilidade.
Mesmo quando a bullshit é expressa por alguém que tem algum poder de influência, como um youtuber famoso ou um líder político, ainda assim não é fácil estabelecer um nexo de causalidade entre o discurso e o dano. Tomemos, por exemplo, o discurso do Presidente Trump afirmando que o coronavírus é uma conspiração chinesa para controlar o mundo. A mensagem parece encobrir uma intenção subjacente de criar um preconceito contra os chineses, mas não há uma instigação clara e direta de violência ou mesmo de exclusão de direitos. Estaríamos aqui em uma zona cinzenta, pois não é fácil medir o efeito dessa bullshit sobre o aumento da xenofobia contra os chineses.
Há, contudo, outras formas de bullshit que causam danos mais diretos, inclusive com o potencial de ceifar vidas humanas. Vejamos outras pérolas do Presidente Trump. Seu discurso negacionista afirmava que a pandemia era uma gripe como outra qualquer e, portanto, não havia qualquer necessidade de adotar medidas de proteção. Esse discurso pode, claramente, induzir as pessoas a agirem de modo mais displicente, aumentando a taxa de disseminação do vírus. A mesma lógica se aplica a sua postura antimáscara e a sua crítica ao lockdown, que tem como efeito prejudicar as políticas sanitárias de achatamento da curva epidêmica e estimular a imprudência comportamental. Do mesmo modo, ao propagar que as vacinas causam autismo, o intuito implícito do Presidente norte-americano era produzir medo nas pessoas, reduzindo, como consequência, a adesão às campanhas de vacinação e tornando ainda mais difícil o controle da pandemia. Na mesma linha, ao afirmar que há um tratamento mágico que, milagrosamente, é capaz de curar a COVID-19, como ele fez ao defender o uso da cloroquina e a ingestão de detergente, o resultado foi a busca pela automedicação, a redução das cautelas devidas contra a transmissão do vírus e o boicote às políticas locais que seguiam as recomendações dos especialistas.
Veja que o problema dessas bullshits não é o fato de elas transmitirem informações sem evidências suficientes, baseadas em má-ciência e contrárias ao mainstream da comunidade especializada. Como já foi dito, mesmo as ideias mais disparatadas possuem algum valor epistêmico e podem contribuir para o avanço do conhecimento. Além disso, ninguém é obrigado a acreditar e a expressar apenas informações que tenham o selo oficial da ciência, até porque as hipóteses científicas são, por essência, refutáveis, falíveis e provisórias. Propor conjecturas ousadas, mesmo contra o pensamento dominante, é um requisito essencial para o progresso do conhecimento e deve ser até estimulado e não reprimido. Não é, portanto, esse o problema. O problema é a intenção subjacente ao discurso político, que não se interessa pelo debate científico, mas pretende, sobretudo, motivar a ação.
Quando alguém com poder de liderança, como o Presidente Trump, afirma que “a cloroquina cura a COVID-19”, o que temos não é apenas uma opinião de um leigo sobre uma possível linha terapêutica a ser adotada, mas sim uma mensagem com o propósito de criar uma ilusão na mente de seus seguidores que levará, como efeito direto, a um movimento desesperado em busca do remédio, à minimização dos riscos pandêmicos e à hostilidade contra as demais medidas de proteção.
O discurso, nesse exemplo, possui uma função performativa, no sentido de levar as pessoas a pensarem, a sentirem e a agirem de determinado modo. Ele produz consequências nas crenças, nas atitudes e nos comportamentos de seu público receptor. É como gritar “fogo” em um teatro lotado, que tem como efeito imediato levar as pessoas a acreditarem que está havendo um incêndio, a sentirem pânico pela situação e a tentarem desesperadamente sair daquele local, inclusive ao ponto de colocar a integridade de outras pessoas em risco.
No caso do negacionismo pandêmico, se for possível demonstrar uma relação de causa e efeito entre o discurso e o aumento da taxa de contaminação, parece inegável que as pessoas com poder de influência que propagam essas bullshits devem ser responsabilizadas pelas consequências das besteiras que dizem.
A questão central é a seguinte: nessas situações, o discurso tem alguma força perlocutória? Em outras palavras: a propagação de ideias negacionistas sobre a pandemia pode ter o efeito de motivar e influenciar efetivamente o comportamento de outras pessoas ao ponto de aumentar a taxa de contaminação e a quantidade de óbitos?
Em um estudo conduzido por Adam Brzezinski, da Universidade de Oxford, os pesquisadores analisaram se existe uma correlação entre as crenças das pessoas sobre a ciência e tópicos de consenso científico com o cumprimento das ordens de distanciamento social (BRZEZINSKI E OUTROS, 2020). A hipótese era de que as pessoas que são céticas sobre alguns temas consolidados na comunidade científica, como as mudanças climáticas causadas pela ação humana, tendem a desobedecer com mais frequência à recomendação de ficar em casa durante o lockdown.
