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Eis o vídeo da palestra que proferi em João Pessoa em 27 de maio de 2016, sobre “Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais”, na Conferência Internacional “Investimento, Corrupção e o Papel do Estado: um Diálogo Suiço-Brasileiro”.
Foi uma palestra curta (de vinte minutos), em que parto de uma obviedade (“as garantias devem ser respeitadas”) para defender uma ideia simples, mas poderosa: “a justiça não é perfeita, nem infalível, mas tem a capacidade de aprender com os erros do passado”.
A partir daí, tento explicar como algumas teses jurídicas nas grandes operações anticorrupção foram construídas e se desenvolveram, a exemplo da condução coercitiva e da adoção da abertura do sigilo processual como regra. Algumas ideias já haviam sido adiantadas aqui.
Espero ter demonstrado que há um processo de aprendizagem contínua em que os órgãos anticorrupção se aprimoram, inclusive em reação às críticas do garantismo, para tentar conciliar a efetividade do processo penal com o respeito aos direitos fundamentais, seja por razões de princípios, seja por razões estratégicas. Em outras palavras: as críticas de ontem ajudam a explicar as práticas de hoje, e as críticas de hoje certamente moldarão as práticas futuras.
Não é preciso muito esforço para concluir que o sistema prisional brasileiro é caótico. O problema se agrava à medida que novos presos são incluídos no sistema, pois não há estrutura para tratar de modo individualizado e com celeridade a situação de cada preso. O resultado disso é a superlotação dos presídios com presos provisórios e com pessoas condenadas que já cumpriram sua pena ou já obtiveram o direito de progressão do regime, mas permanecem indevidamente presas sem uma resposta estatal em função da demora na análise de seus casos.
Diante desse quadro, serão formuladas no presente texto duas propostas de mudança na arquitetura decisória para facilitar o caminho para a liberdade. A ideia é baseada nos conceitos de “nudges” e “arquitetura de escolhas”, desenvolvidos pelas ciências comportamentais. Nudges são pequenos incentivos que podem influenciar o processo de tomada de decisões, sem cercear a liberdade de escolha. Arquitetura de escolhas corresponde ao formato do arranjo (design) adotado para que as melhores decisões sejam tomadas em uma determinada direção. A lógica é extremamente simples: existem alguns fatores sutis que influenciam a tomada de decisões que podem ser organizados para guiar as escolhas em uma determinada direção; logo, é possível promover a realização de objetivos desejáveis por meio de pequenas mudanças na arquitetura de escolhas, bastando que sejam criados mecanismos que reduzam os ônus da decisão na direção certa. Um exemplo clássico que ilustra o funcionamento de nudges e arquitetura de escolhas é a organização dos alimentos em uma prateleira de modo a facilitar o acesso a comidas saudáveis. Essa simples mudança “arquitetônica” é capaz de fazer com que as pessoas alterem seus hábitos de alimentação, sem que seja necessário impor qualquer tipo de dieta ou restrição alimentar (sobre isso, Thaler & Sunstein. Nudge: o empurrão para a escolha certa).
De certo modo, o processo penal já adota alguns modelos decisórios que são desenhados para promover a liberdade. Por exemplo, a própria decretação da prisão preventiva exige um ônus argumentativo maior do que o seu indeferimento. Nesse sentido, o dever de fundamentação funciona como um nudge (“empurraozinho”) capaz de facilitar a decisão em favor da liberdade, impondo um fardo intelectual maior para a escolha que implique o encarceramento. Do mesmo modo, a distribuição dos ônus da prova exige um esforço cognitivo mais intenso para a condenação do réu, tendo como base a presunção de inocência. O atual formato da prisão em flagrante também segue a mesma lógica: na ausência de fatores que justifiquem a decretação da prisão preventiva, o acusado deve responder o processo em liberdade.
Mas é possível ir além – e é justamente o propósito do presente texto. Serão formuladas duas propostas extremamente simples que possuem um enorme potencial de mudar a lógica do sistema. A premissa é esta: ninguém deve ficar preso por mais tempo do que o devido. Portanto, é preciso estruturar o modelo decisório de tal modo que as falhas do sistema não prejudiquem o direito de liberdade.
A primeira proposta é uma sutil modificação no sistema de decretação de prisão preventiva. A prisão preventiva, atualmente, é decretada sem prazo determinado, de modo que só há a soltura do acusado após outra decisão judicial concedendo a liberdade. Muitas vezes, há excesso de prazo na instrução processual, e a preventiva se estende por um prazo maior do que o permitido. Um meio simples de se evitar isso seria exigir que, em toda decisão judicial que decreta a prisão preventiva, já fosse incluída, obrigatoriamente, uma ordem de soltura após determinado prazo, salvo se fosse proferida decisão em sentido contrário. Ou seja, já ficaria pré-determinado o prazo final da prisão preventiva, de modo que a manutenção do réu na prisão para além desse prazo deveria exigir uma nova decisão judicial analisando a conveniência de mantê-lo preso. Perceba que não se trata de impedir a prorrogação da prisão preventiva, já que há casos mais complexos em que a instrução processual pode se estender razoavelmente para além do prazo previsto originalmente. A medida, em verdade, apenas impõe um ônus maior caso se decida que o réu deve continuar preso.
