Música de Sexta

Em tempos de correria para terminar o ano, não posso deixar de postar um vídeo muito interessante que assisti.

Eu já conhecia o Projeto Playing For Chance pelo vídeo “Stand by me“. Porém, confesso que me emocionei ao assistir ao vídeo abaixo, com a música War. Afinal, o primeiro parágrafo do meu Curso de Direitos Fundamentais faz menção à referida música do Bob Marley. A letra, na verdade, baseia-se em um discurso do Imperador Haile Selassie I, da Etiópia, antes da Assembléia da ONU, de 1963 (fonte: Wikipédia). Coloquei o discurso logo abaixo do vídeo.

Eis o discurso de Haile Selassie I:

That until the philosophy which holds one race superior and another inferior is finally and permanently discredited and abandoned; That until there are no longer first-class and second-class citizens of any nation; That until the color of a man’s skin is of no more significance than the color of his eyes; That until the basic human rights are equally guaranteed to all without regard to race; That until that day, the dream of lasting peace and world citizenship and the rule of international morality will remain but a fleeting illusion, to be pursued but never attained; And until the ignoble and unhappy regimes that hold our brothers in Angola, in Mozambique and in South Africa in subhuman bondage have been toppled and destroyed; Until bigotry and prejudice and malicious and inhuman self-interest have been replaced by understanding and tolerance and good-will; Until all Africans stand and speak as free beings, equal in the eyes of all men, as they are in the eyes of Heaven; Until that day, the African continent will not know peace. We Africans will fight, if necessary, and we know that we shall win, as we are confident in the victory of good over evil. – Haile Selassie I

 

Humor e racismo

A discussão nem é tão nova aqui no blog, mas acho que vale a pena reacender o debate até porque é um assunto ainda mal resolvido no meio jurídico brasileiro: a questão do humor racista ou politicamente incorreto.

O que me motiva a trazer novamente esse tema para a pauta do blog foi um texto bem escrito e muito bem fundamento que li recentemente do meu colega Cezário Corrêa Filho, que é Advogado da União aqui em Fortaleza e tem tido uma destacada atuação em defesa da igualdade racial. O texto em questão foi publicado na Revista Themis, da Escola da Magistratura do Ceará, e pode ser lido na íntegra aqui (pp. 275/314).

Cezário discorreu sobre “Humor, Racismo e julgamento: ou sobre como se processa a idéia de racismo no judiciário brasileiro” e destinou boa parte de seus argumentos para criticar um comentário que fiz aqui no blog, que foi utilizado como uma prova da tese que ele queria defender. O comentário em questão foi no “Caso Tiririca”, que gravou uma música de muito mau gosto chamada “Olhem os cabelos dela”. Em síntese, concordei que não havia sentido punir o humorista na esfera penal e afirmei ainda que achava que a condenação cível do Tiririca havia sido um pouco exagerada, pois o intuito dele não foi ofender os negros, mas apenas fazer humor. Eis meu comentário:

Em um de seus momentos mais criativos, o poeta e compositor Tiririca brindou a humanidade com a seguinte canção:

Veja os cabelos dela
Tiririca

Alô, gente, aqui quem fala é o Tiririca

Eu também estou na onda do Axé Music
Quero ver os meus colegas dançando
Veja, veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas seus cabelos não têm jeito, não
A sua catinga quase me desmaiou
Olha, eu não agüento o seu grande fedor
Veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Eu já mandei ela se lavar
Mas ela teimou e não quis me escutar
Essa nega fede! Fede de lascar
Bicha fedorenta, fede mais que um gambá
Veja, veja, veja os cabelos dela
Como é que é? A galera toda aí
Com as mãozinhas pra cima
Veja, veja, os cabelos dela
Bonito, bonito!
Aí, morena, você, garotona
Veja, veja, veja os cabelos dela

A beleza poética da letra é tão inspiradora quanto a melodia da música. Vale conferir.
Logicamente, Tiririca não pretendia ganhar nenhum “Grammy” por essa canção. Sua intenção era tão somente fazer humor. Aliás, ele chegou a afirmar que a música foi feita em “homenagem” à sua esposa.
Mas não foi isso que algumas entidades entenderam. Para alguns, a música representaria um desrespeito à mulher negra e, por isso, deveria ser proibida. O caso foi parar na Justiça. No âmbito penal, Tiririca foi inocentado da acusação de racismo, a meu ver corretamente, já que o intuito da música era fazer humor.
Na esfera cível, porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou o caso em grau de apelação, condenou a Sony Music a pagar uma indenização de trezentos mil reais.
Veja a íntegra da decisão.
Comentário particular: para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco. Acho que aqui caberia os mesmos argumentos da sentença do Mandarino, no caso Diogo Mainardi. Ou seja, entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.

No seu artigo, em que critica a tolerância dos juristas brasileiros em relação às práticas racistas encobertas pelo humor, Cezário, após reproduzir o meu comentário, assinalou o seguinte:

Ressalvadas as ironias que podem, talvez, ser subentendidas do comentário acima, o que notamos nos julgamentos referidos é que, embora equivocado, ainda é presente e predominante o entendimento de que o crime de racismo só se configura quando o ato é dolosa e manifestamente sério. Para os que assim entendem, se houver gracejo, piada, chiste, pilhéria, em síntese, dito humorístico, o caso será de atipicidade da conduta, pois estará ausente o dolo, a intenção de ofender, mesmo que a piada, escrita, falada ou musicada, tenha a expressividade que tinham a nota do jornalista e a música do Tiririca.