A hipótese foi confirmada com a análise de dados obtidos a partir do monitoramento de movimento de telefones celulares de cerca de 40 milhões de pessoas durante a decretação do lockdown em várias localidades norte-americanas, na segunda quinzena de março de 2020. A crença na ciência, segundo os pesquisadores, está associada a um maior nível de conformidade com as políticas de ficar em casa. Por outro lado, o ceticismo científico (que poderíamos chamar de bullshitism) produz uma desconfiança em relação à eficácia das medidas de distanciamento social e, consequentemente, uma maior violação às políticas de isolamento (shelter-in-place policies).
Um estudo ainda mais específico correlacionou a predisposição em acreditar em teorias conspiratórias com a taxa de compliance das políticas mandatórias de distanciamento social no Reino Unido, durante o mês de abril de 2020 (SWAMI & BARRON, 2020). A pesquisa contou com a participação de 520 voluntários que responderam a um questionário que mediu a capacidade de pensar analiticamente, a crença em teorias conspiratórias e o respeito às regras mandatórias de distanciamento social. O resultado indicou que, quanto maior é a capacidade de pensar analiticamente, maior é a predisposição em rejeitar teorias conspiratórias e aceitar as regras de proteção. Por outro lado, as pessoas com baixa capacidade analítica tendem a acreditar facilmente em teorias conspiratórias e a rejeitar as políticas de combate à pandemia.
Mesmo antes da pandemia do coronavírus, já existiam estudos sugerindo que os indivíduos que acreditam em teorias da conspiração são mais propensos a seguir comportamentos antissociais. Por exemplo, a crença em bullshit está associada a uma visão menos favorável à vacina contra a gripe pandêmica H1N1 na França (SETBON & RAUDE, 2010) e a uma menor eficácia das medidas de intervenção contra o surto de influenza na Suíça (EICHER E OUTROS, 2014).
Os estudos acima, contudo, não correlacionam discurso e comportamento, mas crença e comportamento. E todos chegam à mesma conclusão: quem crê em bullshit tende a agir como um asshole.
Mas e o discurso negacionista? Qual é o seu efeito na prática?
Um estudo do National Bureau of Economic Research analisou o efeito persuasivo da Fox News nas políticas de distanciamento social nos Estados Unidos. A proposta metodológica teve como objetivo estimar o efeito do aumento da audiência da Fox News sobre o comportamento de cumprir a recomendação de ficar em casa. A hipótese era a de que a linha editorial da Fox, orientada pelo negacionismo pandêmico, influenciaria o comportamento dos telespectadores, levando a um maior descumprimento às regras de isolamento social (SIMONOV E OUTROS, 2020).
Analisando os números da audiência dos três principais canais de notícias de TV a cabo nos EUA (Fox News, CNN e MSNBC), os pesquisadores constataram que existem fortes evidências de que o aumento da audiência da Fox News produz um aumento de descumprimento de medidas de distanciamento social. Para ser mais preciso, nos locais em que a audiência da Fox News é maior, a taxa de isolamento social é menor (SIMONOV E OUTROS, 2020).
Outro estudo na mesma linha comprovou que o “efeito Fox News” prejudica não apenas a adesão às medidas de distanciamento social, mas também o consumo dos produtos de proteção e de higiene (por exemplo, álcool em gel, máscaras e desinfetante, este último para limpeza e não para ingestão, obviamente). Ou seja, além de se comportarem de modo mais imprudente, os telespectadores da Fox News investiram menos na prevenção contra o coronavírus. Segundo os pesquisadores, os dados sugerem que essa linha comportamental não está relacionada apenas à posição partidária ou ao ceticismo em relação às evidências científicas dos telespectadores. Em vez disso, as mudanças comportamentais foram diretamente influenciadas pelas mensagens específicas dos programas televisivos, que minimizavam os riscos pandêmicos e questionavam as medidas de proteção (ASH E OUTROS, 2020).
Os estudos acima sinalizam com clareza que um discurso negacionista pode ter efeitos sobre o comportamento das pessoas, aumentando o desrespeito às medidas de distanciamento social e reduzindo a adoção de medidas de proteção, como o uso de máscaras. Nenhum deles, contudo, faz uma correlação entre o discurso negacionista e o aumento do número de contaminação e de óbitos decorrentes da COVID-19.
Apesar disso, é de se presumir que, quanto menor for a adesão às medidas de distanciamento e ao uso de máscaras, maior será o ritmo de contaminação e, consequentemente, de mortes. Sobre isso, Leonardo Bursztyn, da Universidade de Chicago, conduziu um estudo sobre a desinformação durante a pandemia, demonstrando que as áreas com maior audiência aos programas que minimizam a ameaça de COVID-19 tendem a vivenciar um maior número de casos e de mortes.
No referido estudo, os pesquisadores compararam o comportamento dos telespectadores a partir do exame da audiência dos dois programas de notícias mais populares na TV a cabo norte-americana: Hannity e Tucker Carlson Tonight. Ambos os programas são transmitidos pela Fox News e eram ideologicamente alinhados até antes de janeiro de 2020. Porém, durante a pandemia, cada um seguiu um posicionamento diferente, sendo que o Hannity adotou uma postura negacionista e o Tucker Carlson Tonight, uma postura de prudência e de preocupação com os riscos pandêmicos.