Esse tipo de nudge é conhecido como “regra padrão” (“default rule“) e costuma extremamente eficaz. A arquitetura de escolha é planejada para que a solução “automática” (regra padrão) seja a solução desejável, permitindo que o objetivo que se deseja promover seja alcançado de modo mais rápido e menos custoso. No caso, como se deseja que o preso provisório não fique encarcerado para além do estritamente necessário, cria-se um mecanismo de soltura automática, já embutido no próprio mandado de prisão (ou seja, em tese sequer seria preciso a expedição de um alvará de soltura, pois o próprio mandado de prisão cumpriria tal finalidade), sem impedir, contudo, a manutenção da prisão se houver necessidade. O arranjo decisional é configurado de tal modo que a inércia favoreça a liberdade.
A segunda proposta é igualmente simples e segue a mesma lógica, mas o campo de aplicação é a progressão de regime prisional. Hoje, muitos presos deixam de obter a progressão do regime por uma incapacidade do sistema de analisar a situação individualizada de cada preso. Uma fórmula fácil de resolver esse problema seria exigir que, já no início da execução da sentença condenatória, fosse estabelecido o calendário de progressão a ser observado, ressalvando-se a possibilidade de alteração do cronograma por decisão fundamentada. Ou seja, ao iniciar o cumprimento da pena, todos já saberiam de antemão quando ocorreria a mudança de regime e, caso não houvesse qualquer fato superveniente capaz de justificar a alteração dos planos, o processo de progressão seria automático e ocorreria independentemente de nova decisão judicial. Com isso, seriam reduzidos vários custos no processo de análise dos pedidos de progressão, e o sistema funcionaria naturalmente para que o preso não fique na prisão além do tempo devido. O réu não seria prejudicado pela falta de estrutura do sistema, uma vez que a progressão do regime já estaria previamente programada para ocorrer automaticamente, salvo se surgissem fatos supervenientes que justificassem uma nova decisão. Também não haveria violação da individualização da pena, pois estaria sempre aberta a possibilidade de revisão do programa original, cabendo ao estado o ônus de justificar qualquer mudança.
Como se vê, esses pequenos “empurrões” para a liberdade possuem um baixo custo de implementação e um alto impacto para a melhoria do sistema. A lógica é simples, intuitiva e fácil de ser assimilada, pois é baseada em uma mera mudança de configuração do arranjo decisório, a fim de evitar o encarceramento desnecessário. Além disso, não há uma restrição do poder decisório dos juízes, pois é sempre ressalvada a possibilidade de alteração do plano original por meio de uma decisão superveniente, que leve em conta as particularidades de cada situação. O segredo é estabelecer um arranjo decisório que tenha consciência das falhas estruturais do sistema e use isso em favor da liberdade. Isso é feito a partir de uma definição antecipada de determinados eventos pró-liberdade, que serão ativados automaticamente caso nenhum comando contrário seja dado em seguida. Talvez esses simples arranjos decisórios não sejam suficientes para resolverem todos os problemas do sistema prisional, mas com certeza podem pavimentar o caminho para que ninguém fique preso por mais tempo do que o necessário.
* O presente artigo foi escrito com a colaboração de Fernando Braga, que forneceu as ideias para o insight original e ajudou com alguns argumentos.
Já adianto que o presente post não é sobre o acerto ou erro das decisões proferidas na Lava-Jato, embora algumas questões polêmicas daquele processo servirão para ilustrar a tese central. Também não é pretensão deste texto tentar justificar ou legitimar a condução do processo pelo Juiz Sérgio Moro, mas apenas auxiliar a compreender como algumas teses processuais foram construídas. O propósito central é demonstrar que alguns posicionamentos envolvendo, por exemplo, o protagonismo judicial na fase de investigação, a condução coercitiva durante o cumprimento de mandados de busca e apreensão ou a abertura do sigilo das interceptações telefônicas se originaram de preocupações garantistas ou, pelo menos, foram desenvolvidas em resposta a uma jurisprudência garantista que se firmou nos tribunais superiores.
Dada a polaridade de visões sobre a condução da Lava-Jato (alguns vendo o Juiz Sérgio Moro como “herói”; outros, como “fascista”), não espero que concordem com o que eu digo, mas garanto que minha preocupação não é esta. A função deste texto é mais descritiva do que normativa. Tentarei demonstrar, a partir de exemplos, que algumas soluções criticadas por serem anti-garantistas são, na verdade, uma evolução de práticas ainda menos garantistas. Ou seja, as decisões estão inseridas em um contexto jurisprudencial ainda não muito bem definido (e, portanto, em um limbo jurídico à espera de definição), mas que procuram alcançar um tipo de equilíbrio entre a efetividade do processo e as garantias processuais. (O quanto essa preocupação em conciliar a efetividade do processo com as garantias individuais tem sido bem-sucedida é um ponto que deixo ao leitor decidir).
