Palestra: Discriminação por Preconceito Implícito*

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* Texto-base de palestra proferida no I Congresso Nacional de Direitos Humanos, proferida em 10/12/2016, em Balneário de Camboriú

 I – Introdução

Inicio esta apresentação com uma confissão pessoal da qual não me orgulho e que nunca expressei em público. Descobri que tenho tendências racistas. Para usar uma expressão mais precisa, tenho uma leve preferência automática por pessoas brancas. Sendo ainda mais específico, meu cérebro associa com mais facilidade expressões positivas – como paz, felicidade ou amor – com rostos de pessoas brancas do que com rostos de pessoas negras. Em contrapartida, associo mais rapidamente palavras negativas – como violência, guerra ou medo – com rostos de pessoas negras.

Descobri isso há cerca de um ano, depois de realizar o Teste de Associação Implícita, desenvolvido por pesquisadores de Harvard, que serve para medir o nível de preconceito implícito das pessoas em relação a determinados grupos estigmatizados (negros, mulheres, homossexuais, estrangeiros etc.). Tão logo recebi o resultado, fiquei em choque e decepcionado comigo mesmo. Afinal, eu não quero ser racista. Eu abomino o racismo. Eu não suporto pessoas racistas. Eu acredito firme e sinceramente que todos merecem ser tratados com igual respeito e consideração, e empenho minha vida no magistério e na magistratura para defender esse ideal.

O problema é que a minha vontade consciente nem sempre está no controle da situação. Nossas ações e decisões são influenciadas por fatores que estão fora do radar da consciência. Ou seja, a minha crença na igualdade de todos os seres humanos talvez não seja suficiente para me impedir de agir, inconscientemente, de forma discriminatória.

Hoje, eu tenho consciência do meu preconceito implícito e espero tentar convencê-los de que, infelizmente, o problema não é só meu. É bastante provável que você também tenha preferências raciais em favor dos brancos, ainda que não tenha consciência disso. Para dizer a verdade, esse tipo de preconceito está presente em cerca de 80% de pessoas brancas e até mesmo em cerca de 50% de pessoas negras. Sim: na nossa sociedade, o preconceito implícito é a regra e atinge até mesmo as vítimas do preconceito.

Pretendo, nesta apresentação, explicar o que é o preconceito implícito, tentando demonstrar que ele está em praticamente todas as nossas decisões, e como isso pode gerar comportamentos discriminatórios. Espero também ensaiar algumas ideais sobre como o direito pode ser mobilizado para combater a discriminação por preconceito implícito, indicando algumas fontes de pesquisa bem atuais.

II – Associações Implícitas como Fonte do Preconceito

Para iniciar, falarei sobre uma experiência meio inusitada, que demonstra como nosso cérebro processa informações de forma inconsciente e como isso pode gerar preconceitos implícitos.

A experiência envolve vinhos. Algumas pessoas foram convidadas para degustar e avaliar dois novos vinhos que seriam lançados no mercado. Seria uma degustação às cegas, ou seja, todas as informações relevantes foram ocultadas: o produtor, a região, a safra, o tipo de uva etc. A única informação que foi propositalmente indicada foi o preço de venda. Na primeira garrafa, foi colocada uma etiqueta informando que o vinho custaria 45 dólares. Na segunda garrafa, a etiqueta indicava que o vinho custaria 5 dólares.

Não houve qualquer surpresa no resultado da avaliação. Como esperado, o vinho mais caro recebeu uma nota média de 3,4, numa escala de 1 a 5, e o vinho mais barato foi avaliado em 2,3.

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É provável que muitos já tenham intuído que o conteúdo das duas garrafas era absolutamente idêntico. O vinho era o mesmo em ambas as garrafas. A única diferença era a etiqueta. Ou seja, os degustadores foram sugestionados pelo preço, algo relativamente previsível, já que quem vive em um mundo capitalista sabe que as pessoas são influenciáveis e que o preço dos produtos exerce um enorme poder sobre nossas preferências de consumo.

Mas a grande surpresa dessa experiência ocorreu quando se verificou, a partir da leitura do mapeamento cerebral das pessoas que participaram da degustação, que, de fato, as percepções sentidas pelos degustadores variaram conforme a garrafa, apesar de o líquido ser exatamente o mesmo. Por incrível que pareça, foram duas experiências distintas, e o resultado da avaliação, em favor do vinho supostamente mais caro, traduziu as atividades sensoriais sentidas. Ao analisar o funcionamento do cérebro antes, durante e depois degustação, verificou-se que as conexões cerebrais relacionadas ao prazer foram mais intensas quando se degustou o vinho de 45 dólares. Por outro lado, quando se degustou o vinho de 5 dólares, eram as áreas do cérebro relacionados à aversão que estavam em atividade.

Pelo menos duas lições podem ser extraídas dessa experiência. A primeira é que sempre que você for oferecer um vinho para alguém diga que o vinho é caro. Isso melhorará o sabor, mesmo que o vinho seja um Sangue de Boi. Eu já fiz isso algumas vezes e posso garantir que dá certo. É uma mentirinha inocente e benéfica, pois, no fundo, você estará proporcionando uma experiência superior para o seu convidado, maximizando o prazer dele a um custo menor pro seu bolso. (Brincadeira!)

Mas a segunda é a que interessa: os julgamentos que realizamos se baseiam, muitas vezes, em associações implícitas que existem em nossas mentes e são automaticamente acionadas mesmo que não tenhamos consciência disso.

Associamos o preço do vinho à sua qualidade. Por isso, uma mera etiqueta indicando o preço pode colocar nosso cérebro em estado de alerta, para criar expectativas positivas ou negativas, conforme o caso. Identificaremos com mais facilidade as qualidades positivas de um vinho de 200 reais e deixaremos de perceber alguns defeitos que não são esperados em um vinho tão caro. Por outro lado, se o vinho custar 20 reais, serão os defeitos que se destacarão e eventuais qualidades não serão percebidas.

Nosso cérebro preencherá as lacunas informativas com os esquemas mentais embutidos em nossas mentes, tendendo a confirmar as expectativas previamente criadas.

A cor da pele, ou o gênero, ou características étnicas ou orientação sexual, funcionam como essas etiquetas ou esquemas mentais automáticos e são capazes de afetar nossos julgamentos, mesmo que não tenhamos consciência disso. As categorizações e os estigmas de grupo, socialmente construídos ao longo de séculos de dominação branca, heterossexual e masculina, fazem parte dos esquemas mentais de grande parte da população mundial, mesmo que, no nível da consciência, muitos abominem o preconceito.

