Explicando Kant para meu filho de 3 anos

Nesse clima de férias, estava eu a tomar banho de piscina com meus filhos, quando o mais novo perguntou se podia fazer xixi. Respondi que na piscina não, pois era errado. Na curiosidade típica das crianças, ele perguntou por que fazer xixi na piscina era errado. A resposta que dei foi relativamente mais simples do que a que vou formular agora. De qualquer modo, tenho certeza de que ele também compreenderia, pois é bastante esperto. É uma explicação bem básica do primeiro imperativo categórico kantiano (“age de tal modo que tu possas querer que a tua ação se torne uma lei universal de conduta“). Tal imperativo funciona como uma espécie de roteiro mental para fundamentar subjetivamente as questões morais, desde as mais simples até as mais complexas, partindo do pressuposto de que quem agirá adotará um comportamento racional e sincero.

Para saber se um ato (ou uma máxima, como diria Kant) é moralmente certo ou errado, é preciso seguir quatro passos.

1º Passo – Formulação do Princípio de Ação (Máxima)

O primeiro passo é estabelecer a máxima que será avaliada. Geralmente, é formulada por meio de verbos (matar, mentir, descumprir promessas, suicidar-se etc.). No nosso caso, a máxima é: fazer xixi na piscina.

2º Passo – Especular sobre a Transformação de Tal Princípio de Ação em Lei Universal de Conduta

O passo seguinte é cogitar em uma possível universalização da máxima. Universalização, nesse sentido, significa imaginar uma norma que obrigasse todo mundo a agir da mesma forma naquela situação. A idéia é, portanto, transformar a máxima em uma lei universal. No nosso caso, a lei universal seria: todos deverão fazer xixi na piscina.

3º Passo – Verificar as Conseqüências da Referida Universalização

No terceiro passo, será analisado o que ocorreria se a referida lei universal fosse adotada como padrão na natureza. Em outras palavras: o que aconteceria se todos agissem segundo aquela máxima naquelas circunstâncias?

No nosso caso, basta pensar no que ocorreria se todos que tomassem banho de piscina fizessem xixi na água sempre que tivessem vontade.

4º Passo – Saber se o Agente Moral Aceitaria (Desejaria) as Conseqüências de uma tal Lei Universal

No último passo, o agente moral deverá verificar se aceitaria agir segundo a máxima mesmo sabendo das conseqüências que ela acarretaria se fosse transformada em uma lei universal da natureza, perguntando a si mesmo: “Ficaria eu satisfeito de ver a minha máxima se transformar em lei universal a ser seguida não apenas por mim, mas por todas as outras pessoas racionais?” Se ele responder afirmativamente, então a máxima será moralmente correta. Se ele não aceitar tal lei universal, então a máxima será imoral.

No caso ora analisado, a máxima “fazer xixi na piscina” não poderia ser transformada em uma lei universal,  pois ninguém desejaria tomar banho numa piscina cheia de xixi, que é justamente o que aconteceria se todo mundo urinasse na piscina. Só uma pessoa irracional ou pouco sincera ou muito nojenta preferiria tomar banho numa piscina suja ao invés de tomar banho numa piscina limpinha.

Portanto, aquele que faz xixi na piscina age em contradição consigo mesmo, pois pratica uma ação mesmo não desejando que ela se torne uma lei universal, numa clara violação do primeiro imperativo categórico. Os sujeitos moralmente evoluídos deveriam ficar com dor na consciência ao urinarem na piscina, pois o seu sentimento de dever moral estará sendo pisoteado pela sua própria conduta.

E não importa se o agente moral vai ser descoberto ou não. A sanção moral, para Kant, é subjetiva. No caso do xixi na piscina, dificilmente alguém perceberá que o agente moral está ou não se aliviando debaixo d’água. Mesmo assim, será incondicionalmente imoral realizar tal conduta, pois ela viola o imperativo categórico, que é categórico justamente porque não admite desculpas esfarrapadas do tipo “não deu tempo“, “é só um pouquinho“, “todo mundo faz” etc. Não tem conversa fiada: se você não deseja que os outros façam, então você tem o dever moral de também não fazer e ponto final.

Eis uma resposta kantiana para a pergunta do meu filho. Como se vê, o primeiro imperativo categórico é uma formulação alternativa e mais sofisticada da “regra de ouro” na sua versão positiva: faça aos outros aquilo que você gostaria que os outros lhe fizessem. E foi justamente essa explicação mais simples que dei a meu filho. Perguntei-lhe: “você gostaria de tomar banho numa banheira de xixi?” Ele olhou com uma cara de nojo e respondeu que não.

Sobre isso, Kant certamente diria:

“Não preciso pois de perspicácia de muito largo alcance para saber o que hei de fazer para que o meu querer seja moralmente bom. Inexperiente a respeito do curso das coisas do mundo, incapaz de prevenção em face dos acontecimentos que nele se venham a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: – podes tu querer também que a tua máxima se converta em lei universal? Se não podes, então deves rejeitá-la” (IK, FMC, p. 35/36).