Como ponto de partida, temos que perceber que o modelo processual penal brasileiro não foi arquitetado para o combate à macrocriminalidade e, portanto, não temos uma larga experiência em lidar com demandas desse tipo. Somente nos últimos 10 ou 15 anos é que começaram a ser regulamentados alguns institutos de combate à organização criminosa (como a delação premiada ou a escuta ambiental, por exemplo) e alguns processos de grande complexidade, envolvendo organizações criminosas poderosas, passaram a ser alvo de ações planejadas, sendo que, muitas delas, foram anuladas em grau de recurso justamente porque não havia ainda uma jurisprudência bem consolidada sobre os limites da investigação. Foi construída, em torno disso, uma jurisprudência garantista, que, dentre outras coisas, estabeleceu que diversas medidas invasivas estariam sujeitas à chamada reserva de jurisdição e, portanto, somente poderiam ser autorizadas por um juiz. A aplicação rigorosa da tese da proibição de provas ilícitas reforçou ainda mais a necessidade de cautela nesta fase, tornando o juiz uma figura central na investigação da macrocriminalidade, pois as autoridades responsáveis pela investigação, com receio de que suas condutas fossem anuladas judicialmente, passaram a se socorrer do judiciário sistematicamente, a fim de respaldar suas ações.
Então, perceba que o protagonismo do judiciário ainda nesta fase de investigação já nasce de uma preocupação garantista. A atuação judicial na decretação de quebra de sigilo, busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica e ambiental, é uma exigência que funciona como limite aos poderes das autoridades responsáveis pela investigação. Certamente essa fórmula não é um remédio capaz de impedir completamente eventuais abusos cometidos até mesmo pelos juízes. Mas não há dúvida de que há uma preocupação garantista nesta exigência de reserva de jurisdição, sobretudo quando acompanhada de outras exigências garantistas relacionadas ao exercício da jurisdição (imparcialidade, independência, dever de fundamentação, direito ao recurso etc.).
Um ponto que pode ser passível de questionamento é saber até que ponto um juiz que participa diretamente da investigação, autorizando uma série de medidas invasivas contra os investigados, julgará o caso com isenção, já que pode haver uma tendência psicológica de querer confirmar o acerto de suas decisões passadas. Não tenho dúvida de que, no futuro, pode haver uma evolução no sistema para impedir que o juiz que atua na fase de investigação julgue a ação penal, possibilitando uma maior imparcialidade na avaliação das informações colhidas durante a investigação. Hoje, o modelo processual adotado no Brasil não estabelece nenhum tipo de impedimento para que o juiz que atuou na fase de investigação também participe do processo e julgamento, o que pode ser considerado como uma falha do sistema.
Outra tese garantista para evitar abuso da investigação foi construído em torno da decretação da prisão temporária. Em regra, quando havia a necessidade de se realizar uma busca e apreensão em vários locais ao mesmo tempo e evitar a destruição de provas ou a conversa entre os investigados antes da tomada dos depoimentos, decretava-se a prisão temporária. A medida, em muitas situações, era excessiva e funcionava (como, em alguns casos, ainda funciona) como uma forma de humilhação pública do investigado. É nesse contexto que o garantismo, corretamente, denunciou (como ainda denuncia) a banalização das prisões temporárias.
A reação a isso foi a construção da tese da condução coercitiva como medida substitutiva da prisão temporária. Ao invés de se decretar uma prisão de 5 dias, o juiz concede uma ordem para que o investigado tenha a sua liberdade de locomoção restringida pelo prazo necessário para o cumprimento dos mandados de busca e apreensão e para a tomada do depoimento. Após isso, o investigado é liberado independentemente de qualquer ordem judicial. Veja-se que a função dessa condução coercitiva é relativamente distinta da condução coercitiva de testemunhas e investigados que se recusam a comparecer perante a autoridade para serem ouvidos, pois, nestes casos, sequer é preciso ordem judicial, e a mera recusa de comparecimento já é, por si só, fundamento bastante para se autorizar a condução coercitiva. No caso da condução coercitiva como forma de garantir a eficácia do cumprimento dos mandados de busca e apreensão e evitar a comunicação entre os investigados, o que se tem, a rigor, é uma prisão temporária com prazo mais curto, o que, obviamente, exige ordem judicial e deve ser fundamentada (o nome “prisão temporária de curtíssimo prazo” não é adotado justamente para não gerar um estigma capaz de diminuir a posição do investigado perante a sociedade. Aliás, nem mesmo os juízes chamam essa condução coercitiva de prisão e provavelmente não concordarão com isso, mas, no fundo, sua função é de restringir a liberdade de locomoção para possibilitar a coleta de dados necessários à investigação, o que, na minha ótica, é uma quasi-prisão).
No caso da condução coercitiva do ex-Presidente Lula, há uma série de controvérsias fáticas (e políticas!) que tornam a análise mais difícil. De qualquer modo, é preciso que se tenha em mente que o objetivo da condução coercitiva decretada judicialmente não foi somente a tomada do depoimento do investigado, mas também a facilitação da coleta dos demais elementos de provas, como meio substitutivo da prisão temporária. Mesmo que se considere inconstitucional a condução coercitiva de um investigado para ser ouvido perante a autoridade policial, já que ele possui o direito ao silêncio ou o direito de não colaborar com a investigação contra si, isso, em princípio, não afasta a outra finalidade da condução coercitiva em casos assim: evitar a comunicação com os outros investigados durante o cumprimento dos vários mandados de busca e apreensão. Se isso é juridicamente possível ou não, é algo a se discutir. O certo é que a autorização para a condução coercitiva condicionada à recusa de acompanhamento voluntário teve, por incrível que possa parecer, uma preocupação garantista de evitar a decretação da temporária (que, aliás, foi pedida pela acusação, mas indeferida pelo juiz) que certamente seria uma medida bem mais gravosa.