Ainda sobre o caso Tiririca e o comentário particular do juiz federal George Marmelstein Lima, autor do blog (“para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco… entre tolerarpequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.”), é interessante anotar que o magistrado federal não reitera esse comentário no texto do livro de sua autoria. Aqui, ele apenas resume o caso, transcreve a letra da música, e deixa que o leitor emita a opinião. O magistrado federal, blogueiro e, agora, doutrinador tem reconhecidos estudos do tema relativo aos direitos fundamentais. Entretanto, do cotejo das suas análises e comentários no blog e no livro citados, vemos que ele não vai além do comum da compreensão do racismo: se se cuida de mensagem séria ou que envolva grupos, embora minoritários, mas com poder de expressão, ele entende presente o racismo e esposa o julgamento condenatório. Entretanto, se se trata de mensagem humorística, “é preferível a tolerância em nome da liberdade.” Comparem-se as análises feitas por ele das músicas 88 Heil Hitler, da banda Zurzir, e a já referida Veja os cabelos dela, do Tiririca.

Vimos, com Freud, que o dito humorístico hostil usa do prazer produzido para contornar as inibições mentais e cativar o ouvinte, e, com Ducrot, que, na relação comunicacional, locutor e ouvinte compartilham pressupostos e postos comuns, para comungarem de um mesmo subentendido. Isso demonstra o engano dos entendimentos ainda reinantes.

E o que faz com que esses entendimentos ainda estejam presentes e predominantes no Judiciário brasileiro? Se se aceitar o reducionismo do direito como uma das causas, ou seja, que esses entendimentos decorrem da simplificação da realidade feita por meio das categorias e dos conceitos jurídicos, será dado o primeiro passo. Contudo, deve seguir-se um segundo passo: compreender e reconhecer que, para manifestar certos sentimentos, desejos e intenções hostis, usamos de subterfúgios diversos. Quanto mais inimagináveis ou sutis forem esses subterfúgios, mais livres estaremos de censuras e reprimendas sociais e/ou jurídicas, quando quisermos hostilizar uma pessoa ou um grupo.

Daí, o terceiro passo é inevitável: reconhecer que, diante da simplificação da realidade feita pelo direito, um julgamento adequado e coerente com o discurso constitucional pressupõe e requer o uso de outros saberes e agires. Por exemplo, sem auxílio da Antropologia, como se poderá compreender de modo constitucionalmente adequado o tema indígena (CF/88, arts. 231 e 232) ou quilombola (CF/88, art. 216, § 5º, e ADCT, art. 68)?

Parece óbvio o reconhecimento do que aqui se diz. Contudo, uma obviedade que não é percebida é o fato de esse reconhecimento só ser confessado quando ele não interfere, perceptível ou imperceptivelmente, naquilo que cremos acreditar. Ou seja, no caso dos ditos humorísticos racistas, o Judiciário, encartado numa sociedade divida em classes e em raças (do ponto de vista político-econômico e sócio-cultural), é organizado de modo a contemplar os interesses da classe e da raça dominantes, embora o juiz, com toda boa-fé e sinceridade d’alma, possa não percebê-lo ou não compreendê-lo. É o que já denominamos de lugar-sujeito do julgador, determinado ou condicionado pelas relações de poder vigentes. Assim, crendo em algo, mas não sabendo que crê e/ou por que motivo crê, rejeita uma provocação crítica e não consegue perspectivar de modo diferente o fato social “natural”. “Naturalizado” o fato social, não há razão para mudá-lo ou para admitir que mudará.

Para compreender melhor os argumentos do Cezário, recomendo que leiam o texto na íntegra, que, como afirmei, está muito bem fundamentado. Não pretendo, até por falta de conhecimento específico, rebater os aspectos psicológicos por ele levantados, insinuando claramente que meu ponto de vista esconderia um preconceito típico da mentalidade dominante que só enxerga o racismo escancarado e sério. Na sua ótica, quando o racismo é dissimulado em piadas ou músicas engraçadas, nós, da classe dominante, nos divertimos às custas de um estigma cultural que rebaixa os negros e ainda nos fingimos de ilustrados e de bem-intencionados. O Cezário quis, com razão, denunciar esse tipo de comportamento e me incluiu como um típico representante desse grupo dominante. Como disse, não pretendo refutar o embasamento teórico que ele adotou. Minha pretensão, neste post, é apenas esclarecer alguns pontos que precisam ser esclarecidos. Usando a mesma base teórica que o Cezário utilizou, penso que ele também embutiu alguns preconceitos na sua opinião sobre o meu comentário que, certamente, levou-o a uma leitura apressada e mal-intencionada do meu texto. É isso que quero esclarecer.

Para evitar discussão inútil, vou estabelecer os pontos controvertidos, até porque concordo com muita coisa que Cezário defende em seu texto (não sei de onde ele tirou o contrário). Vou enumerar algumas teses que ele defende e direi se concordo ou discordo. Depois, comentarei as que discordo.

1) o humor politicamente incorreto pode configurar crime de racismo.

Concordo, também não acho que só o racismo “sério” é racismo. Aliás, já defendi essa tese aqui mesmo no blog ao afirmar que não é possível “estabelecer uma imunidade completa para os humoristas ofenderem suas ‘vítimas’ à vontade. Devem existir limites, embora, confesso, não acho que seja possível defini-los abstratamente”. Por outro lado, não acho que toda a forma de humor politicamente incorreto deve ser criminalizada . Sobre isso comentarei mais à frente;

2) a sociedade brasileira é preconceituosa, ainda que diga o contrário.

Concordo. O preconceito é algo sutil. Tive um professor, por exemplo, que absurdamente disse essa pérola do preconceito: “na minha opinião, não há esse negócio de brancos e pretos. Trato todo mundo igual. Para mim, todo mundo é branco”. Aqui não é nem preciso que Freud explique.