A propósito, no final do dia, a cor da piscina estava bastante “estranha”, demonstrando que o primeiro imperativo categórico não é tão eficaz assim. Acho que nem todo mundo vive no estágio moral “pós-convencional” de que tratou Kohlberg.

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Essa versão “passo a passo” do imperativo categórico de Kant foi extraída de um texto de Rawls, com ligeiras modificações: http://criticanarede.com/html/eti_kantrawls.html

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A foto que ilustra o post é bem conhecida: é o Manneken Pis (Menino Mijão), uma pequena estátua que se tornou o símbolo de Bruxelas, que tive a oportunidade de conhecer no ano passado. Segundo a lenda, a estátua foi inspirada em um garoto que, no meio de uma batalha, fez exatamente o que está retratado na foto. Dizem que simboliza a coragem militar.  Para mim, deveria simbolizar o deboche diante de situações absurdas.

Falou e Disse

A citação de hoje será em homenagem a Hegel, cujas idéias, confesso, conheço muito pouco porque nunca consegui passar da primeira página. O texto abaixo é um comentário de Schopenhauer à obra de Hegel:

“Se se quiser embrutecer desde cedo um jovem e torná-lo incapaz de qualquer idéia, não há meio mais eficaz do que o assíduo estudo das obras originais de Hegel; porque essa monstruosa acumulação de palavras que se chocam e se contradizem de modo a que o espírito se atormenta inutilmente tentando pensar alguma coisa enquanto as lê, até ficar cansado e murchar, aniquila nele paulatinamente a faculdade de pensar de modo tão radical que, a partir daí, passam a ter para ele valor de pensamentos as flores retóricas insípidas e vazias de sentido (…). Se alguma vez um preceptor temer que o seu pupilo se torne demasiadamente sagaz para os seus planos, poderá evitar essa desgraça com o estudo assíduo da filosofia de Hegel”.

Schopenhauer, Parerga e Paralipomena

Extraído do livro: A Filofosofia com Humor, de Pedro González Calero

Um diálogo entre Kant e Habermas

dialogo

Habermas: matar é certo ou errado?

Kant: matar é errado.

Habermas: por quê?

Kant: ora, porque essa máxima não pode se tornar uma lei universal. Se fosse permitido que os homens se matassem uns aos outros, não haveria sociedade viável. Logo, uma tal norma seria auto-destrutiva e, portanto, auto-contraditória. Não passaria pelo meu primeiro imperativo categórico.

Habermas: quem disse?

Kant: sou eu que estou dizendo, ora bolas.

Habermas: então, essa conclusão vale só para você. Para ganhar validade universal, todo mundo tem que concordar. As únicas normas que têm o direito de reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático.

Kant: existe um pistoleiro lá no sertão do Ceará que acha que matar é certo. Então, a partir de agora, matar não pode ser considerado como errado, já que nem todo mundo concorda que matar é errado.

Habermas: não é bem assim. Estou falando de participantes racionais e bem-intencionados, que estão seguindo uma ética do discurso, ou seja, uma ética discursiva que seja orientada pelo entendimento comum.

Kant: Então, participantes racionais e bem-intencionados, que fizessem parte desse discurso aí, considerariam que matar é certo ou errado?

Habermas: se eles estivessem realmente preocupados em estabelecer normas éticas provavelmente concluiriam que matar é errado.

Kant: Por quê?

Habermas: ora, porque essa máxima não pode se tornar uma lei universal. Se fosse permitido que os homens se matassem uns aos outros, não haveria sociedade viável. Logo, uma tal norma seria auto-destrutiva e, portanto, auto-contraditória. Não passaria pelo teu primeiro imperativo categórico.

Kant: quem disse?

Habermas: sou eu que estou dizendo, ora bolas.

Kant: então, essa conclusão vale só para você. Para ganhar validade universal, todo mundo tem que concordar. As únicas normas que têm o direito de reclamar validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático. Foi você quem disse.

Habermas: aff, você tá parecendo o Marmelstão.

habermao

A Katchanga e o Calvinbol

Como os posts desta semana foram “pesados”, filosoficamente falando, vou dar uma maneirada nesta sexta. Para isso, mais uma vez, trago Calvin & Hobbes ao blog, desta vez para apresentar o Calvinbol.

O Calvinbol é um jogo da mesma família da Katchanga e também tem sido muito apreciado pelos tribunais brasileiros, sobretudo pelo STJ. Requer muito talento, muita criatividade e uma boa dose de sadismo.  Para jogar Calvinbol, basta inventar as regras enquanto for jogando. A única regra permanente do Calvinbol é que você não pode jogar do mesmo jeito duas vezes! Fantástico.

