Algumas vezes, os textos com que menos concordamos são os que mais nos afetam e, uma vez amadurecidos inconscientemente nas nossas cabeças, são capazes de transformar a nossa forma de pensar e de ver o mundo. Sem nos darmos conta, acabamos incorporando aquelas mesmas idéias que até então vínhamos criticando.
Esse tipo de literatura que muda os nossos conceitos pode ser enquadrado na definição de “Mindfuck”, termo desenvolvido pelo filósofo Colin McGrin, no seu livro “Não me f*** o juízo“. Em português, o termo mindfuck tem sido traduzido como “psicofoda”, que tem um sentido negativo (a manipulação intelectual) e um sentido positivo (a libertação da mente). Os livros que exercem uma função de libertar a mente sem alterar os dados da realidade, sem manipular informações, nem controlar involuntariamente a nossa vontade, são benéficos, pois nos permitem acordar do “sono dogmático” ou então “sair da caverna de Platão” para ver o mundo real. É nesse sentido positivo que adotarei neste texto o termo mindfuck.
Comigo acontece com muita freqüência. Por exemplo, quando li, pela primeira vez, o livro “Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill, consegui imaginar vários contra-exemplos que o refutariam e achei tudo aquilo radical demais, típico do liberalismo individualista norte-americano. Hoje, depois de quase uma década, talvez seja Stuart Mill o pensador com quem mais me identifico. Stuart Mill é um mindfucker num sentido positivo.
Desde o ano passado, devorei praticamente todos os livros de Karl Popper que tive a oportunidade de ler e encontrei nele um bom suporte de reforço às minhas convicções epistemológicas mais básicas. Posso dizer que as idéias epistemológicas e metodológicas de Popper não alteraram a minha forma de pensar, pois já concordava com o que ele dizia antes mesmo de conhecer suas obras. Era mais ou menos aquilo que eu já tinha em mente e só precisei dele para cimentar minhas convicções. Logo, Popper, para mim, não foi um mindfucker. Apesar de não ter alterado a minha forma de pensar, as idéias de Popper tiveram o mérito de ter me alertado e criado antídotos para escapar de “falsos profetas” (os mindfuckers do mal), o que considero extremamente positivo.
É possível que Paul Feyerabend, um discípulo dissidente de Popper, tenha alterado involuntariamente a minha forma de pensar até mais do que Popper. Vou logo dizendo que não concordo com o anarquismo metodológico de Feyerabend (assim como também não concordo com tudo o que Popper defende). Feyerabend é muito radical na sua forma de pensar e, em determinados pontos, não merece ser levado a sério. Por exemplo, ele chegou a afirmar que o conhecimento científico tem o mesmo status epistemológico da astrologia. O que quero ressaltar, ao citá-lo de forma positiva, é a capacidade que ele possui de mudar a nossa forma de pensar.
Feyerabend era um malucão, um debochador, um anárquico. Certa vez, o teólogo Ratzinger (sim, o Papa) utilizou uma idéia de Feyerabend para defender a postura da Igreja Católica no processo de Galileu. Galileu, como se sabe, foi processado pela Igreja por haver defendido a teoria heliocêntrica de Copérnico. Feyerabend, no seu “Adeus à Razão”, elogiou a Igreja, dizendo que ela estava no bom caminho. Quando Ratzinger usou uma idéia parecida, mencionando expressamente as idéias de Feyerabend, perguntaram a Feyerabend o que ele achou daquilo. Eis a sua resposta:
Mas Feyerabend não era tão porra-loca assim. Ele defendeu uma coisa interessante: que os limites impostos pelo método científico, muitas vezes, atrapalham mais do que ajudam. Os cientistas se sentem pouco à vontade para “saírem do trilho” dos programas de pesquisa e isso inibe a criatividade, ou seja, a capacidade de formular hipóteses, o que certamente prejudica o desenvolvimento do saber. Nesse ponto, Feyerabend está parcialmente certo. Basta ver que, nas empresas que lidam mais diretamente com a criatividade (como as de publicidade ou as de desenvolvimento de programas de informática), é dada uma maior liberdade para os seus funcionários para criarem sem amarras. E mesmo em outras empresas “mais sérias”, é utilizada com freqüência a técnica do “brainstorming”, que é um bom mecanismo para possibilitar o surgimento de boas idéias e de boas soluções em um grupo de pessoas.
Logicamente, o anarquismo metodológico que Feyerabend defende também não é uma solução viável, mas ele está certo quando acusa uma metodologia opressora, como se o método científico – ou qualquer outro método – fosse um fim em si mesmo. (Particularmente, penso que a sua crítica não atinge a primeira etapa do método popperiano, que recomenda total liberdade e ousadia na construção de conjecturas).
Ultimamente, tenho percebido que o meu doutorado, ainda que esteja permitindo uma evolução substancial no meu pensamento, tem prejudicado a minha capacidade de escrever o que eu quero. Me sinto na obrigação de sempre dizer algo profundo e sem erros. A tal da “artesania” acadêmica tem seu lado cerceador. Tenho meditado sobre isso e cheguei à conclusão de que preciso mudar meus pós-conceitos (conceitos criados após a minha entrada no doutorado). O medo de errar e de dizer besteira é um grande erro e uma grande besteira. E não é pelo fato de eu estar cursando um doutorado numa prestigiada universidade que me obriga a deixar de ser o mesmo que sempre fui. Posso cometer muitos equívocos fáticos e teóricos nos meus posts e nos meus textos de um modo geral. Mas é caminhando que se caminha. A vida é uma aprendizagem.
O blog é, para mim, um mecanismo de estímulo e não de opressão. É aqui que me sinto à vontade para escrever sem compromisso. Divirto-me escrevendo e cresço escrevendo. Uso o blog como forma de expor meus pensamentos a um público maior para que eu possa melhorá-los e, quem sabe, escrever algo mais sério no futuro. Se eu estiver errado, melhor ainda. Reconhecer o erro e não voltar a repeti-lo é sempre um avanço. Agora que estou quase “me libertando” dos papers obrigatórios, já começo a sentir um alívio. Tomara que eu não seja totalmente contaminado por esse rigorismo acadêmico que, na maior parte das vezes, é mero embuste (com honrosas exceções) e em nada ajudam na evolução do conhecimento.Espero que eu nunca me torne um “acadêmico de respeito”, cheio de pompa, mas vazio de conteúdo, que, apesar de estar num ambiente de liberdade acadêmica, não tem coragem para expressar idéias próprias, nem manter seu próprio estilo de linguagem.