A discussão nem é tão nova aqui no blog, mas acho que vale a pena reacender o debate até porque é um assunto ainda mal resolvido no meio jurídico brasileiro: a questão do humor racista ou politicamente incorreto.
O que me motiva a trazer novamente esse tema para a pauta do blog foi um texto bem escrito e muito bem fundamento que li recentemente do meu colega Cezário Corrêa Filho, que é Advogado da União aqui em Fortaleza e tem tido uma destacada atuação em defesa da igualdade racial. O texto em questão foi publicado na Revista Themis, da Escola da Magistratura do Ceará, e pode ser lido na íntegra aqui (pp. 275/314).
Cezário discorreu sobre “Humor, Racismo e julgamento: ou sobre como se processa a idéia de racismo no judiciário brasileiro” e destinou boa parte de seus argumentos para criticar um comentário que fiz aqui no blog, que foi utilizado como uma prova da tese que ele queria defender. O comentário em questão foi no “Caso Tiririca”, que gravou uma música de muito mau gosto chamada “Olhem os cabelos dela”. Em síntese, concordei que não havia sentido punir o humorista na esfera penal e afirmei ainda que achava que a condenação cível do Tiririca havia sido um pouco exagerada, pois o intuito dele não foi ofender os negros, mas apenas fazer humor. Eis meu comentário:
Em um de seus momentos mais criativos, o poeta e compositor Tiririca brindou a humanidade com a seguinte canção:
Veja os cabelos dela
Tiririca
Alô, gente, aqui quem fala é o Tiririca
Eu também estou na onda do Axé Music
Quero ver os meus colegas dançando
Veja, veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas seus cabelos não têm jeito, não
A sua catinga quase me desmaiou
Olha, eu não agüento o seu grande fedor
Veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Eu já mandei ela se lavar
Mas ela teimou e não quis me escutar
Essa nega fede! Fede de lascar
Bicha fedorenta, fede mais que um gambá
Veja, veja, veja os cabelos dela
Como é que é? A galera toda aí
Com as mãozinhas pra cima
Veja, veja, os cabelos dela
Bonito, bonito!
Aí, morena, você, garotona
Veja, veja, veja os cabelos dela
A beleza poética da letra é tão inspiradora quanto a melodia da música. Vale conferir.
Logicamente, Tiririca não pretendia ganhar nenhum “Grammy” por essa canção. Sua intenção era tão somente fazer humor. Aliás, ele chegou a afirmar que a música foi feita em “homenagem” à sua esposa.
Mas não foi isso que algumas entidades entenderam. Para alguns, a música representaria um desrespeito à mulher negra e, por isso, deveria ser proibida. O caso foi parar na Justiça. No âmbito penal, Tiririca foi inocentado da acusação de racismo, a meu ver corretamente, já que o intuito da música era fazer humor.
Na esfera cível, porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou o caso em grau de apelação, condenou a Sony Music a pagar uma indenização de trezentos mil reais.
Veja a íntegra da decisão.
Comentário particular: para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco. Acho que aqui caberia os mesmos argumentos da sentença do Mandarino, no caso Diogo Mainardi. Ou seja, entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.
No seu artigo, em que critica a tolerância dos juristas brasileiros em relação às práticas racistas encobertas pelo humor, Cezário, após reproduzir o meu comentário, assinalou o seguinte:
Ressalvadas as ironias que podem, talvez, ser subentendidas do comentário acima, o que notamos nos julgamentos referidos é que, embora equivocado, ainda é presente e predominante o entendimento de que o crime de racismo só se configura quando o ato é dolosa e manifestamente sério. Para os que assim entendem, se houver gracejo, piada, chiste, pilhéria, em síntese, dito humorístico, o caso será de atipicidade da conduta, pois estará ausente o dolo, a intenção de ofender, mesmo que a piada, escrita, falada ou musicada, tenha a expressividade que tinham a nota do jornalista e a música do Tiririca.