III – Efeitos Discriminatórios do Preconceito Implícito

No início desta apresentação, falei brevemente do Teste de Associação Implícita, que é uma forma rudimentar de medir algumas preferências implícitas. O teste funciona como um jogo, em que temos que associar, no menor espaço de tempo, algumas palavras com determinadas categorias de pessoas. Ao final, é possível ter uma noção do nosso nível de preferências implícitas a depender da facilidade ou velocidade com que associamos os pares de palavras.

Mas há outros testes menos abstratos, como por exemplo um que foi desenvolvido para medir o preconceito implícito de policiais, conhecido como Police Office Dilemma. Neste teste, os policiais devem encarar um jogo virtual em que algumas situações dramáticas são simuladas e, em um curto espaço de tempo, devem decidir se atiram ou não em alguns suspeitos que ameaçam a sua vida ou a de outras pessoas. As situações são bem semelhantes entre si, mas, em algumas cenas, o suspeito é branco e, em outras, é negro. O jogo mede o tempo de reação do jogador para verificar sua capacidade de distinguir situações em que deve atirar ou não. Sem surpresa, o jogo demonstra que as pessoas têm mais facilidade de atirar quando o suspeito é negro, inclusive ao ponto de cometer erros de avaliação, como atirar em uma pessoa negra que está segurando um celular e não uma arma, por exemplo. No mesmo cenário, quando o suspeito é branco, poucas pessoas cometem o mesmo erro.

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Eu fiz o teste, que também está disponível online, e, para minha infelicidade, mais uma vez fui reprovado, ou seja, atirei por equívoco em mais suspeitos negros, fui mais rápido em “não atirar” em suspeitos brancos e em “atirar” em suspeitos negros. Por sorte, não sou policial e não pretendo andar armado.

Mas até aqui ainda estamos caminhando por terrenos meio abstratos, de simulações e jogos virtuais e de computadores, apesar de serem situações de vida ou morte que muito provavelmente podem ter correspondência com o mundo real.

É claro que o preconceito implícito é sentido na pele por muitas pessoas no dia a dia, seja em situações mais banais, por meio de microexpressões faciais ou palavras de desprezo ditas involuntariamente, seja em situações mais sérias, como em uma abordagem policial, uma entrevista de emprego ou em um processo judicial.

Já há um amplo conjunto de estudos realizados para comprovar a ocorrência da discriminação por preconceito implícito em muitas áreas da vida (aqui). Citarei uma pesquisa envolvendo atendimento médico, que me impressionou por vários motivos. Primeiro, porque se trata da saúde humana e a medicina, um campo em que, em princípio, a cor da pele não deveria influenciar o tratamento. Segundo, porque envolve crianças, um grupo vulnerável que ninguém gostaria conscientemente de discriminar. Terceiro, porque envolve situações de dor, ocasião em que a empatia humana deveria funcionar para acionar os mais básicos instintos de cuidado.

Eis a pesquisa: foram analisados todos os atendimentos realizados com crianças que foram diagnosticadas com apendicite entre os anos de 2003 a 2010 em um hospital pediátrico nos Estados Unidos. Os pesquisadores descobriram que, quando uma criança negra chegava ao hospital se queixando de dor moderada, poucas recebiam analgésicos não-opióides, que são mais baratos, e menos ainda recebiam analgésicos opióides, que são mais caros. Ou seja, a maioria das crianças negras não recebia qualquer tipo de remédio para abrandar a sua dor. Curiosamente, se a criança fosse branca, havia mais possibilidade de receber analgésico não-opióide ou então de receber analgésico opióide, embora a queixa fosse a mesma, ou seja, uma dor moderada. Por sua vez, quando se tratava de criança negra se queixando de dor intensa, a maioria recebia analgésico não-opióide e poucas recebiam analgésico opióide. As crianças brancas que se queixavam de dor intensa, por outro lado, recebiam, em sua maioria, analgésico opióide, que é o tratamento mais eficiente, embora mais caro.

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Há, pelo menos, duas explicações possíveis para esse fenômeno: primeiro, pode haver uma menor empatia entre os médicos e as crianças negras, algo que foi demonstrado inclusive por meio de exames de mapeamento cerebral feito em alguns médicos. A outra explicação decorre de uma associação implícita que costuma existir entre a cor da pele e a capacidade de sentir dor. Talvez pelo histórico de violência e de imagens de negros “levando chicotadas e porradas” as pessoas criem uma percepção de que as pessoas negras são mais capazes de suportar a dor do que os brancos, e isso pode levar a uma diferença de tratamento para dor, em função do que está sendo chamado de superhumanização dos negros. É como se estes fossem portadores de algum poder especial que os torna imune à dor. Seja como for, o quadro é assustador.

IV – Tipos de Preconceito Implícito

Além da superhumanização das pessoas negras, já foram catalogados vários tipo de preconceito implícito.

Tem-se, por exemplo, a ameaça de estereótipo, que é um fenômeno que ocorre em função da pressão que determinados grupos estigmatizados sentem quando são comparados, em testes ou competições com outras pessoas, o que pode levar a uma piora no desempenho, derivada da ansiedade, que confirma a expectativa de inferioridade. Vários estudos demonstram que o resultado de testes de inteligência ou de conhecimento pode variar conforme a ameaça de estereótipo é ou não ativada. Por exemplo, quando negros ou mulheres fazem testes e são informados de que o objetivo do teste é fazer uma comparação de inteligência com homens brancos, o desempenho geralmente é pior do que quando tal fato não é informado. A ameaça de estereótipo é um dos fatores que põem em cheque as crenças tradicionais sobre a meritocracia, tema que abordado pela Fernanda Orsomarzo.

Outro exemplo de preconceito implícito deriva do chamado racismo aversivo, que surge a partir do desconforto mental, ainda que involuntário, que algumas pessoas sentem quando estão na presença de membros de grupos estigmatizados. Isso pode levar, por exemplo, um professor a prejudicar involuntariamente um aluno pelo fato de ele ser membro de uma minoria, tratando-o com mais severidade, desmotivando-o ou ignorando os seus méritos, o que pode prejudicá-lo pelo resto da vida. Ou pode levar uma pessoa negra a ser preterida em uma entrevista de emprego em razão do racismo aversivo do entrevistador, que torna o ambiente mais hostil e tenso, com pouca troca de palavras, distanciamento e encerramento prematuro, prejudicando o desempenho do entrevistado. Ou então pode levar um juiz a diminuir a credibilidade do depoimento de uma testemunha ou até mesmo a ser mais rigoroso ao julgar um réu, influenciado inconscientemente por preconceitos implícitos.  Existem muitos estudos que comprovam a existência do racismo aversivo em diversas áreas da vida.