3) o comentário do jornalista Cláudio Cabral que disse que músicos baianos, negros e índios eram sub-raça configurou crime de racismo.

Concordo. Acho que o intuito de menosprezar foi manifesto;

4) a música “Olha os Cabelos Dela”, do Tiririca é ofensiva para as mulheres negras.

Concordo. Também acho a música de extremo mau-gosto;

5) o Tiririca deveria ser punido criminalmente por ter feito e gravado a referida música.

Discordo e justificarei mais à frente.

6) o Tiririca deveria ser obrigado a indenizar pelos danos que causou à comunidade negra.

Concordo, a condenação não é de todo injusta, só achei exagerado o valor.

Como se vê, há muito mais acordos do que desacordos e, se o Cezário tirou conclusões diferentes, é porque sua opinião também está repleta de preconceitos a respeito de “pessoas como eu”. Logicamente, existem alguns desacordos sérios entre as minhas opiniões e as dele. Mas acho que o desacordo maior é que, pelo que entedi, Cezário é totalmente contra o humor politicamente incorreto, defendendo a punição criminal de piadas preconceituosas sempre que isso causar ofensa a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. Nesse ponto, não concordo. Na minha opinião, para que haja a punição criminal, a ofensa tem que ser grave.

Ainda que no texto não tenha ficado expresso, me pareceu que Cezário deixou subentedido que  tolero o humor com relação aos negros e não tolero outros tipos de ofensa contra grupos “com poder de expressão”. Espero que, nesse ponto, minha leitura do seu texto tenha sido equivocada, pois, se foi isso que ele quis dizer, a má-vontade para com a minha opinião por parte dele é escancarada.

O fato de eu haver aplaudido a condenação da banda Zurzir e criticado a condenação do Tiririca está relacionado não com o grupo atingido, mas com o grau da ofensa, até porque o alvo da ofensa da banda Zurzir também eram os negros, embora não apenas estes. A ofensa praticada pela banda Zurzir foi muito mais forte do que a aquela que foi praticada pelo Tiririca. Não que eu ache que o Tiririca não tenha ofendido as mulheres negras. Claro que ofendeu. A música é de mau gosto e estimula a consolidação do estereótipo de que as mulheres negras possuem cabelo “de Bombril” e “cheiram mal que nem gambar”. Só não acho que esse tipo de ofensa é forte o suficiente para caracterizar o racismo na esfera penal ou uma condenação tão alta na esfera cível. A condenação cível não foi de todo injusta, só foi um pouco exagerada, na minha ótica, já que o montante da indenização foi de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).

O comentário que fiz em relação ao caso Tiririca deve ser lido em conjunto com comentário que fiz em relação à música “Um Tapinha não Dói”, onde também defendi a liberdade de expressão, alegando ser exagerada a proibição da música e a condenação de seus intérpretes. Mas talvez o caso do Tapinha só reforce os argumentos do Cezário, pois aqui eu também estaria contemplando “os interesses da classe e da raça dominantes”, a saber, dos homens machistas que gostam de bater em mulheres.

Mas para não parecer que estou tolerando apenas as “ofensas nos outros”, recordo que, no caso em que o Mandarino julgou, que foi o paradigma por mim utilizado no comentário acima, o alvo do preconceito foram os nordestinos, grupo social que me orgulho de fazer parte. Do mesmo modo, quando defendi a tolerância em relação à campanha da PETA, o alvo da ofensa foram os judeus, grupo que, por genealogia, também faço parte, ainda que eu seja católico. Por sinal, quando defendi a tolerância em relação ao caso “Carol Castro”, o alvo da ofensa foram os católicos. Quando defendi a tolerância no caso da música “Vossa Excelência”, dos Titãs, o alvo da ofensa foram os juízes, categoria a que estou fortemente vinculado.

Como se vê, a diferença de posicionamento entre mim e o Cezário está muito mais na força que cada um dá a liberdade de expressão do que propriamente no significado de preconceito, pois também acho que o humor pode ser preconceituoso. Invocando meu xará George Orwell, acho que “se a liberdade significa realmente alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”. Minha tese, nessa matéria, é que a criminalização do humor politicamente incorreto somente deve ocorrer em situações extremas em que ficar nítida a intenção de menosprezar, desrepeitar e agredir (ainda que com humor). O humor ingênuo, como no caso do Tiririca, não deveria ser punido criminalmente, ainda que possa e deva ser alvo de crítica social.

Não há dúvida de que o humor costuma criar estereótipos. Brinca-se com a inteligência dos portugueses, a desonestidade dos advogados, a ganância dos judeus, a malemolência dos baianos, a virilidade dos gaúchos e assim por diante. Não tenho certeza sobre os limites desse tipo de brincadeira. Mas punir criminalmente, seja quais forem as circunstâncias, uma pessoa que fez uma piada politicamente incorreta é uma distância muito grande. Prefiro achar que apenas os abusos extremos merecem uma resposta penal.

Não estou querendo dizer com isso que sou capaz de me colocar no lugar de um negro para sentir na pele o sofrimento que ele sente quando escuta uma piada racista. Também não tenho conhecimento empírico sobre o quanto esse tipo de piada é prejudicial a uma mudança cultural da sociedade. Só não acho que a perseguição penal e a censura sejam a melhor solução. Já comentei sobre isso aqui. De qualquer modo, o debate está lançado. Comentários são bem vindos. E, como sempre digo, estou totalmente disposto a mudar de opinião se me convencer do contrário. O texto do Cezário não me fez mudar de opinião, mas me fez perceber que a discussão não é tão simples quanto eu pensava.