Ressalto que não há como ter certeza se a própria adoção de medidas invasivas contra o ex-Presidente eram necessárias ou não, ante a falta de informações completas que levem a uma avaliação mais ampla do ocorrido. Não é possível afirmar categoricamente que o juiz errou ou acertou sem conhecer todos os fatos detalhadamente, a não ser se você partir de posições absolutas do tipo “o juiz pode tudo” ou “contra o ex-Presidente nada pode ser feito”. De qualquer modo, repito que não é minha intenção avaliar a decisão judicial ou não, mas tão somente explicar que até mesmo a condução coercitiva tem uma origem “garantista”, como forma de evitar a prisão temporária.
E a abertura do sigilo processual? Como isso pode ser fruto de uma tese garantista?
Esse é um ponto bem interessante, porque, no passado, a regra era a manutenção do sigilo do processo durante toda a investigação, inclusive para os advogados. Em alguns casos, o sigilo era mantido mesmo depois da decretação da temporária, o que violava claramente o direito de defesa, pois os advogados não tinham acesso a qualquer informação para questionar a medida. Foi nesse contexto que surgiu a tese garantista de que os advogados teriam direito de acesso aos elementos de provas já documentados necessários ao exercício do direito de defesa (súmula 14 do STF).
A súmula 14 gerou uma situação curiosa, pois o sigilo da investigação geralmente era decretado para garantir a eficiência da coleta de dados, sobretudo de interceptações telefônicas. A partir do momento em que o advogado passa a ter o direito de acesso aos dados coletados, o sigilo parece perder o sentido (pelo menos do ponto de vista da investigação), pois, obviamente, de nada adianta uma interceptação de um investigado que sabe que está sendo gravado. Além disso, como várias pessoas diferentes passaram a ter direito de acesso às informações interceptadas, o risco de vazamento tornou-se muito maior.
Diante disso, alguns juízes passaram a defender (isso muito antes da Lava-Jato) que, uma vez coletados os elementos de prova, a tramitação sigilosa do processo não faria mais sentido. Há vários fundamentos para isso: (a) a constituição impõe, como regra, a publicidade do processo; (b) a sociedade tem o direito de saber o que se passa nos autos (seja para fiscalizar a atuação do juiz, seja para ter conhecimento dos dados processuais, sobretudo quando envolve pessoas politicamente expostas); (c) a manutenção do sigilo restringe o direito de informação e a liberdade de imprensa etc…. Sobre isso, vale muito a pena analisar os argumentos desenvolvidos pelo Nagibe Melo para justificar a abertura do sigilo das interceptações.
Assim, a abertura do sigilo pode ser, em algum sentido, uma medida salutar que, a um só tempo, permite o cumprimento da súmula 14 do STF e garante maior transparência na divulgação das informações de interesse público, evitando, em tese, o vazamento seletivo de apenas parte dos dados e proporcionando acesso igualitário da imprensa ao conteúdo dos elementos de prova coletados. Veja-se que essa prática começou bem antes da Lava-Jato e hoje tem sido uma medida adotada até mesmo pelo ministro Teori Zavaski. Muitas informações divulgadas durante as diversas fases da Lava-Jato, onde houve acusação de “vazamento seletivo”, nada mais foi do que a abertura do sigilo processual que ocorre em relação a todos os atos processuais realizados. (Se a imprensa usa esse material de forma seletiva, para fins políticos, aí são outros quinhentos. Mas, a rigor, todos os depoimentos tomados estão disponíveis ao público, até mesmo aqueles que podem eventualmente constranger o próprio julgador).
É óbvio que se pode questionar a abertura do sigilo quando há informações de caráter privado ou a divulgação tendenciosa que viola a presunção de inocência. Também é de se questionar a própria validade da interceptação realizada, sobretudo em relação a eventuais conversas que ocorreram quando já havia uma ordem judicial determinando a interrupção da interceptação. Mas ao afirmar isso já estamos entrando em um nível mais avançado do debate, que é partir para a correção ou não das decisões concretas, o que depende de uma análise mais detalhada dos dados fáticos que embasaram as decisões, algo que foge aos escopos do presente texto.
Como se vê, há todo um contexto mais amplo por detrás de cada posicionamento judicial adotado. Isso não significa que tais posicionamentos sejam corretos, nem que atingiram o nível ideal de equilíbrio entre a efetividade e a garantia. Pelo contrário. Como disse, não foi o meu objetivo defender essas práticas, mas apenas descrever o desenvolvimento dos posicionamentos adotados para contribuir para o amadurecimento do debate. Por mais questionáveis que sejam as técnicas investigativas adotadas durante as grandes Operações Policiais, inclusive a Lava-Jato, não se pode negar que tem havido, por parte da jurisprudência, uma preocupação com as garantias individuais e, em muitos casos, os posicionamentos que atualmente são acusados de serem anti-garantistas são reações ou respostas à jurisprudência garantista até então dominante nos tribunais superiores. Pode ser que essas medidas venham a ser tidas como inconstitucionais, mas é preciso saber que elas já são uma segunda etapa da primeira onda que houve nas grandes operações policiais, que foram anuladas por violação das garantias. É por isso que os advogados de defesa sentem dificuldades em mudar as decisões da Lava-Jato. De algum modo, as decisões tentam se amoldar à jurisprudência garantista firmada durante a “primeira onda” e trazem inovações que ainda não foram suficientemente amadurecidas pela jurisprudência.