Em todos esses casos, verifica-se a ocorrência daquilo que se pode chamar de injustiça epistêmica e hermenêutica, que pode ser conceituada como um tratamento injusto na avaliação de comportamentos e conhecimentos produzidos por determinadas pessoas. Por conta disso, haverá uma facilidade de percepção e memorização de erros praticados por grupos estigmatizados, ou então uma dificuldade de percepção e memorização dos seus acertos, de modo a confirmar os esquemas mentais implícitos.

Vejamos outra pesquisa bem a esse respeito, que é ainda mais interessante porque envolve o direito e a academia.

Foi distribuído para oitocentos alunos de uma faculdade de direito um determinado artigo científico, que deveria ser avaliado com base em critérios objetivos previamente estabelecidos. Os alunos deveriam identificar eventuais erros gramaticais, erros técnicos e factuais e a partir daí atribuir uma nota ao texto. Para metade dos alunos, foi indicado que o autor do texto era um advogado negro. Para a outra metade, foi dito que o autor seria um advogado branco.

O resultado foi o seguinte: o texto escrito pelo advogado branco recebeu uma nota de 4,1 (de um total de 5) e o do advogado negro 3,2. Além disso, os alunos identificaram muito mais erros gramaticais, técnicos e factuais no texto escrito pelo advogado negro, apesar de ser exatamente idêntico ao texto escrito pelo advogado branco.

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Lembrem-se da experiência do vinho. É exatamente o mesmo fenômeno, mas a etiqueta “de qualidade” não é o preço e sim a cor da pele. O cérebro humano se prepara para enxergar as qualidades do texto escrito por um advogado branco, e os defeitos de um texto escrito por um advogado negro. Isso demonstra que critérios objetivos de avaliação nem sempre são tão objetivos assim, pois a lente do avaliador pode estar contaminada com preconceito implícitos.

V – O Papel do Direito

Seria possível continuar com vários exemplos e pesquisas semelhantes, mas para finalizar desejo apenas levantar algumas possibilidades de investigação jurídica desse fenômeno.

Em primeiro lugar, é possível estudar os impactos do preconceito implícito na própria atividade do jurista. Existem estudos muito interessantes sobre como os policiais, delegados, promotores, advogados, juízes, jurados, testemunhas podem ser afetados por preconceitos implícitos e como isso pode gerar discriminação contra determinados grupos estigmatizados praticada pelo próprio sistema de administração de justiça. Aprofundar esse tema é um dos meus projetos para 2017.

Além disso, é tentador pensar em incorporar o conceito de preconceito implícito no direito da antidiscriminação. Esse foi o campo de pesquisa em que me dediquei no semestre passado. Procurei compreender como seria possível desenvolver um sistema de responsabilidade civil decorrente da discriminação por preconceito implícito. Esse tema é interessante, pois exige repensar o papel da consciência e da intenção do agente na caracterização do ato ilícito. De um modo geral, os autores que têm escrito sobre o tema têm defendido um modelo de responsabilização próximo à ideia de negligência para alcançar também a discriminação por preconceito implícito. Assim, quando o agente não adota determinadas cautelas para evitar a influência do preconceito implícito, é possível presumir que os motivos de um tratamento discriminatório não justificado sejam baseados em preconceitos implícitos, a depender das circunstância do ato.

Há ainda um debate sobre a prova do preconceito implícito. Afinal, estamos lidando com um tipo de influência que não é tão visível, já que se manifesta fora do radar da consciência. O uso de ferramentas científicas para detectar e caracterizar o preconceito implícito também pode ser um campo muito promissor nesse debate, embora seja necessário reconhecer as suas falhas e limites, o que exige um olhar crítico sobre a força probatória (para fins judiciais) desse método. Os autores que já se dedicaram ao tema são muitos céticos quanto ao uso judicial de testes de associação implícita ou mapeamento cerebral como prova do preconceito implícito, por razões que não vem aqui mencionar. Tratei sobre isso no meu artigo sobre discriminação por preconceito implícito.

Finalmente, é preciso desenvolver deveres de cuidado e de prevenção que poderiam derivar da obrigação de combater o preconceito implícito. Na minha pesquisa, tentei catalogar alguns esforços que estão sendo realizados nesse sentido, que, a meu ver, é o ponto central da discussão.

Há um certo consenso de que é possível minimizar a influência do preconceito implícito por meio de algumas medidas simples de cautela. Um exemplo interessante ocorreu nos anos 70/80, quando houve uma imensa reviravolta no processo de seleção de músicos para as orquestras sinfônicas. Em uma determinada seleção de músicos para uma importante orquestra sinfônica europeia, uma candidata foi desclassificada e alegou que foi preterida por ser mulher. Na sua ótica, ela seria mais qualificada do que outros músicos homens que teriam sido escolhidos na prova prática, que consistia em uma apresentação presencial para um grupo de jurados. Por força de uma ordem judicial, foi determinado que a seleção fosse repetida, mas dessa vez a audição fosse às cegas, ou seja, os avaliadores não poderiam ver se o músico era homem ou mulher. Nesse novo cenário, a candidata venceu os demais músicos homens, e, a partir daí, a audição às cegas passou a ser a regra nos processos de seleção de músicos nas principais orquestras. Essa simples mudança no arranjo decisório acarretou um aumento de 30% da participação de mulheres nas orquestras sinfônicas em várias partes do mundo.

Atualmente, várias grandes empresas, como a Google ou a Microsoft, possuem programas de treinamento de seus funcionários, inclusive disponibilizados gratuitamente na internet, tratando especificamente do combate ao preconceito implícito. Também já existem, nos Estados Unidos, cursos montados para juízes, policiais e outros servidores públicos, visando minimizar os efeitos desse fenômeno nos atos decisórios oficiais.

Para concluir, é preciso reconhecer que o primeiro passo para combater o preconceito implícito é ter consciência da sua existência.

Recomendo a todos que façam os testes. Verifiquem suas preferências implícitas e automáticas. Esses testes são gratuitos, simples, rápidos e estão disponíveis até mesmo em português. Talvez o resultado não seja muito agradável para o ego. Mas tenho certeza de que será uma experiência que mudará para sempre a sua forma de ver o mundo e interagir com outras pessoas.

Muito obrigado!