Ainda sobre o caso Tiririca e o comentário particular do juiz federal George Marmelstein Lima, autor do blog (“para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco… entre tolerarpequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.”), é interessante anotar que o magistrado federal não reitera esse comentário no texto do livro de sua autoria. Aqui, ele apenas resume o caso, transcreve a letra da música, e deixa que o leitor emita a opinião. O magistrado federal, blogueiro e, agora, doutrinador tem reconhecidos estudos do tema relativo aos direitos fundamentais. Entretanto, do cotejo das suas análises e comentários no blog e no livro citados, vemos que ele não vai além do comum da compreensão do racismo: se se cuida de mensagem séria ou que envolva grupos, embora minoritários, mas com poder de expressão, ele entende presente o racismo e esposa o julgamento condenatório. Entretanto, se se trata de mensagem humorística, “é preferível a tolerância em nome da liberdade.” Comparem-se as análises feitas por ele das músicas 88 Heil Hitler, da banda Zurzir, e a já referida Veja os cabelos dela, do Tiririca.
Vimos, com Freud, que o dito humorístico hostil usa do prazer produzido para contornar as inibições mentais e cativar o ouvinte, e, com Ducrot, que, na relação comunicacional, locutor e ouvinte compartilham pressupostos e postos comuns, para comungarem de um mesmo subentendido. Isso demonstra o engano dos entendimentos ainda reinantes.
E o que faz com que esses entendimentos ainda estejam presentes e predominantes no Judiciário brasileiro? Se se aceitar o reducionismo do direito como uma das causas, ou seja, que esses entendimentos decorrem da simplificação da realidade feita por meio das categorias e dos conceitos jurídicos, será dado o primeiro passo. Contudo, deve seguir-se um segundo passo: compreender e reconhecer que, para manifestar certos sentimentos, desejos e intenções hostis, usamos de subterfúgios diversos. Quanto mais inimagináveis ou sutis forem esses subterfúgios, mais livres estaremos de censuras e reprimendas sociais e/ou jurídicas, quando quisermos hostilizar uma pessoa ou um grupo.
Daí, o terceiro passo é inevitável: reconhecer que, diante da simplificação da realidade feita pelo direito, um julgamento adequado e coerente com o discurso constitucional pressupõe e requer o uso de outros saberes e agires. Por exemplo, sem auxílio da Antropologia, como se poderá compreender de modo constitucionalmente adequado o tema indígena (CF/88, arts. 231 e 232) ou quilombola (CF/88, art. 216, § 5º, e ADCT, art. 68)?
Parece óbvio o reconhecimento do que aqui se diz. Contudo, uma obviedade que não é percebida é o fato de esse reconhecimento só ser confessado quando ele não interfere, perceptível ou imperceptivelmente, naquilo que cremos acreditar. Ou seja, no caso dos ditos humorísticos racistas, o Judiciário, encartado numa sociedade divida em classes e em raças (do ponto de vista político-econômico e sócio-cultural), é organizado de modo a contemplar os interesses da classe e da raça dominantes, embora o juiz, com toda boa-fé e sinceridade d’alma, possa não percebê-lo ou não compreendê-lo. É o que já denominamos de lugar-sujeito do julgador, determinado ou condicionado pelas relações de poder vigentes. Assim, crendo em algo, mas não sabendo que crê e/ou por que motivo crê, rejeita uma provocação crítica e não consegue perspectivar de modo diferente o fato social “natural”. “Naturalizado” o fato social, não há razão para mudá-lo ou para admitir que mudará.
Para compreender melhor os argumentos do Cezário, recomendo que leiam o texto na íntegra, que, como afirmei, está muito bem fundamentado. Não pretendo, até por falta de conhecimento específico, rebater os aspectos psicológicos por ele levantados, insinuando claramente que meu ponto de vista esconderia um preconceito típico da mentalidade dominante que só enxerga o racismo escancarado e sério. Na sua ótica, quando o racismo é dissimulado em piadas ou músicas engraçadas, nós, da classe dominante, nos divertimos às custas de um estigma cultural que rebaixa os negros e ainda nos fingimos de ilustrados e de bem-intencionados. O Cezário quis, com razão, denunciar esse tipo de comportamento e me incluiu como um típico representante desse grupo dominante. Como disse, não pretendo refutar o embasamento teórico que ele adotou. Minha pretensão, neste post, é apenas esclarecer alguns pontos que precisam ser esclarecidos. Usando a mesma base teórica que o Cezário utilizou, penso que ele também embutiu alguns preconceitos na sua opinião sobre o meu comentário que, certamente, levou-o a uma leitura apressada e mal-intencionada do meu texto. É isso que quero esclarecer.