Como resultado, verificou-se que os telespectadores do Hannity demoraram mais tempo para mudar o comportamento em relação à pandemia, enquanto os telespectadores do Tucker Carslon Tonight mudaram o comportamento mais cedo. Isso teve impacto também no número de mortes: a maior exposição ao Hannity aumentou o número total de casos e de mortes nos estágios iniciais da pandemia, o que indica que a desinformação midiática pode ter consequências sociais significativas (BURSZTYN E OUTROS, 2020).
Outro estudo conduzido por Robert Hahn analisou essa questão mais diretamente, procurando estimar os efeitos dos discursos do então Presidente Trump sobre o uso de máscaras e a sua relação com o comportamento dos norte-americanos.
Em 3 de abril de 2020, Trump iniciou abertamente uma campanha contra o uso de máscaras, afirmando que não iria usá-las, como, de fato, não usava em público. Essa postura somente foi alterada em 21 de julho de 2020, quando o presidente abrandou as bravatas antimáscaras, passando a usar a proteção facial em público.
Hahn mediu os efeitos do discurso antimáscara no crescimento epidemiológico do coronavírus durante esse período em que Trump desdenhou da proteção. Os dados indicaram que, nesse período, a taxa de adesão ao uso de máscaras caiu, gerando impacto no aumento da taxa de contaminação e, consequentemente, no número de mortes. Nem todas as pessoas que deixaram de usar máscaras durante esse período foram diretamente motivadas pelo discurso trumpista. Por isso, o estudo analisou três cenários. Em um cenário mais conservador, apenas 25% das pessoas que deixaram de usar máscaras foram influenciadas pelo discurso. Nesse caso, as mortes influenciadas pela mensagem do Presidente Trump chegariam ao número de 4.244. Em um cenário moderado, o poder de influência do discurso seria de 50%. Nesse caso, o número de mortes decorrentes da não observância do uso de máscaras atribuíveis ao discurso presidencial chegaria a 8.356. No último cenário, previu-se um poder de influência de 75%. Nesse caso, 12.202 pessoas teriam morrido por causa das bullshits ditas pelo líder da nação apenas sobre o uso de máscaras, sem levar em conta os outros discursos disparatados sobre a recomendação da cloroquina, a crítica ao distanciamento social ou o estímulo à ingestão de água sanitária (HAHN, 2020).
Os estudos científicos acima citados foram produzidos pelas mais prestigiosas instituições de pesquisa do mundo e utilizaram uma sofisticada metodologia da análise de dados, com refinados instrumentos de modelagem estatística, para chegar a uma conclusão simples: as bullshits são uma merda!
Bullshits não são apenas disparates toscos, ingênuos e inofensivos de mentes com déficit intelectual, que espalham asneiras sem pensar. São ferramentas de um discurso estratégico com propósitos deliberados e bem definidos. Olhando especificamente para o tipo de discurso proferido pelo então Presidente Trump, vê-se que falar merda deixou de ser motivo de constrangimento para ser um meio eficiente de chamar atenção, angariar audiência, ganhar seguidores, aumentar o engajamento, obter votos, produzir cortina de fumaça (firehosing), manipular a verdade, estimular a ação etc. Cada palavra colocada nos seus textos e nas suas falas tem uma função bem definida dentro de seu plano político-ideológico. Se há bônus para aqueles que propagam as bullshits, também deve haver ônus. E o principal ônus é justamente a responsabilização moral, política e jurídica pelos efeitos produzidos pelas bullshits.
No contexto pandêmico, bullshits matam. Matam diretamente, porque influenciam a imprudência comportamental; e matam indiretamente, pois elevam os custos políticos para a adoção de medidas sanitárias relevantes para combater a pandemia, atrasando a sua implementação e diminuindo a sua eficácia.
É contraditório acreditar que a liberdade de expressão é essencial à democracia e, ao mesmo tempo, sugerir que não há nexo de causalidade entre o discurso de um líder político e a respectiva ação de seus seguidores. A importância da liberdade de expressão para a democracia está justamente na capacidade do discurso de interferir na formação da vontade coletiva e individual. O discurso político incorpora necessariamente uma pretensão de motivar a ação alheia. Quem fala no contexto político fala para convencer. Logo, o desejo de influenciar está na essência dessa forma de comunicação.
Uma pessoa em posição de influência, como Donald Trump, cujo discurso tem a capacidade de motivar e convencer milhares de pessoas, que propaga asneiras sem se preocupar com o seu valor de verdade, nem se importa com as crenças dominantes dos experts no assunto, com o propósito subjacente de criticar as medidas de proteção, estimular a imprudência comportamental e promover o seu programa político-ideológico, torna-se diretamente responsável pelo aumento da taxa de contaminação e das mortes daí decorrentes.