Experimenter – um filme sobre Stanley Milgram

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Se eu fosse escrever uma daquelas listas dos “dez livros que mais te influenciaram”, certamente incluiria o livro de Stanley Milgram sobre “Obediência à Autoridade”. Foi um livro, de fato, marcante, que até hoje consulto de vez em quando. Aliás, tornei-me um leitor voraz da psicologia social em grande parte por culpa do referido livro.

Em 2015, foi lançado um excelente filme sobre a vida e os estudos de Milgram, focado sobretudo na sua polêmica experiência sobre obediência realizada em Yale. Mas o filme não para por aí. Vários outros experimentos sociais são comentados ao longo de todo o filme, que nem por isso se torna maçante. Há a experiência de Asch sobre conformidade, a teoria dos seis graus de separação, a teoria do “estranho familiar“… enfim… Vale muito a pena assistir. E assistir com calma, a fim de captar a profundidade de cada ideia apresentada.

“A insustentável leveza do ser”: críticas ao artigo de Noel Struchiner e Ivar Hannikainen

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O objetivo central deste post é apresentar algumas críticas – de caráter propositivo – ao artigo “A insustentável leveza do ser: sobre arremesso de anões e o significado do conceito de dignidade da pessoa humana a partir de uma perspectiva experimental“, de Noel STRUCHINER e Ivar HANNIKAINEN, que pode ser acessado aqui.

Antes, porém, não se pode deixar de elogiar os autores pela tentativa de trazer a pesquisa experimental para dentro do direito, sobretudo em um tema tão importante e mal tratado quanto o conceito de dignidade. É impressionante como estamos demorando para assimilar a importância desse tipo de investigação, que tem produzido inúmeros frutos pelo mundo afora. Enquanto o método das ciências cognitivas e sociais tem evoluído a olhos vistos, modificando radicalmente a compreensão sobre o comportamento e o raciocínio humanos, parece que o pensamento jurídico ainda está na idade medieval, usando concepções sobre a natureza e a psicologia humanas que já foram refutadas desde o século XIX pelo menos. Enfim… talvez seja hora de não só olhar para o que está sendo produzido em outras áreas do saber, mas também tentar aproveitar o que há de bom em seus métodos de pesquisa.

O ensaio de Struchiner e Hannikainen é um esforço nessa direção. Os autores pretendem defender que algumas inconsistências sobre o uso do conceito de dignidade humana podem ser demonstradas por meio de uma pesquisa experimental.

A intuição básica é a de que o conceito de dignidade é afetado pelo chamado “paradoxo do abstrato e do concreto“, ou seja, pode haver uma compreensão diferente sobre o significado da dignidade a depender do contexto do uso daquele conceito: em cenários mais abstratos, a dignidade é usada em um determinado sentido, mas quando a mesma situação é apresentada de um modo mais concreto, pode haver uma mudança de entendimento sobre o que a dignidade significa.

Curiosamente, em algumas passagens de minha tese de doutorado, mencionei existir, nos discursos jurídicos e políticos, uma “síndrome dos consensos abstratos, desacordos concretos“. E citei como exemplo os casos envolvendo liberdade de expressão, em que o STF costuma ser extremamente generoso quanto ao âmbito de proteção desse direito no controle abstrato, mas, em casos concretos, tem proferido decisões pontuais que reduzem bastante a proteção da liberdade. Na ocasião, defendi que, “em matéria de liberdade de expressão, há um perceptível liberalismo no abstrato e um conservadorismo no concreto“. Não aprofundei a análise, mesmo porque o meu objetivo era apenas levantar uma hipótese de que algumas palavras de legitimação (a exemplo de liberdade e dignidade) tendem a gerar um amplo consenso em um nível abstrato que encobre profundas discordâncias em um nível mais concreto e, muitas vezes, são mobilizadas apenas como placebos argumentativos com o propósito de gerar um impacto psicológico vazio de conteúdo, provocado pela ilusão de consenso conceitual que existe no nível mais abstrato.

Mas a proposta dos autores é um pouco diferente, pois o objetivo é defender que pode haver uma mudança de sentido do uso da palavra em razão de uma mudança do grau de abstração do contexto problemático, gerando uma inconsistência entre o que as pessoas pensam sobre a dignidade em um nível abstrato para o que elas consideram mais próximo do conceito de dignidade um contexto mais concreto.

Para demonstrar que o sentido usual que atribuímos à palavra dignidade humana pode variar conforme o nível de abstração do contexto problemático, eles criaram um cenário de pesquisa baseado no caso do lançamento de anão. Primeiramente, montaram um questionário com duas concepções abstratas de dignidade: uma mais próxima da ideia de autonomia e outra mais próxima da ideia de não-coisificação. Depois, elaboraram duas perguntas concretas baseadas no caso do lançamento de anão, sendo uma mais detalhada e outra menos detalhada, incluindo, no cenário mais concreto, alguns elementos para dar mais realidade ao caso, como o nome, o local e a foto do anão.

A conclusão preliminar, a partir de uma amostragem ainda reduzida de dados coletados, sugere que as pessoas podem ter concepções diferentes de dignidade a depender do contexto. Mesmo aqueles que adotam, em um nível abstrato, uma concepção de dignidade como autonomia podem entender que o anão não tinha o direito de escolher ser lançado e, portanto, a atividade deveria ser proibida. E mesmo aqueles que aceitam, em um nível abstrato, uma concepção de dignidade como não-coisificação podem entender, em um contexto mais concreto, que o anão tinha o direito de escolher ser lançado.

Como os próprios autores informaram que o cenário montado ainda está em construção e que não foram observados os rigores metodológicos das pesquisas experimentais dignos de serem publicados em revistas científicas, acredito que as críticas que a seguir serão lançadas terão um efeito muito mais propositivo (como colaboração para o avanço das pesquisas) do que propriamente de refutação.

Pode-se dizer que, em abstrato (!), concordo com as conclusões gerais defendidas pelos autores no sentido de que há uma inconsistência interna e externa no uso da expressão dignidade e que o seu sentido pode variar conforme o contexto. A minha crítica dirige-se mais a algumas falhas do método adotado. É provável que, mesmo que fossem corrigidas alguns equívocos metodológicos (relacionados ao rigor científico), o resultado da experiência não levaria à conclusão apresentada. Ou seja, não é por meio do experimento por eles realizado que se provará a hipótese de que as pessoas usam o conceito de dignidade de um modo inconsistente. Esse uso inconsistente pode ser demonstrado por outros meios, que não aquela pesquisa em particular.

Vejamos, pois, alguns problemas na pesquisa realizada.