Para evitar discussão inútil, vou estabelecer os pontos controvertidos, até porque concordo com muita coisa que Cezário defende em seu texto (não sei de onde ele tirou o contrário). Vou enumerar algumas teses que ele defende e direi se concordo ou discordo. Depois, comentarei as que discordo.
1) o humor politicamente incorreto pode configurar crime de racismo.
Concordo, também não acho que só o racismo “sério” é racismo. Aliás, já defendi essa tese aqui mesmo no blog ao afirmar que não é possível “estabelecer uma imunidade completa para os humoristas ofenderem suas ‘vítimas’ à vontade. Devem existir limites, embora, confesso, não acho que seja possível defini-los abstratamente”. Por outro lado, não acho que toda a forma de humor politicamente incorreto deve ser criminalizada . Sobre isso comentarei mais à frente;
2) a sociedade brasileira é preconceituosa, ainda que diga o contrário.
Concordo. O preconceito é algo sutil. Tive um professor, por exemplo, que absurdamente disse essa pérola do preconceito: “na minha opinião, não há esse negócio de brancos e pretos. Trato todo mundo igual. Para mim, todo mundo é branco”. Aqui não é nem preciso que Freud explique.
3) o comentário do jornalista Cláudio Cabral que disse que músicos baianos, negros e índios eram sub-raça configurou crime de racismo.
Concordo. Acho que o intuito de menosprezar foi manifesto;
4) a música “Olha os Cabelos Dela”, do Tiririca é ofensiva para as mulheres negras.
Concordo. Também acho a música de extremo mau-gosto;
5) o Tiririca deveria ser punido criminalmente por ter feito e gravado a referida música.
Discordo e justificarei mais à frente.
6) o Tiririca deveria ser obrigado a indenizar pelos danos que causou à comunidade negra.
Concordo, a condenação não é de todo injusta, só achei exagerado o valor.
Como se vê, há muito mais acordos do que desacordos e, se o Cezário tirou conclusões diferentes, é porque sua opinião também está repleta de preconceitos a respeito de “pessoas como eu”. Logicamente, existem alguns desacordos sérios entre as minhas opiniões e as dele. Mas acho que o desacordo maior é que, pelo que entedi, Cezário é totalmente contra o humor politicamente incorreto, defendendo a punição criminal de piadas preconceituosas sempre que isso causar ofensa a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. Nesse ponto, não concordo. Na minha opinião, para que haja a punição criminal, a ofensa tem que ser grave.
Ainda que no texto não tenha ficado expresso, me pareceu que Cezário deixou subentedido que tolero o humor com relação aos negros e não tolero outros tipos de ofensa contra grupos “com poder de expressão”. Espero que, nesse ponto, minha leitura do seu texto tenha sido equivocada, pois, se foi isso que ele quis dizer, a má-vontade para com a minha opinião por parte dele é escancarada.
O fato de eu haver aplaudido a condenação da banda Zurzir e criticado a condenação do Tiririca está relacionado não com o grupo atingido, mas com o grau da ofensa, até porque o alvo da ofensa da banda Zurzir também eram os negros, embora não apenas estes. A ofensa praticada pela banda Zurzir foi muito mais forte do que a aquela que foi praticada pelo Tiririca. Não que eu ache que o Tiririca não tenha ofendido as mulheres negras. Claro que ofendeu. A música é de mau gosto e estimula a consolidação do estereótipo de que as mulheres negras possuem cabelo “de Bombril” e “cheiram mal que nem gambar”. Só não acho que esse tipo de ofensa é forte o suficiente para caracterizar o racismo na esfera penal ou uma condenação tão alta na esfera cível. A condenação cível não foi de todo injusta, só foi um pouco exagerada, na minha ótica, já que o montante da indenização foi de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).