É importante que essas questões sejam mesmo submetidas a um escrutínio público mais amplo, para verificar o seu erro ou o seu acerto. É preciso sim verificar se houve abusos e controlá-los pelas vias recursais previstas. Como existem, pelo menos, três instâncias de julgamento acima do juiz de primeiro grau, há ampla margem de debate jurídico sobre a correção de todas as decisões judiciais, seja sob o aspecto da correta avaliação dos fatos, seja pelo aspecto da correta avaliação do direito aplicável. É preciso também desconfiar do poder, independentemente de quem o exerce. O que não me parece saudável é criar rótulos sem se dar ao menos ao trabalho de conhecer com mais profundidade o contexto das teses adotadas.
Alerta Preliminar: este texto é ensaboado.
Não é fácil falar sobre o acerto ou o erro da decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a execução da pena após decisão condenatória de segunda instância ainda recorrível. Apesar de envolver conceitos supostamente técnicos (presunção de inocência, execução provisória da pena, efeitos dos recursos não-ordinários etc.), o tema está inserido em uma rede ideológica mais ampla que abrange questões espinhosas como a legitimidade e os fundamentos do direito penal, a finalidade da pena, o escopo do processo penal, a eficiência da política de encarceramento, o respeito à dignidade dos presos, a confiança nos juízes e assim por diante. Então, é óbvio que uma pessoa minimante consciente das mazelas do modelo penal brasileiro deve sentir arrepios só de se pensar em mandar alguém pra prisão, sobretudo quando há um recurso pendente de apreciação e se sabe que os danos causados pelo encarceramento são sérios e irreversíveis.
Diante disso, aplaudir, sem um olhar crítico, o posicionamento do STF em favor da execução antecipada da pena tende a gerar uma certa conivência com uma prática de violações sistemáticas de direitos que cotidianamente são praticadas contra os presos, que já foi constatada pelos próprios ministros recentemente (ADPF 347/DF).
Por outro lado, também não se pode fechar os olhos para a impunidade seletiva que existe no Brasil. Há determinados réus que praticam determinados tipos de crime que jamais irão cumprir sua pena por uma razão muito simples: o sistema não consegue alcançá-los. Isso não é uma falha pontual do sistema. Qualquer advogado que conhece os labirintos do processo penal brasileiro é capaz de evitar, na maioria dos casos, a punição de seu cliente e, sem dúvida, a blindagem gerada pela interpretação que o STF vinha dando à presunção de inocência contribuía bastante para esse estado de coisas.
Do mesmo modo, não se pode deixar de reconhecer uma ambivalência do direito penal, onde ora ele funciona como um instrumento essencial para uma convivência ética entre as pessoas, ora funciona como um instrumento de opressão contra determinados grupos. Crimes são praticados contra bens jurídicos fundamentais (vida, liberdade, integridade física e moral etc.), e, portanto, deixar impunes essas violações de direitos transforma também o Estado em um violador de direitos por omissão (por não cumprir o dever de proteção). Ao mesmo tempo, há muito abuso cometido em nome do poder de punir, afetando especialmente os subcidadãos, para quem as garantias constitucionais costumam ser uma quimera. Tem-se aí, portanto, a ambivalência do direito penal. Por isso, é preciso evitar a todo custo um discurso maniqueísta do tipo: se você é a favor das garantias, é amiguinho dos bandidos; se você é contra as garantias, é um velhaco fascista. Menos. Nem toda punição é ilegítima, mas também não é legítima de per si. A polarização do debate, em que os extremos não se escutam, nem fazem questão de dialogar, parece ser uma das principais causas do fracasso do modelo criminal brasileiro.
É nesse cenário meio esquizofrênico que irei manifestar minha opinião. Vou me concentrar no lógica do sistema de imputação de responsabilidade penal e o que se pode extrair de relevante da garantia constitucional de presunção de inocência. Eis as teses a serem defendidas: (a) a presunção de inocência não impede a prisão após decisão condenatória recorrível; (b) por outro lado, o mesmo princípio não autoriza (na verdade, proíbe) a prisão automática (sem fundamentação) após decisão condenatória recorrível; (c) a prisão após decisão condenatória recorrível deve ser justificada à luz das circunstâncias do caso concreto e deve ter uma natureza cautelar e não de antecipação provisória da pena.
De início, é preciso desfazer alguns mal-entendidos.
Primeiro. É erro dizer que o STF sempre interpretou o princípio da presunção de inocência como uma cláusula proibitiva da prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Pelo contrário. A jurisprudência do STF, seguindo uma linha que parece ser a dominante no resto do mundo, sempre admitiu a prisão após sentença condenatória recorrível (de primeira instância!), só vindo a mudar esse posicionamento em 2009, quando passou a entender que a execução provisória da pena seria incompatível com a presunção de inocência. Logo, é exagero afirmar que o STF quebrou uma longa tradição ou rompeu com uma histórica garantia consolidada na consciência jurídica nacional. Longe disso. O STF apenas voltou atrás, mudando um entendimento que vigorou por cerca de seis anos.
