Primeiro comentário
É papel da jurisdição constitucional se intrometer em assunto eleitoral? Não se trata de questão que é melhor resolvida no âmbito do próprio legislativo? Considerando que a Câmara Federal acabou de apreciar esse tema e decidiu manter o financiamento privado irrestrito, a decisão do STF não é uma afronta à separação dos poderes?
Não é fácil responder a essas perguntas, até porque há muitas respostas possíveis.
De minha parte, estou com aqueles que defendem que a jurisdição constitucional tem um papel importante no processo de desobstrução dos canais da mudança política, conforme defendido por Ely, em “Democracy and Distrust”.
A lógica é simples: em temas relacionados à mudança política, é bastante provável que o legislativo aprove medidas para beneficiar os que já estão no poder. Afinal, como há uma tendência de permanência no poder, não há qualquer interesse em prejudicar os que foram eleitos. Por essa razão, a jurisdição constitucional poderia exercer uma função importante de garantir as condições procedimentais necessárias para que a democracia representativa funcione corretamente. O mau funcionamento da democracia representativa ocorreria toda vez que surgem motivos para desconfiar do processo político, especialmente quando (1) os incluídos estão obstruindo os canais da mudança político para assegurar que eles continuarão incluídos e os excluídos continuarão de fora, ou (2) mesmo que ninguém tenha a voz calada ou o voto negado, a maioria política consiga sistematicamente aprovar medidas desvantajosas a alguma minoria por simples hostilidade ou recusar, por puro preconceito, a igual proteção jurídica conferida a outros grupos. Com base nisso, Ely defende a intervenção judicial para o desbloqueio dos canais da mudança política, o que significa, na prática: (a) exercer o controle das restrições à liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e de associação política; (b) assegurar que a ninguém se negue sem motivo convincente seu direito de voto e garantir que os votos tenham pesos semelhantes dentro da contagem política; (c) proporcionar a transparência no processo legislativo, garantindo o acesso às informações necessárias para que seja possível analisar e controlar os motivos das opções parlamentares; (d) facilitar a representação das minorias, melhor dizendo, dos grupos que historicamente têm sido menosprezados e prejudicado por parte da maioria política.
Ely não fala de financiamento de campanhas eleitorais, até porque, quando o livro foi escrito (nos anos 1970), esse tema ainda não havia emergido como uma das questões centrais dos regimes democráticos. Mas é óbvio que o abuso do poder econômico tende a obstruir os canais democráticos, sobretudo quando resta fartamente demonstrado que as eleições estão sendo financiadas com dinheiro da corrupção. Portanto, a lógica se aplica. Afinal, há razões para desconfiar nos congressistas no que se refere à reforma política? O “sinal de alerta” é acionado quando candidatos que receberam doações milionárias de empresários votam a favor da manutenção do sistema? Se a resposta for positiva, o controle de constitucionalidade pode ser um mecanismo para reequilibrar a balança, desobstruindo os canais democráticos.
Segundo comentário
É muito comum ouvir, na doutrina constitucional, a afirmação de que a jurisdição constitucional é uma atividade contramajoritária, em que poucos juízes não-eleitos decidem questões altamente polêmicas sem um respaldo popular. A justificativa apresentada pelos defensores desse modelo é que é necessário um órgão imparcial e independente que seja capaz de tomar decisões “fundadas em princípio” sem se guiar pela opinião pública, mas apenas pela constituição. Assim, a não-eletividade dos juízes seria, em certo sentido, até mesmo um aspecto positivo, na medida em que pessoas eleitas tendem a tomar decisões pensando em angariar votos, o que poderia ser pernicioso para a proteção de determinados valores fundamentais, que não podem ficar à mercê do joguete político.
Esse debate é bem conhecido e não pretendo aqui tomar partido a favor ou contra a jurisdição constitucional, até porque a ambivalência da atuação jurisdicional não nos permite ser taxativo para nenhum dos lados. O que desejo é tão somente desmistificar uma ideia que se tornou senso-comum e costuma ser repetida acriticamente na doutrina constitucional. Refiro-me à ideia de que o legislador sempre toma decisões em conformidade com a vontade da maioria e, em contrapartida, a jurisdição constitucional, ao invalidar as leis aprovadas pelo parlamento, é sempre contramajoritária. Na verdade, em muitas situações, a decisão judicial, mesmo quando afronta uma deliberação parlamentar, pode estar bem sintonizada com a vontade da maioria, embora isso não seja necessariamente relevante para verificar o acerto ou o erro da atuação do órgão jurisdicional. E mais: em muitas situações, quem está completamente alheio aos anseios do povo é o próprio legislativo, já que, por vários motivos, a deliberação parlamentar pode se afastar das aspirações populares. Basta ver que, nesse tema da reforma política, é nítida a falta de sincronia entre o desejo da população e a atitude do Congresso Nacional. Por outro lado, o Judiciário tem tomado algumas decisões altamente populares nessa temática, como, por exemplo, a que estabeleceu a perda do mandato em caso de infidelidade partidária ou esta recente decisão sobre o financiamento de campanha
É óbvio que o inverso também pode ser verdade. Vale dizer: é possível que o órgão jurisdicional tome decisões impopulares (que, do ponto de vista jurídico, podem estar certas ou erradas independentemente disso) e, por outro lado, nada impede que o legislador aprove leis com forte apoio popular, o que também ocorre com frequência. Isso não se discute. O que desejo enfatizar é o fato de que a dificuldade contramajoritária, por si só, não é um aspecto relevante na análise da legitimidade da jurisdição constitucional.
Aliás, no fundo, nem a legislação, nem a jurisdição são legítimos de per si. Pelo contrário. Qualquer modelo institucional em que alguns indivíduos se investem na função de controlar a vida de outras pessoas é arrogante e tendente ao arbítrio. Isso vale tanto para um órgão que alega decidir “em nome do povo” quanto para um órgão que assume o papel de “guardião da constituição”. Mas isso é assunto para um outro post.
Sobre essa questão da jurisdição poder ser majoritária: