O Direito Fora da Caixa

imagem.pngNeste ano de 2018, o blog DireitosFundamentais.Net completa 15 anos de existência. É provável que seja um dos mais antigos ainda em atividade. E para não deixar passar a data em branco, resolvi publicar um livro especialmente em homenagem a este blog.

O Direito Fora da Caixa é uma espécie de “bolo de aniversário” dessas quinze primaveras em que me dediquei ao DireitosFundamentais.Net quase ininterruptamente. Nele, selecionei 42 textos que foram publicados ao longo destes quinze anos e vários inéditos.

Os assuntos são bem variados, indo desde a jurisdição constitucional, passando pela judicialização da política, fundamentação das decisões, argumentação jurídica e assim por diante. O ponto comum em todos os textos é a leveza da linguagem e um propósito deliberado de fazer o leitor pensar. São textos provocativos, questionadores, não-conformistas, bem dentro do espírito dos posts que firmaram a identidade do blog.

Eu fiquei muito feliz em puder fazer essa homenagem e fiz questão de dedicar o livro a você, leitor do blog, que já me acompanha a tantos anos. Sei que é sempre meio chato fazer auto-elogios ou recomendar a própria obra, mas acho que o livro ficou legal mesmo. Espero que você possa se divertir lendo tanto quanto me diverti escrevendo.

No site da editora JusPodivm, é possível ver o sumário e ler algumas páginas de amostra, inclusive o primeiro texto na íntegra (Breaking The Law), que é uma espécie de “manifesto” em defesa de uma nova forma de pensar o direito. E que outro livro de direito começaria com uma música do Judas Priest?

 

O caso do bolo de casamento gay

Mais um slide que publiquei lá no Instagram comentando um caso beem interessante: o caso do bolo de casamento gay (same-sex wedding cake case), julgado esta semana pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS).

É um julgamento muito importante, mas é preciso ter bastante cautela quanto ao real sentido do que foi julgado. O tema deve ser compreendido muito mais no contexto da liberdade de expressão do que do direito da antidiscriminação. Enfim, aqui vai o slide:

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Existe um direito fundamental de bloquear estradas?

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Publiquei lá no Instagram (@direitos_fundamentais_net) um post/slide sobre o caso Schmidberger v Austria, julgado em 2003 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
É um caso muito interessante para entender os limites do direito de manifestação quando o seu exercício pode causar transtornos ao trânsito de veículos ou à livre circulação de mercadorias. E o mais legal é que é uma espécie de versão invertida do protesto dos caminhoneiros a que estamos assistindo no Brasil.
Esse tipo de inversão é sempre útil para permitir uma análise mais imparcial do problema que queremos enfrentar, pois nos permite fixar balizas mesmo quando o “nosso lado” não é beneficiado. É uma forma prática de buscar um “acordo ou consenso por sobreposição” (Rawls), capaz de proteger imparcialmente todos os interesses em jogo, dentro da ideia básica de que todas as pessoas merecem ter seus direitos respeitados em igual medida.
Então, se você é a favor do exercício incondicional e ilimitado do direito de protesto no caso dos caminhoneiros, também deve adotar a mesma postura quando o protesto vier de outros grupos, inclusive prejudicando os caminhoneiros. Do mesmo modo, se você acredita que é preciso estabelecer alguns limites para minimizar os transtornos causados aos direitos de terceiros, então esses limites devem valer para outras situações semelhantes. Em outras palavras: em se tratando de limites para o exercício do direito de manifestação, não se pode estabelecer critérios ad hoc, que ficam mudando conforme a conveniência ou os interesses políticos em jogo. O que vale para um grupo vale para o outro.
Sei que o protesto dos caminhoneiros tem alguns componentes que dificultam a simplificação do debate. Mas considero, sim, que o caso deveria ser analisado à luz do direito fundamental de manifestação (com os limites a ele inerentes) e não como um caso de greve ou lock-out, já que a reivindicação não está relacionada a disputas trabalhistas. O movimento é um claro protesto contra o governo e não um conflito laboral. Sendo assim, deveria ser analisado à luz da liberdade de manifestação, reunião e expressão, com todos os ônus argumentativos que derivam da estrutura normativa dos direitos fundamentais.
Enfim… é apenas minha contribuição para o debate.

Aqui o slide originalmente publicado no Instagram:

 

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Os Pássaros Têm o Direito de Voar?

Copy of Como eu escrevo

Em outubro de de 2017, tive oportunidade de julgar um caso bem interessante.

A rigor, o ponto central do debate não tinha muita coisa a ver com a questão dos direitos dos animais. Era apenas um pedido de anulação de multa aplicada pelo IBAMA cumulado com um pedido de devolução de alguns pássaros silvestres criados em cativeiro que haviam sido apreendidos durante uma fiscalização.

O pedido de devolução dos pássaros não tinha como ser deferido por uma impossibilidade prática: os pássaros já haviam sido libertados e devolvidos à natureza. Apesar disso, optei por fazer uma análise indireta do direito dos pássaros à liberdade (de voar).

Sei que é um tema polêmico, mas, a meu ver, a criação de pássaros silvestres em gaiolas constitui, na maior parte das situações, tratamento cruel vedado constitucionalmente e foi por isso que fiz questão de incluir esse debate na sentença.

Eu podia ter aprofundado a argumentação ético-filosófica, até porque, em minha tese de doutorado, tratei da expansão do círculo ético e conheço muitos autores que reforçariam a minha posição. Mas optei por uma argumentação mais minimalista para não desviar o foco do problema de fundo. De qualquer modo, há uma sutil menção ao enfoque das capacidades (inspirado em Amartya Sen e, especialmente, Martha Nussbaum), que foi utilizado para sugerir a existência de um direito de voar dos pássaros.

Na fundamentação, há também o reconhecimento do chamado viés de confirmação para sustentar a violação do direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo. Como não se costuma encontrar alusões aos vícios cognitivos sendo utilizados como critérios jurídicos, acho que também é um ponto que merece destaque.

Aqui vai a parte essencial da sentença:

Processo nº 0006688-97.2010.4.05.8100 – 3a Vara Federal/CE

Juiz Federal: George Marmelstein

 1 RELATÓRIO

(…)

2 FUNDAMENTAÇÃO

Os seguintes fatos que motivaram a presente ação são incontroversos: (a) o autor é criador de pássaros silvestres; (b) após fiscalização do IBAMA, sete pássaros foram apreendidos e, em seguida, reintroduzidos em ambiente natural; (c) foi aplicada multa em razão das irregularidades apontadas pelo IBAMA.

Diante desses fatos, o autor pede, em termos sintéticos, o reconhecimento da nulidade da fiscalização do IBAMA, com a anulação da multa aplicada e a consequente devolução dos pássaros.

Quanto ao pedido de anulação da multa, a razão está com o autor. De fato, a multa foi aplicada antes mesmo de ter sido dada oportunidade de o autor apresentar a documentação que justificaria a posse das aves, o que representa uma clara violação do devido processo. Em outras palavras: o IBAMA aplicou a multa e apenas depois analisou a documentação. Mesmo que várias inconsistências na documentação tenham sido constatadas, o certo é que a punição somente pode ser aplicada após a apreciação da defesa do eventual infrator.

Além disso, o próprio IBAMA reconheceu que uma boa parte da documentação estava regular, ou seja, seis dos sete pássaros tinham origem legal. As inconsistências apontadas pelo IBAMA em sua contestação somente foram apontadas depois que a multa foi aplicada, indicando que o órgão ambiental primeiro aplicou a sanção para somente depois encontrar a infração. Em outras palavras: o órgão ambiental foi contaminado pelo chamado viés da confirmação, tentando encontrar razões para justificar sua atuação depois que a decisão de condenar já havia sido tomada.

Não é preciso nem mesmo adentrar no mérito sobre a possibilidade de fiscalização in loco realizada pelo IBAMA. Basta reconhecer que houve uma inversão processual em que o direito de defesa foi prejudicado pelo desejo do órgão ambiental de justificar a sua atuação.

Diante disso, o auto de infração deve ser anulado, inclusive com a suspensão da cobrança da multa aplicada.

Por outro lado, o pedido de devolução dos pássaros não pode ser acolhido. Primeiro por uma impossibilidade fática: conforme informações do IBAMA, os pássaros já foram reintroduzidos ao ambiente natural. Segundo por uma impossibilidade jurídica: é questionável o direito do autor de manter a posse dos pássaros.

Quanto a esse segundo ponto, há uma razão formal para negar o pedido. Conforme apontado pelo IBAMA, a documentação apresentada pelo autor possui diversas inconsistências que põem em dúvida a sua regularidade. Além de ter contradição entre os números das anilhas e as espécies de pássaros, também foram apontados problemas no nome dos proprietários, bem como no local de criação desses pássaros.

Além disso, há um aspecto que, embora não seja decisivo para a solução desse caso, é extremamente importante do ponto de vista da proteção dos animais: é bastante questionável se é válida uma licença ambiental que dá o direito a uma pessoa de criar um pássaro em cativeiro, sobretudo em gaiolas.

Os pássaros são seres sencientes que possuem a capacidade de voar. Nessa condição, qualquer medida que retire desses pássaros essa capacidade fundamental deve ser vista, em linha de princípio, como uma medida que submete os animais a crueldade e, nessa condição, viola o artigo 225, §1o, inc. VII, da Constituição Federal[1].

O Supremo Tribunal Federal tem sistematicamente anulado práticas que submetem os animais a crueldade, tal como ocorreu no julgamento do caso da Farra do Boi[2] e da Briga de Galo[3]. Mais recentemente, no julgamento da ADI 4.983/CE, o Supremo Tribunal Federal, conforme voto do Min. Luís Roberto Barroso, assinalou:

“A Constituição veda expressamente práticas que submetam animais a crueldade. O avanço do processo civilizatório e da ética animal elevou o resguardo dos seres sencientes (i.e. , capazes de sentir dor) contra atos cruéis a um valor constitucional autônomo, a ser tutelado independentemente de haver consequências para o meio – ambiente, para a função ecológica da fauna ou para a preservação das espécies” (STF, ADI 4.983/CE, voto do min. Luís Roberto Barroso).

Com relação à criação de pássaros em gaiolas, embora não exista nenhuma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a matéria não é nova na jurisprudência global. De fato, no Caso “People For Animals vs Md Mohazzim & Anr“, a Alta Corte de Delhi, na Índia, reconheceu expressamente que os pássaros possuem o direito de serem livres e que o seu aprisionamento em gaiolas viola esse direito[4].

