Pelas idéias que defendo aqui no blog, creio que os leitores já devem ter percebido que minha “fé na razão” é, em certo sentido, maior do que a minha “fé na fé”. O meu projeto original de tese era precisamente discorrer sobre o princípio da laicidade do Estado, onde eu tentaria defender a inconstitucionalidade das leis que se fundamentam em dogmas religiosos destituídos de racionalidade. Ainda bem que desisti desse tema tão logo percebi que era uma barca furada, pois seria impossível chegar a uma conclusão que não se refutasse a si própria. Explico.
Se, conforme penso, o direito tem um propósito ético e a religião também é um instrumento da ética, é óbvio que o direito e a religião irão, muitas vezes, caminhar de mãos dadas – e é bom que isso ocorra, já que ambos compartilham praticamente os mesmos objetivos éticos. Ainda que os argumentos religiosos não se misturem (ou pelo menos não deveriam se misturar) com os argumentos jurídico-políticos, sempre haverá uma confusão teleológica entre esses dois instrumentos da ética, de modo que, na prática, será quase impossível distinguir seus fundamentos. Vou dar um exemplo.
A caridade é um dos principais princípios éticos do cristianismo. É certo que quase todas as religiões, de algum modo, pregam a caridade, mas o cristianismo fez da caridade uma bandeira central de sua doutrina. Ora, mas se a caridade é um princípio ético de natureza originalmente religiosa, então, nenhuma lei poderia estimular a caridade caso o princípio da laicidade do Estado fosse levado às últimas conseqüências. Essa conclusão seria um absurdo. A caridade é, sem dúvida, um comportamento ético que merece ser estimulado pelo Estado por meio de políticas públicas que incentivem a sua prática.
Diante de reflexões semelhantes, percebi que não havia o menor sentido em defender um racionalismo radical em matéria de legislação, pois: (a) o próprio racionalismo radical é, de certo modo, irracional e insuficiente para solucionar todos os problemas da vida, já que as explicações racionais são apenas tentativas sempre provisórias de descrever a realidade e, portanto, sujeitas ao erro, (b) há muitos princípios éticos de natureza religiosa que também são racionais; (c) a religião é, sem dúvida, um reforço de peso para que as pessoas adotem uma conduta ética, tanto que as comunidades com fortes vínculos religiosos tendem a ser mais pacíficas. E foi nesse contexto que desisti de discorrer sobre o princípio da laicidade do Estado, já que as premissas que eu pretendia defender eram falsas ou, pelo menos, quase impossíveis de serem sustentadas, além de terem uma utilidade prática questionável. Em síntese: separar o estritamente racional do estritamente religioso não é fácil nem útil. E os conflitos ideológicos daí resultantes gerariam um antagonismo difícil de ser superado, pois a história demonstra que as discussões religiosas quase nunca dão bons frutos. O que é pior: esses conflitos levariam a um embate desnecessário entre dois instrumentos éticos que, na maioria das vezes, possuem objetivos comuns e se reforçam mutuamente no papel de estímulo à prática de comportamentos eticamente desejáveis. (Isso não significa reconhecer que o direito e a religião sempre cumprem esse papel de realizar objetivos éticos. Como qualquer produto cultural, tanto a religião quanto o direito podem ser manipulados para fins pouco nobres e o são com muita freqüência).
Ainda acredito que os fundamentos utilizados pelos juristas e pelos políticos, atuando como agentes estatais, não deveriam invocar dogmas religiosos, bem como continuo achando que as leis baseadas em dogmas religiosos destituídos de racionalidade deveriam ser consideradas como inconstitucionais, se, efetivamente, a sua irracionalidade for manifesta. Mas não creio que seja possível distinguir com precisão um argumento ético de um argumento religioso na maioria das vezes, de modo que, se eu levasse a sério a minha proposta, poderia me transformar em um cachorro tentando morder o próprio rabo.
Essa mudança de foco também foi ocasionada pelo surgimento de um repentino interesse em filosofia moral, que eu nunca havia estudado de forma sistemática. O fundamento dos direitos fundamentais, que sempre foi e sempre será o meu principal interesse acadêmico, encontra-se na ética. Antes de serem transformados em normas jurídicas, os direitos fundamentais são normas éticas debatidas pela filosofia moral. Por isso, a compreensão dos direitos fundamentais torna-se muito mais fácil se se dominar as ferramentas argumentativas fornecidas pela filosofia moral. E é isso que estou fazendo neste momento, ou seja, estou tentando entrar de corpo e alma no estudo da filosofia moral, a fim de tentar encontrar os fundamentos filosóficos da minha crença nos direitos fundamentais.