O comentário que fiz em relação ao caso Tiririca deve ser lido em conjunto com comentário que fiz em relação à música “Um Tapinha não Dói”, onde também defendi a liberdade de expressão, alegando ser exagerada a proibição da música e a condenação de seus intérpretes. Mas talvez o caso do Tapinha só reforce os argumentos do Cezário, pois aqui eu também estaria contemplando “os interesses da classe e da raça dominantes”, a saber, dos homens machistas que gostam de bater em mulheres.
Mas para não parecer que estou tolerando apenas as “ofensas nos outros”, recordo que, no caso em que o Mandarino julgou, que foi o paradigma por mim utilizado no comentário acima, o alvo do preconceito foram os nordestinos, grupo social que me orgulho de fazer parte. Do mesmo modo, quando defendi a tolerância em relação à campanha da PETA, o alvo da ofensa foram os judeus, grupo que, por genealogia, também faço parte, ainda que eu seja católico. Por sinal, quando defendi a tolerância em relação ao caso “Carol Castro”, o alvo da ofensa foram os católicos. Quando defendi a tolerância no caso da música “Vossa Excelência”, dos Titãs, o alvo da ofensa foram os juízes, categoria a que estou fortemente vinculado.
Como se vê, a diferença de posicionamento entre mim e o Cezário está muito mais na força que cada um dá a liberdade de expressão do que propriamente no significado de preconceito, pois também acho que o humor pode ser preconceituoso. Invocando meu xará George Orwell, acho que “se a liberdade significa realmente alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”. Minha tese, nessa matéria, é que a criminalização do humor politicamente incorreto somente deve ocorrer em situações extremas em que ficar nítida a intenção de menosprezar, desrepeitar e agredir (ainda que com humor). O humor ingênuo, como no caso do Tiririca, não deveria ser punido criminalmente, ainda que possa e deva ser alvo de crítica social.
Não há dúvida de que o humor costuma criar estereótipos. Brinca-se com a inteligência dos portugueses, a desonestidade dos advogados, a ganância dos judeus, a malemolência dos baianos, a virilidade dos gaúchos e assim por diante. Não tenho certeza sobre os limites desse tipo de brincadeira. Mas punir criminalmente, seja quais forem as circunstâncias, uma pessoa que fez uma piada politicamente incorreta é uma distância muito grande. Prefiro achar que apenas os abusos extremos merecem uma resposta penal.
Não estou querendo dizer com isso que sou capaz de me colocar no lugar de um negro para sentir na pele o sofrimento que ele sente quando escuta uma piada racista. Também não tenho conhecimento empírico sobre o quanto esse tipo de piada é prejudicial a uma mudança cultural da sociedade. Só não acho que a perseguição penal e a censura sejam a melhor solução. Já comentei sobre isso aqui. De qualquer modo, o debate está lançado. Comentários são bem vindos. E, como sempre digo, estou totalmente disposto a mudar de opinião se me convencer do contrário. O texto do Cezário não me fez mudar de opinião, mas me fez perceber que a discussão não é tão simples quanto eu pensava.
***
Só mais uma coisa: com relação à diferença de linguagem adotada no blog e no livro (Curso), isso se deve ao fato de que, em todos os estudos de caso colocados no Curso, tentei ser o mais objetivo possível, transmitindo as informações de forma imparcial para que os debates em sala de aula sejam mais livres. Se eu já antecipasse minha opinião nos estudos de caso, os alunos seriam influenciados pelo meu ponto de vista e, no que se refere aos estudos de caso, minha pretensão não foi essa. (Ressalto que isso só se aplica aos estudos de caso. No texto do livro, não constumo ficar em cima do muro). O blog, por sua vez, é um ambiente em que sinto mais à vontade para expressar minhas opiniões de forma mais intimista e, às vezes, até irrefletida. Aliás, já falei sobre isso aqui.
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