Unanimidade pela diferença

Como já foi amplamente divulgado, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu o direito de casais formados por pessoas do mesmo sexo constituírem família com a mesma proteção conferida às uniões estáveis entre homem e mulher.

Essa discussão é bem antiga aqui no blog e a maioria dos leitores certamente já sabe que sempre fui favorável ao reconhecimento dos direitos ligados à homoafetividade. Cito alguns posts:

Tirando a Constituição do Armário

Boston Legal, o papai Noel gay e os militares assumidos

O STM e as pessoas “sexualmente invertidas”

E finalmente:

Até que a Corte os Separe

Também no meu Curso de Direitos Fundamentais fiz uma defesa do direito dos homossexuais numa linha semelhante ao que foi decidido pelo STF, mas indo um pouco mais além, pois, para mim, também há um direito ao próprio casamento.

Ainda não li os votos dos ministros do STF, mas acredito que eles fizeram uma “leitura” da Constituição semelhante àquela que propus, ou seja, no sentido de que o artigo 226, parágrafo terceiro, não autoriza a discriminação negativa aos casais homossexuais. Aquele artigo, a meu ver, contempla uma obrigação dirigida ao estado para estabelecer medidas de discriminação positiva aos casais entre homem e mulher a fim de incentivá-los a converter a união estável em casamento. Nada, porém, autoriza a interpretação de que a união estável entre pessoas do mesmo sexo não merece proteção jurídica.

É por isso que discordo de Lênio Streck, quando diz que o STF violou os limites semânticos da constituição. Não há violação alguma desses limites semânticos. Haveria uma limitação aos limites semânticos da Constituição se o STF dissesse: “o legislador pode discriminar os homossexuais, apesar de a constituição proibir qualquer tipo de discriminação desmotivada por razão de opção sexual”.

Também é um equívoco dizer que o direito dos homossexuais não pode ser extraído da Constituição porque o constituinte não tratou do tema. Isso é falso. Houve, sim, debates específicos sobre o direito dos homossexuais na assembléia constituinte, inclusive sobre a possibilidade do casamento gay. Houve manifestações a favor e contra. E é impossível, tão somente pela leitura do texto final, saber qual foi o posicionamento que prevaleceu, até porque não vi nenhum constituinte, pelos discursos que li, que tivesse defendido a discriminação negativa aos homossexuais. Os favoráveis não eram tão explícitos quanto à união estável homossexual, e os contrários (à união estável homossexual) eram, incoerentemente, contra a discriminação aos homossexuais.

O texto constitucional dá margem à interpretação nos dois sentidos. Buscar a “intenção do constituinte”, nesse aspecto, é impossivel, como já tive a oportunidade de defender aqui.

E mesmo que conseguíssemos captar o que se passou na mente dos constituintes brasileiros ao aprovarem o texto de 88, é bastante provável que nos decepcionássemos com as motivações deles ou de pelo menos boa parte deles. Quando eu tiver um pouquinho de tempo, vou citar alguns trechos dos debates constituintes sobre a questão da homossexualidade. É bem curioso e vale a leitura, até para desmistificar um pouco as virtudes de nossos representantes.

Um passo importante para o combate à cleptocracia

Superado o impasse, pelo menos provisoriamente. Melhor dizendo: o placar acerca da constitucionalidade da aplicação da Lei de Ficha Lima para as eleições de 2010 permaneceu 5 a 5. Porém, por 7 a 3, decidiu-se que o critério de desempate deveria ser a manutenção da decisão do TSE que previa a aplicação imediata da lei. Assim, foi mantido o indeferimento do registro dos candidatos que se enquadravam na referida lei.

Fiquei praticamente em silêncio nessa discussão sobre a constitucionalidade da lei, porque, de fato, tinha dúvidas em saber se ela poderia mesmo ser aplicada nestas eleições, diante dos precedentes do STF sobre a matéria. Explico melhor.

Na verdade, já disse abertamente que, na minha ótica, sequer seria necessária uma lei para impedir a candidatura de políticos bandidos. Entenda-se por político bandido aquele que cometeu um ato ilícito grave e existem provas fortes contra ele. Na minha ótica, o juiz eleitoral poderia fazer a análise dessas provas e, se se convencesse, fundamentadamente, de que o candidato não tem idoneidade moral, poderia indeferir o registro de sua candidatura, independentemente até mesmo de existir um processo criminal contra ele, já que a instância eleitoral é independente da instância penal.

O certo é que, em 2008, o STF não acolheu essa tese. Decidiu que havia necessidade de lei para que o artigo 14, parágrafo 9, da CF/88, pudesse ter alguma efetividade. Sustentou ainda, naquela oportunidade, que o indeferimento de candidatura antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória seria uma afronta ao princípio da presunção de não-culpabilidade.

Aí veio a Lei de Ficha Lima, decorrente do clamor popular em face da sujeira do processo eleitoral. Seu objetivo era regulamentar o artigo 14, parágrafo 9, da CF/88, a fim de impedir a candidatura de políticos bandidos. Previu hipóteses de inelegibilidade para os candidatos que “forem condenados” em segunda instância, bem como para aqueles que renuciassem a seus mandatos para escapar da punição.

Para mim, claramente a lei deveria ter aplicação direta e imediata, aplicando-se, inclusive, aos candidatos que “tivessem sido condenados” ou “tivessem renunciado” antes da entrada em vigor da lei. Porém, não tinha, como ainda não tenho, muita certeza sobre como conciliar essa tese com o artigo 16 da CF/88, que trata da regra da anualidade eleitoral, que o STF já havia entendido que seria cláusula pétrea. Havia, é certo, algumas estratégias hermenêuticas para justificar a não aplicação do artigo 16, como a idéia de que não se tratava de uma lei sobre o “processo eleitoral” ou algo parecido. Ou então, seria possível alegar que a anualidade eleitoral não é uma regra absoluta e, portanto, poderia ser relativizada diante do interesse público em eleições limpas. Particularmente, nenhum dos argumentos me pareceu sólido.

A única saída para justificar a aplicação imediata da lei de ficha limpa às eleições de 2010 era assumir que o artigo 14, parágrafo 9, da CF/88, tinha aplicação imediata, tal como prevê o artigo 5º, parágrafo primeiro, da CF/88, e, portanto, a lei de ficha limpa tão somente reconheceu algo que já estava determinado no texto constitucional. Dificilmente, o STF adotaria essa linha argumentativa, pois isso seria totalmente contraditório com o seu posicionamento anterior. Assim, preferi não assumir abertamente meu posicionamento, pois o único argumento que me parece bom para defender a tese da aplicação imediata certamente não seria acatado pelo STF.

Não acompanhei o voto dos ministros, mas me parece, pelo pouco que li, que a opção adotada para justificar a aplicação imediata da lei foi o uso de manobras hermenêuticas para burlar o artigo 16, ou seja, defendeu-se que a lei de ficha limpa não altera o processo eleitoral. Convenhamos que o argumento é fraco. Mas pelo menos a lei foi mantida, o que é bom “no mérito”.

Achei que haveria votos pela inconstitucionalidade da lei em razão do princípio da presunção de não-culpabilidade. Até onde sei, nenhum ministro adotou essa tese, o que é curioso, já que vários ministros haviam adiantado que qualquer restrição a direitos eleitorais antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória seria uma afronta a tal princípio. Se ninguém adotou esse posicionamento, isso, por si só, já constitui um grande avanço para a correta interpretação do princípio da presunção de não-culpabilidade.

Também fiquei feliz com a solução para o desempate. Sempre me pareceu óbvio que se deve prestigiar a presunção de constitucionalidade da lei e a autoridade do TSE, em caso de empate na votação. Não tenho dúvida de que, se a decisão do TSE fosse pela não-aplicação da lei nestas eleições, o STF não teria qualquer dificuldade em prestigiar a referida decisão, colocando a responsabilidade política pela decisão em cima do TSE. A impressão geral que tive é que o STF teve que “engolir” o grito das ruas e acabou se curvando diante de algo que é muito maior do que ele, que é a força da pressão popular. Que bom!

Agora posso gritar com mais otimismo: abaixo a cleptocracia!

Da Série Alhos com Bugalhos

O presente post é daqueles que têm plena consciência das pedradas que levará. Já havia tocado no assunto aqui e aqui e o resultado costuma ser o mesmo: um prazer estranho de boa parte das pessoas de atacar gratuitamente a magistratura. Não vejo problema quanto a isso. Acho que falar mal das instituições faz parte do jogo democrático e, aqui no Brasil, é quase um esporte nacional. Eu mesmo adoro falar mal dos políticos.

De qualquer modo, faço questão de divulgar o texto abaixo, pois, dessa vez, pelo menos poderei dividir as pedradas com um amigo, o juiz federal Nagibe de Melo Jorge Neto, que é o autor do texto.

O texto foi uma reação a um editoral do Estadão que reflete a mentalidade de senso comum que considera que os juízes são todos uns privilegiados preguiçosos que trabalham pouco e recebem muito. O curioso é que o editorial nada fala do ministério público, apesar de o motivo da insatisfação dos juízes é justamente o fato de que os membros do ministério público possuírem vários direitos que não são dados aos magistrados.

Enfim, vale a pena ler o artigo do Nagibe:

Da Série Alhos com Bugalhos

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal e autor da obra Sentença Cível: teoria e prática

O editorial do Estadão de ontem faz uma severa crítica ao pedido de equiparação entre os direitos dos Juízes Federais e dos Procuradores da República feito pela Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ. A questão é simples, a Lei Orgânica da Magistratura foi promulgada sob o regime militar e não concede aos juízes os mesmos direitos que a Lei Complementar 75, aprovada na década de 90, concede aos membros do Ministério Público. Os juízes trabalham com considerável desvantagem remuneratória em relação aos membros do ministério público, isso porque, basicamente, não podem vender férias até 1/3 das suas férias, não recebem o auxílio-alimentação e não recebe auxílio-moradia.

O pedido é para que haja uma equalização. Todos os trabalhadores do Brasil podem vender férias. Todos os servidores públicos e boa parte dos servidores da iniciativa privada recebem o auxílio-alimentação, seja na forma de vale-refeição. Atualmente esse valor é de cerca de R$ 500,00 (quinhentos reais). Por último, o auxílio moradia. A Justiça Federal começou um vigoroso processo de interiorização. Em praticamente todos os Estados da Federação o Poder Judiciário disponibiliza aos seus juízes, nas cidades do interior, uma casa para morar. Isso também é comum na iniciativa privada.

Tudo bem, alguém pode não concordar que os juízes federais também tenham esses direitos, mas o editorial do Estadão mistura os raciocínios, cita números da lentidão da Justiça e termina direcionando suas baterias contra as férias de 60 dias dos juízes. Tudo muito misturado sem aprofundar o debate, como vem se tornando comum na grande mídia nacional. O que me impressionou é que essa virulência toda tenha ganhado o editorial.

Poucos sabem que os juízes federais ganham uma única parcela de remuneração, o chamado subsídio. Um juiz federal no final da carreira ganha R$ 14.224,21 (quatorze mil, duzentos e vinte e quatro reais e vinte e um reais), já descontado a contribuição previdenciária e o imposto de renda. Além disso, o juiz não pode receber mais qualquer outra parcela. Os juízes não recebem horas-extras, não recebem nada pelos plantões que são obrigados a cumprir periodicamente, não recebem quando exercem cargos administrativos, como a administração do foro por exemplo, ou quando cumulam funções nas Turmas Recursais ou substituem um colega, cumulando seus próprios processos e os do colega ausente.

Poucos se dão conta de que os juízes trabalham de acordo com metas. É seu dever manter sua vara em dia e julgar os processos atrasados. Mas os juízes não recebem bônus pelo atingimento das metas, nem recebem horas-extras caso sejam obrigados a trabalhar mesmos nos finais de semana ou nas férias para cumpri-las. Além disso, os juízes têm obrigação de atender os advogados e as partes sempre que procurado e deve despachar os processos, em caso de urgência, mesmo fora do expediente, o que não é raro de acontecer.

A maioria dos meus colegas utiliza parte das férias de 60 dias para se atualizar, para estudar, o que é impossível de fazer durante o expediente normal de trabalho, e muitas vezes para julgar os processos atrasados ou de grande complexidade. O Judiciário é a bola da vez e a grande mídia tem demonstrado uma sanha incompreensível em fazer sangrar a magistratura. A quem interessa essa postura? O Estadão acaba de dedicar um editorial para atacar os direitos dos juízes. Recentemente o CNJ proferiu uma decisão importantíssima que põe em cheque o seu próprio papel e a independência da magistratura como um todo, independência de julgamento, algo essencial em um Estado Democrático de Direito, mas nenhuma palavra foi publicada sobre isso. Há um nítido desvio de foco.

É fácil demais perceber que qualquer cargo na iniciativa privada com responsabilidades compatíveis com as de um juiz paga bem mais que o subsídio do juiz federal. Além de outras vantagens. Os advogados, por exemplo, têm garantido por lei jornada diária de 4 (quatro) horas de trabalho. Depois disso, horas-extras. Quando há mutirões no Poder Judiciário, e isso não é raro, os servidores recebem horas-extras, os juízes trabalham o mesmo tanto ou até mais, porque são os responsáveis finais pelo ser viço, e não recebem mais por isso.

O regime jurídico da magistratura é diferenciado. Há muitos limites e muitas cobranças. Ninguém pode negar que o Poder Judiciário ainda precisa se aprimorar, mas não será aniquilando o direito dos juízes, desestimulando o ingresso na carreira que teremos a melhora desse quadro. Além disso, a ineficiência do Poder Judiciário não pode ser tributada exclusivamente aos juízes. O CNJ vem fiscalizando e punindo os maus juízes, que, felizmente, ainda são a minoria.

Na verdade, em muitos casos, a lei processual deixa os juízes de pés e mãos atados para a rápida solução do litígio. Além disso, há problemas como a falta de preparo dos advogados, assunto que está na pauta da OAB, e o fato de que os juízes têm pouquíssimo poder para punir a chicana processual. Ao invés de debater esses assuntos seriamente, a grande imprensa confunde alhos com bugalhos e detona o direito dos juízes. A quem isso interessa?

Nagibe de Melo Jorge Neto

Impeachment de Governador do Estado

Cheguei anteontem ao Brasil e só agora tive conhecimento do escândalo envolvendo o governo do Distrito Federal. É, amigos, a cleptocracia está cada vez menos sutil e mais escancarada. Mas não vou falar sobre isso. Já manifestei minha opinião, em forma de desabafo, em diversos momentos (aqui e aqui).

Gostaria apenas de comentar um aspecto “mais técnico” do tema, que é o processo de impeachment de um governador de Estado. Curiosamente, foi um dos meus primeiros e mais relevantes trabalhos profissionais, quando eu ainda era Procurador do Estado em Alagoas.

Em 2000, tinha acabado de me formar, e assumi o cargo de Procurador do Estado em Alagoas. Talvez por ter sido o primeiro lugar do concurso, o então Procurador-Geral, Paulo Luiz Netto Lobo, passou-me algumas questões bastante complexas. Uma dessas ações envolveu um pedido de impeachment do então governador Ronaldo Lessa.

O caso foi assim. O Estado de Alagoas não pagava suas dívidas judiciais há algumas décadas. Nada era destinado ao pagamento das dívidas judiciais. Era um misto de má-gestão, falta de pulso do Poder Judiciário e falta de dinheiro mesmo. Acho que a situação não é muito diferente em outros estados.

Mas o certo é que a Presidenta do TRT de Alagoas resolveu pedir o impeachment do governador por não haver incluído na lei orçamentária anual a quantia necessária ao pagamento dos precatórios trabalhistas. O pedido foi formulado perante a Assembléia Legislativa e, ao ser citado, o governador pediu a consultoria da Procuradoria do Estado. Foi aí que o Procurador-Geral do Estado me pediu para estudar o assunto.

Fiz o parecer em pouco menos de vinte dias. Minha preocupação não foi com o mérito em si do pedido, pois era mais uma questão política. Minha preocupação principal foi tentar compreender o processo de impeachment do governador do estado.

A questão não é simples, pois o paradigma adotado é o processo de impeachment do Presidente da República, que não pode ser simplesmente transplantado para o âmbito estadual. E não pode por um motivo muito simples: o legislativo federal é bicameral enquanto que o legislativo estadual é unicameral.

No processo de impeachment do Presidente da República, o Congresso Nacional atua em duas fases. Em um primeiro momento, a Câmara exerce um juízo preliminar de recebimento da denúncia, como se fosse uma espécie de “juízo de pronúncia”, tornando o Presidente apto a ser julgado. Na fase seguinte, o processo tramita no Senado Federal, que será responsável pelo julgamento propriamente dito.

Nos Estados, o Poder Legislativo é um só. Então, quem deve julgar o governador por crime de responsabilidade?

A solução dada pela Lei 1.079/50, cuja compatibilidade com a Constituição Federal de 1988 já foi declarada pelo STF, é bastante heterodoxa, já que cria uma espécie de tribunal de exceção, não previsto na CF/88. Na primeira fase, compete à Assembléia Legislativa exercer o juízo de recebimento da denúncia, exercendo um papel semelhante ao da Câmara dos Deputados. Num segundo momento, o julgamento propriamente dito é feito por um órgão de composição mista, formado por membros do legislativo e do judiciário. Bastante esquisito. Na oportunidade do parecer, fiz o seguinte comentário:

“Interessante observar que [no julgamento realizado pelo STF] não foi discutida a inconstitucionalidade (ou não-recepção) do referido tribunal misto em face do princípio do juiz natural. Tenho sérias dúvidas quanto à legitimidade do referido Tribunal, já que a Constituição Federal não o previu. A meu ver, parece mesmo é um tribunal de exceção, não previsto constitucionalmente, e que, por isso, não se prestaria a julgar crime algum. Melhor seria se a Constituição houvesse previsto expressamente o tribunal competente para julgar o Governador por crime de responsabilidade, pois a adoção do modelo federal, no caso, é inviável, já que se baseia em um sistema legislativo bicameral (Senado e Câmara), enquanto os Estados adotam o sistema unicameral (Assembléia Legislativa). Uma outra solução, talvez mais interessante, seria a de reconhecer que o Superior Tribunal de Justiça seria o órgão competente para julgar tantos os crimes comuns cometidos por Governadores quanto os crimes de responsabilidade. Assim, a Assembléia Legislativa faria o juízo de admissibilidade da “denúncia”, na forma acima explicada, e o Superior Tribunal de Justiça processaria e julgaria o Governador, funcionando de forma semelhante ao Senado Federal no caso dos crimes de responsabilidade do Presidente da República”.

De qualquer modo, foi apenas um parecer de um jurista neófito, com diversas passagens inspiradas em outros juristas. Quem tiver interesse no texto integral do parecer é só clicar aqui.

O Bolo, a Justiça e o Direito

Imagine que dois amigos, João e Paulo, resolvam comprar um bolo para comer depois do almoço. Antes de dividi-lo, resolvem fazer o seguinte pacto: João cortará o bolo e Paulo escolherá o primeiro pedaço. Eis um procedimento justo, pois, certamente, aquele que cortará o bolo tentará ser o mais eqüanime possível para não correr o risco de ficar com um pedaço pequeno.

Acho que ouço essa história desde os meus cinco anos de idade. Esse exemplo do bolo é didático e capaz de convencer qualquer criança sobre a essência da justiça, que foi captada por Ralws com a sua ficção do “véu da ignorância”. Mas será que é tão simples assim?

Digamos que João seja um utilitarista radical. Resolve, por conta própria, sem consultar o amigo, repartir o bolo em partes desiguais: um pedaço bem grande e outro bem pequeno. Assim que corta o bolo, João é mais rápido do que o amigo e consegue ficar com o pedaço maior. Mas ele é utilitarista e está preocupado não em satisfazer seus próprios interesses pessoais, mas sim os interesses do maior número de pessoas. Ele vê três crianças famintas que, se não comerem o bolo, certamente irão morrer de desnutrição. João não tem dúvidas e dá o pedaço grande às três crianças, deixando Paulo enfurecido.

Paulo resolve processar o amigo. Eles fizeram um pacto e o pacto foi descumprido. O direito deve castigar os comportamentos socialmente prejudiciais e premiar os comportamentos socialmente benéficos. Paulo alega que a conduta adotada por João irá minar o convício social, pois nenhuma sociedade subsiste se qualquer pessoa resolve descumprir os pactos a seu bel prazer. Dentro da ética kantiana, a conduta adotada por João jamais poderia se tornar uma lei universal, pois irá abalar a confiança entre as pessoas. João não deveria ter feito o pacto se o seu interesse era descumpri-lo, pois tal comportamento é contraditório. Paulo acha que foi traído e usado como um mero instrumento, já que sua vontade não foi respeitada.

João, por sua vez, alegou que nada mais fez do que ajudar três crianças que estavam à beira da morte. Paulo ficou com um pedaço suficiente para saciar o seu prazer naquele momento. Por isso, João não sentiu qualquer remorso em fazer o que a sua razão utilitarista mandou: maximizar a felicidade do maior número de pessoas possíveis.

Temos aqui um conflito jurídico cujos argumentos apresentados pelas partes envolvidas são essencialmente éticos. É uma clássica disputa entre a ética deontológica (kantiana) e utilitarista (benthaniana*). O direito fornece respostas (jurídicas) para os dois lados da controvérsia. Há normas jurídicas que dizem que os pactos devem ser cumpridos e há normas jurídicas que dizem que os pactos devem cumprir uma função social e que as crianças devem ser protegidas com absoluta prioridade. Como se vê, inevitavelmente o juiz, para solucionar essa controvérsia, deverá adotar uma das duas concepções éticas antes mencionadas. O direito, por si só, não fornece uma resposta precisa e unívoca. É nesse sentido que entendo que os juristas, com freqüência, transformam ética em direito, ou seja, adotam concepções éticas para justificar suas decisões jurídicas. Se isso é certo ou errado, não sei dizer. Só sei que é inevitável. E já que é inevitável, melhor então é que os juristas passem a dominar corretamente os fundamentos dessas diversas teorias éticas.

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* Provavelmente, utilitaristas menos radicais, como Stuart Mill ou R. M. Hare, censurariam a conduta adotada por João. Mill, por exemplo, alegaria que aquele que pratica o mal pensando em receber algum benefício imediato para si ou para outrem “desempenha o papel de um dos piores inimigos da humanidade”. Isso poque:

“As regras morais que proíbem os seres humanos de fazer mal uns aos outros (nas quais nunca devemos esquecer-nos de incluir a interferência incorreta na liberdade uns dos outros) são mais vitais para o bem-estar humano do que quaisquer máximas, por mais importante que sejam, que apenas indiquem a melhor forma de gerir um dado setor da vida humana. (…)

É a observância destas regras morais que, só por si, preserva a paz entre os seres humanos. Se a obediência a elas não fosse a regra, e a desobediência a exceção, cada um veria em todos os outros um provável inimigo, contra o qual teria de se manter permanentemente em guarda”.

A Ética da Eternidade – Parte I (uma explicação prévia)

Pelas idéias que defendo aqui no blog, creio que os leitores já devem ter percebido que minha “fé na razão” é, em certo sentido, maior do que a minha “fé na fé”. O meu projeto original de tese era precisamente discorrer sobre o princípio da laicidade do Estado, onde eu tentaria defender a inconstitucionalidade das leis que se fundamentam em dogmas religiosos destituídos de racionalidade. Ainda bem que desisti desse tema tão logo percebi que era uma barca furada, pois seria impossível chegar a uma conclusão que não se refutasse a si própria. Explico.

Se, conforme penso, o direito tem um propósito ético e a religião também é um instrumento da ética, é óbvio que o direito e a religião irão, muitas vezes, caminhar de mãos dadas – e é bom que isso ocorra, já que ambos compartilham praticamente os mesmos objetivos éticos. Ainda que os argumentos religiosos não se misturem (ou pelo menos não deveriam se misturar) com os argumentos jurídico-políticos, sempre haverá uma confusão teleológica entre esses dois instrumentos da ética, de modo que, na prática, será quase impossível distinguir seus fundamentos. Vou dar um exemplo.

A caridade é um dos principais princípios éticos do cristianismo. É certo que quase todas as religiões, de algum modo, pregam a caridade, mas o cristianismo fez da caridade uma bandeira central de sua doutrina. Ora, mas se a caridade é um princípio ético de natureza originalmente religiosa, então, nenhuma lei poderia estimular a caridade caso o princípio da laicidade do Estado fosse levado às últimas conseqüências. Essa conclusão seria um absurdo. A caridade é, sem dúvida, um comportamento ético que merece ser estimulado pelo Estado por meio de políticas públicas que incentivem a sua prática.

Diante de reflexões semelhantes, percebi que não havia o menor sentido em defender um racionalismo radical em matéria de legislação, pois: (a) o próprio racionalismo radical é, de certo modo, irracional e insuficiente para solucionar todos os problemas da vida, já que as explicações racionais são apenas tentativas sempre provisórias de descrever a realidade e, portanto, sujeitas ao erro, (b) há muitos princípios éticos de natureza religiosa que também são racionais; (c) a religião é, sem dúvida, um reforço de peso para que as pessoas adotem uma conduta ética, tanto que as comunidades com fortes vínculos religiosos tendem a ser mais pacíficas. E foi nesse contexto que desisti de discorrer sobre o princípio da laicidade do Estado, já que as premissas que eu pretendia defender eram falsas ou, pelo menos, quase impossíveis de serem sustentadas, além de terem uma utilidade prática questionável. Em síntese: separar o estritamente racional do estritamente religioso não é fácil nem útil. E os conflitos ideológicos daí resultantes gerariam um antagonismo difícil de ser superado, pois a história demonstra que as discussões religiosas quase nunca dão bons frutos. O que é pior: esses conflitos levariam a um embate desnecessário entre dois instrumentos éticos que, na maioria das vezes, possuem objetivos comuns e se reforçam mutuamente no papel de estímulo à prática de comportamentos eticamente desejáveis. (Isso não significa reconhecer que o direito e a religião sempre cumprem esse papel de realizar objetivos éticos. Como qualquer produto cultural, tanto a religião quanto o direito podem ser manipulados para fins pouco nobres e o são com muita freqüência).

Ainda acredito que os fundamentos utilizados pelos juristas e pelos políticos, atuando como agentes estatais, não deveriam invocar dogmas religiosos, bem como continuo achando que as leis baseadas em dogmas religiosos destituídos de racionalidade deveriam ser consideradas como inconstitucionais, se, efetivamente, a sua irracionalidade for manifesta. Mas não creio que seja possível distinguir com precisão um argumento ético de um argumento religioso na maioria das vezes, de modo que, se eu levasse a sério a minha proposta, poderia me transformar em um cachorro tentando morder o próprio rabo.

Essa mudança de foco também foi ocasionada pelo surgimento de um repentino interesse em filosofia moral, que eu nunca havia estudado de forma sistemática. O fundamento dos direitos fundamentais, que sempre foi e sempre será o meu principal interesse acadêmico, encontra-se na ética. Antes de serem transformados em normas jurídicas, os direitos fundamentais são normas éticas debatidas pela filosofia moral. Por isso, a compreensão dos direitos fundamentais torna-se muito mais fácil se se dominar as ferramentas argumentativas fornecidas pela filosofia moral. E é isso que estou fazendo neste momento, ou seja, estou tentando entrar de corpo e alma no estudo da filosofia moral, a fim de tentar encontrar os fundamentos filosóficos da minha crença nos direitos fundamentais.

Estou cada vez mais convicto de que, uma vez que a norma jurídica é insuficiente para fornecer todas as respostas a todos os problemas jurídicos, as discussões em matéria de direitos fundamentais são, essencialmente, discussões filosóficas. Para ser mais preciso: são essencialmente discussões éticas. O livro que me despertou para esse fato foi o “Elementos de Filosofia Moral”, de James Rachels, que recomendo enfaticamente, tanto pelo seu conteúdo quanto por sua linguagem simples e acessível. No referido livro, são apresentadas as principais correntes do pensamento ético, inclusive os pensadores contemporâneos, e discutidos temas bastante conhecidos da teoria dos direitos fundamentais, como a eutanásia, o aborto, o homossexualismo, entre outros. Depois que li o “Elementos de Filosofia Moral” cheguei à conclusão de que, de fato, o papel dos juristas é transformar a ética em direito.

Mas tudo isso está sendo dito apenas como introdução de uma idéia que pretendo apresentar e desenvolver no momento oportuno, que é a idéia da ética da eternidade. Tentarei demonstrar que qualquer concepção ética, mesmo as não-religiosas, precisam se apegar a alguma noção de eternidade ou, pelo menos, de uma existência temporal que transcenda a nossa própria permanência terrena. Ressalto, desde já, que a minha concepção de eternidade não tem nenhum sentido teológico ou metafísico. Como se verá no momento oportuno, a eternidade que entendo que deve estar na base da ética é uma eternidade biológica (genética).

No meu segundo paper, em que tratei da transformação da ética em direito, iniciei o texto com uma famosa frase de Dostoievski: “Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?” (Fiodor Dostoievski, no livro “Irmãos Karamazov”).

Uma versão alternativa da mesma idéia, que é desenvolvida em outra passagem do mesmo livro, diz o seguinte: “se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido”.

O personagem de Dostoievski tenta fazer uma ligação forte entre a idéia de imortalidade (que é uma idéia essencialmente religiosa) e o fundamento da ética, defendendo algo mais ou menos assim: se o que vale é o aqui e agora, sem perspectivas de uma vida para além da morte, então o melhor é curtir a vida e fazer o que quiser, sem outras preocupações éticas além da busca do prazer individual imediato.

Há um fundo de razão nessa idéia. A esperança na existência de vida futura é um dos principais argumentos religiosos para incentivar uma conduta ética. Muitas pessoas praticam boas ações, algumas vezes em sacrifício de seus interesses pessoais, pensando em recompensas que receberá “no paraíso”. Se existir vida depois da morte, há muito mais motivos para seguir uma vida virtuosa.

Mas de repente veio o iluminismo com a sua crença na razão e na comprovação empírica das teorias. Os dogmas religiosos começaram a ser questionados e criticados com base na razão. Foi defendido claramente que o Gênesis está errado se interpretado literalmente. O mundo não foi feito em sete dias; o homem não surgiu do barro; a mulher não foi criada a partir da costela de Adão; o planeta Terra não é o centro do universo; nem mesmo a Via Láctea é a única galáxia do universo, mas apenas mais uma entre bilhões e bilhões de outras…

Ora, se as observações empíricas e a racionalidade crítica demonstraram tantos equívocos nos dogmas religiosos contidos na Bíblia, então por que a idéia de vida eterna também não seria falsa, já que não pode ser empiricamente comprovada?

Foi diante disso que Dostoievski formulou o argumento antes citado, concluindo que tudo seria moralmente permitido sem a noção de imortalidade. Nietzsche, com seu niilismo característico, foi ainda mais além, diagnosticando a própria morte de Deus pela boca de Zaratustra: “Será possível que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque que Deus já morreu?“. E Mais: “Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias”.

É certo que, para a grande maioria dos seres racionais que habitam o planeta Terra, Deus não morreu. E mesmo aqueles que não acreditam em Deus não concordam com a idéia de que tudo é moralmente permitido. A ética sobrevive mesmo sem a religião, e a religião sobrevive mesmo sem comprovação empírica. Disso se conclui que: (a) a ética tem uma base racional que ultrapassa a religião e (b) a religião se sustenta na fé e não apenas na razão, de modo que a razão dificilmente “destruirá” a religião.

O enaltecimento da razão pelo iluminismo não foi capaz de substituir a fé em Deus por uma fé na razão. Apesar disso, o projeto iluminista não foi um fracasso total. Pelo contrário. A razão ganhou muito prestígio e ocupou muitos espaços, inclusive espaços estratégicos para a vida em sociedade, como o espaço estatal, que antes era ocupado pela religião. O princípio da laicidade do Estado é a maior demonstração desse fenômeno.

O espaço acadêmico também foi, em grande medida, ocupado pelo pensamento racional, ainda que sobrevivam diversas instituições religiosas de ensino. Nas ciências naturais (física, biologia etc.), falar em “Deus” virou ironicamente uma espécie de pecado intelectual. Defender uma concepção religiosa do mundo ou da vida em uma reunião de biólogos ou de físicos é ser ignorado ou até mesmo ridicularizado pela comunidade científica.

No campo da ética, por outro lado, vive-se um período híbrido, em que o racional tenta conviver com o religioso. É uma convivência ainda não muito bem definida: há muitos acordos, mas também muitos desacordos. É sobre esse hibridismo entre a ética laica e a ética religiosa que pretendo tecer alguns comentários. Mas isso é assunto para o próximo post.

Na primeira noite eles se aproximam…

Parabéns ao Min. Marco Aurélio pelos seus trinta anos de magistratura. Apesar de pensar diferente dele em muitos assuntos, tenho admiração por sua coragem. E ontem ele orgulhou a toga que veste.

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9 a 1, vencido o Min. Marco Aurélio. Foi o placar da decisão tomada pelo STF no caso da “OPERAÇÃO SATYAGRAHA”, confirmando a decisão proferida pelo Min. Gilmar Mendes que revogou a prisão preventiva de Daniel Dantas. Que a decisão ia ser confimada já era esperado. Ninguém esperava era a fúria dos ministros Peluso e Eros Grau contra o juiz federal Fausto de Sanctis. Parecia que era pessoal.

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Os comentários abaixo dizem respeito não ao mérito em si do processo, mas à questão de ordem levantada.

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Além de confirmar a liminar, tentou-se exigir a punição administrativa do magistrado junto ao Conselho Nacional da Magistratura. Uma clara utilização do CNJ para fins de patrulhamento ideológico. Até o Min. Gilmar Mendes já havia voltado atrás quanto a esse ponto (vide nota da Ajufe logo abaixo). Ainda bem que a tese restou vencida.

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E para entornar ainda mais o caldo, pretendeu-se punir TODOS os demais juízes do Brasil que manifestaram apoio ao juiz Fausto. Isso mesmo: levantou-se a idéia de submeter todos os juízes que assinaram manifesto de apoio ao juiz Fausto ao controle disciplinar do CNJ. Os juízes foram tratados como um bando de insubordinados! Ainda bem que a lucidez de alguns ministros impediram que esse atentado à democracia ocorresse.

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Em meus quase dez anos de magistratura, já estive diante de latrocidas, traficantes e outros criminosos de alta periculosidade. Ontem, foi a primeira vez em minha carreira de magistrado que senti medo. Apesar de as tentativas de se punir disciplinarmente os juízes não tenham prevalecido, é inegável que o CNJ está sendo utilizado como instrumento de policiamento para que os juízes “andem na reta” e sigam a cartilha ditada por seus membros. A simples ameaça de punição certarmente já atingiu a sua finalidade que é gerar um efeito silenciador perante os juízes de primeiro grau.

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E olha que não tenho qualquer interesse pessoal e direto na questão, pois, na época em que houve o ocorrido, eu estava na Argentina, de férias, e não tive como assinar o manifesto de apoio ao Fausto. Assim, formalmente, não posso ser considerado um juiz “insubordinado” e certamente não seria “enquadrado” por uma eventual decisão do STF.

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Na minha ingenuidade, sempre fui favorável à criação de um órgão de controle externo da magistratura, como forma de punir os desvios éticos que costumam ocorrer no Judiciário. Há tanta coisa errada que somente um órgão disciplinar para diminuir as imoralidades institucionalizadas. Jamais imaginei que esse órgão fosse utilizado, ainda que retoricamente, para amendrontar os juízes, controlar o mérito das suas decisões ou até mesmo cercear as suas opiniões. Vã ilusão…

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O CNJ começa a receber as informações “estatísticas” das escutas telefônicas autorizadas judicialmente, conforme aprovado em setembro. Ninguém sabe ao certo o que ele fará com essas informações. Há quem diga que ele chamará todos os juízes que autorizaram mais escutas do que a média para dar explicações. Se isso não for patrulhamento, então tenho que mudar meus conceitos.

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O CNJ chegou a recomendar como os juízes redijam suas decisões. “Aconselhou” que não fossem utilizados os nomes propagandísticos das operações policiais, pois isso poderia afetar a imparcialidade do julgamento!

O curioso é que nunca vi ninguém criticar o uso dos famosos “vulgos” quando se trata de réu pobre, que são muito mais depreciativos. “Fulano de Tal, vulgo, ‘Matador Sanguinário'” – esse já tá condenado!

Sou fã dessa idéia de dar nome aos casos jurídicos. Falar em “Caso Ellwanger” é muito mais didático do que falar HC 3123214219432. Na Alemanha, onde o Min. Gilmar Mendes estudou, todos os casos são conhecidos por “nomes de impacto”. É o caso “Numerus Clausulus”,  “Soldados são Assassinos”, “Aborto I” e por aí vai. Isso facilita tremendamente a compreensão e divulgação do julgamento para o  grande público. Se os nomes são depreciativos e podem induzir a uma condenação antecipada, cabe à Justiça modificar. O próprio Caso Satyagraha também é conhecido como Caso Daniel Dantas.