Segundo. Mesmo depois de 2009, o STF admitia a prisão antes do trânsito em julgado em determinadas situações (e não me refiro apenas às prisões cautelares típicas ou à prisão em flagrante). Assim, por exemplo, era e continua sendo praxe no processo do júri que o réu vá preso após a decisão condenatória dos jurados, mesmo que interponha recurso. O mesmo também ocorre em relação a crimes violentos graves (roubo, latrocínio, estupro etc.), onde as prisões provisórias costumam ser mantidas por longo tempo antes e após a condenação, mesmo sem o trânsito em julgado. Assim, a jurisprudência que impedia a execução provisória da pena tinha um viés seletivo e beneficiava sobretudo os réus de crimes não-violentos (não necessariamente menos graves), cujos advogados eram capazes de manejar o processo penal para impedir o trânsito em julgado, o que não é algo tão difícil de fazer. Para a massa de presos provisórios que superlotam os presídios nacionais, esse vai e vem jurisprudencial tem um efeito muito pequeno.
Feitos esses esclarecimentos, vamos ao principal. Afinal, como compatibilizar uma prisão antes do trânsito em julgado com o princípio da presunção de inocência?
Essa é uma pergunta interessante e parece só fazer sentido no Brasil, pois, de um modo geral, a sentença condenatória, mesmo de primeira instância, já é suficiente para justificar o encarceramento na imensa maioria dos países que adotam o princípio da presunção de inocência (sobre isso, vale uma leitura no voto do Min. Zavascki, onde foi citado um estudo comparando o tratamento dessa tema em vários países).
A possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória na quase totalidade dos países que adotam esse princípio decorre da origem histórica dessa garantia. A expressão “ninguém será considerado culpado” está mais relacionada com o ônus da prova, no sentido de compete à acusação apresentar provas convincentes e suficientes da culpa (para além de qualquer dúvida razoável), demonstrando de modo consistente que o réu praticou o crime. Em caso de dúvida sobre autoria ou materialidade do delito, o réu deve ser inocentado. Assim, boa parte do desenvolvimento jurisprudencial humanitário global que se desenvolveu em torno da presunção de inocência gira em torno do direito probatório e não da decretação da prisão antes do trânsito em julgado.
Mas é óbvio que, ao afetar o direito probatório, a presunção de inocência também pode e deve influenciar a aplicação de medidas restritivas de direitos dos acusados. Em princípio, o réu não pode sofrer diminuição de seu status jurídico (perder bens, liberdade ou vida) sem que a sua responsabilidade seja aferida dentro do devido processo legal, com todas as garantias daí inerentes. Foi nesse contexto que, no Brasil, o princípio da presunção de inocência foi transferido, acertadamente, para o tema das prisões, visando evitar a decretação banalizada de medidas restritivas de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A decretação da prisão, portanto, em nome do princípio da presunção de inocência e da liberdade, deve ser tratada como medida excepcional.
Mas perceba que, mesmo quando incorporado ao debate sobre decretação de prisão, a presunção de inocência não tem o condão de impedir a restrição de direitos antes do trânsito em julgado. Há várias situações em que é possível a prisão sem que haja uma condenação definitiva, bastando lembrar a prisão em flagrante e a preventiva. Equiparar a expressão “ninguém será considerado culpado” com “ninguém será preso” ou “ninguém terá direitos restringidos” [antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória] é uma interpretação que não parece nem um pouco razoável, até porque a constituição expressamente prevê a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado (artigo 5o, inc. LXI).
Além disso, o contexto problemático que justificou a adoção da presunção de inocência, conforme já dito, não estava relacionado ao uso de prisões antes do trânsito em julgado, mas à inversão do ônus da prova contra o réu. Confesso que não conheço nenhum país que interprete a expressão “ninguém será considerado culpado” como uma blindagem jurídica a impedir qualquer medida restritiva contra o réu durante a tramitação do processo criminal. Sobre isso, lanço o seguinte desafio: há algum país que interprete a garantia de presunção de inocência como uma proibição de decretação de prisão após sentença condenatória recorrível? Que tal levar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos para ver o que ela diz?
O que a presunção de inocência exige, em matéria não-probatória, é que a restrição de direitos seja precedida do devido processo, respeitando-se as garantias daí inerentes, especialmente o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade do julgador e o dever de fundamentar a decisão. Antes do trânsito em julgado, o juiz pode, por exemplo, sem violar a presunção de inocência, determinar, de forma fundamentada, o bloqueio ou sequestro de bens do acusado, a suspensão de algumas atividades, a prisão preventiva, a quebra de sigilo de dados pessoais, a interceptação telefônica, a busca domiciliar, dentre inúmeras outras medidas restritivas.