***

Só mais uma coisa: com relação à diferença de linguagem adotada no blog e no livro (Curso), isso se deve ao fato de que, em todos os estudos de caso colocados no Curso, tentei ser o mais objetivo possível, transmitindo as informações de forma imparcial para que os debates em sala de aula sejam mais livres. Se eu já antecipasse minha opinião nos estudos de caso, os alunos seriam influenciados pelo meu ponto de vista e, no que se refere aos estudos de caso, minha pretensão não foi essa. (Ressalto que isso só se aplica aos estudos de caso. No texto do livro, não constumo ficar em cima do muro). O blog, por sua vez, é um ambiente em que sinto mais à vontade para expressar minhas opiniões de forma mais intimista e, às vezes, até irrefletida. Aliás, já falei sobre isso aqui.

Grândola, Vila Morena

A primeira vez que escutei a música “Grândola, Vila Morena” foi através de uma versão “punk-rock” da banda paulista 365, lá nos bons e velhos anos 80. (Clique aqui para ouvir a versão “rock”. Se quiser uma versão mais “light”, é só ouvir e assistir aqui).

Já gostava da música pelo ritmo e letra. Passei a gostar mais ainda depois que fiquei sabendo de sua história. Quem nos conta é a Wikipédia:

“Grândola, Vila Morena” é a canção composta e cantada por Zeca Afonso que foi escolhida pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) para ser a segunda senha de sinalização da Revolução dos Cravos. A canção refere-se à fraternidade entre as pessoas de Grândola, no Alentejo, e teria sido banida pelo regime salazarista como uma música associada ao Comunismo. Às zero horas e vinte minutos do dia 25 de Abril de 1974, a canção era transmitida na Rádio Renascença, a emissora católica portuguesa, como sinal para confirmar as operações da revolução. Por esse motivo, a ela ficou associada, bem como ao início da Democracia em Portugal.

As nossas aulas do doutorado ficam a menos de vinte metros da casa em que morou Zeca Afonso, em cujas paredes podem ser lidos os versos da música “Grândola, Vila Morena”. Eis a foto:

Eis a letra na íntegra:

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade

Aqui, um interessante vídeo com várias personalidades portuguesas cantando a música, inclusive José Saramago.

A letra da música tem tudo a ver com os direitos fundamentais, tanto por ser um manifesto contra a opressão quanto por ser uma ode à democracia. Lembra um pouco, a música “Pra não dizer que não falei das flores“, de Geraldo Vandré, que também foi um hino contra a ditadura no Brasil. Quem sabe não coloco as duas em minha tese de doutorado?

E por falar em músicas revolucionárias, aproveito para recomendar uma visita ao site DHNET, que tem um lista bem longa de canções que simbolizaram a luta contra a opressão em diversos países (clique aqui). É meio “luta armada”, mas é legal. A propósito, o site tem muita coisa interessante, além das músicas. Vale dar uma olhada com calma.

Enfim, um post para ouvir…

A Liberdade de Expressão e os Símbolos Nacionais: hino nacional em forró?

Não há dia melhor do que uma segunda-feira para narrar o caso abaixo. Afinal, estamos falando da segunda-feira mais louca do mundo!

O caso que vou narrar é, na minha ótica, um dos mais interessantes envolvendo direitos fundamentais aqui no Brasil. E a discussão é aparentemente simples: pode uma banda gravar o hino nacional em ritmo de forró?

Quando o meu amigo Juiz Federal Eduardo Vilar me contou o caso (a sentença dele está logo abaixo) achei no início que se tratava de um “easy case”, já que não havia uma colisão de direitos propriamente dita. O que havia era a restrição de um direito fundamental (liberdade de expressão) tão somente para proteger um valor “sem muita importância”, já que os símbolos nacionais aqui no Brasil não são muito valorizados. Meu “feeling” foi imediato: é lógico que a liberdade de expressão tem que prevalecer.

Mas analisando melhor a questão, percebi que ela é um prato cheio para a teoria dos direitos fundamentais. O caso retrata com perfeição aquilo que se costuma chamar de “dimensão objetiva” dos direitos fundamentais, a exigir que toda interpretação jurídica leve em conta os valores jusfundamentais, ainda que a solução aparentemente seja contrária ao que determina a lei. Pode-se chamar esse mesmo fenômeno de “eficácia irradiante” dos direitos fundamentais ou então de “filtragem constitucional”. No fundo, é tudo a mesma coisa: a lei deve ser interpretada em conformidade com os direitos fundamentais, pois não são os direitos fundamentais que devem girar em torno da lei, mas a lei que deve girar em torno dos direitos fundamentais, conforme dizia Krüger.

No caso em questão, a interpretação da lei “ao pé da letra” certamente levaria a uma solução oposta a que chegou o Eduardo, que captou com perfeição a força “magnetizante” da liberdade de expressão para julgar o caso.

A Lei 5.700/71, que regulamenta a questão, é bastante enfática ao dizer a forma musical em que o hino nacional poderá ser executado (art. 6 e 24). O artigo 34 da lei veda a execução de qualquer arranjo diferente do ali estabelecido, salvo autorização do Presidente da República. A punição para o descumprimento da lei é pecuniária (art. 35).

A inconstitucionalidade da lei (ou melhor, não-recepção, já que se trata de lei pré-constitucional) não é tão clara quanto aparenta. É que os símbolos nacionais também são valores de relevância constitucional (art. 13 da CF/88). Aliás, eles estão no Título II da CF/88, que é precisamente o título constitucional dedicado aos direitos fundamentais. Em outras palavras: por opção do constituinte, os símbolos nacionais também são valores fundamentais, ainda que, na prática, a sua importância social esteja cada vez mais perdendo força.