Justamente por ser a liberdade de expressão essencial à democracia, devemos responsabilizar os propagadores de bullshit pelos efeitos de seus discursos. Afinal, se é verdade que somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos, como diria Saint-Exupéry, então devemos aceitar também outra máxima para os tempos de bullshit: somos todos responsáveis pelas asneiras que saem de nossas bocas e pelas sandices que são digitadas pelos nossos dedos.
AJZENMAN, Nicolas; CAVALCANTI, Tiago; DA MATA, Daniel. More than words: Leaders’ speech and risky behavior during a pandemic. Available at SSRN 3582908, 2020
ASH, Elliott et al. The effect of Fox News on health behavior during COVID-19. Available at SSRN 3636762, 2020
AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Oxford university press, 1975
BRZEZINSKI, Adam et al. Belief in science influences physical distancing in response to covid-19 lockdown policies. University of Chicago, Becker Friedman Institute for Economics Working Paper, n. 2020-56, 2020
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EICHER, Veronique et al. Fundamental beliefs, origin explanations and perceived effectiveness of protection measures: exploring laypersons’ chains of reasoning about influenza. Journal of community & applied social psychology, v. 24, n. 5, p. 359-375, 2014
FRANKFURT, Harry G. On Bullshit. Princeton University Press, 2005; Sobre Falar Merda. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2005
HAHN, Robert A. Estimating the COVID-Related Deaths Attributable to President Trump’s Early Pronouncements About Masks. International Journal of Health Services, v. 51, n. 1, p. 14-17, 2021.
LEWIS, Anthony. Freedom for the thought that we hate: a biography of the first amendment. Basic Books, 2008
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 8ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2019
MILL, John Stuart. On Liberty. New York: Yale University Press, 2003
SETBON, Michel; RAUDE, Jocelyn. Factors in vaccination intention against the pandemic influenza A/H1N1. European journal of public health, v. 20, n. 5, p. 490-494, 2010
SIMONOV, Andrey et al. The persuasive effect of fox news: non-compliance with social distancing during the covid-19 pandemic. National Bureau of Economic Research, 2020
SWAMI, Viren; BARRON, David. Analytic thinking, rejection of coronavirus (COVID-19) conspiracy theories, and compliance with mandated social-distancing: Direct and indirect relationships in a nationally representative sample of adults in the United Kingdom. 2020
Discriminação por Preconceito Implícito é talvez o meu livro favorito, sobretudo pela paixão que o tema me causou desde o momento em que comecei a estudá-lo a fundo. Foi uma verdadeira transformação de corpo, alma e mente.
Passei mais de um ano em regime de imersão consumindo tudo que já tinha sido produzido sobre “Implicit Bias” (sim, em inglês, pois até então não havia praticamente nada em português). Quanto mais a teia de conhecimento crescia, mais eu ficava admirado com a revolução que estava sendo produzida pelas ciências cognitivas e comportamentais e entusiasmado em divulgar aquelas ideias.
Enfim, é um livro que me transformou e minha esperança é que outra pessoas também sejam tocadas por ele.
Foi-se o tempo em que o direito deixou de ser visto apenas como um conjunto de saberes teóricos, em que o mais importante era o domínio das normas, dos precedentes e da doutrina. Hoje, há uma consciência cada vez maior de que a atividade jurídica depende de um conjunto de habilidades que são desenvolvidas para além do saber estritamente jurídico.
Por exemplo, o direito exige o domínio capacidades críticas para que o jurista tenha condições não apenas de filtrar informações relevantes, mas também de avaliar o que presta e o que não presta e de produzir, a partir daí, bons argumentos.
Isso também envolve um pouco de persuasão. A linguagem do direito é, por essência, uma linguagem de convencimento e de justificação. Para ser um bom jurista, é preciso saber expor uma ideia de modo claro, elegante e eficaz. Estruturar uma narrativa de modo coerente, consistente e convincente é um passo fundamental para a conquista de resultados jurídicos.
Além disso, o foco do direito são condutas, atitudes e decisões humanas. Juristas interpretam ações e inferem intenções a partir delas para imputar responsabilidades. Juízes a toda hora estão avaliando pessoas e julgando comportamentos. É ilusão achar que basta olhar para um fato para extrair as suas consequências jurídicas. É preciso compreender a psicologia, o comportamento e a cognição humanas.
Por tudo isso, é essencial que o jurista abra os olhos para o que está sendo produzido para além do direito, em especial para a revolução científica que ocorreu no campo das ciências cognitivas e comportamentais.
O campo a ser explorado é vastíssimo, já que envolve mais de cinco décadas de intensa pesquisa, que já rendeu quase uma dezena de prêmios Nobel em várias áreas, da medicina à economia.
Aqui, vou sugerir apenas uma literatura de entrada para aqueles que desejam dar os primeiros passos nesse formidável campo daquilo que tenho chamado de PsicoDireito. É uma pequena lista de 10 livros de divulgação científica, com alguns bônus de literatura científica mais avançada.
Espero que curtam:
10 – Blink / Malcolm Gladwell – O livro do Gladwell abriu as portas para um conhecimento revolucionário que impacta inúmeros campos do saber. É um livro que explica a importância do pensamento automático no processo de tomada de decisões e que já adianta alguns temas relevantes, como o poder do inconsciente e a influência dos preconceitos implícitos. Fora isso, Gladwell é mágico na capacidade de escolher boas histórias e narrá-las de um modo super envolvente.