  • O caso escolhido (lançamento de anões) já é demasiadamente conhecido, especialmente no meio jurídico, o que pode gerar interferência de fatores externos estranhos ao escopo da pesquisa. É provável que alguns juristas que participaram da pesquisa já soubessem qual foi o resultado do julgamento da Corte Europeia de Direitos Humanos e tenham sido afetados pelo viés de autoridade. Outros podem saber que o caso se passou na França e, portanto, mesmo quando a variável do local foi alterada para dar mais proximidade ao evento, isso pode não ter tido a influência pretendida. O ideal seria formular um cenário menos conhecido e com maior possibilidade de isolamento das variáveis que se pretende analisar.
  • A diferença entre os dois relatos de caso apresentados não foi de mera abstração/concretude, mas de detalhamento. Os dois casos têm o mesmo nível de abstração. A diferença é que, no segundo caso, foi acrescentado o local, o nome do anão e a foto. Esse ponto pode gerar uma confusão sobre o que os autores pretendem demonstrar. Há dois tipos de inconsistências no uso do conceito de dignidade apontados pelos autores: uma interna e vertical (na mente de um único sujeito pensante), a ser analisada mediante uma comparação entre o conceito abstrato em que o caso concreto não é apresentado e o cenário concreto, em que o caso é de descrito. E outra inconsistência horizontal e intersubjetiva, em que são comparadas as respostas entre um caso concreto menos detalhado e outro caso concreto mais detalhado, a partir das respostas dadas por várias pessoas. Seria melhor que cada análise fosse objeto de uma pesquisa independente, para não gerar confusão na interpretação dos dados.
  • Além disso, quando se volta para a comparação entre o cenário menos detalhado e o cenário mais detalhado, o que está em jogo não é o uso do conceito de dignidade, mas a análise dos fatores circunstanciais que podem influenciar o julgamento. O fato de a apresentação do caso ser mais ou menos detalhada entra mais no campo da persuasão e do poder das circunstâncias do que na compreensão do conceito de dignidade.
  • Em experimentos de persuasão, já existe uma ampla demonstração de que pequenos detalhes podem ter grandes impactos no convencimento das pessoas. Como os próprios autores mencionaram, a personalização da vítima afeta bastante a forma como as pessoas podem intuir a solução do problema. O nome e a foto podem ter sido mais decisivos para o resultado do que o próprio sentido de dignidade pressuposto pela pessoa que respondeu o questionário. Aliás, há alguns estudos que demonstram que até a fonte utilizada no texto pode gerar algum tipo de viés!
  • O experimento realizado está mais relacionado com o processo de convencimento do que propriamente com o uso do conceito de dignidade humana, até porque o termo foi inserido nos questionários pelos próprios pesquisadores e não pelos que participaram da pesquisa. Explicando melhor: se o objetivo da pesquisa era verificar qual o uso comum da expressão dignidade humana em um discurso jurídico, deveria ser montado um cenário em que as próprias pessoas que participam da experiência usam a expressão de um modo espontâneo, a fim de verificar como a expressão é mobilizada em um contexto de justificação. No estudo realizado, o que estava em jogo era o julgamento do caso e não a sua justificação. Logo, a rigor, o uso da palavra dignidade teve pouca ou nenhuma influência para a solução do problema. Se ao invés de dignidade tivessem sido usadas expressões como integridade ou respeito, provavelmente o resultado seria equivalente.
  • Outro fator que impede a inferência realizada pelos autores é que o caso do lançamento de anão envolve diversos valores importantes, como a liberdade profissional, o acesso ao emprego e a estigmatização dos anões, que podem afetar o julgamento, independentemente do conceito adotado de dignidade. Logo, não é apenas o sentido de dignidade que entra em jogo (aliás, é praticamente impossível pensar em uma situação onde seja possível isolar a ideia de dignidade de outros valores que podem influenciar o julgamento).
  • Há um outro problema relacionado à formulação das perguntas abstratas sobre o conceito de dignidade que talvez seja o ponto crítico mais relevante. O propósito dos autores, no primeiro questionário (de perguntas abstratas), era, em última análise, verificar se as pessoas associavam mais a ideia de dignidade com a noção de autonomia ou com a noção de não-coisificação. A dignidade costuma ser usada nos dois contextos indistintamente e, na maioria das situações, não há contradição entre essas duas concepções de dignidade. O próprio Kant, que é o pai da ideia, tratava a dignidade ora como autonomia, ora como não-coisificação. O problema é que, algumas vezes, em situações concretas, como no caso do lançamento de anão, a noção de dignidade como autonomia pode se chocar com a noção de dignidade como não-coisificação. E todos nós sabemos que o choque concreto de valores abstratos nem sempre é solucionado de forma apriorística, podendo sim mudar conforme o contexto. Em alguns casos, a dignidade como autonomia pode ser considerada mais importante do que a dignidade como não-coisificação e vice-versa. Então, o que está em jogo não é saber qual o melhor uso da ideia de dignidade (seja como autonomia, seja como não-coisificação), mas qual dessas noções deve prevalecer naquela situação concreta de choque, e isso não resolve o problema do uso da palavra dignidade, nem demonstra necessariamente uma inconsistência interna entre os usos da dignidade por um mesmo sujeito. Alguém que prefira uma concepção abstrata de dignidade como autonomia pode entender que, no caso do lançamento de anão, a autonomia não é plenamente autêntica e, por isso, deveria prevalecer uma solução mais próxima da proibição de tratar o outro como objeto. Do mesmo modo, alguém pode considerar que a dignidade significa não coisificar o ser humano, mas pode entender que, no caso do lançamento de anão, a liberdade de escolha deve prevalecer, dada a necessidade de sobrevivência daquela pessoa ou até mesmo o caráter lúdico da atividade. Não há, necessariamente, inconsistência nisso.
  • O experimento, a meu ver, pode demonstrar que uma determinada concepção abstrata de dignidade não leva necessariamente a um resultado previsível de um julgamento concreto onde aquela concepção, se fosse aplicada de um modo esperado, levaria a uma solução diferente. Algumas vezes, essa discrepância pode ser creditada à inconsistência do sujeito. Outras vezes, pode ser creditada à presença de outros fatores que podem influenciar o resultado do julgamento concreto (a meu ver, no caso do lançamento de anão, é isso que ocorre na maioria das vezes). Essa é a principal crítica.

Era isso. Apesar dos problemas acima apontados, não se pode deixar, novamente, de reconhecer o grande mérito do estudo em incentivar um método de análise empírica e experimental sobre problemas jurídicos importantes (algo ausente na nossa tradição). É caminhando que se aprende a caminhar, e os primeiros passos são mesmo sempre meio desajeitados, ou seja, são essas primeiras incursões que poderão levar ao desenvolvimento dos métodos de pesquisa em solo brasileiro.