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Eis a nota da Ajufe sobre a questão de ordem levantada no julgamento de ontem:

A propósito da questão de ordem suscitada durante o julgamento do HC nº 95.009, no Supremo Tribunal Federal, a Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE vem a público rejeitar qualquer tentativa de violação da independência funcional da magistratura.

Esclarece que o movimento surgido espontaneamente entre os juízes federais brasileiros teve por único objetivo defender a independência de os magistrados, de todas as instâncias, decidirem, exclusivamente, de acordo com a sua consciência e a prova existente nos autos.  Daí decorre que as decisões judiciais somente podem ser revistas através dos recursos cabíveis.

Esse movimento foi lançado quando pairava a dúvida de que decisões judiciais poderiam tornar-se alvo de sindicância por órgãos administrativos.

Essa dúvida, no entanto, foi resolvida quando o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, em comunicação trocada com a AJUFE, esclareceu que, “em atenção à mensagem recebida, via e-mail, em 12 de julho passado, dessa Associação, reafirmo que, no caso do Habeas Corpus nº 95.009, o envio de peças a órgãos jurisdicionais administrativos objetivou unicamente complementar estudos destinados à regulamentação de medidas constritivas de liberdade, ora em andamento tanto no Conselho Nacional de Justiça quanto no Conselho da Justiça Federal. Enfatizo, ainda uma vez, que em momento algum houve determinação de que se procedesse a qualquer averiguação de conteúdo, quer sob o ponto de vista técnico ou ideológico, de provimento judicial”.

Em razão desse esclarecimento, amplamente divulgado à época, causa estranheza que isso volte à tona, tendo sido noticiado que seria expedido ofício ao Conselho Nacional de Justiça “para saber em que estado se encontram os procedimentos encaminhados para análise do comportamento do magistrado”, uma vez que o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal já afirmara que o envio de peças a órgãos jurisdicionais administrativos teve o único objetivo de complementar estudos destinados à regulamentação de medidas constritivas de liberdade, o que já se consubstanciou na Resolução nº 59, de 9 de setembro de 2008, do Conselho Nacional de Justiça.

A AJUFE reafirma que nenhum magistrado, seja de primeira instância ou dos tribunais superiores, pode ser punido ou ameaçado de punição porque decidiu de acordo com a sua consciência, nos termos da Constituição e das leis.

Igualmente, nenhum magistrado pode ser punido ou ameaçado de punição porque se manifestou publicamente na defesa da independência funcional da magistratura.

Vivemos em uma democracia e no Estado Democrático de Direito. Os magistrados, como todos os cidadãos, têm o direito de manifestar sua opinião e a Lei Orgânica da Magistratura, que surgiu em triste período da história deste País, deve ser interpretada sob o espírito democrático e participativo da Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadão, mas jamais ser utilizada como instrumento de intimidação.

A AJUFE reafirma o seu compromisso com o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, com a harmonia na convivência entre todos os magistrados e com o aprimoramento constante do Poder Judiciário.

Fernando Cesar Baptista de Mattos

Presidente da AJUFE

Ainda o nepotismo: uma memorável decisão

Conforme previsto, o STF reconheceu que o nepotismo viola os princípios constitucionais e deve ser proibido em todos os poderes, independentemente de qualquer regulamentação infraconstitucional (clique aqui).

A notícia é boa tanto pelo mérito em si da decisão quanto pela força normativa que foi dada aos princípios constitucionais. Esse tipo de ativismo judicial, que respeita os valores éticos e goza de plena aceitação social, é bem-vindo e merece ser estimulado. Afinal, se o Congresso Nacional não cumpre a sua parte, cabe ao Judiciário, enquanto “guardião da Constituição”, fazer valer as normas constitucionais. Sempre defendi que, para concretizar a Constituição, o Judiciário não deveria pedir licença para seu ninguém.

Pouca gente se deu conta, mas a filosofia por detrás desse julgamento é capaz de revolucionar o direito administrativo e mudar substancialmente o sentido do princípio da legalidade no âmbito da Administração Pública. A idéia de que o administrador público deve seguir fielmente a lei e que só pode fazer aquilo que a lei permite ganhou um novo ingrediente: a observância dos princípios constitucionais. De agora em diante, pode-se dizer que também os princípios constitucionais podem servir como fonte normativa para embasar as decisões na esfera administrativa, mesmo que não exista lei regulamentando a matéria. A legalidade continua sendo importante; mas a constitucionalidade ganhou um novo status, passando a interferir diretamente na prática dos atos administrativos. É a aplicação direta e imediata dos princípios constitucionais, num claro respeito à busca da máxima efetividade da Constituição.

É uma pena que o STF não adotou a mesma idéia quando julgou a questão da análise da vida pregressa como requisito para o registro de candidaturas… No final das contas, não é quase a mesma coisa?

E só para provocar, questiono: Poderiam os juízes eleitorais indeferirem o registro de candidaturas de políticos desonestos com base no princípio da moralidade previsto no artigo 37 (caput) sem invocar o artigo 14, parágrafo 9, da CF/88? Tecnicamente, não; mas politicamente… vale a provocação.

Upgrade:

Eis o texto da súmula vinculante aprovada pelo STF sobre o assunto (Súmula 12):

“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”

Ufa! Parece mais um texto do Saramago…

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