9 – Subliminar / Leonard Mlodinow – Junto com Gladwell, Mlodinow popularizou as ciências cognitivas. Em certo sentido, pode-se dizer que o livro do Mlodinow é a continuação do livro do Gladwell com novos estudos e boas histórias. E se você já leu, pode testar também o Elástico, que é mais recente.
8 – Previsivelmente Irracional / Dan Ariely – Mais um livro super popular, com o diferencial que Ariely é pesquisador do campo. Continua sendo respeitado, apesar de ter se envolvido em um escândalo de fraude em uma das pesquisas de que participou. Mas o livro é bom independentemente disso. Aqui já entra no campo da economia comportamental, uma área que cresceu a partir dos fundamentos das ciências cognitivas.
7 – Pré-Suasão / Robert Cialdini – Cialdini é o papa da persuasão. Todo mundo que fala hoje em gatilho mental está, no fundo, reproduzindo ideias que Cialdini já havia desenvolvido desde os anos 1980. Neste livro mais recente, Cialdini explica que a persuasão começa antes da linguagem, já com pequenos gestos, símbolos e comportamentos.
6 – As Armas da Persuasão / Robert Cialdini. Para os juristas que querem aprimorar a arte e a ciência da persuasão, todos os livros do Cialdini valem a pena. Este é mais antigo do que o Pré-Suasão, mas igualmente bom, pois explica os princípios do processo de convencimento. A rigor, é um livro para não ser manipulado, mas é claro que os manipuladores leem para aprender estratégias de manipulação. Nós, reles mortais, só precisamos ficar atentos.
5 – O Cérebro Intuitivo / John Bargh. John Bargh é um dos principais psicólogos que estudam o efeito priming, que é um efeito poderoso para mudar o comportamento e as decisões humanas. O princípio básico desse conceito é que o cérebro das pessoas pode ser influenciado por sinais sutis do ambiente, alterando as ações a partir daí. Muito, muito, muito bom o livro.
4 – Incógnito / David Eagleman. O Incógnito é um livro de neurociência popular. Eagleman é um neurocientista pop que consegue explicar as nuances da mente humana de um jeito simples e envolvente. Costumo consumir todo material que ele publica, até porque ele costuma citar muitos estudos envolvendo o direito.
3 – O Poder da Intuição / Gerd Gigerenzer – As ideias de Gigerenzer focam menos os vieses cognitivos e mais as heurísticas, buscando apontar as vantagens de um pensamento frugal. É, portanto, um programa alternativo sobre a racionalidade, que pode ser útil também na perspectiva da inteligência artificial e dos algoritmos.
2 – Ideias Próprias / Cordelia Fine – Cordelia Fina é uma neurocientista de Oxford que traz uma visão diferenciada sobre todo esse movimento de empolgação com o estudo do cérebro. É uma visão mais crítica e um pouco mais pé no chão, sobretudo quando se trata das implicações de gênero. Tenho pra mim que foi ela que inspirou o filme Química do Amor, da Netflix.
1 – Pensar Depressa e Devagar / David Kahneman – Eu sei que é meio óbvio incluir Kahneman em primeiro lugar. Mas não podia ser diferente. Foi o livro que me mostrou que é possível fazer pesquisa de ponta nessa área, e que nós, do direito, devemos ficar de olho no que está sendo produzido. É um livro com muitos insights para o direito, apesar de ser de psicologia comportamental e cognitiva. Mas se você já leu Rápido e Devagar, então parta para o Ruído, que é o novo livro do momento.
BÔNUS
Além do livro Ruído, de Kahenman, trago aqui mais cinco bônus. Não são livros de divulgação científica. São livros mais “sérios”, com pesquisas mais avançadas, voltados ao público acadêmico.
São um pouco mais caros, mas têm uma incrível vantagem: alguns livros têm uma edição espetacular, com uma diagramação de sonho!
5 – Memória / Baddeley e Outros – Um dos campos de pesquisa mais avançados da psicologia é a psicologia do testemunho. Nesse campo, o estudo da memória é uma mão na roda para os juristas. Tem muita coisa interessante, como as famosas falsas memórias e os erros de reconhecimento.
4 – Ciência Psicológica / Michael Gazzaniga– A psicologia cognitiva é o campo que o pensamento, com várias zonas de interesse com o direito: ilusões e vieses cognitivos, decisão humana, linguagem, julgamento etc.
3 – Psicologia Cognitiva / Eysenck – Achei melhor do que o do Sternberg porque a edição é espetacular. Nem vale imprimir, porque há várias imagens em que a cor é fundamental para a compreensão do problema tratado. Ou seja, tem que comprar.
2 – Psicologia social / Aronson e Outros – A psicologia social foi onde tudo começou. Não sei como os juristas ainda não se tocaram disso. Tem estudo avançado sobre agressão, sobre obediência, sobre preconceito, sobre conformidade (influência de grupo) e, por fim e mais importante, sobre psicologia dos tribunais!