Mas isso por si só não é motivo para gerar a legitimidade constitucional da lei ora analisada.

A proteção constitucional aos símbolos nacionais não significa uma carta branca para o legislador regulamentar a matéria da forma como bem entender. Estamos diante de uma limitação ao direito fundamental à liberdade de expressão. Qualquer restrição a direito fundamental, para ser válida, deve passar pelo teste da proporcionalidade. Dentro dessa ótica, é fácil perceber que a Lei 5.700/71 claramente restringe excessivamente a liberdade artística, na medida em que, sem motivo razoável, “amarra” a criatividade musical daquele que deseja executar o hino nacional. Proibir outros arranjos ao hino nacional cria um “monopólio” cultural incompatível com a liberdade artística “sem censuras”, conforme previsto na CF/88. A possibilidade dada pela lei de permitir a execução do hino com outros arranjos desde que autorizada pelo Presidente da República não salva a norma. Afinal, a liberdade artística não dependerá de licença, conforme preconiza o artigo 5, inc. IX, da CF/88.

Além disso, como bem anotou o Eduardo na sua sentença, a música em questão longe de desrespeitar os símbolos nacionais representa uma homenagem de amor ao país e possui uma capacidade de penetração nas massas que certamente o arranjo oficial não teria.

Ou seja, não há, com toda certeza, uma violação ao artigo 13 da CF/88. O que há é uma conflito entre a Lei 5.700/71 e o direito à liberdade de expressão. Norma superior prevalece em relação à norma inferior…

A lembrança do caso “Texas vs. Johnson”, julgado pela Suprema Corte dos EUA em 1989, caiu como uma luva para reforçar o argumento em favor da incompatibilidade da lei com a liberdade de expressão. No famoso e polêmico caso, decidiu-se, por 5 a 4, que o direito à liberdade de expressão compreende também o direito de queimar a bandeira nacional (e olhe que se está falando dos EUA, onde o patriotismo é quase doentio). Aliás, cito esse caso no meu Curso de Direitos Fundamentais, defendendo seu resultado. E observe que o caso “Texas vs. Johnson” é um caso patente de desrepeito aos símbolos nacionais, enquanto que o caso do “Forró Pirata” não tem essa intenção.

A invocação da jurisprudência comparada representa aquilo que eu chamo de “benchmarking” jurisprudencial: as boas decisões adotadas por outras cortes constitucionais devem mesmo ser imitadas e aprimoradas, desde que mais favoráveis aos direitos fundamentais.

Para o post não ficar muito longo, passo logo a reproduzir a canção que motivou a controvérsia:

http://www.pirata.com.br/portal/musicas/Hino_Nacional_Brasileiro.mp3

Link relacionado: http://www.pirata.com.br/portal/hino.php.br/portal/hino.php

Aliás, só a título de curiosidade, vá ao site da Presidência da República e perceba que a bandeira nacional está representada em desacordo com a lei! Nem mesmo a mais alta autoridade do país acredita que a Lei 5.700/71 está em vigor (e não está mesmo, pelo menos se rigidamente interpretada).


A sentença em versão para impressão pode ser obtida aqui.

Perceba como o discurso adotado na decisão é refinado e utiliza inúmeras técnicas argumentativas desenvolvidas pela nova teoria jurídica dos direitos fundamentais: ponderação, proporcionalidade, reserva de consistência, jurisprudência comparada etc. Não poderia ser diferente, ante a indiscutível capacidade intelectual do Eduardo, que foi o primeiro colocado no seu concurso para a magistratura federal.

Um tapinha que doeu

Lendo a Migalhas 1.867 me deparei com a notícia abaixo, que, por sinal, me lembrou o post “Um tapinha não doí“, que escrevi ano passado.

Particularmente, acho meio exagerado esse tipo de censura musical.

Quantas músicas belíssimas não seriam censuradas se a mesma lógica fosse utilizada?

Eis a notícia:

A multa dói

Furacão 2000 é condenada ao pagamento de multa no valor de 500 mil reais pelo lançamento da música “Um Tapinha Não Dói”

A empresa Furacão 2000 Produções Artística Ltda foi condenada pela Justiça Federal ao pagamento de multa no valor de 500 mil reais pelo lançamento da música “Um Tapinha Não Dói”, no início desta década. A ação civil pública foi ajuizada pelo Ministério Público Federal e pela Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, em janeiro de 2003, por considerar que a música banaliza a violência contra a mulher, transmite uma visão preconceituosa contra a imagem da mesma, além de dividir as mulheres em boas ou más conforme sua conduta sexual.

Na inicial da ação civil pública, o então procurador Regional dos Direitos do Cidadão Paulo Gilberto Cogo Leivas afirmou que “esse tipo de música ofende não só a dignidade das mulheres que comportam-se de acordo com o descrito em suas letras, mas toda e qualquer mulher, por incentivar à violência, tornarem-na justificável e reproduzirem o estigma de inferioridade ou subordinação em relação ao homem”.

Conforme decisão do juiz substituto Adriano Vitalino dos Santos, da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, o valor da multa será revertido em favor do Fundo Federal de Defesa dos Direitos, conforme estabelece a Lei 7.347/85. A quantia deverá ser monetariamente atualizada, acrescida de juros. A empresa ainda pode recorrer da decisão em instâncias superiores.

“Vamos recorrer”

A equipe de som Furacão 2000 vai recorrer da decisão da Justiça que multa a produtora em R$ 500 mil pelo lançamento da música “Um Tapinha Não Dói”. “Voltou à censura ?”, questiona Rômulo Costa, dono da Furacão, que não acha justa a decisão.