Assim, na minha ótica, quando aplicado ao campo das prisões, o princípio da presunção de inocência tem sim alguma relevância, mas não ao ponto de impedir, por completo e em absoluto, a restrição da liberdade de locomoção. A presunção de inocência é capaz de, por exemplo, gerar a inconstitucionalidade das leis que exigem o recolhimento à prisão como pressuposto de admissibilidade de recursos ou então quando estabelecem que a sentença condenatória é suficiente para justificar, sem outras considerações, a decretação automática da prisão. De certo modo, a jurisprudência de 2009, ao mudar o posicionamento anterior e proibir a execução provisória da pena, teve, pelo menos, o mérito de deixar claro que as técnicas anteriormente adotadas (que banalizavam a decretação da prisão antes do trânsito em julgado) eram inconstitucionais. O erro naquela ocasião foi jogar o pêndulo para o extremo oposto, sem prever qualquer possibilidade de decretação da prisão após a condenação recorrível, mesmo diante de uma eventual risco de inefetividade da tutela penal ou mesmo diante do manifesto caráter protelatório dos recursos interpostos.
A nova decisão (de 2016), ao permitir a execução provisória da pena após decisão de segunda instância recorrível, aparentemente joga de volta o pêndulo para o lado contrário, talvez de um modo desastrado, pois não foi capaz de assimilar as críticas que justificaram o movimento pendular. Certamente seria melhor, para a busca de um equilíbrio, admitir a possibilidade da decretação da prisão após decisão condenatória apenas em determinadas circunstâncias. Ou seja: ao invés de autorizar a prisão automática após a decisão condenatória de segunda instância, seria melhor desenvolver parâmetros capazes de justificar a decretação da prisão, de natureza cautelar, após a condenação em segunda instância, para “assegurar a aplicação da lei penal”, como está inclusive previsto no artigo 312 do CPP.
E que parâmetros seriam esses?
A meu ver, os parâmetros propostos no Projeto da Ajufe são um bom ponto de partida para um debate mais qualificado. Ao invés de autorizar a execução provisória da pena após a confirmação da sentença condenatória em segunda instância, o projeto prevê uma possibilidade de decretação da prisão preventiva ou outra medida cautelar após o acórdão condenatório, apenas para determinados crimes e somente em determinadas circunstâncias.
Os crimes que justificam a decretação da medida cautelar são de natureza bem grave, como os crimes hediondos, de tortura, de terrorismo, de corrupção etc.
Além disso, a prisão poderá ser substituída por medida cautelar “se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações penais se permanecer solto“.
No Projeto da Ajufe, a decretação da prisão ou da medida cautelar não é automática, devendo ser fundamentada com base, por exemplo, na culpabilidade, antecedentes, consequências e gravidade do crime, bem como no fato de o produto do crime ter sido recuperado ou não e o dano reparado ou não.
Também são previstos mecanismos de controle de validade da decisão que decreta a prisão preventiva ou a medida cautelar, como a possibilidade de atribuição do efeito suspensivo aos recursos extraordinários e especiais interpostos contra o acórdão condenatório. Aliás, nesse ponto, está prevista uma interessante possibilidade de se evitar a decretação da preventiva diante da propositura de recursos especiais ou extraordinários que apresentem questões jurídicas relevantes. Caso seja possível verificar a probabilidade de sucesso do recurso, o próprio tribunal recorrido poderá conceder o efeito suspensivo e evitar a decretação da prisão ou da medida cautelar. Por outro lado, um recurso meramente protelatório, que apenas reproduza argumentos já rechaçados da jurisprudência consolidada, não terá efeito suspensivo em relação às medidas cautelares decretadas.
Há, portanto, uma vantagem qualitativa (do ponto de vista das garantias) entre o projeto proposto pela Ajufe e a solução dada pelo STF. A decisão do STF permite a execução provisória da pena de um modo automático após a condenação em segunda instância, sem estabelecer qualquer parâmetro para isso. A mera decisão de segunda instância já é suficiente para decretar a prisão. A proposta da Ajufe impõe uma série de critérios para justificar a prisão preventiva ou medida cautelar que tenha como base a decisão condenatório de segunda instância e só vale para determinados tipos penais.
Diante disso, para concluir:
(a) a decisão do STF que permitiu a execução provisória da pena talvez não tenha sido a melhor solução para o problema, mas não foi necessariamente absurda se tivermos em mente o sentido jurídico da presunção de inocência em outros países e mesmo no Brasil antes de 2009;
(b) do ponto de vista semântico, tão relevante quanto debater qual o sentido de “antes do trânsito em julgado” é debater o sentido normativo de “ninguém será considerado culpado”, que certamente não pode se confundir com “ninguém será preso” ou “ninguém poderá ter direitos restringidos”;
(c) a decretação da prisão antes do trânsito em julgado continua sendo medida excepcional e, mesmo após a confirmação da segunda instância, precisa, na minha ótica, ser fundamentada;
(d) mesmo após a decisão do STF, me parece que, em determinadas situações, nada impede que o recurso especial ou extraordinário interposto contra acórdão condenatório seja recebido com o efeito suspensivo, sobretudo quando houver probabilidade de êxito do recurso, aferido pela relevância jurídica dos argumentos desenvolvidos;
(e) apesar da decisão do STF, a decretação da prisão antes do trânsito em julgado deve ser tratada como uma prisão de natureza cautelar, aplicando-se-lhe, portanto, o regime jurídico das medidas cautelares, inclusive a substituição da prisão preventiva por outras menos drásticas, desde que adequadas e necessárias.