As perguntas centrais que tentei responder giram em torno da jurisdição constitucional e dos direitos fundamentais. Para ser mais preciso, procurei aprofundar a discussão acadêmica sobre o método jurídico e a prestação jurisdicional, buscando elementos que possam permitir um avanço ético-jurídico das decisões judiciais.
Logo abaixo, segue a síntese que serviu de base à minha apresentação durante a defesa da tese na Sala dos Capelos.
“A Judicialização da Ética: um projeto de transformação da ética em direito orientado pela expansão do círculo ético”
Com este título, pretendi transmitir a essência de minhas investigações durante esta longa jornada acadêmica que hoje chega no seu cume. O problema central da dissertação que ora se apresenta envolve a relação entre ética e direito, tendo como pano de fundo a atividade jurisdicional e o processo de realização concreta do direito.
O que provocou o interesse no tema foi a constatação de que diversas questões com forte componente ético estão sendo decididas por órgãos jurisdicionais. Este fenômeno – a “Judicialização da Ética” – pode ser presenciado em diversas partes do mundo. São vários os exemplos – e citei alguns logo na introdução – de casos envolvendo, por exemplo, a criminalização do aborto e da eutanásia, a concessão de direitos aos homossexuais, o reconhecimento da dignidade dos animais, sendo submetidos à apreciação de juízes e decididos, em caráter definitivo, pelos órgãos responsáveis pela jurisdição constitucional.
Diante de tal fenômeno, diversos problemas se abrem para o estudioso do direito, especialmente problemas de natureza política, envolvendo, por exemplo, a legitimidade do poder judiciário, a separação de poderes, o princípio democrático ou os limites e as possibilidades da jurisdição. De certo modo, estes temas gravitam o núcleo central da presente tese, embora minha intenção não visa justificar as práticas presentes, nem defender ou combater, diretamente, a jurisdição constitucional tal como ela vem sendo exercida.
Na minha ótica, nessa questão, não se pode adotar um tom completamente otimista, pois é notório o caráter ambivalente da atividade jurisdicional, sendo possível apontar vários exemplos de abusos ou falhas na prática jurisprudencial. Por outro lado, também não se pode assumir um tom demasiadamente pessimista, pois também é inegável que a função jurisdicional pode ter um importante papel a cumprir na proteção dos direitos fundamentais e na mediação da convivência ética. Oscilando entre esses dois pêndulos – de um lado, uma desconfiança pessimista sobre a prática da jurisdição e, de outro, uma “esperança utópica” sobre as possibilidades de realização da justiça por meio das instituições jurídicas – tentei desenvolver alguns parâmetros substanciais para aferição da legitimidade do exercício do poder, em particular do poder judicial, sobretudo quando estão em jogo conflitos morais abrangentes que dividem as sociedades plurais contemporâneas.
O ponto de partida, desenvolvido no capítulo 2, foi uma tentativa de explicação e de compreensão do inquestionável avanço da jurisdição constitucional dos direitos fundamentais em várias partes do mundo no último século. Nesse ponto, a primeira hipótese de trabalho alicerça-se no pressuposto de que o avanço da jurisdição constitucional dos direitos fundamentais pode ser compreendido em função de uma mudança de paradigma dos fatores de aferição do exercício do poder legítimo, que passaram de um modelo de legitimação fundado no consentimento político para um modelo de legitimação fundado no consentimento ético-jurídico.
Essa ideia inspira-se, obviamente, em uma tradição intelectual que defende que a legitimação do poder decorre do consentimento. Assim, o estado somente poderia exercer o seu poder sobre qualquer pessoa se houvesse algum mecanismo capaz de obter uma concordância ou aprovação por parte daqueles que serão afetados pelo poder do estado.
O modelo tradicional que estruturou o formato do estado moderno foi o consentimento político, pretensamente obtido mediante eleições, em que os critérios normativos a serem adotados para a solução das controvérsias sociais seriam estabelecidos na esfera parlamentar, com base no princípio majoritário. Esse modelo possui inegáveis méritos, pois possibilita, pelo menos em tese, a participação popular no exercício do poder, a alternância política, a prevalência da vontade da maioria e uma certa previsibilidade e segurança na definição dos critérios a serem adotados para a solução dos problemas jurídicos.
Por outro lado, tal modelo também possui alguns graves inconvenientes, seja em razão das falhas e limitações da legislação, seja de natureza ainda mais profunda, envolvendo, por exemplo, as disfunções do sistema eleitoral ou a ausência de mecanismos de controle axiológico sobre o produto das deliberações parlamentares, propiciando a opressão legislativa ou a tirania da maioria. Além disso, tal modelo pode gerar o aniquilamento do sujeito ético, tendo em vista que a autonomia pessoal tende a ser sufocada pelas convenções coletivas, retirando do ser humano aquilo que lhe é mais essencial, que é a capacidade de ser autor da própria história.