“Acho injusto. Isso é cercear a nossa liberdade, não poder colocar as pessoas para cantar. É um precedente muito sério”, reclama ele, que diz ainda que não tem condições financeiras de pagar a multa.

“Com juros e correção, o valor pode chegar a quase R$ 1 milhão. Não teríamos condições de arcar com isso. Se tivesse esse dinheiro, parava de trabalhar”, diz.

Trecho da música

Um Tapinha Não Dói – Gravadora Furacão 2000

Vai Glamurosa
Cruze os braços no ombrinho
Lança ele prá frente
E desce bem devagarinho…
Dá uma quebradinha
E sobe devagar
Se te bota maluquinha
Um tapinha eu vou te dar

Porque:
Dói, um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Só um tapinha..
Vai Glamurosa
Cruze os braços no ombrinho
Lança ele prá frente
E desce bem devagarinho…

Um tapinha dói ou não dói? A Censura na Música após a Constituição de 88 – Limites à Liberdade de Expressão Musical

Como este post está um pouco longo, recomenda-se a sua leitura ao som da música “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento, um hino contra a censura.
Ou, se preferir algo mais moderno, clique aqui para ouvir a bela música “Um tapinha não dói”, do Furacão 2000. (Infelizmente, se você escolher essa opção, terá que sair do blog, pois aqui não toca música ruim).
Afinal, um tapinha dói ou não dói?

Será que ainda existe censura musical no Brasil? A resposta fornecida pela mais importante lei do país, que é a Constituição, é bastante clara: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E mais: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

A realidade, porém, demonstra que a solução não é tão simples assim. É possível encontrar diversos exemplos de composições musicais que foram, de algum modo, censuradas (proibidas), inclusive com o aval do Poder Judiciário, mesmo depois da democratização do país, simbolizada com a Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.

O que os exemplos abaixo demonstram é que as instituições brasileiras, especialmente o Poder Judiciário, não consideram que a liberdade de expressão seja um valor absoluto, sem freios ou limites (aliás, nenhum direito fundamental é absoluto). Pela leitura das decisões abaixo conclui-se que devem existir limites ao direito de se manifestar artisticamente. E esses limites, curiosamente, também estão previstos na própria Constituição Federal, assim como o próprio direito à liberdade artística!

Veja um exemplo: a Constituição, ao mesmo tempo em que garante a liberdade de expressão, condena o preconceito e o racismo. Então, será que algum artista poderia, em nome da liberdade de expressão, compor uma música contendo idéias preconceituosas ou pregando o ódio racial?

Este é o dilema: qual dos dois valores em jogo é o mais importante? A liberdade artística ou o combate ao preconceito?

A resposta nem sempre é simples.

Certamente, é fácil concordar com uma decisão (ver abaixo) como a do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao condenar a Banda Zurzir, que nitidamente utiliza a música para disseminar idéias preconceituosas de cunho nazista. Letras musicais que elogiam Hitler e defendem o extermínio de judeus certamente não estão protegidas pela liberdade artística.

Por outro lado, bem mais difícil é aceitar uma decisão como a do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou a música “Veja os cabelos dela”, do Tiririca, que, apesar do mau gosto musical, nada mais é do que uma manifestação tosca do típico humor brasileiro (ou pelo menos, do humor cearense).

Como meio termo, muito mais complexo é definir se a música “E por que não?” da banda gaúcha Bidê e Balde deve ser proibida. Ela insinua o incesto e a pedofilia (por sinal, a letra é de extremo mau gosto, embora a melodia seja até legal). Até que ponto a sociedade, em nome da democracia e da liberdade de expressão, deve tolerar esse tipo de manifestação artística? É difícil responder, sobretudo pelo fato de ainda sermos muito imaturos em matéria de liberdade de expressão.

Justamente por conta de nossa imaturidade democrática, defendo que, por enquanto, é melhor ousar em favor da liberdade de expressão, podando-se apenas os extremos (como no caso da Banda Zurzir).

Imagine um pêndulo onde, de um lado, esteja a censura e do outro a liberdade de expressão. Durante praticamente trinta anos, o pêndulo esteve do lado da censura em razão do regime militar. Será que não é hora de jogar o pêndulo para o outro lado com toda a força? Se, desde já, tentarmos buscar o equilíbrio certamente o pêndulo ainda continuará do lado da censura. Especificamente no caso das músicas de protesto (300 Picaretas – Paralamas do Sucesso, Vossa Excelência – Titãs), não vejo qualquer razão para proibi-las. Esse tipo de manifestação artística é perfeitamente compatível com a democracia. Elas não violam qualquer valor constitucional. Pelo contrário: a democracia ganha pontos ao respeitar esse tipo de manifestação de pensamento. A democracia funciona assim mesmo. É da essência da democracia que o cidadão tenha o direito de falar mal dos políticos e das autoridades.

Além disso, há um argumento pragmático em favor da liberdade de expressão: é praticamente impossível aplicar a censura diante de um ambiente tecnológico como a internet. Basta um conhecimento elementar em informática para conseguir baixar, com relativa facilidade, pelos programas e sites de compartilhamento (especialmente, os chamados P2P – usuário para usuário), as músicas que foram proibidas pelo Judiciário. Qualquer pessoa, hoje, pode ouvir, sem maiores problemas, as músicas nazistas da Banda Zuzir, os funks “proibidões” do Rio de Janeiro que elogiam o crime organizado, a “música” “proibida” do Tiririca e do Bidê ou Balde etc…

Se isso é bom ou ruim, também não sei dizer. O que posso dizer com toda certeza é que, em matéria de censura, a internet dá um banho no Direito. E se o Judiciário pensa que pode controlar todas as condutas sociais, é melhor mudar seus conceitos. Aliás, foi isso que reconheceu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na decisão do Caso “Bidê ou Balde”. É só conferir logo abaixo.