Um Empurrão para a Liberdade: duas propostas para evitar o encarceramento excessivo

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Não é preciso muito esforço para concluir que o sistema prisional brasileiro é caótico. O problema se agrava à medida que novos presos são incluídos no sistema, pois não há estrutura para tratar de modo individualizado e com celeridade a situação de cada preso. O resultado disso é a superlotação dos presídios com presos provisórios e com pessoas condenadas que já cumpriram sua pena ou já obtiveram o direito de progressão do regime, mas permanecem indevidamente presas sem uma resposta estatal em função da demora na análise de seus casos.

Diante desse quadro, serão formuladas no presente texto duas propostas de mudança na arquitetura decisória para facilitar o caminho para a liberdade. A ideia é baseada nos conceitos de “nudges” e “arquitetura de escolhas”, desenvolvidos pelas ciências comportamentais. Nudges são pequenos incentivos que podem influenciar o processo de tomada de decisões, sem cercear a liberdade de escolha. Arquitetura de escolhas corresponde ao formato do arranjo (design) adotado para que as melhores decisões sejam tomadas em uma determinada direção. A lógica é extremamente simples: existem alguns fatores sutis que influenciam a tomada de decisões que podem ser organizados para guiar as escolhas em uma determinada direção; logo, é possível promover a realização de objetivos desejáveis por meio de pequenas mudanças na arquitetura de escolhas, bastando que sejam criados mecanismos que reduzam os ônus da decisão na direção certa. Um exemplo clássico que ilustra o funcionamento de nudges e arquitetura de escolhas é a organização dos alimentos em uma prateleira de modo a facilitar o acesso a comidas saudáveis. Essa simples mudança “arquitetônica” é capaz de fazer com que as pessoas alterem seus hábitos de alimentação, sem que seja necessário impor qualquer tipo de dieta ou restrição alimentar (sobre isso, Thaler & Sunstein. Nudge: o empurrão para a escolha certa).

De certo modo, o processo penal já adota alguns modelos decisórios que são desenhados para promover a liberdade. Por exemplo, a própria decretação da prisão preventiva exige um ônus argumentativo maior do que o seu indeferimento. Nesse sentido, o dever de fundamentação funciona como um nudge (“empurraozinho”) capaz de facilitar a decisão em favor da liberdade, impondo um fardo intelectual maior para a escolha que implique o encarceramento. Do mesmo modo, a distribuição dos ônus da prova exige um esforço cognitivo mais intenso para a condenação do réu, tendo como base a presunção de inocência. O atual formato da prisão em flagrante também segue a mesma lógica: na ausência de fatores que justifiquem a decretação da prisão preventiva, o acusado deve responder o processo em liberdade.

Mas é possível ir além – e é justamente o propósito do presente texto. Serão formuladas duas propostas extremamente simples que possuem um enorme potencial de mudar a lógica do sistema. A premissa é esta: ninguém deve ficar preso por mais tempo do que o devido. Portanto, é preciso estruturar o modelo decisório de tal modo que as falhas do sistema não prejudiquem o direito de liberdade.

A primeira proposta é uma sutil modificação no sistema de decretação de prisão preventiva. A prisão preventiva, atualmente, é decretada sem prazo determinado, de modo que só há a soltura do acusado após outra decisão judicial concedendo a liberdade. Muitas vezes, há excesso de prazo na instrução processual, e a preventiva se estende por um prazo maior do que o permitido. Um meio simples de se evitar isso seria exigir que, em toda decisão judicial que decreta a prisão preventiva, já fosse incluída, obrigatoriamente, uma ordem de soltura após determinado prazo, salvo se fosse proferida decisão em sentido contrário. Ou seja, já ficaria pré-determinado o prazo final da prisão preventiva, de modo que a manutenção do réu na prisão para além desse prazo deveria exigir uma nova decisão judicial analisando a conveniência de mantê-lo preso. Perceba que não se trata de impedir a prorrogação da prisão preventiva, já que há casos mais complexos em que a instrução processual pode se estender razoavelmente para além do prazo previsto originalmente. A medida, em verdade, apenas impõe um ônus maior caso se decida que o réu deve continuar preso.

Esse tipo de nudge é conhecido como “regra padrão” (“default rule“) e costuma extremamente eficaz. A arquitetura de escolha é planejada para que a solução “automática” (regra padrão) seja a solução desejável, permitindo que o objetivo que se deseja promover seja alcançado de modo mais rápido e menos custoso. No caso, como se deseja que o preso provisório não fique encarcerado para além do estritamente necessário, cria-se um mecanismo de soltura automática, já embutido no próprio mandado de prisão (ou seja, em tese sequer seria preciso a expedição de um alvará de soltura, pois o próprio mandado de prisão cumpriria tal finalidade), sem impedir, contudo, a manutenção da prisão se houver necessidade. O arranjo decisional é configurado de tal modo que a inércia favoreça a liberdade.

A segunda proposta é igualmente simples e segue a mesma lógica, mas o campo de aplicação é a progressão de regime prisional. Hoje, muitos presos deixam de obter a progressão do regime por uma incapacidade do sistema de analisar a situação individualizada de cada preso. Uma fórmula fácil de resolver esse problema seria exigir que, já no início da execução da sentença condenatória, fosse estabelecido o calendário de progressão a ser observado, ressalvando-se a possibilidade de alteração do cronograma por decisão fundamentada. Ou seja, ao iniciar o cumprimento da pena, todos já saberiam de antemão quando ocorreria a mudança de regime e, caso não houvesse qualquer fato superveniente capaz de justificar a alteração dos planos, o processo de progressão seria automático e ocorreria independentemente de nova decisão judicial. Com isso, seriam reduzidos vários custos no processo de análise dos pedidos de progressão, e o sistema funcionaria naturalmente para que o preso não fique na prisão além do tempo devido. O réu não seria prejudicado pela falta de estrutura do sistema, uma vez que a progressão do regime já estaria previamente programada para ocorrer automaticamente, salvo se surgissem fatos supervenientes que justificassem uma nova decisão. Também não haveria violação da individualização da pena, pois estaria sempre aberta a possibilidade de revisão do programa original, cabendo ao estado o ônus de justificar qualquer mudança.