Essas profundas falhas do consentimento político ocorrem, dentre outros motivos, porque, nesse modelo, os conflitos sociais são resolvidos a partir de um processo político-legislativo de medição de forças em que as teses que conseguem mais votos vencem (e se tornam a representação do lícito) e as teses derrotadas são eliminadas (tornando-se o ilícito). O grupo que consegue transformar seus interesses em lei pode usar a força do estado para obrigar a todos os demais a seguirem seus próprios valores, transformando o sistema normativo em um mecanismo de repressão institucionalizada. Ao fim e ao cabo, esse tipo de proposta obriga o sujeito ético a se curvar à vontade dominante, criando, artificialmente, um padrão comportamental uniforme e com pouca diversidade, que comporá o código legal da sociedade.
Além disso, o majoritarismo possui uma inquestionável propensão à opressão, na medida em que seu principal fator de decisão é estritamente quantitativo e indiferente quanto ao conteúdo das deliberações. Potencialmente, as minorias derrotadas nesse jogo serão excluídas de qualquer tipo de proteção jurídica, perdendo uma parcela essencial de sua dignidade-autonomia, ao ponto de afetar até mesmo a sua condição de pessoa. O status legal dos negros, das mulheres, dos índios, dos homossexuais, dos estrangeiros, das minorias religiosas etc. reflete esse fenômeno com muita clareza, conforme tentei demonstrar na dissertação (tese).
Embora o arranjo institucional do estado contemporâneo ainda seja alicerçado no consentimento político, houve mudanças significativas na estrutura do poder, sobretudo a partir do século XX, que possibilitaram o florescimento do consentimento ético-jurídico. Esse movimento está relacionado com a ascensão do constitucionalismo e com a valorização jurídica dos direitos fundamentais, que permitiram que a jurisdição, especialmente a jurisdição constitucional, emergisse como instância de controle de validade das deliberações do poder legislativo.
Essa progressiva e parcial substituição do consentimento político pelo consentimento ético-jurídico não implica, necessariamente, o fim da política, mas a submissão da política a determinados parâmetros formais e substanciais, relacionados aos direitos fundamentais, que funcionam como verdadeiros limites ao poder estatal. A juridicidade, com isso, quando vista em sua melhor luz, assume explicitamente uma intenção de validade axiológica, fundada no respeito à dignidade. Tal intenção de validade é hostil ao raciocínio instrumental-estratégico que despreza o sujeito ético.
Nos modelos institucionais fundados no consentimento político, o direito não é capaz de cumprir a função de controle do poder, pois, neste modelo, há uma clara submissão do jurídico ao político. Ou seja, os critérios jurídicos são determinados politicamente, não havendo qualquer possibilidade institucional, por parte dos juízes, de realizar uma filtragem axiológica das escolhas tomadas pelos detentores do poder. A confusão conceitual entre direito e legislação, incrementada pela ideologia legalista, pela valorização do texto legal como foco informacional da atividade jurídica, transformaram o direito – aqui entendido apenas como o conjunto de leis impositivas aprovadas pelo parlamento ou com as ordens coercitivas emanadas do soberano – em uma mera técnica de controle social a serviço do poder de ocasião. Com isso, abriram-se as portas para os diversos tipos de normativismos e funcionalismos que retiraram e ainda retiram do direito o seu autêntico sentido.
O consentimento ético-jurídico, por sua vez, apresenta-se como uma proposta que condiciona a validade jurídica ao respeito aos direitos fundamentais. Com isso, tenta-se propiciar um controle axiológico do poder, por meios institucionais, no interior do próprio processo de realização prática do direito. Nesse contexto, a função judicial assume perante a comunidade uma responsabilidade ético-jurídica de combater as injustiças presentes, incorporando no juízo decisório – e, portanto, em todas as fases da atividade jurisdicional (interpretação, argumentação, justificação etc.) – aqueles valores fundamentais que dão sentido ao direito.
Foi por este motivo que se buscou uma aproximação teórica com o jurisprudencialismo do Professor Doutor Castanheira Neves, aproveitando, ainda que parcialmente e com uma certa prudência, muitas de suas ideias à proposta aqui apresentada.
O ponto fundamental é reconhecer que o respeito incondicional à pessoa é o sentido do direito e que o direito deve intencionar uma validade ético-jurídica consistente na afirmação da dignidade humana como fundamento do justo decidir. Tal validade ético-jurídica não decorre do poder, nem da política, mas da própria comunidade, e é autonomamente constituída pela experiência judicativa a partir da solução de problemas reais.
Levando essa premissa para o campo da metodologia jurídica, o Professor Doutor Castanheira Neves apontou uma verdade simples, mas fundamental para compreender o sentido do direito: por detrás de todo problema jurídico, há uma controvérsia real (humana) e é justamente em função dessa controvérsia que se move o raciocínio jurídico. Assim, a solução dos casos concretos não é obtida por um mero processo de subsunção de regras impositivas, até porque as regras precisam passar por um processo de adaptação e correção antes de serem adotadas como critérios válidos de solução de um problema específico. Nesse processo de adaptação e correção, os princípios são tratados como verdadeiros fundamentos do direito, tornando-se elementos essenciais para o raciocínio jurídico, servindo como fonte de inspiração, orientação, motivação, adequação, correção e justificação das decisões judiciais.
No jurisprudencialismo, os princípios são considerados verdadeiramente como jus (ou seja, como fundamentos do direito) e não como ratio (como se fossem apenas a formulação simplificada do critério comum que une um conjunto de regras específicas) ou como intentio (como se fossem meramente materiais pré-jurídicos passíveis de serem incorporados ao sistema normativo mediante um processo de institucionalização), pois só assim se alcança a verdadeira autonomia do direito perante o poder.
Aliás, nesse ponto, seria importante traçar as principais diferenças entre o jurisprudencialismo e as propostas funcionalistas e normativistas, inclusive os diversos positivismos contemporâneos (inclusivista, incorporacionista e exclusivista), mas, infelizmente, em razão do tempo e do espaço, isso não será possível (tentei fazer isso no capítulo 3). O importante é perceber que, para o jurisprudencialismo, o direito em seu autêntico sentido é uma prática judicativa que intenciona uma validade axiológica, possuindo uma inegável dimensão ética, embora não se confunda com a ética. Assim, ainda que o direito e a ética não sejam exatamente a mesma coisa, podem estar conectados em vários níveis, sobretudo no nível fundamental.
É justamente em razão dessa forte conexão entre a ética e o direito no nível fundamental que nasce a ideia de transformação da ética em direito orientado pela expansão do círculo ético.
A ética e o direito são constituídos no mesmo contexto comunitário e se alicerçam nos mesmos valores fundamentais, a exemplo do respeito à dignidade, que é a base comum tanto do direito quanto da ética. No entanto, a dimensão ética da dignidade, de um modo geral, parece ser mais abrangente e mais exigente do que a dimensão jurídica da dignidade. Sendo assim, o que se pretende é construir um projeto ético-jurídico intencionalmente guiado por um sentido sempre expansivo de respeito ao outro, aproximando a dimensão jurídica da dignidade de sua correspondente dimensão ética. A expansão do círculo ético, que se desenvolve a partir da reflexão sobre o significado prático do conceito de respeito ao outro, implica uma ampliação das exigências que decorrem do sentido de respeito e o alargamento daquilo que se pode compreender como o outro.
Como síntese, poderíamos dizer que o fundamento da juridicidade não está necessariamente na positividade politicamente institucionalizada, mas na validade axiológica comunitariamente constituída.
Quais são as atividades privaticas dos profissionais de educação física? Ginástica? Atletismo? Dança? Ioga? Pilates? Capoeira? Artes marciais?
Quais são os parâmetros que devem ser adotados pelo Conselho Federal de Educação Fisíca no exercício irregular da profissão?
Não é um debate simples. De um lado, é legítima a preocupação em afastar pessoas sem qualificação do mercado de educação física, já que o que está em jogo é a saúde humana. De outro lado, ao longo da história, o método de aprendizagem de muitas atividades físicas e desportivas foi baseado em um tipo “não acadêmico” de transmissão do conhecimento e, portanto, é questionável que a exigência do diploma em educação física possa substituir esse modelo. Aliás, em alguns casos, o modelo de aprendizagem tradicional é fruto de uma cultura milenar que é, em muito, superior ao conhecimento adquirido nos bancos universitários. Imagine todas as etapas que um professor de artes marciais precisa enfrentar para chegar à condição de mestre. Você preferiria aprender karatê com um mestre faixa preta que luta desde criança ou com alguém que fez a disciplina “karatê” na faculdade de educação física?
Outras atividades são aprendidas de modo informal e estão inseridas em um contexto artístico, cultural e social que sequer é disciplina das faculdades de educação física. Pense na dança, por exemplo. Qual a necessidade de um um professor de forró ou de frevo ou de pole dance ser formado em educação física?
Mesmo algumas atividades desportivas mais arriscadas para saúde – como o futebol ou a patinação artística ou o tênis – são aprendidas em um contexto prático não-acadêmico. A experiência que um jogador de futebol adquiriu ao longo de sua vida dentro e fora de campo o habilita tranquilamente a se tornar treinador de futebol independentemente de um diploma. Mas qual é o limite que separa a suficiência do conhecimento prático com a necessidade do conhecimento acadêmico?
O critério que o STJ adota não é baseado na tradição, mas na finalidade da atividade. Se o condicionamento físico (ou a educação do corpo, para usar a linguagem adotada) for a finalidade principal da atividade, então estamos diante de uma modalidade que se encaixa no conceito de educação física e, portanto, o profissional precisa ser registrado no CREF. Por outro lado, se o condicionamento físico for apenas um meio para alcançar outros objetivos, a atividade não poderia ser tratada como “educação física”, e qualquer pessoa poderia, em tese, dar aula ou treinar naquela atividade.
Coloquei lá no Instagram um post ilustrativo da posição do STJ, indicando quais as atividades que o STJ já decidiu que não se encaixam no conceito de educação física.