Músicas Censuradas

E Por Que Não? – Bidê ou Balde
(Autores: Carlinhos Carneiro e Rossato)
“E por que não? / Eu estou amando a minha menina / E como eu adoro suas pernas fininhas / Eu estou cantando pra minha menina / Pra ver se eu convenço ela a entrar na minha.
E por que não? / Teu sangue é igual ao meu, é igual ao meu / Teu nome fui eu quem deu / Te conheço desde que nasceu.
E por que não? / Eu estou adorando / Ver a minha menina / Com algumas colegas / Dela da escolinha / Eu estou apaixonado / Pela minha menina / O jeito que ela fala, olha, / O jeito que ela caminha”.
A referida música foi alvo de ação judicial, tendo a Banda Bidê ou Balde sido acusada de apologia à pedofilia. A Banda, em nota oficial, protestou contra a acusação. O certo é que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em grau de recurso, decidiu o seguinte:

“Inegável que a letra da música ‘E por que não?’, da banda ‘Bidê ou Balde’, materializa apologia ao incesto e à pedofilia, sendo impossível, material e constitucionalmente, a pura e simples extirpação do material do universo social, já entranhada nos lares e à disposição em centenas de ‘sites’ na Internet. Hipótese de reconhecimento judicial da ofensa, com minimização de seus efeitos, com aplicação de multa, por veiculação e decorrente de parcela dos lucros, em benefício de órgão estadual de bem estar do menor”.

Na minha ótica, a decisão foi razoável. Na verdade, o TJRS não proibiu a música, apenas aplicou uma multa pesadíssima toda vez que a música for veiculada. A Banda Bidê ou Balde preferiu não pagar pra ver (ou melhor, tocar), fazendo um acordo com o ministério público se comprometendo a não mais executar a música nos seus shows.

Veja a decisão na íntegra.

Para demonstrar que censura não combina com internet, o clipe da música pode ser visto facilmente no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=oEn71o4fkjI

Banda Zurzir

Também é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a decisão que condenou a Banda Zurzir, que pregava idéias nazistas (como é que ainda existe gente assim?).

Eis a ementa do acórdão:

“PRECONCEITO DE RAÇA. ORNAMENTOS. QUE UTILIZA A CRUZ SUÁSTICA. Se de um lado a constituição exaltou a liberdade de pensamento como um dos direitos fundamentais, ficou preservada também a dignidade humana, com repúdio à discriminação ou preconceito. Comprovada conduta preconceituosa, divulgação de música de apologia ao líder nazista, é de ser mantida a condenação. APELO IMPROVIDO”.

Veja a decisão na íntegra.

Uma das músicas citadas na decisão é chamada 88 Heil Hitler, cuja letra é a seguinte:

“SOBERANO GUERREIRO, COM SEUS PUNHOS DE AÇO TENTOU LIVRAR O MUNDO DA SINISTRA IRMANDADE
O TRIUNFO DA VONTADE GUIOU O IMPÉRIO
E A SERPENTE DESTILOU EM SEU VENENO MISTÉRIOS
88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER (duas vezes)
A FERRO E FOGO SUPORTOU AS MENTIRAS SIONISTAS
CONDENADO PELO MUNDO A PAGAR SEM RAZÃO
O NOBRE FUHRER FOI CALADO E SEU IMPÉRIO VENCIDO
PERDEU-SE UM GRANDE HERÓI. JAMAIS SERÁ ESQUECIDO
88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER (duas vezes)”
Lamentável… (a música, não a decisão).
Bonde da Chatuba – Funk Proibidão – Mc Frank

Os funks do Rio de Janeiro já se auto-proclamam “Proibidões”, utilizando a censura como instrumento de marketing. As suas letras visam chocar a sociedade, seja pela pornografia explícita, seja pelo elogio ao crime organizado (Comando Vermelho, Terceiro Comando da Capital etc.).
Curiosamente, são poucos os casos que foram parar na Justiça, até porque essas músicas não costumam ser comercializadas oficialmente. É tudo meio clandestino. Mesmo assim, pelo menos uma canção foi alvo de processo judicial e chegou até o Supremo Tribunal Federal. É a chamada “Bonde da Chatuba”, do Mc Frank, cuja letra diz o seguinte:

Bonde do 157

Não se mexe, não se mexe
Na Chatuba é 157
Não tira a mão do volante
Não me olha e não se mexe
É o Bonde da Chatuba
Do artigo 157
Vai, desce do carro,
Olha pro chão, não se move
Me dá seu importado
que o seguro te devolve
Se liga na minha letra
Olha nós aí de novo
É o Bonde da Chatuba
Só menor periculoso.

Audi, Civic, Honda,
Citröen e o Corolla
Mas se tentar fugir
Pá! Pum!
Tirão na bola
Na Chatuba é 157.

Aê, parado, ninguém se mexe…

Nosso bonde é preparado,
Mano, puta que pariu
Terror da Linha Amarela
E da Avenida Brasil
Nosso bonde é preparado
Não tô de sacanagem
Um monte de homem-bomba
No estilo Osama Bin Laden.

A referida música faz, claramente, uma alusão ao crime de roubo, tipificado no artigo 157 do Código Penal. Em razão disso, Mc Frank foi acusado de apologia ao crime. Não conformado, o funkeiro ingressou com habeas corpus perante o STF tentando barrar a ação penal. O Min. Marco Aurélio indeferiu o pedido, alegando que havia realmente indícios da prática da apologia ao crime. (Obs: os argumentos apresentados pelos advogados do cantor são bem interessantes. Agora, querer comparar a letra de “Pivete“, de Chico Buarque, com esse funk é meio forçar a barra, não é mesmo?).