Veja-se que, no presente caso, há várias outras razões, além do direito dos pássaros à liberdade, para se negar ao autor o seu pedido. De qualquer modo, é importante trazer esse tema ao debate até para que a sociedade possa refletir até que ponto criar pássaros em gaiolas é uma medida civilizatória ou não. Independentemente disso, seja por razões práticas, seja por razões jurídicas, os pássaros apreendidos não podem ser mais devolvidos ao autor.

3 DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DESTA AÇÃO tão somente para anular o autor de infração e a respectiva multa lavrada contra o autor. Quanto ao pedido de devolução dos pássaros, JULGO O PEDIDO IMPROCEDENTE.

O IBAMA arcará com as custas processuais e com os honorários de sucumbência, que arbitro em 15% sobre o valor atribuído à causa.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Fortaleza-CE, 24 de outubro de 2017

GEORGE MARMELSTEIN LIMA- Juiz Federal da 3ª Vara

[1] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

[2]A ementa do acórdão é a seguinte: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inc. VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF, RE 153.541-1-SC, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio).” Veja-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio, relator para o acórdão, que sintetiza o argumento vencedor: “é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada ‘farra do boi’, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. Não vejo como chegar-se à posição intermediária. A distorção alcançou tal ponto que somente uma medida que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal ensanguentado e cortado invadindo uma residência e provocando ferimento em quem se encontrava no interior. Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal”.

[3]“CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO: CRUELDADE. ‘BRIGA DE GALOS’. I. – A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre ‘galos combatentes’, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: C.F., art. 225, § 1o, VII. II. – Cautelar deferida, suspendendo-se a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro.” (STF, ADI no 1.856/MC, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/9/2000).

[4] Eis, no original, o trecho relevante do julgamento: “after hearing both sides, this Court is of the view that running the trade of birds is in violation of the rights of the birds. They deserve sympathy. Nobody is caring as to whether they have been inflicting cruelty or not despite of settled law that birds have a fundamental right to fly and cannot be caged and will have to be set free in the sky. Actually, they are meant for the same. But on the other hand, they are exported illegally in foreign countries without availability of proper food, water, medical aid and other basic amenities required as per law. Birds have fundamental rights including the right to live with dignity and they cannot be subjected to cruelty by anyone including claim made by the respondent. Therefore, I am clear in mind that all the birds have fundamental rights to fly in the sky and all human beings have no right to keep them in small cages for the purposes of their business or otherwise” (Disponível on-line: http://tinyurl.com/y8l97aox).

Liberação do Uso de Maconha e Efeito Backlash

maconha

Na semana passada, escrevi sobre o efeito backlash das decisões judiciais, conceituando esse fenômeno como sendo uma reação política (geralmente, conservadora) ao ativismo judicial (geralmente, liberal). Na ocasião, mencionei que o processo costuma se desenvolver do seguinte modo: (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.

Embora, no texto, eu não tenha mencionado o debate sobre a legalização do uso da maconha, proferi duas palestra neste mês sobre o assunto, em que citei expressamente o risco de um efeito backlash à provável decisão do STF a favor da não-criminalização do porte de droga para uso próprio. Quem tem um mínimo de noção do que acontece no parlamento sabe que a chamada “Bancada da Bala” tem uma grande força política e, provavelmente, essa força política tenderá a aumentar caso haja a liberação judicial do uso de drogas. Nessa matéria, a sociedade ainda tem um perfil conservador e pode ser facilmente seduzida pelo discurso “da lei e da ordem”. De qualquer modo, o debate ainda está no campo das especulações, pois nem o STF decidiu definitivamente a questão, nem se sabe qual será o desdobramento de uma possível decisão liberal.

O certo é que, em recente entrevista, o ministro Luís Roberto Barroso mencionou explicitamente o efeito “backlash” como um dos fatores que influenciou sua decisão de liberar apenas o uso da maconha e não de todas as demais drogas. Para ele, seria preciso ser mais cauteloso nessa matéria, tanto para “conquistar a maioria do tribunal” quanto para evitar “o risco de haver uma reação da sociedade contra a decisão, o que os americanos chamam de backlash“. Em seguida, defendeu: “a minha ideia de não descriminalizar tudo não é uma posição conservadora. É uma posição de quem quer produzir um avanço consistente”. (Ver a entrevista aqui)

A confissão do Min. Luís Roberto Barroso certamente pode suscitar muitas discussões acadêmicas interessantes. Por exemplo, é de se perguntar se é legítimo que razões de natureza estratégica (como “conquistar a maioria” ou “evitar o backlash”) sejam incorporadas às decisões judiciais (implícita ou explicitamente). Em segundo lugar, é de se perguntar se a atuação do STF como catalisador da agenda política, visando produzir um “avanço consistente”, é ou não constitucionalmente adequada e socialmente desejável. São duas questões difíceis de responder e prefiro deixar em aberto o debate. O que não posso deixar de reconhecer é que, goste-se ou não, o Min. Luís Roberto Barroso, como esperado, tem elevado o nível do debate para um plano que dá gosto de ver.

PS – Agradeço ao amigo Rodrigo Uchôa, por haver me alertado sobre a entrevista do Ministro Luís Roberto Barroso.

Liberdade contra a Lei

O propósito deste post é analisar uma possível evolução no conceito de liberdade. Indo direto ao ponto: defenderei que a liberdade deixou de ser um direito cujo exercício estaria condicionado ao respeito à lei para se transformar em um limite jurídico ao próprio legislador. Se antes um comportamento contrário à lei era visto como um abuso da liberdade, hoje, em determinadas situações, a desobediência à lei pode ser considerada juridicamente legítima, desde que se reconheça que o legislador interferiu arbitrariamente em uma esfera pessoal protegida pela liberdade e, portanto, imune ao controle estatal. Para compreender essa mudança de sentido da liberdade conforme à lei para a lei conforme à liberdade, e as consequências de tal (r)evolução, é preciso aprofundar um pouco mais…

A ideia de que o ser humano deve ser o autor da própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo é recente. Foram os pensadores liberais da modernidade, especialmente Locke e Kant, que desenvolveram com mais profundidade essa concepção de liberdade fundada na autonomia pessoal. Antes disso, a concepção de liberdade que se tinha era aquela que Benjamin Constant designou de “liberdade dos antigos”, que nada mais era do que a liberdade de participação na vida pública. O cidadão da Antiguidade era livre para deliberar sobre a decretação de uma guerra, mas não era livre para escolher sua religião, nem mesmo para cuidar do seu filho. Quase todos os aspectos da vida privada – da família ao lazer, da propriedade ao trabalho, da religião ao comércio – eram de algum modo controlados pela polis, como bem demonstrou Fustel de Coulanges em seu indispensável A Cidade Antiga.

A passagem da “liberdade dos antigos” para a “liberdade dos modernos” envolve o amadurecimento da ideia de laicidade do estado. De fato, quando os papéis do estado e da religião sobrepunham-se, pouco restava ao indivíduo em termos de autonomia. O estado, através da legislação, institucionalizava abertamente a moral religiosa, utilizando a força das instituições para impor um padrão moral uniforme para toda a sociedade. A pessoa era obrigada a renunciar as suas convicções quando esta se chocava com os valores oficialmente impostos. A derrocada do álibi teológico que dava suporte ao estado, justificando as mais arbitrárias interferências estatais na vida privada, possibilitou a valorização da liberdade no sentido moderno, influenciada, no campo teórico, pela sublimação da autonomia como parte integrante da dignidade humana. Em palavras menos rebuscadas: o estado perdeu grande parte de sua legitimidade para agir como um sacerdote moral da sociedade, proporcionando a abertura necessária para que o indivíduo começasse a assumir a condição de sujeito ético responsável por suas escolhas e ações.

Mas os pensadores liberais modernos, mesmo exaltando a autonomia pessoal e reconhecendo a íntima conexão entre o poder de autodeterminação individual e a dignidade do ser humano, não foram capazes de desenvolver uma fórmula institucional apta a garantir efetivamente a proteção da liberdade individual. No fundo, a liberdade era sempre submetida à obediência à lei, de modo que o ser humano “livre” era obrigado a respeitar incondicionalmente as leis aprovadas pelo “corpo do povo”. As primeiras declarações de direitos, ao incorporarem a noção de liberdade como direito natural, quase sempre submetiam o exercício do direito ao respeito à lei. A técnica da reserva legal (“o direito X será exercido nos termos da lei”) tornou-se o padrão dessas primeiras declarações de direito. Desse modo, a liberdade não tinha a força de limitar verdadeiramente o legislador. Na verdade, o legislador era “livre” para limitar a liberdade como bem lhe aprouvesse. O velho princípio de que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei” é a consagração dessa ideia. No fundo, o que esse princípio estabelece é apenas um obstáculo formal à restrição da liberdade, exigindo que as obrigações involuntárias decorram de lei, mas sem impor nenhum empecilho forte ao legislador no que concerne ao conteúdo da legislação aprovada. Um dos poucos pensadores modernos a reconhecer que a tirania do legislador deveria ser combatida foi Locke. Porém, seu modelo tinha pouca valia prática, pois se baseava num direito de resistência do indivíduo oprimido contra a força do estado, sendo notório que a assimetria de poder torna inócua a resistência individual. Além disso, ao fim e ao cabo, quem tinha a última palavra para arbitrar os conflitos entre o indivíduo e o estado era o corpo do povo, guiado pela vontade da maioria, cujo potencial opressivo é tão grande quanto o do próprio estado. Vale lembrar que, em Locke, ao legislador é conferido o status de “poder supremo”.

Um passo influente para mudar o conceito moderno de liberdade foi dado por John Stuart Mill que, no seu On Liberty (1859), desenvolveu uma ideia de liberdade como princípio de legitimação estatal fundamentado para além da lei. Para Mill, a única justificativa capaz de legitimar a restrição da liberdade seria para evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros. Tem-se aí o chamado princípio do dano, que traduz um critério de intervenção estatal na liberdade relativamente simples, mas poderoso. Por essa fórmula, qualquer restrição da liberdade, inclusive através da lei, que não tenha por escopo evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros seria ilegítima. O potencial revolucionário dessa ideia é notório. Basta imaginar, por exemplo, a regulamentação dos costumes presente no código penal, o tratamento jurídico da família constante no código civil, a proibição da eutanásia, da poligamia, da homossexualidade e assim por diante. Basicamente, uma conduta sem vítimas efetivas ou potenciais, isto é, que não interfira negativamente na esfera alheia, não poderia ser objeto de censura jurídica.