Como se vê, esses pequenos “empurrões” para a liberdade possuem um baixo custo de implementação e um alto impacto para a melhoria do sistema. A lógica é simples, intuitiva e fácil de ser assimilada, pois é baseada em uma mera mudança de configuração do arranjo decisório, a fim de evitar o encarceramento desnecessário. Além disso, não há uma restrição do poder decisório dos juízes, pois é sempre ressalvada a possibilidade de alteração do plano original por meio de uma decisão superveniente, que leve em conta as particularidades de cada situação. O segredo é estabelecer um arranjo decisório que tenha consciência das falhas estruturais do sistema e use isso em favor da liberdade. Isso é feito a partir de uma definição antecipada de determinados eventos pró-liberdade, que serão ativados automaticamente caso nenhum comando contrário seja dado em seguida. Talvez esses simples arranjos decisórios não sejam suficientes para resolverem todos os problemas do sistema prisional, mas com certeza podem pavimentar o caminho para que ninguém fique preso por mais tempo do que o necessário.

* O presente artigo foi escrito com a colaboração de Fernando Braga, que forneceu as ideias para o insight original e ajudou com alguns argumentos.

Como compreender e conversar com alguém que não está disposto a mudar de lado

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Interpretamos o mundo pela luz das nossas crenças e valores. Apesar do truísmo dessa afirmação, não podemos subestimar seu impacto na forma como agimos e nos posicionamos diante de questões reais que nos afeta. Por causa disso, cometemos muitos erros de avaliação, compreensão e julgamento. Seja em questões banais, como a interpretação de um lance em um jogo de futebol, seja em questões de grande impacto social, como a interpretação jurídica da constituição, estamos sujeitos a falhas de cognição em função de nossas convicções consolidadas que pré-orientam a formação do juízo.

Um dos erros cognitivos mais comuns é o chamado desejo de confirmação (viés de confirmação). Este vício cognitivo nada mais é do que a tendência de buscar, interpretar, catalogar e lembrar de informações que confirmem aquilo que queremos que seja confirmado. Estamos predispostos a receber com facilidade e sem críticas as informações que tendem a solidificar nossas crenças e a rejeitar qualquer possibilidade alternativa que possa colocá-las em risco. Somos seletivos na coleta de evidências. Tendemos a ignorar ou a rejeitar qualquer informação que suporte uma conclusão diferente daquilo que acreditamos. Nossas percepções são ideologicamente enviesadas: superestimamos as informações que reforçam nossas opiniões e subestimamos o contrário. Diante de informações contraditórias sobre o mesmo assunto, valorizamos mais aquelas que se encaixam na nossa rede de crenças e lembramos com mais frequência dos dados confirmatórios, apagando inconscientemente qualquer vestígio de ameaça ou contradição. Mais ainda: estamos propensos a interpretar qualquer dado que seja apresentado como algo que confirma nossas convicções. Mesmo quando a informação parece se chocar diretamente com aquilo que defendemos, há uma inclinação em reconstruir o seu sentido para parecer favorável ao nosso ponto de vista. Ou seja, moldamos os dados para se conformarem aos nossos valores.

Há várias experiências que comprovam esses vícios decorrentes do desejo de confirmação e demonstram que as predisposições mentais podem levar a erros de julgamento por gerar interpretação tendenciosa e memória seletiva no processamento de informações. Em um desses estudos, foi apresentado a dois grupos que tinham posições antagônicas sobre a pena de morte duas pesquisas contraditórias sobre a eficácia da pena de morte para dissuadir a prática de crimes de homicídio. Um dos estudos demonstrava que a pena de morte tinha um efeito positivo na redução dos crimes de homicídio; o outro estudo demonstrava exatamente o oposto. Ao serem instigados a analisar os dados contidos nas duas pesquisas, os membros dos grupos antagônicos tendiam a valorizar mais a pesquisa que apoiava suas crenças e a adotar uma postura crítica em relação à pesquisa contrária. Ou seja, ao invés de realizarem uma leitura imparcial e objetiva dos dados fornecidos, houve uma coleta seletiva das informações e uma predisposição acrítica a aceitar os dados confirmatórios e a hostilizar os dados refutatórios, aumentando ainda mais os desacordos entre os grupos! (O estudo pode ser lido aqui)

Em outro estudo semelhante, foi solicitado que pessoas com posições antagônicas sobre o controle de armas fizessem uma análise imparcial do tema a partir de alguns estudos fornecidos pelos pesquisadores em publicações notoriamente favoráveis ou contrárias a essa questão. Os que eram contra o controle de arma tendiam a procurar as informações nas publicações Pro-Armas e os que eram favoráveis ao controle, por sua vez, tendiam a buscar as informações nas publicações Anti-Armas. O resultado é que, mesmo tendo sido pedido que fosse realizada uma avaliação imparcial, ao final do estudo os participantes estavam ainda mais convictos de suas crenças iniciais! (Sobre isso: aqui)

Parece óbvio que, em questões envolvendo profundas discordâncias políticas, o viés da confirmação tende a se intensificar. Eleitores de um candidato costumam exaltar suas qualidades e a minimizar seus defeitos. Por outro lado, exageram as falhas do candidato adversário e praticamente não enxergam seus méritos. A análise dos dados é enviesada para reforçar as crenças políticas em diversos sentidos: (a) por meio de uma filtragem tendenciosa das informações assimiladas (busca-se o que é bom, evita-se o que é ruim; divulga-se o que é bom, esconde-se o que é ruim); (b) por meio de uma leitura pouco crítica das informações confirmatórias das crenças e exageradamente céticas em relação às informações contrárias às posições políticas; (c) por meio de uma percepção preconceituosa da própria realidade social e econômica, que passa a variar conforme o governo de ocasião; (d) por meio de uma memorização seletiva dos fatos, a fim de favorecer a lembrança de realizações positivas imputáveis ao grupo que apoiamos e o conveniente esquecimento de seus erros, ou então, o esquecimento de realizações positivas do grupo adversário e a lembrança exagerada de seus erros.