Estou cada vez mais convicto de que, uma vez que a norma jurídica é insuficiente para fornecer todas as respostas a todos os problemas jurídicos, as discussões em matéria de direitos fundamentais são, essencialmente, discussões filosóficas. Para ser mais preciso: são essencialmente discussões éticas. O livro que me despertou para esse fato foi o “Elementos de Filosofia Moral”, de James Rachels, que recomendo enfaticamente, tanto pelo seu conteúdo quanto por sua linguagem simples e acessível. No referido livro, são apresentadas as principais correntes do pensamento ético, inclusive os pensadores contemporâneos, e discutidos temas bastante conhecidos da teoria dos direitos fundamentais, como a eutanásia, o aborto, o homossexualismo, entre outros. Depois que li o “Elementos de Filosofia Moral” cheguei à conclusão de que, de fato, o papel dos juristas é transformar a ética em direito.
Mas tudo isso está sendo dito apenas como introdução de uma idéia que pretendo apresentar e desenvolver no momento oportuno, que é a idéia da ética da eternidade. Tentarei demonstrar que qualquer concepção ética, mesmo as não-religiosas, precisam se apegar a alguma noção de eternidade ou, pelo menos, de uma existência temporal que transcenda a nossa própria permanência terrena. Ressalto, desde já, que a minha concepção de eternidade não tem nenhum sentido teológico ou metafísico. Como se verá no momento oportuno, a eternidade que entendo que deve estar na base da ética é uma eternidade biológica (genética).
No meu segundo paper, em que tratei da transformação da ética em direito, iniciei o texto com uma famosa frase de Dostoievski: “Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?” (Fiodor Dostoievski, no livro “Irmãos Karamazov”).
Uma versão alternativa da mesma idéia, que é desenvolvida em outra passagem do mesmo livro, diz o seguinte: “se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido”.
O personagem de Dostoievski tenta fazer uma ligação forte entre a idéia de imortalidade (que é uma idéia essencialmente religiosa) e o fundamento da ética, defendendo algo mais ou menos assim: se o que vale é o aqui e agora, sem perspectivas de uma vida para além da morte, então o melhor é curtir a vida e fazer o que quiser, sem outras preocupações éticas além da busca do prazer individual imediato.
Há um fundo de razão nessa idéia. A esperança na existência de vida futura é um dos principais argumentos religiosos para incentivar uma conduta ética. Muitas pessoas praticam boas ações, algumas vezes em sacrifício de seus interesses pessoais, pensando em recompensas que receberá “no paraíso”. Se existir vida depois da morte, há muito mais motivos para seguir uma vida virtuosa.
Mas de repente veio o iluminismo com a sua crença na razão e na comprovação empírica das teorias. Os dogmas religiosos começaram a ser questionados e criticados com base na razão. Foi defendido claramente que o Gênesis está errado se interpretado literalmente. O mundo não foi feito em sete dias; o homem não surgiu do barro; a mulher não foi criada a partir da costela de Adão; o planeta Terra não é o centro do universo; nem mesmo a Via Láctea é a única galáxia do universo, mas apenas mais uma entre bilhões e bilhões de outras…
Ora, se as observações empíricas e a racionalidade crítica demonstraram tantos equívocos nos dogmas religiosos contidos na Bíblia, então por que a idéia de vida eterna também não seria falsa, já que não pode ser empiricamente comprovada?
Foi diante disso que Dostoievski formulou o argumento antes citado, concluindo que tudo seria moralmente permitido sem a noção de imortalidade. Nietzsche, com seu niilismo característico, foi ainda mais além, diagnosticando a própria morte de Deus pela boca de Zaratustra: “Será possível que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque que Deus já morreu?“. E Mais: “Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias”.
É certo que, para a grande maioria dos seres racionais que habitam o planeta Terra, Deus não morreu. E mesmo aqueles que não acreditam em Deus não concordam com a idéia de que tudo é moralmente permitido. A ética sobrevive mesmo sem a religião, e a religião sobrevive mesmo sem comprovação empírica. Disso se conclui que: (a) a ética tem uma base racional que ultrapassa a religião e (b) a religião se sustenta na fé e não apenas na razão, de modo que a razão dificilmente “destruirá” a religião.
O enaltecimento da razão pelo iluminismo não foi capaz de substituir a fé em Deus por uma fé na razão. Apesar disso, o projeto iluminista não foi um fracasso total. Pelo contrário. A razão ganhou muito prestígio e ocupou muitos espaços, inclusive espaços estratégicos para a vida em sociedade, como o espaço estatal, que antes era ocupado pela religião. O princípio da laicidade do Estado é a maior demonstração desse fenômeno.
O espaço acadêmico também foi, em grande medida, ocupado pelo pensamento racional, ainda que sobrevivam diversas instituições religiosas de ensino. Nas ciências naturais (física, biologia etc.), falar em “Deus” virou ironicamente uma espécie de pecado intelectual. Defender uma concepção religiosa do mundo ou da vida em uma reunião de biólogos ou de físicos é ser ignorado ou até mesmo ridicularizado pela comunidade científica.
No campo da ética, por outro lado, vive-se um período híbrido, em que o racional tenta conviver com o religioso. É uma convivência ainda não muito bem definida: há muitos acordos, mas também muitos desacordos. É sobre esse hibridismo entre a ética laica e a ética religiosa que pretendo tecer alguns comentários. Mas isso é assunto para o próximo post.
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