Confira a decisão na íntegra.

Tiririca

Em um de seus momentos mais criativos, o poeta e compositor Tiririca brindou a humanidade com a seguinte canção:
Veja os cabelos dela
Alô, gente, aqui quem fala é o Tiririca
Eu também estou na onda do Axé Music
Quero ver os meus colegas dançando
Veja, veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas seus cabelos não têm jeito, não
A sua catinga quase me desmaiou
Olha, eu não agüento o seu grande fedor
Veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Eu já mandei ela se lavar
Mas ela teimou e não quis me escutar
Essa nega fede!
Fede de lascar
Bicha fedorenta, fede mais que um gambá
Veja, veja, veja os cabelos dela
Como é que é?
A galera toda aí
Com as mãozinhas pra cima
Veja, veja, os cabelos dela
Bonito, bonito!Aí, morena, você, garotona
Veja, veja, veja os cabelos dela
A beleza poética da letra é tão inspiradora quanto a melodia da música. Vale conferir. Logicamente, Tiririca não pretendia ganhar nenhum “Grammy” por essa canção. Sua intenção era tão somente fazer humor. Aliás, ele chegou a afirmar que a música foi feita em “homenagem” à sua esposa. Mas não foi isso que algumas entidades entenderam. Para alguns, a música representaria um desrespeito à mulher negra e, por isso, deveria ser proibida. O caso foi parar na Justiça. No âmbito penal, Tiririca foi inocentado da acusação de racismo, a meu ver corretamente, já que o intuito da música era fazer humor. Na esfera cível, porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou o caso em grau de apelação, condenou a Sony Music a pagar uma indenização de trezentos mil reais. Veja a íntegra da decisão.
Comentário particular: para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco. Acho que aqui caberia os mesmos argumentos da sentença do Mandarino, no caso Diogo Mainardi. Ou seja, entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.
Afinal, como diz outra belíssima canção popular, um tapinha não dói…

Outras músicas ou bandas que tiveram problemas com a Justiça

As músicas acima foram inegavelmente censuradas, na medida em que tiveram sua veiculação total ou parcialmente proibida.
Houve inúmeras outras músicas e bandas que também tiveram problemas com a Justiça, como por exemplo:

Legalize Já – Planet Hemp – Os membros da Banda Planet Hemp chegaram a ser presos no Distrito Federal, sob a acusação de fazer apologia ao consumo de drogas, por cantarem músicas como “Legalize Já“. Felizmente, o Poder Judiciário reconheceu que a atividade artística dos músicos estava, no caso, protegida pela liberdade de expressão. Veja a decisão.

Comentário pessoal: acredito que defender a legalização do uso da droga é diferente de defender o consumo da droga. No caso da Banda Planet Hemp, acredito que eles defendem uma idéia que, a rigor, não está proibida pela Constituição, que é a legalização da maconha.
Além disso, há diversas música que, de algum modo, se referem às drogas. De cabeça, me recordo das seguintes: Malandragem dá um tempo – Bezerra da Silva, A Feira – O Rappa, Cachimbo da Paz – Gabriel, o Pensador.
Não creio que qualquer dessas músicas faça apologia ao uso de drogas, embora, em quase todos os casos, exista um elogio indisfarçado às pessoas que consomem maconha. Apesar disso, considero que seria um exagero tentar qualquer forma de censura em relação a essas músicas.
300 Picaretas – Paralamas do Sucesso – Inspirados em uma frase bombástica do então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, os Paralamas do Sucesso fizeram uma música “homenageando” os “300 Picaretas” que faziam parte do parlamento brasileiro (otimistas, não? Afinal, só 300?). Houve, na época, uma tentativa de proibição da música por parte da Procuradoria do Congresso Nacional. Felizmente, o processo judicial não deu em nada.
Se, em uma democracia, ninguém puder falar mal dos governantes, parlamentares, juízes etc., então certamente não se trata de uma democracia.
Vossa Excelência – Titãs – Na mesma linha da música dos Paralamas, os Titãs fizeram, em 2006, uma música criticando o Poder Judiciário (e o poder público de um modo geral), chamada Vossa Excelência. Confira abaixo um clipe bem interessante da música extraído do Youtube.
Ao contrário dos congressistas, que tentaram proibir a música “300 Picaretas”, os juízes brasileiros (pelo menos, os federais) não se sentiram “menores” por conta da música dos Titãs. Pelo contrário. Naquele mesmo ano, os Titãs foram convidados a participarem do encerramento do “Encontro Nacional dos Juízes Federais”, que ocorreu em São Paulo. Por cautela, os Titãs preferiram não incluir a música “Vossa Excelência” no repertório do show, já que a platéia estaria lotada de magistrados. Em vão, pois os juízes e familiares ali presentes clamaram pela música. Os gritos de “Vossa Excelência, Vossa Excelência” não deixaram alternativa para os Titãs senão tocar a música. Antes de tocar, um temeroso Tony Belotto ainda perguntou para a platéia: “vocês sabem mesmo o que estão pedindo?”
No final, os aplausos foram emocionantes.
É por essas e outras que tenho orgulho de fazer parte da magistratura federal!
Para finalizar o post, presto uma pequena homenagem ao Senado Federal, que hoje absolveu o Senador Renan Calheiros. Assim, nesse clima de indignação, curta o clipe da música Vossa Excelência direto do Youtube:
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