Com vocês, o Calvinbol (para ver melhor, clique aqui ou em cima da imagem):calvinbol

Um caso digno de Boston Legal

Ao ler a notícia abaixo, não pude deixar de lembrar, já com saudade, de vários episódios do Boston Legal. Se o advogado fosse o Alan Shore, certamente esse motorista ganharia a causa. :-)

Motorista transexual de Itu entra na Justiça para trabalhar de vestido e batom

A transexual Nilce, de 47 anos, cujo nome de batismo é Nilson Pereira da Silva, recorreu à Justiça para reivindicar o direito de trabalhar com roupas de mulher. Ela é motorista de ambulância da prefeitura de Itu, a 98 km de São Paulo. E, desde que passou a usar vestido, sapato de salto alto e outros acessórios femininos, há dois meses, alega que foi retirada da escala de serviço. Não é a primeira vez que a motorista entra com um pedido por discriminação. Em 2008, ela alegou que o número de viagens diminuiu desde que assumiu a transexualidade.

Segundo ela, o chefe do setor mandou que ficasse “à disposição” na repartição, mas não atribuiu ao funcionário nenhuma outra função. Como não é escalado para as viagens, o motorista permanece as 9 horas do expediente sentado num sofá na garagem das ambulâncias.

‘Nilce’
Silva, que usa batom, lápis nos olhos e prefere ser chamado de ‘Nilce’, acha que está sendo discriminado. “Fiz concurso para essa função e fui aprovado, não quero ficar aqui parada”, diz, contando que está “na fila” para fazer uma cirurgia de mudança de sexo.


Motorista concursada há 13 anos, ela conta que, antes de assumir a transexualidade, fazia viagens por todo o Estado para levar pacientes a hospitais e clínicas especializadas. Como agora não viaja, perdeu o direito a horas extras e outros benefícios, passando a receber apenas o salário regular.

O advogado de Nilce, Maurício de Freitas, entrou com pedido de indenização na Justiça por assédio moral e discriminação. Ele quer, também, que sua cliente tenha reconhecido o direito de trabalhar vestido conforme sua opção sexual.

Numa audiência realizada na segunda-feira (30), no Fórum de Itu, foram ouvidas testemunhas que, segundo o advogado, atestaram a competência profissional do funcionário.

Outro lado
A prefeitura de Itu alegou que não há discriminação. De acordo com a chefia do setor, a motorista não tem sido escalada para viagens porque a ambulância que dirige sofreu avaria mecânica e está na oficina. A sentença deve ser dada em 40 dias.

Diversidade sexual

Procurado por telefone pelo G1 para comentar o assunto, Dimitri Sales, advogado e coordenador de políticas para diversidade sexual, órgão ligado à Secretaria da Justiça de São Paulo, informou que a Lei Estadual 10.948, de combate à homofobia, de 5 de novembro de 2001, destina garantir o tratamento igualitário entre qualquer cidadão e veta qualquer discriminação por conta da sexualidade do indivíduo.

“Ele [o transexual de Itu] tem identidade de gênero feminina. Acho que dirigir ambulância não é exclusivo de homens. Há mulheres que também dirigem. Portanto, não se pode impedir alguém de se vestir como mulher”, disse o advogado.

De acordo com Dimitri, transexual é aquele ou aquela que deseja alterar o corpo. Ele explica que o travesti é o indivíduo que tem identidade de gênero feminino, mas não faz a cirurgia. Já o homossexual é aquele ou aquela que se relaciona com pessoas do mesmo sexo.

Link para a notícia completa: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1070008-5605,00-MOTORISTA+TRANSEXUAL+DE+ITU+ENTRA+NA+JUSTICA+PARA+TRABALHAR+DE+VESTIDO+E+BA.html

Jurisprudência de Portugal

Nós, brasileiros, temos a mania feia de fazer piadas de portugueses, só porque a lógica de Portugal difere um pouco da lógica brasileira. :-)

Sei que o blog é lido por muitos portugueses e, como estou em terra alheia, sei que não é de bom tom ficar reproduzindo piadas preconceituosas, com as quais não concordo e não acho a menor graça. :-)

Porém, quando vi a decisão abaixo, não resisti, até porque não se trata de piada, mas de uma situação real.

Trata-se de uma decisão judicial em processo de execução em que o juiz “reduziu” a penhora de 1/6 para 1/5 dos vencimentos recebidos pelo executado! Tudo para favorecê-lo!!!

Se eu fosse o executado, pediria ao juiz para “aumentar” a penhora para 1/1000, a fim de garantir melhor o juízo. :-)

A decisão pode ser lida aqui. (extraída do blog “De Rerum Natura”).

FiloZofando com o macaquinho Marmelstão

Depois que o Hugo Segundo divulgou o seu “teorema da malemolência“, me senti à vontade para divulgar aqui uma criação “de um amigo”, que é o macaquinho Marmelstão, metido a filósofo.

Aqui vão algumas de suas peripécias:

as peripécias do macaquinho marmelstão
as peripécias do macaquinho marmelstão
as aventuras do macaquinho marmelstão
as aventuras do macaquinho marmelstão
as bricadeiras do macaquinho marmelstão
as bricadeiras do macaquinho marmelstão
as diabruras do macaquinho marmelstão
as diabruras do macaquinho marmelstão
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