Embora o princípio do dano possa ser alvo fácil de diversas objeções (pense, por exemplo, na proibição de comércio de órgãos humanos ou na obrigação do uso de cinto de segurança), não há dúvida de que um grande passo foi dado para superar a velha noção de que o exercício da liberdade só é legítimo se for conforme à lei. Com Mill, é a própria lei que poderá deixar de ser legítima se não respeitar a liberdade.

A concepção de liberdade como limite ao legislador demorou bastante para ser incorporada ao pensamento jurídico. Na verdade, até hoje, ainda não se sabe com precisão até onde vai o poder de negar validade a uma lei que viole arbitrariamente a liberdade, até porque toda lei, em essência, restringe o exercício da liberdade. O certo é que o avanço do constitucionalismo, da jurisdição constitucional, dos direitos fundamentais criou um ambiente propício ao desenvolvimento dessa nova concepção de liberdade como limite ao legislador. Um dos marcos mais relevantes dessa concepção foi estabelecido no caso Griswold v. Connectutti, em 1965, pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Naquele julgamento, uma lei estadual que proibia a compra e venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional por violar a autonomia privada, vale dizer, o direito dos casais de decidir sobre relações sexuais e reprodução. Depois disso, o mesmo princípio já foi invocado para anular leis que criminalizavam a sodomia, ou seja, a prática de relações sexuais entre adultos (caso Lawrence vs. Texas, de 2004), a proibição da eutanásia passiva (caso Cruzan v. Director, MDH, de 1990) e até mesmo a liberdade de escolha da mulher de interromper a gravidez nas primeiras semanas de gestação (caso Roe vs. Wade, de 1972). Em todos esses casos, o parâmetro de anulação da lei foi idêntico: a autonomia privada como limite ao legislador.

Falar em limite ao legislador é reconhecer um parâmetro de validade jurídica superior à lei. O poder político, nesse sentido, não teria legitimidade para interferir em uma determinada zona de privacidade pessoal, ainda não bem definida, mas claramente protegida contra os arroubos do legislador. Na sua influente teoria da justiça, John Rawls trouxe essa ideia para dentro do primeiro princípio de justiça, estabelecendo que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as outras. Assim, a restrição da liberdade somente seria justificada como forma de garantir o exercício simultâneo da liberdade pelos diversos membros da sociedade. Usando uma linguagem diferente, mas com propósitos semelhantes, Ronald Dworkin, no seu último livro “Justice for Hedgehogs”, defende a existência de um direito fundamental à independência ética, consistente em um direito da pessoa de tomar decisões refletidas, no autêntico exercício de sua autonomia. Assim, ninguém teria o direito de usurpar do sujeito ético a sua capacidade de ser o autor de própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo. Esse direito geraria para a pessoa um poder institucional de resistência, ou seja, um poder de questionar a validade jurídica da lei perante os órgãos responsáveis pelo controle de constitucionalidade.

Certamente, ainda falta muito para que alcancemos um nível de maturidade institucional em que a liberdade – como proteção da autêntica autonomia – seja reconhecida como um verdadeiro limite ao poder estatal. A possibilidade de discutir, perante órgãos do próprio estado, a validade jurídica de uma lei contaria à liberdade, embora constitua um avanço, certamente ainda é um mecanismo demasiadamente frágil de emancipação do sujeito ético contra o estado. De qualquer modo, é notória a evolução que tem ocorrido. Claramente mudamos o sentido da liberdade. Se, antes, a liberdade era conformada pela legalidade, hoje, pelo contrário, é a legalidade que está cada vez mais sendo conformada pela liberdade.

Liberal, pero no mucho

O pensamento liberal – inspirado em autores clássicos como Bastiat, Hayek, Friedman, Mises etc. – nunca foi muito valorizado no Brasil. Pelo menos nas faculdades de direito, quando se fala em liberalismo, quase sempre adota-se um tom pejorativo. Se alguém maquinou algum tipo de marketing ideológico para afastar o debate liberal das salas de aula, certamente teve grande sucesso, pois é como se tais autores nem existissem, apesar de terem escrito muito material que deveria interessar aos juristas.

Nesse contexto, o reaparecimento da influência liberal entre alguns estudiosos do direito é um fenômeno que impressiona, pois não é normal presenciar, no Brasil, pessoas que gostam de fugir do senso comum e dos mantras ensinados nas cartilhas oficiais. Nesse ponto, é até salutar assistir a esse crescimento do pensamento liberal, mesmo porque o liberalismo exalta alguns valores que faltam em muitos brasileiros e que precisam mesmo ser enaltecidos, como a competência, o empreendedorismo, a eficiência etc. Assim, apesar de algumas importantes premissas do liberalismo econômico estarem em descrédito no resto do mundo por conta da crise financeira, há, sem dúvida, muitos pontos defendidos pelos pensadores liberais que fazem algum sentido, sendo um erro demonizá-los sem se dar ao trabalho sequer de conhecê-los.

Por outro lado, há um determinado tipo de movimento liberal que tem surgido com um viés ideológico que assusta pelo radicalismo. É como se estivesse ocorrendo uma luta do bem contra o mal em que todos os que não aceitam o liberalismo são considerados inimigos (ou estúpidos). Alguns “novos” liberais parecem ser mais marxistas do que os próprios seguidores de Marx, pois não conseguiram se desapegar das velhas estratégias de combate alicerçadas na luta de classes. E o pior é que a roupagem do discurso ainda é a mesma do século XIX, onde os “inimigos” eram comedores de criancinhas, que não acreditavam em Deus e queriam tomar a propriedade privada através da força. Nesse ponto, é difícil levar esse novo liberalismo a sério, pois essa atitude de intolerância é manifestamente incompatível com todos os fundamentos que o inspiraram. (J. S. Mill deve se mexer no túmulo toda vez que o liberalismo é invocado para defender algum radicalismo intolerante).

Mas não é minha pretensão criticar qualquer estratégia de doutrinação ou de convencimento, pois esse modelo de debate, infelizmente, faz parte do jogo intelectual que se costuma jogar no Brasil, sobretudo depois do surgimento das redes sociais, que nivelaram as discussões por baixo. E convenhamos que o discurso anti-liberal faz uma campanha até mais suja de difamação, de forma que a reação dos novos defensores do liberalismo, ainda que incoerente com as suas premissas, não é tão desproporcional assim.

Mas deixemos de lado essa questão de saber quem é mais ou menos desonesto intelectualmente, pois não é esse o ponto que desejo enfatizar. O objetivo principal deste post é tentar demonstrar que o liberalismo, para ser coerente consigo próprio, tem que abandonar o seu viés elitista, onde são valorizadas apenas as liberdades “dos ricos”, e as liberdades “dos pobres” são desconsideradas por completo ou até mesmo vistas como uma ameaça. Essa crítica certamente não é nova, pois, já no século XIX, acusava-se o liberalismo da época de proteger apenas a liberdade “burguesa”. Quando os trabalhadores tentavam exercer a sua liberdade de associação, de greve ou mesmo de expressão, a força repressora do estado agia sem nenhum constrangimento de estar ferindo as bases do “laissez-faire”. Raros eram os liberais que defendiam os interesses de grupos oprimidos (e aqui mais uma vez invoca-se Stuart Mill, que se notabilizou pela defesa dos direitos das mulheres). Em geral, os liberais estavam defendendo a liberdade de quem tinha poder econômico ou social.

Uma parcela considerável dos defensores do liberalismo contemporâneo também continua sendo marcado por essa perspectiva torta, onde a liberdade dos ricos é vista como um direito sagrado, e a liberdade dos pobres é vista como uma ameaça. Invoca-se a liberdade para defender o direito dos ricos de tomarem seus uísques 18 anos livres de impostos, mas não a liberdade de manifestantes pobres irem às ruas para reclamarem da violência policial. A liberdade de ir e vir é lembrada para defender o direito de voar até Miami para comprar o novo PlayStation, mas não para defender o direito de imigração ou de refúgio de estrangeiros vindos de países pobres que buscam oportunidade de trabalho no Brasil. Fala-se com deslumbramento em liberdade de escolha, em livre mercado, em ambição como virtude, mas as urticárias começam a aparecer só de ouvir falar no tal do “rolezinho”, que é um fenômeno tão próprio do tipo de visão de mundo que eles apregoam (a esse respeito, vale ler esse interessante artigo de Eliane Brum).

Percebe-se que esse tipo de liberalismo (que não é o único tipo de liberalismo) não consegue se desvincular completamente do seu irmão mais velho, o conservadorismo, que, nesse aspecto, é muito mais coerente, pois não dissimula o discurso, nem doura a pílula. O conservadorismo assume suas preferências elitistas e não esconde seus preconceitos, ao contrário do liberalismo, que (talvez por conta de suas ambições políticas) pretende transmitir um discurso mais palatável para um grupo maior. Assim, as palavras de ordem do discurso liberal são, no abstrato, muito agradáveis de ouvir: liberdade, mérito, eficiência, competência, diminuição da carga tributária, contra o autoritarismo, contra a burocracia etc…. No entanto, quando se analisam os exemplos concretos utilizados para defender tais valores, o viés elitista aflora notoriamente, pois as críticas raramente se voltam contra alguma medida contrária aos pobres. As ameaças às liberdades são sempre ameaças contra grupos com um certo poder econômico ou social. Nada contra a liberdade dos ricos, até porque usufruo dela, mas não parece ser razoável indignar-se apenas contra a prepotência tributária do fisco e não ter o mesmo sentimento em relação à repressão policial nas favelas, para ficar só com um exemplo.

Assim, para concluir, faço uma defesa aberta da liberdade, a partir daquilo que entendo que seja o autêntico espírito liberal. Sejamos sim liberais no sentido de valorizar a liberdade. Sejamos críticos do estado, inclusive do assistencialismo sem resultados positivos. Sejamos também defensores da iniciativa privada, do empreendedorismo, do mérito e da eficiência. Saibamos reconhecer as vantagens de um sistema de mercado. Abominemos a incompetência, o parasitismo social, a burocracia e o intervencionismo burro. Desconfiemos das autoridades e de toda forma de paternalismo. Valorizemos as capacidades individuais, o amor próprio e o direito de cada um ser dono do próprio destino e planejador da própria felicidade. Mas sejamos coerentes. Liberdade é uma via de mão dupla: o que vale para um, vale para o outro. Liberdade não é privilégio de ricos, nem se reduz ao mero absenteísmo estatal. Liberdade não é apenas a liberdade de escolha, mas a capacidade autêntica do exercício da autonomia. E tal capacidade deve ser respeitada em relação a todos (e a todas, para ser politicamente chato correto). Mas, acima de tudo, como corolário máximo da defesa da liberdade, sejamos compreensivos em relação às diferenças de pensamento. Não há sentido em ser tolerante e, ao mesmo tempo, não escutar o que o outro tem a dizer. Aliás, sejamos não apenas tolerantes, mas capazes de reconhecer que outras perspectivas podem enriquecer nossa própria visão de mundo. Sejamos também, por isso mesmo, menos partidários, pois defender a liberdade é ser antidogmático por natureza.

Manifestações Pacíficas e o Prévio Aviso à Autoridade Competente

 malfada

A recente Lei Estadual 6.538/2013, do Rio de Janeiro, aprovada no afã de dar algum respaldo legal à repressão estatal contra as manifestações populares, cerceou a liberdade de reunião de várias formas. Seu objetivo principal foi proibir o uso de máscaras, ponto sobre o qual tratarei em outra oportunidade. Porém, há outro componente autoritário em seu conteúdo que pode passar despercebido, mas que reputo gravíssimo: a exigência do aviso prévio como condição indispensável para o reconhecimento do direito de manifestação. Em outras palavras: a lei autoriza a repressão policial às manifestações pacíficas cuja realização não tenha sido previamente comunicada à autoridade competente.

É provável que muitos considerem que tal exigência é juridicamente válida, já que faz parte do próprio texto constitucional (artigo 5º, XVI, da CF/88 – “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”). É preciso, porém, conhecer a real dimensão do dever de aviso prévio dentro do sistema de proteção das manifestações.

As melhores práticas em matéria de liberdade de reunião pacífica recomendam que o dever de aviso prévio seja considerado um mero requisito formal que não afeta a garantia do direito propriamente dito, não podendo funcionar como um limite material capaz de impedir o exercício do direito. Vale dizer: a função do aviso prévio é proporcionar ao estado o fornecimento dos meios necessários para que a manifestação ocorra sem maiores transtornos para os manifestantes e para a população de um modo geral. Assim, o aviso prévio daria aos órgãos do estado a oportunidade de melhor planejar e organizar o trânsito, providenciar a iluminação e limpeza do local, garantir o aparato de segurança e assim por diante. Porém, tratando-se de manifestações espontâneas, realizadas em um contexto inesperado e imprevisível, o fato de não ter havido o aviso prévio não tem o condão de afetar o direito fundamental de reunião pacífica. Ou seja, a mera ausência de prévio aviso não justifica, de modo algum, a dissolução compulsória de uma reunião pacífica. Dito de modo mais enfático: “uma infração ao dever de anúncio prévio não leva automaticamente à proibição ou dissolução de um evento“, de modo que a autoridade pública somente pode intervir na reunião pacífica quando estiverem presentes outros pressupostos para uma intervenção (vide abaixo).

Um dos precedentes mais relevantes sobre essa questão foi o caso Brokdorf, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão. Dada a relevância do tema, faço questão de reproduzir abaixo os principais trechos da decisão, tal como apresentado pelo amigo Leonardo Martins, no seu livro sobre os 50 Anos do Tribunal Constitucional Federal alemão:

“BVERFGE 69, 315 (BROKDORF)

Reclamação Constitucional contra decisão judicial 14/05/1985

MATÉRIA:

No início de 1981(Cf., em relação a esse parágrafo, a síntese de GRIMM / KIRCHHOF, op. cit., Vol. 2, p. 195), muitas organizações não-governamentais convocaram a população a protestar contra a construção da usina nuclear de Brokdorf. Antes mesmo do anúncio da manifestação, a secretaria estadual competente proibiu a realização da reunião por medida administrativa geral sobre um território de aproximadamente 210 quilômetros quadrados, ordenando a imediata execução da medida. A medida foi fundamentada a partir de reconhecimentos policiais, segundo os quais entre os esperados 50.000 manifestantes se encontraria um número considerável de pessoas dispostas a realizar atos de violência, pois que queriam ocupar violentamente e danificar a construção, além de estarem predispostas a outras práticas violentas. Depois do aviso oficial dos organizadores, a secretaria estadual reiterou a medida proibitiva.

Alguns dos organizadores impugnaram, na Justiça Administrativa, a medida administrativa geral, requerendo o efeito suspensivo da proibição. Esse pedido foi indeferido, finalmente, pelo Superior Tribunal Administrativo de Lüneburg. Como fundamento, o tribunal valeu-se da intempestividade do aviso prévio da reunião à autoridade competente e do prognóstico, segundo o qual atos de violência eram esperados. A necessária ponderação entre os interesses levaria, assim, o Superior Tribunal Administrativo ao indeferimento do pedido de medida cautelar do reclamante.

As Reclamações Constitucionais ajuizadas contra a imediata execução da medida administrativa geral e contra as decisões do Superior Tribunal Administrativo, que alegavam violação do Art. 8 I GG, foram julgadas parcialmente procedentes.

1. O direito do cidadão de participar ativamente do processo de formação da opinião e da vontade política pelo exercício da liberdade de reunião faz parte dos elementos funcionais indispensáveis de uma comunidade democrática. Esse significado básico do direito de liberdade deve ser observado pelo Legislador na criação de normas cerceadoras dos direitos fundamentais, bem como pela Administração e pelo Judiciário quando da interpretação e aplicação dessas normas.

2. As regras da lei de reunião (Versammlungsgesetz) sobre o dever de aviso prévio da reunião em locais abertos ao público e sobre as condições para sua dissolução ou proibição (§§ 14, 15) cumprem as exigências constitucionais, contanto que, quando da sua interpretação e aplicação, seja observado:

a) que o dever de aviso prévio não interfira em demonstrações espontâneas e a infração a tal dever não autorize automaticamente a dissolução ou a proibição,

b) que a dissolução e proibição possam ocorrer apenas com fim de proteção de bens jurídicos com o mesmo valor, sob a estrita observância do princípio da proporcionalidade e apenas no caso de uma ameaça imediata a tais bens jurídicos, ameaça esta que possa ser deduzida de circunstâncias [imediatamente] reconhecíveis.

3. Os órgãos estatais devem agir, em face das reuniões sem hostilidade, segundo o modelo de grandes manifestações pacíficas, não retrocedendo nas suas experiências bem sucedidas sem motivo suficiente. Quanto mais os organizadores de uma reunião, de seu lado, estiverem predispostos à tomada de medidas unilaterais geradoras de confiança ou a uma cooperação relativa à manifestação, mais alta será a barreira para a intervenção da Administração pública por motivo de ameaça à segurança pública.

4. Em não se podendo recear que uma manifestação como um todo tome contornos não-pacíficos ou que seu organizador e seus auxiliares aspirem a esse estado de coisas, ou, ainda, que os aceitem, mantém-se para os participantes pacíficos a proteção da liberdade de reunião a todo cidadão garantida constitucionalmente, mesmo quando se espera ato de violência individual ou de uma minoria. Nesse caso, uma proibição preventiva de toda uma manifestação pressupõe o atendimento a estritas exigências sobre o prognóstico do perigo, bem como sobre o prévio esgotamento de qualquer meio utilizável que proporcione aos participantes pacíficos a realização do direito fundamental.

5. Já no julgamento do processo cautelar, os tribunais administrativos devem levar em consideração por meio de um exame mais cuidadoso que a imediata execução da proibição de manifestação leva, via de regra, ao impedimento definitivo da realização do direito fundamental.

Decisão (Beschluss) do Primeiro Senado de 14 de maio de 1985 – 1 BvR 233, 341/81

(…)

RAZÕES

A.

As Reclamações Constitucionais relacionam-se à proibição das manifestações que foram planejadas contra a construção da estação nuclear de Brockdorf. Seu objeto essencial é a execução imediata de uma proibição geral das manifestações, a qual fora confirmada pelo Superior Tribunal Administrativo, proibição que fora a Assembléia Legislativa (Landrat) quem havia emitido preventivamente em forma de uma medida geral.

I.

1. Como base constitucional para a garantia da liberdade de manifestação, tomase em consideração, ao lado da liberdade de expressão do pensamento, sobretudo o direito fundamental da liberdade de reunião:

“Art. 8 (1) Todos os alemães têm o direito de reunir-se pacificamente e sem armas, sem a necessidade de anúncio prévio ou autorização.

(2) Para as reuniões ao ar livre, esse direito pode ser limitado por lei [por lei em sentido formal] ou com base na lei [por lei em sentido material].”

A Lei de Reuniões e Passeatas, de 24 de julho de 1953, na nova redação de 15 de novembro de 1978 (BGBl. I, p. 1789), contém uma disciplina legal mais específica. No § 1, ela reforça o direito de todos, de organizar reuniões e passeatas, bem como de participar dessas reuniões. No seu Título III, ela contém as seguintes prescrições a respeito de “reuniões públicas ao ar livre e passeatas”:

“§ 14 (1) Quem tiver a intenção de organizar uma reunião pública ao ar livre ou uma passeata, deve, no máximo com 48 horas de antecedência em relação a sua publicação, anunciá-lo à autoridade competente, sob a indicação do objeto da reunião ou da passeata.

(2) No anúncio, deve ser indicada que pessoa é responsável pela reunião ou passeata.

§ 15 (1) A autoridade competente pode proibir a reunião ou passeata ou fazer com que elas dependam de certas condições, se, conforme circunstâncias reconhecíveis ao tempo da edição da medida [administrativa], a segurança pública ou a ordem estiverem diretamente ameaçadas com a realização da reunião ou passeata.

(2) Ela pode dissolver uma reunião ou passeata quando não tiverem sido anunciadas, quando elas se afastarem das indicações do anúncio ou contrariarem as condições impostas, ou quando estiverem presentes os pressupostos de uma proibição, conforme o parágrafo 1º.

(3) Deve-se dissolver uma reunião proibida.”

(…)

2. (…).

II. IV. (…)

B.

(…)

C.

(…).

I.

O parâmetro para o exame de constitucionalidade é o direito fundamental da liberdade de reunião (Art. 8 GG).

1. As medidas impugnadas no processo originário, bem como as prescrições legais que as fundamentaram, cercearam a liberdade do reclamante de realizar as manifestações planejadas. Essa liberdade de reuniões e passeatas – diferentemente de meras aglomerações ou entretenimentos públicos – é garantida no Art. 8 GG, como expressão de desenvolvimento social embasado na comunicação. Essa proteção não se limita às reuniões nas quais se argumenta e se discute; ao contrário, compreende variadas formas de comportamento coletivo, estendendo-se a formas de expressão não-verbal. De tal proteção fazem parte também reuniões com caráter de atos públicos, nos quais a liberdade de reunião é utilizada com o propósito de divulgar opinião de maneira sensacionalista e contundente. Uma vez que faltam no processo originário indícios de que a expressão de determinados conteúdos de opinião – por meio, por exemplo, de palavras de ordem, discursos, canções ou faixas – tivessem sido proibidas, não há necessidade de nenhum exame para se verificar de que maneira também o direito fundamental à liberdade de expressão pudesse ser utilizado como parâmetro de exame complementar ao Art. 8 GG.

2. O Art. 8 GG, como direito fundamental que beneficia também e principalmente minorias ideológicas, garante aos titulares do direito fundamental o direito de determinar autonomamente o lugar, o momento, a maneira e o conteúdo da reunião, bem como proíbe o poder coercitivo estatal de obrigar [tanto] à participação em uma reunião pública [quanto] à abstenção da mesma. Já nesse sentido, em um Estado livre, é devida uma especial primazia ao direito fundamental [em pauta]. O direito de reunir-se com os outros, ilimitadamente e sem necessidade de autorização, sempre valeu como sinal da liberdade, independência e maturidade do cidadão consciente.

Ao mesmo tempo, no entanto, em sua aplicabilidade para reuniões políticas, a garantia de liberdade incorpora uma decisão fundamental, que, em seu significado, supera a proteção contra a intervenção estatal no livre desenvolvimento da personalidade. No círculo jurídico anglo-americano, a liberdade de reunião enraizada no pensamento jus-naturalista foi desde cedo entendida como manifestação da soberania popular e, portanto, como um direito democrático do cidadão de participação ativa no processo político. (…).

(…).

a) Na jurisprudência de Tribunal Constitucional, que até agora ainda não se ocupou com a liberdade de reunião, a liberdade de expressão do pensamento é tida há muito como um dos elementos funcionais indispensáveis e basilares de uma coletividade democrática. Ela vale como manifestação imediata da personalidade humana e como um dos mais distintos direitos humanos, constituinte para uma ordem estatal democrática de liberdade, porquanto possibilita o constante debate intelectual e o conflito das opiniões como elemento vital dessa forma estatal (cf. BVerfGE 7; 198 [208]; 12, 113 [125]; 20, 56 [97]; 42, 163 [169]). Se a liberdade de reunião é entendida como liberdade de anúncio coletivo de opinião, nada fundamentalmente diferente [do que vale para a liberdade de expressão do pensamento] pode valer para ela. Contra isso não se pode argumentar que, especialmente nas manifestações coletivas, o momento argumentativo que, via de regra, caracteriza o exercício da liberdade de expressão do pensamento, regrida ao segundo plano. À medida que o manifestante anuncia sua opinião por presença física, em total publicidade e sem qualquer intermediação dos meios de comunicação social [mídia], ele também desenvolve sua personalidade de forma imediata. Em sua formulação ideal típica, as manifestações coletivas representam o modo corporal e coletivo de tornar visíveis as convicções, de forma que os participantes vivenciem, de um lado, na comunhão com os outros uma certificação desta convicção. De outro lado, para que testemunhem para fora da manifestação – já por meio da mera presença, do modo da apresentação, do compartilhamento da experiência recíproca ou da escolha do local – no sentido literal da expressão, uma tomada de posição e o seu ponto de vista. O risco de tais anúncios de opinião poderem ser manipulados de forma demagógica e serem “emocionalizados” de uma maneira questionável é tão pouco decisivo para a avaliação fundamental no âmbito da liberdade de reunião quanto o é no âmbito da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão do pensamento.

b) O significado fundamental da liberdade de reunião pode ser especialmente reconhecido quando se atenta para a peculiaridade do processo de formação da vontade na coletividade democrática. A ordem democrática de liberdade, conforme desenvolvido na decisão KPD (KPD-Urteil), parte do pressuposto de que as historicamente desenvolvidas e ora existentes relações estatais e sociais seriam passíveis e carentes de melhoria. Destarte, determinar-se-ia uma missão infinita, a qual deveria ser constantemente resolvida por uma sempre renovada decisão política (BVerfGE 5, 85 [197]). O caminho para a formação dessas decisões políticas é descrito como um processo de tentativa e erro [“trial and error”], que, por meio de constantes disputas intelectuais, do controle recíproco e da crítica, conferiria a melhor defesa de uma linha política (relativamente) correta, como resultante e compensação entre as forças políticas atuantes no Estado (op. cit. [135]; cf. também BVerfGE 12, 113 [125]). A decisão posterior sobre o financiamento dos partidos (Urteil zur Parteienfinanzierung) conecta-se a tais ponderações e salienta que a formação da vontade pública deveria partir do povo para os órgãos estatais, e não o contrário. O direito do cidadão de participação na formação política da vontade pública exterioriza-se não só pelo voto, quando da eleição, mas também na tomada de influência no processo permanente da formação política da opinião pública, a qual se deveria realizar, em um Estado democrático, de maneira aberta, livre, desregulamentada e, em princípio, “livre do Estado” (BVerfGE 20, 56 [98f ]).

Os cidadãos estão envolvidos nesse processo em diferentes medidas. Grandes associações, financiadores poderosos ou meios de comunicação em massa podem exercer influência considerável, enquanto o cidadão vivencia isso mais como um impotente. Em uma sociedade em que o acesso direto aos meios de comunicação em massa [mídia] e a chance de se expressar por meio deles são limitados a poucos, resta ao indivíduo, em geral, ao lado de sua cooperação organizada em partidos e associações, apenas uma influência coletiva mediante a utilização da liberdade de reunião para manifestações coletivas. O exercício ostensivo do direito de liberdade não é só eficaz contra o pensamento da impotência política e as tendências perigosas do esgotamento do Estado. Ele se dá também no bem entendido interesse coletivo, porque uma resultante relativamente correta somente pode ser criada no paralelogramo de forças da formação política da vontade pública se todos os vetores forem desenvolvidos com certa intensidade.

Outrossim, as reuniões são corretamente caracterizadas na literatura jurídica especializada [doutrina] como elemento essencial da abertura democrática: “Elas oferecem … a possibilidade da tomada de influência pública no processo político, de desenvolvimento de iniciativas pluralísticas e de alternativas, ou também de crítica e protesto …; elas contêm um quinhão de democracia direta, originalmente indomável, que serve para proteger a operação política contra a estagnação da rotina” (Hesse, op. cit., p. 157; neste mesmo sentido: Blumenwitz, op. cit. [132 s.]). Especialmente em democracias com sistema representativo parlamentar e com poucos direitos plebiscitários de participação, a liberdade de reunião tem o significado de um elemento funcional fundamental e indispensável. Aqui vale fundamentalmente o princípio da maioria – mesmo no caso de decisões com sérias conseqüências para todos e não facilmente reversíveis, após uma alteração do poder. De outro lado, mesmo a influência da maioria do eleitorado entre as eleições é muito limitada; o poder estatal é exercido por meio de órgãos especiais e é administrado através de um aparato burocrático preponderante. Geralmente as decisões encontradas por tais órgãos com base no princípio da maioria ganham em legitimação quanto mais efetivamente for garantida a proteção da minoria; a aceitação dessas decisões vai depender do fato de se saber se a minoria pôde antes ter influência suficiente na formação da opinião e da vontade política (cf. BVerfGE 5, 85 [198 s.]. Um protesto em manifestação pública pode tornar-se especialmente necessário quando os órgãos representativos não reconhecem, não reconhecem corretamente, ou ainda, por consideração a outros interesses, aceitam os possíveis males e desenvolvimentos indesejáveis (cf. também BVerfGE 28, 191 [202]). A literatura jurídica [doutrina] descreve corretamente a função estabilizante da liberdade de reunião para o sistema representativo, pois ela permitiria que o descontentamento, o aborrecimento e a crítica fossem levantados e trabalhados publicamente, e funcionaria como condição necessária de um sistema político de alerta preventivo, que anunciaria o potencial de perturbação, tornaria visível o déficit de integração e, assim, tornaria possível a correção de curso da política oficial (Blanke/Sterzel, op. cit. [69]).

II.

As prescrições da lei de reunião, significativas para o processo originário [de conhecimento], satisfazem as exigências constitucionais se elas forem interpretadas e aplicadas sob observância do significado fundamental da liberdade de reunião.

1. Apesar de sua alta dignidade, a liberdade de reunião não é garantida sem reservas. O Art. 8 GG garante apenas o direito de “reunir-se pacificamente e sem armas” (cf. sobre isso item III. 3. a) abaixo) e, além disso, coloca esse direito para participantes de reunião a céu aberto sob reserva legal. Com isso, a Constituição atenta para a circunstância de que, em virtude do contato com o mundo exterior, para o exercício da liberdade de reunião sob céu aberto há uma especial necessidade de regulamentação, principalmente de direito de organização e processual, a fim de, de um lado, serem criadas as reais condições para o exercício e, de outro, serem protegidos suficientemente os interesses colidentes de terceiros.

Enquanto a Constituição de Weimar determinou, de maneira expressa, no Art.123, que as reuniões a céu aberto podiam ser “por lei do Reich submetidas à obrigação de anúncio prévio e, em caso de ameaça imediata à segurança pública, proibidas”, a Grundgesetz limita-se com uma reserva simples de lei, aparentemente ilimitada materialmente. Isso não significa, contudo, que a força de validade da garantia desse direito fundamental reste limitado à área que o legislador a ela deixar, em respeito [somente] ao seu conteúdo essencial. Como também o Ministro do Interior corretamente argumentou, vale, pelo contrário, o mesmo que para a liberdade de expressão do pensamento, que, segundo o teor da Constituição, até encontra suas limitações nos limites das leis gerais, mas cujo alcance não pode ser relativizado arbitrariamente por leis materiais comuns (sobre isso fundamentalmente: BVerfGE 7, 198 [207 s.]; cf. também BVerfGE 7, 377 [404]).

Junto de quaisquer regulamentações limitadoras, o legislador deve respeitar as decisões fundamentais constitucionais firmadas no Art. 8 GG; ele pode limitar o exercício da liberdade de reunião somente para a proteção de outros bens jurídicos de mesma importância, sob estrita proteção do princípio da proporcionalidade. Quando a Administração Pública e o Judiciário interpretam e aplicam as leis restritivas do direito fundamental em pauta promulgadas pelo legislador, vale, igualmente, o mesmo que para a interpretação das prescrições sobre a limitação da liberdade de expressão do pensamento (cf. sobre isso BVerfGE 7, 198 [208]; 60, 234 [240]; sobre direito de reunião: BVerwGE 26, 135 [137]). A necessidade de intervenções limitadoras da liberdade no âmbito da liberdade de reunião pode resultar do fato de o manifestante, por meio do exercício de tal liberdade, afetar as posições jurídicas de terceiros. Também no caso dessas intervenções, os órgãos estatais devem interpretar as leis limitadoras dos direitos fundamentais sempre à luz do significado basilar desse direito fundamental no Estado democrático de liberdade e limitar-se, em suas medidas, ao que é necessário para a proteção de bens jurídicos de igual valor. Seriam, então, incompatíveis com tais exigências as medidas da Administração pública que fossem além da aplicação das leis limitadoras de direitos fundamentais e, de alguma forma, dificultassem, de maneira não-razoável, o acesso a uma manifestação coletiva mediante uma dificultação da chegada de carros e por controles preventivos morosos, ou modificassem o seu caráter não-regulamentado e livre do Estado mediante excessivas observações e registros (cf. ainda: BVerfGE 65, 1 [43]).

2. Das prescrições da lei de reunião, que o legislador promulgou por força da reserva legal no Art. 8 II GG, são relevantes, para os processos originários [de conhecimento], apenas o dever de anúncio regulado no § 14 I e os tipos legais da dissolução e proibição contidos no § 15. As prescrições relativas ao direito de reunião sobre o prazo do anúncio e sobre a indicação de um organizador responsável não necessitam de nenhum reexame: Nem a Administração pública, nem o Judiciário fundamentaram suas decisões nessas prescrições.

a) Sob a égide da Constituição de Weimar, o dever de anúncio prévio regulado no § 14 da lei de reunião era manifestamente considerado como uma limitação permitida da liberdade de reunião. Segundo a opinião do Tribunal Administrativo Federal, tal dever limita o direito fundamental, via de regra, só de maneira insignificante (BVerwGE 26, 135 [137 s.]). O Tribunal Federal (cf. BGHSt 23, 46 [58 s.]) e também toda a tese dominante na literatura jurídica, consideram o regulamentação como constitucional. Deve-se concordar com isso, se se observar que o dever de anúncio prévio não intervém sem exceção e que sua infração não autoriza automaticamente a proibição ou dissolução de uma manifestação coletiva.

O dever de anúncio prévio vale apenas para as reuniões a céu aberto, porque elas, em virtude de seus efeitos externos, freqüentemente exigem precauções especiais. As declarações relacionadas com o anúncio prévio devem fornecer as informações necessárias às repartições públicas, a fim de que elas possam ter uma idéia do que, de um lado, deve ser feito para que a realização da reunião transcorra de maneira a menos perturbar as regras de trânsito, e o que é necessário fazer, de outro lado, no interesse de terceiros, bem como no interesse da coletividade, e como esses interesses podem harmonizar-se uns com os outros (cf. BT Drucks. 8/1845, p. 10). Segundo uma visão bastante predominante, o dever de anunciar a manifestação dentro do prazo legal desaparece nas manifestações espontâneas, que se formam instantaneamente a partir de ensejo atual (cf. BVerwGE 26, 135 [138]; BayObLG, NJW 1970, p. 479; Dietell Gintzel, op. cit., nota 23 do § 1 e nota 18 et seq. do § 14 VersG; Herzog, op. cit., Nota 48, 82 e 95 sobre Art. 8 GG; v. Münch, op. cit., nota sobre Art. 8 GG; Hoffmann-Riem, op. cit., nota 47 sobre o Art. 8 GG; Frowein, op. cit. [1085 s.]; Ossenbühl, op. cit., [65 et seq.]; P. Schneider, op. cit., [264 s.]). As manifestações espontâneas gozam da garantia do Art. 8 GG; as prescrições sobre o direito de reunião não são aplicáveis a elas, contanto que o fim perseguido com o evento espontâneo não possa ser atingido com o cumprimento dessas prescrições. Apesar da não-observância de tais prescrições, o reconhecimento dessas manifestações espontâneas pode ser fundamentado no fato de que: (i) o Art. 8 GG, em seu parágrafo primeiro, garante fundamentalmente a liberdade de reunir-se sem anúncio prévio ou autorização; (ii) consoante o parágrafo segundo, para as reuniões a céu aberto, essa liberdade é, em verdade, restringível com fundamento legal; (iii) contudo, tais limitações não podem tornar totalmente ineficaz a garantia do parágrafo primeiro para determinados tipos de eventos; (iv) pelo contrário, essa garantia, sob as condições mencionadas, isenta do dever de anúncio prévio. Essa avaliação das manifestações espontâneas embasa-se no fato de as prescrições regulamentadoras do direito de reunião precisarem ser aplicadas à luz do direito fundamental da liberdade de reunião e, se for o caso, deixarem de ser aplicadas em face dele. O direito fundamental, e não a lei de reunião, garante a permissibilidade de reuniões e passeatas; a lei de reunião prevê apenas limitações, desde que as mesmas sejam necessárias. Neste sentido, deduz-se que uma infração ao dever de anúncio prévio não leva automaticamente à proibição ou dissolução de um evento. De fato, comete um ilícito penal quem realiza uma reunião não anunciada como organizador ou diretor (§ 26 VersG). Mas de resto, a lei de reunião, no § 15 II, determina tão somente que a repartição pública competente “pode” dissolver reuniões a céu aberto e passeatas quando elas não forem anunciadas previamente. O Ministro do Interior considera ainda como sanção possível uma proibição preventiva, quando e contanto que tal proibição represente um meio mais ameno [de menor intensidade] do que a dissolução expressamente prevista na lei. No entanto, dissolução e proibição não são, de nenhuma maneira, dever jurídico da repartição pública competente, mas, pelo contrário, uma autorização da qual a autoridade pública somente pode fazer uso, em virtude do grande significado da liberdade de reunião em geral, quando estiverem presentes outros pressupostos para uma intervenção; a ausência do anúncio prévio e o atraso de informações relacionado a ele apenas facilitam essa intervenção.

Se o dever de anúncio prévio vale, mas não sem exceção, e se seu descumprimento não leva automaticamente à dissolução ou à proibição, então não se pode reconhecer que este dever, que tem fulcro em interesses coletivos relevantes, possa ser, via de regra, desproporcional. Em outro contexto, deve-se discutir se e em que medida para as grandes manifestações existem peculiaridades, as quais, semelhantemente às manifestações espontâneas, poderiam justificar uma avaliação diferenciada (vide abaixo III.2.)

b) Pelo crivo do controle pelo Tribunal Constitucional passa, por interpretação conforme a Constituição, também a prescrição do § 15 da lei de reunião, segundo a qual a autoridade competente pode fazer a reunião depender do cumprimento de determinadas obrigações ou [mesmo] proibi-la ou dissolvê-la, “se, segundo as circunstâncias perceptíveis quando da edição da medida administrativa, a segurança ou ordem pública restarem imediatamente ameaçadas pela realização da reunião ou passeata”.

O reclamante e a União Federal de Iniciativas de Cidadãos pela Proteção Ambiental (Bundesverband Bürgerinitiativen Umweltschutz) levantam dúvidas quanto a indeterminação dos pressupostos da intervenção “ameaça da segurança ou da ordem pública”, a qual seria tão mais problemática quanto mais a decisão sobre a intervenção for confiada à discricionariedade das repartições públicas inferiores e da polícia. Ao invés disso, os conceitos mencionados atingiram – como o Ministro do Interior corretamente sustentou –, um conteúdo suficientemente claro (cf. Drews/Wacke/Vogel/Martens, Gefahrenabwehr, 8a. ed, 1977, Tomo 2, p. 117 s. e 130 s.). Segundo eles, o conceito de “segurança pública” compreende a proteção de bens jurídicos centrais, como vida, saúde, liberdade, honra, propriedade e patrimônio do indivíduo, bem como a integridade da ordem jurídica e das instituições estatais. Uma ameaça da segurança pública será considerada presente sempre quando houver uma ameaça de lesão punível criminalmente a esses bens tutelados. Por “ordem pública” entende-se a totalidade das regras não escritas, cujo cumprimento é visto, segundo as respectivas concepções sociais e éticas dominantes, como pré-requisito indispensável de um ordenado viver em coletividade de seres humanos dentro de um determinado local.

Somente esses esclarecimentos conceituais, contudo, ainda não garantem a aplicação da lei em conformidade com a Constituição. Para a avaliação constitucional são significativas duas limitações, que estão determinadas na própria lei e que têm como conseqüência que as proibições e dissoluções em suma somente podem ser utilizadas para a proteção de bens jurídicos elementares, enquanto que um simples perigo para a ordem pública não será suficiente. A proibição e a dissolução pressupõem, de um lado, como ultima ratio, que o meio mais ameno do estabelecimento de obrigações ad hoc [a serem cumpridas pelos organizadores ou pelos próprios manifestantes] esteja esgotado (nesse sentido cf. também: BVerwGE 64, 55). Isso se fundamenta no princípio da proporcionalidade.

Este não limita apenas a discricionariedade na escolha do meio, mas também a discricionariedade da decisão das autoridades públicas competentes. A liberdade de reunião protegida como direito fundamental somente deve ser preterida quando, a partir de um sopesamento de bens jurídicos e sob [estrita] observância do significado do direito de liberdade, se chegar à conclusão de sua necessidade para a proteção de outros bens jurídicos de igual dignidade. De nenhuma maneira, portanto, qualquer interesse aleatório justifica uma limitação desse direito de liberdade. Inconvenientes que ocorrerem inevitavelmente a partir das multidões que o exercício desse direito fundamental implica, e que não puderem ser evitados sem que haja prejuízo para o fim da reunião, precisam ser, em geral, tolerados por terceiros. Em virtude de meros motivos de técnica de tráfego, tanto menos se poderá proibir uma reunião, quanto mais se se puder atingir, por meio do estabelecimento de obrigações ad hoc, uma justaposição do uso da via pública pelos participantes da reunião e pelo tráfego fluente. De outro lado, a competência de intervenção pela autoridade pública é limitada, de tal sorte que as proibições e dissoluções só serão admissíveis no caso de ameaça imediata à segurança ou à ordem pública. Por meio da exigência de imediatidade, os pressupostos da intervenção aqui são mais específicos do que no direito [administrativo] de polícia em geral. Um prognóstico do perigo é sempre necessário no caso concreto. Em verdade, ele contém freqüentemente um juízo de probabilidade, cujos fundamentos podem e devem ser demonstrados. Destarte, a lei determina que ele deve basear-se nas “circunstâncias reconhecíveis”, também em fatos, casos e outros pormenores; meras suspeitas ou suposições não são suficientes. Atentando-se ao significado fundamental da liberdade de reunião, a autoridade pública não pode, especialmente no caso da edição de uma proibição preventiva, satisfazer-se com poucas exigências no que tange à qualidade do prognóstico do risco, sobretudo porque resta ainda a ela, no caso de avaliação errônea, a possibilidade de uma dissolução posterior da reunião. Aliás, aquelas exigências de qualidade que em cada caso devam ser feitas a este prognóstico, devem ser estabelecidas primeiramente pelos tribunais competentes (cf. de um lado Dietel/Gintzel, op. cit., nota 12 sobre o § 15 da lei de reunião com referência a BVerwGE 45, 51 [61]; de outro lado, Ott, op. cit., nota 5 sobre o § 15 da lei de reunião e Werbke, NJW 1970, p. 1 [2]; neste mesmo sentido: OVG Bremen, DÖV 1972, p. 101 [102]; OVG Saarlouis, DÖV 1973, p. 863 [864] e também o relatório da comissão jurídica sobre a reforma da lei de 1978, BT Drucks., 8/1845, p. 11). Tais exigências, uma vez desprendidas das circunstâncias concretas, dificilmente podem ser consideradas prescritas constitucionalmente, mas irão depender da avaliação concreta, por exemplo, de em que medida, no caso de grandes manifestações, há uma disposição dos organizadores para tomada de medidas cooperativas de preparação da manifestação e se as perturbações da ordem temidas são provenientes de terceiros ou de uma pequena minoria (cf. também abaixo: III.1. e 3.). Em síntese, o § 15 da lei de reunião é em todo caso compatível com o Art. 8 GG se de sua interpretação e aplicação restar seguro que as proibições e dissoluções ocorrem somente para a proteção de bens importantes da coletividade, sem prejuízo do princípio da proporcionalidade e apenas no caso de risco imediato a esses bens jurídicos, o qual pode ser inferido de circunstâncias reconhecíveis.

III.

Não se pode contestar constitucionalmente que as prescrições relativas ao direito de reunião anteriormente mencionadas também valham para as grandes manifestações. No entanto, na sua aplicação devem ser utilizadas as experiências que já foram reunidas e provadas no intento de possibilitar a realização pacífica também de tais [grandes] manifestações.

1. Consoante os relatórios empíricos recolhidos no processo originário [de conhecimento] e segundo a conclusão das negociações de Stuttgart (cf. acima A.1.2.), mais circunstâncias podem contribuir para a realização pacífica de manifestações do tipo da de Gorleben-Trecks de 1979, da manifestação pela paz de Bonn de 1981 ou da corrente humana do sul alemão de 1983. Ao lado do esclarecimento a tempo da situação jurídica, vem ao caso o fato de que não se realizem provocações e estímulos à agressão dos dois lados, que os organizadores instem os participantes a um comportamento pacífico e que promovam o isolamento de participantes violentos, de tal forma que o poder estatal – nesse caso sob a formação de espaços livre da polícia – se contenha prudentemente, evitando reações excessivas, que especialmente se estabeleça um contato [entre autoridades policiais e organizadores] no qual ambos os lados se conheçam, troquem informações e, possivelmente, firmem uma cooperação de confiança que facilite também o domínio de situações de conflito não previstas.

Não se precisa perscrutar se uma obrigação de consideração destas experiências seria dedutível já a partir do dever de tutela estatal (Schutzpflicht), o qual se origina para as autoridades públicas, segundo a opinião do sindicato da polícia, da decisão constitucional fundamental do Art. 8 GG, assim como ocorre, de maneira semelhante, com outras garantias de direitos fundamentais prevalecentes e que têm por objetivo possibilitar a realização de reuniões e passeatas, bem como proteger o exercício do direito fundamental contra perturbações e agressões de terceiros. De qualquer forma, a jurisprudência do Tribunal Constitucional mais atual deve ser trazida à pauta. Segundo esta, os direitos fundamentais influenciam não apenas a conformação do direito material, mas determinam também, ao mesmo tempo, os critérios para a configuração organizacional e processual que torna efetiva a proteção do direito fundamental, bem como para uma aplicação das existentes prescrições processuais que seja compatível com direitos fundamentais. (cf. as indicações de BVerfGE 53, 30 [65 s. e 72 s.]; na seqüência também: BVerfGE 56, 216 [236] e 65, 76 [94]; 63, 131 [143]; 65, 1 [44, 49]). Não há dúvida de que essa jurisprudência também se aplica à liberdade de reunião, principalmente porque esse direito fundamental tem também um conteúdo essencialmente de direito processual e de direito organizacional; como direito de liberdade, ele não contém nenhuma afirmação sobre a conformação de conteúdo das reuniões e passeatas, deixando-a à livre autonomia [responsabilidade] do organizador, contentando-se com requisitos organizacionais para a realização. A exigência endereçada às autoridades públicas de procederem magnanimamente em face das reuniões, segundo o modelo de grandes manifestações que transcorreram pacificamente, e de não ficarem aquém de experiências comprovadas sem motivo suficiente, corresponde à busca pela efetivação processual dos direitos de liberdade. Uma obrigação de levar não só em consideração essas experiências, mas também de as provar efetivamente, pode ser outrossim justificada constitucionalmente, porque este é o meio mais ameno, quando comparado a intervenções na forma de proibições e dissoluções. Desse modo, quanto mais conseqüentes forem as autoridades públicas na busca pela realização pacífica de grandes manifestações, tanto mais facilmente, após o fracasso de seus esforços, as proibições e dissoluções posteriores passarão no crivo de um exame judicial administrativo.

Já em face das repartições públicas, as supra apresentadas exigências de direito processual não podem ser de tal sorte expandidas a ponto de modificarem fundamentalmente o caráter da tarefa policial preventiva ou, por exemplo, de impossibilitarem a aplicação de ações estratégicas mais flexíveis. Da mesma forma, em face dos organizadores e participantes de grandes manifestações, não pode ser estabelecida nenhuma exigência que enfraqueça o caráter das manifestações como contribuição, em princípio livre do Estado e não-regulamentada, para a formação da opinião e da vontade política, assim como também a autonomia do organizador a respeito do tipo e conteúdo da manifestação. Isso não ocorre se for exigido dos organizadores e participantes apenas que deixem de comportar-se de maneira não-pacífica e que minimizem o comprometimento de interesses de terceiros. Um tal dever já decorre imediatamente da garantia dos direitos fundamentais e de sua harmonização com os direitos fundamentais dos outros. Incumbências de direito processual mais amplas poderiam ser possivelmente justificadas com o lastro na comunidade do exercício do direito fundamental e com a coresponsabilidade do causador em face dos efeitos externos [eventualmente danosos para bens coletivos] das grandes manifestações. Ao legislador deve, ao nível do direito infraconstitucional, ser confiado o delineamento de tais incumbências no contexto e nos limites da reserva legal, tendo em vista uma avaliação das experiências mencionadas.

Também sem uma especificação do legislador, é de bom alvitre que organizadores e participantes levem em consideração espontaneamente as recomendações dedutíveis das experiências comprovadas para as grandes manifestações. A praxe administrativa e a jurisprudência devem, em todo caso constitucionalmente falando, favorecer uma correspondente prontificação: Quanto mais os organizadores, quando do anúncio prévio de uma grande manifestação, estiverem predispostos à tomada de medidas de sua parte que demonstrem confiança, ou mesmo a uma cooperação favorável à [o transcorrer pacífico da] manifestação, mais alto será o limite para as intervenções das autoridades públicas em virtude de risco à segurança e à ordem públicas.

2. Ao contrário da opinião da União Federal de Iniciativas de Cidadãos pela Proteção Ambiental (Bundesverband Bürgerinitiativen Umweltschutz), não é constitucionalmente obrigatório, semelhantemente ao que ocorre com as demonstrações espontâneas, se excetuarem as grandes manifestações do dever de anúncio prévio do § 14 da lei de reunião.

De fato é correto afirmar que a lei de reunião do ano de 1953 se oriente [seja inspirada] pelas reuniões tradicionais, rigidamente organizadas e conduzidas (cf. tb. Relatório estenográfico sobre a 83a. Sessão da Câmara Federal Alemã – Deutscher Bundestag – de 12 de setembro de 1950, p. 3123 et seq.) De outra feita, há alguns anos começa a desenvolver-se uma mudança, não só na responsabilização, como também na condução das manifestações. Um grande número de grupos isolados e de iniciativas, sem específica coesão organizatória e com objetivos parcialmente diferentes, engajamse a partir de um ensejo comum – principalmente por temas provenientes das áreas da proteção do meio-ambiente e da manutenção da paz – iniciando, discutindo e organizando em conjunto eventos de manifestação. Uma vez que todos os participantes têm em princípio os mesmos direitos na sua preparação e realização, aquilo que foi originalmente imaginado pelo organizador e condutor, que não revelava problema, não se adequa mais tão perfeitamente à realidade [do transcorrer da manifestação]. De resto, pode-se dizer que a disposição do particular de figurar como organizador ou condutor também se reduziu em virtude de ter sido imprevisível, pelo menos por um certo tempo, o risco de ser responsabilizado criminal e civilmente, dada a falta de claras prescrições e de uma jurisprudência esperável.

Enquanto isso, é tarefa em primeira linha do legislador extrair conseqüências de tais modificações e de aprimorar as regras da lei de reunião. Se isso não ocorrer, não se pode excluir que o disciplinamento legal do direito de reunião deva ser julgado lacunoso e que a proteção do Art. 8 GG ultrapasse aquelas reuniões para as quais o legislador do ano de 1953 estabeleceu um disciplinamento. As modificações indicadas, contudo, não conduzem, do ponto de vista constitucional, a uma queda obrigatória do dever de anúncio prévio das grandes manifestações, mas somente a uma mudança na função do anúncio prévio:

Por meio da publicidade e da discussão pública que costumam preceder uma manifestação realizada por diversos grupos, a autoridade pública competente já é informada em termos gerais sobre o momento e o local, bem como sobre as particularidades de concepção [da manifestação]. Também no caso de tais grandes manifestações, o anúncio  prévio já faria sentido, porque o estabelecimento de obrigações ad hoc, que também junto a grandes manifestações deve ser prioritariamente levado em consideração, pressupõe destinatários. Além isso, a tomada do contato ligada ao anúncio prévio possibilita, além do conhecimento recíproco, um diálogo e uma cooperação, aos quais a autoridade, devido aos motivos mencionados, deve estar preparada. Este diálogo e cooperação são recomendáveis também para os responsáveis pela manifestação em seu próprio interesse.

Assim, já com antecedência, tornam-se claros os interesses colidentes, as eventuais situações de conflito e os ônus [e necessárias tolerâncias] (Belastbarkeiten) recíprocos. No mais, aumenta a segurança de prognóstico e o limiar de reação das autoridades públicas competentes. A cuidadosa preparação de uma grande manifestação pelos organizadores e forças policiais, assim com uma correspondente cooperação reduzem, ao mesmo tempo, o risco de que a manifestação transcorra de maneira não pacífica. Nessa situação, deve e pode subsistir a validade fundamental do dever de anúncio prévio. Devido à complexidade da organização dos responsáveis nas grandes manifestações, uma interpretação conforme a Constituição do § 14 c.c. § 15 II da lei de reunião parece, no entanto, indicada, naqueles casos nos quais alguns grupos ou pessoas não se vêem capazes de proceder a um anúncio prévio ou uma liderança total. No exame de eventuais sanções por causa da ausência do anúncio prévio não se pode deixar de considerar [dados como] um mandato com limitação de poderes e uma limitada disposição existente de mostrar-se capaz ao diálogo e de tomar a responsabilidade para si. A ausência de uma pessoa que faça o anúncio prévio, responsável pela manifestação, tem como conseqüência apenas que o limite para a intervenção da autoridade competente pode cair no caso de perturbações – assim como ocorre nas demonstrações espontâneas. Pressuposto disso é que a autoridade, de sua parte, tudo tenha feito para, no cumprimento de suas obrigações procedimentais – p. ex. mediante a realização de um convite para a cooperação honesta –, possibilitar a realização de uma manifestação concebida pacificamente.

3. Principalmente no caso de grandes manifestações, mais freqüentemente se formula a questão, que fora também relevante no processo originário [de conhecimento], se e sob quais condições as desordens de um indivíduo ou de uma minoria justificam, consoante o § 15 VersG, uma proibição da manifestação ou sua dissolução por causa de risco imediato que correm a segurança e ordem públicas.

a) A Constituição garante apenas o direito de “reunir-se pacificamente e sem armas”. Com a exigência de que seja pacífica a reunião, que já fora prevista na Constituição da Igreja de Paulo (Paulskirchen-Verfassung) e também na Constituição de Weimar, esclarece-se algo que já decorre da natureza jurídica da liberdade de reunião, na medida em que ela é entendida como meio para a discussão intelectual e para a tomada de influência na formação da vontade política (cf. também BGH, NJW 1972, p. 1571 [1573]). O caso do processo originário, no qual se chegou a atos de violência, não oferece nenhum ensejo à efetivação de uma precisa limitação entre desvios aceitáveis e comportamentos não pacíficos. Um manifestante comporta-se em todo caso de maneira não pacífica quando ele pratica atos de violência contra pessoas ou coisas.

Uma ordem jurídica, que, após a superação do direito medieval do “olho por olho” (Faustrecht), monopolizou no Estado o exercício da violência, também justamente no interesse de minorias mais fracas, deve estritamente insistir na contenção de tais atos de violência. Isso é uma pré-condição da garantia da liberdade de reunião como meio para a participação ativa no processo político e para uma democracia de liberdade – como a experiência com as batalhas de rua durante a República de Weimar demonstrou – também irrenunciável, porquanto a defesa contra atos de violência desencadeia medidas limitadoras da liberdade. Deve-se esperar dos manifestantes tão mais um comportamento pacífico, na medida em que eles, destarte, só têm a ganhar; ao passo que, no caso de confrontações violentas, terão sempre que prestar contas ao poder estatal, sucumbindo ao mesmo tempo os fins por eles perseguidos.

b) A ordem de uma proibição de reunião não levanta constitucionalmente nenhum problema especial também no caso de grandes manifestações, quando do prognóstico se depreende, com grande probabilidade, que o organizador e seus seguidores têm a intenção de praticar ações violentas ou, ao menos, que aprovam esse comportamento por terceiros. Uma manifestação de tal tipo, não-pacífica, não é abrangida pela garantia do Art. 8 GG de forma alguma; sua dissolução e sua proibição não podem, por isso, violar esse direito fundamental. Semelhantemente clara aparenta a situação jurídica, quando o organizador e seus seguidores, de modo contrário, se comportam pacificamente e perturbações partem somente de indivíduos estranhos à manifestação (manifestações contrárias e grupos perturbadores). Para esse caso, na literatura jurídica [doutrina] exige-se corretamente que as medidas administrativas devam dirigir-se primeiramente contra os perturbadores e que, somente sob os pressupostos especiais do estado emergencial de polícia, a reunião como um todo possa sofrer uma intervenção (Hoffmann-Riem, op. cit., nota 23 e 53 sobre o Art. 8 GG; Dietel/Gintzel, op. cit.; nota 14 sobre o § 15 VersG; cf. v. Münch, op. cit., nota 39 sobre Art. 8 GG; Drosdzol, Grundprobleme des Demonstrationenrechts, JuS 1983, p. 409 [414]; Frowein, op. cit. [1084]).

Se não se pode temer o caráter não-pacífico coletivo, e não se pode esperar que uma manifestação transcorra de forma violenta ou revoltosa (cf § 13 I Nr. 2 VersG), ou que o organizador e seus seguidores objetivem tal ocorrência ou que, ao menos, a aceitem, então também deve ser conservada para os participantes pacíficos a proteção, garantida a todo cidadão, de liberdade de reunião, quando outros manifestantes individuais ou uma minoria cometerem desordem (cf. v. Münch, op. cit., nota 18, sobre o Art. 8 GG; Herzog, op. cit., nota 59 s., 89 s. sobre o Art. 8 GG; Hoffmann-Riem, op. cit. 23 sobre o Art. 8 GG; Blanke/Sterz, op. cit. [76]; Schwäble, a.a.O., p. 229 e 234; Schmidt-Bleibtreu/Klein GG, 6a. ed., 1983, nota 4 sobre o Art. 8). Se o comportamento não pacífico de alguns indivíduos tivesse como conseqüência a queda da proteção do direito fundamental de todos os manifestantes e não somente dos infratores, estes teriam o poder de “inverter o funcionamento” de manifestações para transformá-las em ilegais “contra a vontade dos outros manifestantes” (neste sentido

OVG Saarlouis, DÖV 1973, p. 863 [ 864 s.]); então, praticamente toda grande manifestação poderia ser proibida, pois que quase sempre o “reconhecimento” acerca de intenções não-pacíficas de parte dos manifestantes pode ser obtido.

Assim, a efetividade da proteção do Art. 8 GG deve ter efeitos sobre a aplicação das normas jurídicas restritivas de direito fundamental (em relação a medidas de direito penal e direito de responsabilidade nas manifestações que transcorram de maneira parcialmente não-pacífica: cf. BGHSt 32, 165 [169]; BGHZ 89, 383 [395]; cf. também a decisão da Comissão Européia para Direitos Humanos, EuGRZ 1981, p. 216 [217]). A garantia de direito fundamental acompanhada de uma reserva legal não exclui que, com base no § 15 VersG, medidas administrativas para a proteção da segurança pública também proíbam a manifestação como um todo. Todavia, é preferível pensar em uma dissolução a posteriori, que não retire ab initio dos manifestantes pacíficos a chance do exercício do direito fundamental e que deixe ao organizador a palavra final quando ao isolamento de participantes não-pacíficos. Uma proibição preventiva de toda a manifestação em face de desordens temidas advindas de uma minoria violenta é, ao contrário, permitida somente sob rígidos pressupostos e mediante a aplicação conforme a Constituição do § 15 VersG. Isso é o que ordena o dever de proteção ideal da liberdade de reunião, com as exigências decorrentes das garantias processuais. Deste contexto fazem parte uma alta probabilidade no prognóstico do risco (cf. OVG Saarlouis, DUV 1973, p. 863 [864]; BayVGH, DÖV 1979, S. 569 [570]; de maneira semelhante: Schwäble, op cit., p. 229 e Drosdzol, op cit. [415]) bem como o prévio esgotamento de todos os meios aplicáveis que possibilitem uma realização do direito fundamental dos manifestantes pacíficos (p. ex. mediante a limitação espacial de uma proibição). A proibição de toda a manifestação pressupõe principalmente, como ultima ratio, que o meio mais ameno, mediante a cooperação com os manifestantes pacíficos para impedir a concretização de uma ameaça, tenha fracassado ou que uma tal cooperação tenha se tornado impossível por razões pelas quais os manifestantes são responsáveis. Se a partir de circunstâncias mais concretas uma proibição geral preventiva de uma manifestação é trazida à pauta, resta sempre ordenado, no caso de grandes manifestações com participantes predominantemente pacíficos, que uma tal medida extraordinária e drástica seja anteriormente anunciada, com a determinação de um prazo dentro do qual haja a oportunidade para a discussão dos riscos temidos e das medidas adequadas contrárias a serem tomadas.

IV.

(…)

1. 3. (…).

(ass.) Dr. Herzog, Dr. Simon, Dr. Hesse, Dr. Katzenstein, Dr. Niemeyer, Dr. Heußner, Dr. Henschel (repres. por Dr. Herzog)

 

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