Outro problema que pode provocar um grave vício cognitivo decorre das “bolhas ideológicas” que passamos a construir a partir das nossas relações interpessoais. Tendemos a nos aproximar e a simpatizar com mais facilidade das pessoas que pensam como nós e funcionam como alicerces para a confirmação das nossas crenças. Por outro lado, sobretudo quando a polarização ideológica atinge níveis elevados, tendemos a nos afastar daquelas pessoas que pensam diferente e que nos causam desconforto intelectual. Com as redes sociais, esse fenômeno se agravou, pois os algoritmos geralmente incorporados aos programas que filtram as informações que nos chegam adotam critérios baseados em nossos interesses (“curtidas”), e isso, na prática, pode significar uma inundação de informações que apenas confirmam nossas crenças. Isso nos tornará ainda mais polarizados do ponto de vista ideológico em função da chamada heurística da disponibilidade, que nos leva a formar nosso juízo sobre o mundo a partir daquilo que nos é apresentado com mais frequência. Além disso, como são cada vez mais raras as informações antagônicas e menos pessoas no nosso círculo de convivência que pensam diferente, tendemos a subestimar a força (quantitativa e qualitativa) das ideias contrárias às nossas crenças, deixando de levar a sério as diversas perspectivas possíveis. O ponto de vista diferente deixa de ser visto como algo razoável que pode ampliar nossos horizontes para ser tratado como uma ameaça estranha a ser prontamente repelida. Pior ainda: passamos a acreditar que nosso ponto de vista representa um consenso universal, quando, em verdade, o que está havendo é apenas uma eliminação artificial do dissenso, provocado por um sistema tecnológico de seleção de informações que nos envia apenas aquilo que queremos ler. (Sobre bolhas ideológicas: aqui).

O viés da confirmação é responsável por outro fenômeno que também prejudica nossa avaliação do mundo: a chamada “perseverança de crenças”, situação curiosa que nos leva a rejeitar qualquer informação que possa refutar nossas crenças consolidadas. De fato, nossas convicções mais profundas têm a incrível capacidade de persistir mesmo quando são mostradas evidências contrárias que levariam à sua refutação. Temos uma espécie de relação afetiva com nossas crenças. Não gostamos de vê-las enfraquecidas ou destruídas. Criamos mecanismos de defesa mental para salvá-las de qualquer ameaça, inclusive ao ponto de mantê-las vivas mesmo depois terem sido submetidas a um ataque letal.

Há estudos muito interessantes que demonstram que, quando partimos do pressuposto de que um réu é culpado, temos uma grande dificuldade de aceitar as provas em sentido contrário, mesmo que sejam enfáticas em demonstrar a sua inocência. Com frequência, construímos expedientes mentais e argumentativos que confirmem nosso veredicto inicial, ainda que isso resulte em uma desconfiguração completa do acervo probatório existente. Há um custo em reconhecer o erro e poucos estão dispostos a pagar. Uma vez construído um padrão de pensamento, há uma forte resistência em se afastar desse padrão.

E o que tudo isso tem a ver com o título do texto? Em que o conhecimento dessas falhas cognitivas pode ajudar a compreender melhor o “cabeça-dura”?

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que esses vícios do raciocínio nada tem a ver com inteligência ou burrice. Pessoas com elevado desempenho em testes intelectuais também estão sujeitas a cair no viés da confirmação e, portanto, a ter um pensamento enviesado. (Sobre isso: veja aqui).

Na verdade, os atalhos mentais são fruto de um sistema adaptativo e fazem parte indissociável da forma de pensar do ser humano. Na maioria das vezes, eles funcionam bem. Em poucas ocasiões, eles falham e são responsáveis pelos erros cognitivos. Ora, se qualquer pessoa está sujeita a cometer tais erros, fica óbvio que o primeiro passo para lidar com o intransigente é se olhar no espelho. Todos nós estamos sujeitos a cometer erros cognitivos, até porque não controlamos a maior parte daquilo que processamos em nossa mente. A autocrítica, portanto, deve ser constante e intensa. Talvez sejamos nós que devemos pensar e estar dispostos a mudar de lado.

O próximo passo é convencer o outro de que ele também está sujeito a esses erros. Não adianta pedi-lo para avaliar os dados com imparcialidade e objetividade, porque isso pode não ser suficiente e pode até gerar um efeito contrário, na medida em que ele apenas confirmará suas crenças, desta vez convicto de que está fazendo isso de forma imparcial e objetiva.

Do mesmo modo, não peça para que ele justifique as crenças que defende ou indique quais os dados empíricos que ele está levando em conta para chegar àquela conclusão. A justificação das crenças é sempre um processo enviesado, que provoca uma solidificação irreversível dos nossos próprios pontos de vista. Há estudos que demonstram que, quanto mais examinamos uma hipótese teórica e explicamos como ela pode ser verdadeira, mais fechados nos tornamos para informações que desafiam nossas crenças (sobre isso: aqui).

Apresentar dados refutatórios também tem pouco impacto real no convencimento de quem pensa em sentido contrário. O mais provável é que essas informações sejam distorcidas, ignoradas ou ridicularizadas, em razão da predisposição de manutenção das crenças. Como foi dito, dados que ameaçam nossas crenças costumam ser tratados com hostilidade.

Por isso, ao invés de incentivar o outro a justificar suas crenças ou tentar refutá-las, peça-o, pelo contrário, para fazer um exercício mental diferente, atuando como uma espécie de “advogado do diabo” das próprias convicções. Instigue-o a desenvolver os melhores argumentos contrários à própria crença. Deixe que ele próprio reflita sobre os méritos da posição contrária. Vários estudos demonstram que, quando somos incentivados a explicar porque uma teoria contrária pode ser verdadeira, mudamos nossos pontos de vista com mais facilidade (aqui). E, obviamente, faça o mesmo com suas próprias crenças.

Aliás, esse esforço mental pode e deve ser feito em conjunto. Ao invés de olhar para apenas um lado da questão, ajudem-se mutuamente a mapear todos os argumentos favoráveis e contrários, fortes e fracos, honestos e desonestos, que possam ser apresentados naquele debate. Isso facilitará a identificação dos verdadeiros pontos de discórdia e talvez ajude a superar a hostilidade mútua, na medida em que o ponto de vista contrário será tratado com mais simpatia (ou, pelo menos, com menos ódio).

Por outro lado, se nenhum dos debatedores estiver disposto a fazer o exercício acima, é melhor desistir do diálogo, pois nada fará com que alguém intransigente mude de lado, já que estamos todos sujeitos ao viés da confirmação e vamos continuar dando atenção apenas às informações que reforcem nossas crenças. Mesmo que acreditemos honestamente que nossos juízos são imparciais e objetivos, tenderemos a analisar os dados com um olhar enviesado. E mesmo que acreditemos que somos tolerantes, tenderemos a criar bolhas ideológicas para incluir apenas os que estão conosco e excluir as pessoas que pensam diferente. Quando isso ocorre, é o primeiro sinal de que estamos nos fechando em uma rede hermética de crenças e caminhando para um dos extremos dos pólos, tornando-nos tão intransigentes quanto aqueles que acusamos de serem intransigentes.

Fonte:

Vários foram os livros lidos para se chegar as informações acima. O principal foi o livro “Psicologia Social”, de David Myers.

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