Em recente decisão, o STF entendeu que um candidato ao cargo de agente penitenciário não pode ser excluído do concurso público apenas pelo fato de ter uma condenação criminal que ainda não transitou em julgado. Tal exclusão, segundo o STF, vulneraria o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, inc. LVII, da CF/88. (Clique aqui).
Referido precedente reforça uma interpretação que vem sendo adotada já há algum tempo pelo STF no sentido de que o princípio da presunção de inocência implica uma espécie de blindagem jurídica àquele que responde a um processo criminal ainda não transitado em julgado. Assim, antes da formação da coisa julgada penal, o acusado não poderia sofrer qualquer tipo de restrição à sua liberdade ou ao seu patrimônio jurídico, seja na instância criminal, seja em outras instâncias (eleitoral, administrativa, cível etc.).
Esse entendimento, a meu ver, precisa ser analisado com bastante cautela, sob pena de levar a absurdos gritantes, pois parte de uma equivocada noção de monopólio do juízo criminal para apurar responsabilidades. A rigor, referida posição condiciona a aplicação de sanções administrativas e civis ao término do processo penal, desrespeitando a necessária independência entre as diversas instâncias de julgamento. Explico.
Um mesmo fato jurídico pode configurar, a um só tempo, um ilícito penal, administrativo e civil. Por exemplo, alguém que, ao dirigir embriagado, atropela e mata um pedestre responderá pelo crime de homicídio, pela infração administrativa de embriaguez ao volante e, civilmente, por ter causado dano a outrem. O crime de homicídio, a ser apurado na instância penal, poderá resultar na aplicação de uma pena restritiva da liberdade. A embriaguez ao volante, a ser verificada na instância administrativa, poderá resultar na pena de suspensão da habilitação. A responsabilidade civil, por sua vez, poderá gerar o dever de reparar o dano causado. Há, como se nota, três instâncias de apuração de responsabilidades – a penal, a administrativa e a civil – que são, nesse caso, independentes entre si. Como os processos correm “em paralelo” e são conduzidos por diferentes órgãos de julgamento sem hierarquia entre si, nada impede que sejam aplicadas as sanções administrativas e civis, mesmo antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Para isso, basta que ocorra a respectiva apuração da responsabilidade (administrativa e civil) nas instâncias competentes. Aliás, como os critérios de apuração de responsabilidades não são exatamente idênticos, é possível que o acusado seja até mesmo inocentado na esfera penal e, mesmo assim, seja condenado a reparar o dano civil e a cumprir a devida pena administrativa.
O STF costuma rejeitar a possibilidade de restrição de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória sob o argumento de que o princípio da presunção de inocência se aplica a todas as áreas e não apenas à área penal, sendo dotado de efeito irradiante. Do mesmo modo, justifica esse entendimento com base na ideia de que o princípio da presunção de inocência não pode ser relativizado por conveniências sociais. Está parcialmente correto em ambas ponderações, pois é claro que o princípio da presunção de inocência se aplica à esfera administrativa/civil e não pode ser relativizado em nome de um fantasioso interesse público.
Porém, o raciocínio aqui desenvolvido não abre mão da aplicação do princípio da presunção de inocência fora da instância penal, nem implica qualquer tipo de relativização contingente desse direito fundamental. O que estamos tentando demonstrar é que não se pode extrair do princípio da presunção de inocência a conclusão de que nenhuma restrição de direitos, na esfera administrativa ou civil, pode ser aplicada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sob pena de desconsiderar a independência entre as respectivas instâncias.
Afirmar que a solução definitiva do processo penal é condição indispensável para imputação da responsabilidade civil e administrativa é ignorar o real significado do princípio da presunção de inocência, sobretudo quando conjugado com o princípio do devido processo. De fato, ninguém pode sofrer qualquer tipo de restrição jurídica sem ter chance de participar efetivamente de um processo justo, seja na via judicial, seja na via administrativa. O processo justo exige que ninguém seja considerado culpado antes de ter sido comprovada em definitivo a prática da conduta antijurídica. Em outras palavras: não pode haver uma condenação prematura, que desconsidere arbitrariamente o estado de inocência da pessoa a ser afetada. Assim, ressalvados os ônus processuais normais, a pessoa que responde a um processo – judicial ou administrativo – não pode sofrer qualquer restrição no seu patrimônio jurídico, inclusive na sua liberdade, sem que exista um juízo definitivamente formado sobre a ilicitude de sua conduta.
Mas a formação do juízo de culpa ocorre, de forma autônoma, em cada esfera de apuração de responsabilidade. Sempre partindo de uma presunção quanto ao estado de inocência da pessoa a ser afetada pela decisão, a autoridade competente somente pode imputar a responsabilidade penal, civil ou administrativa e aplicar a respectiva sanção após reunir elementos de prova suficientes que demonstrem que aquela pessoa, de fato, praticou a conduta ilícita. A verificação da prova dos fatos não é de exclusiva competência da instância criminal, pois cada esfera de julgamento praticará atos processuais destinados a apurar o cometimento do ato ilícito em suas respectivas áreas.
Para deixar ainda mais claro esse ponto de vista, imagine a situação de um servidor que tenha praticado um ato que, a um só tempo, seja enquadrado como um ilícito penal e administrativo. Tal servidor será chamado a responder por sua conduta tanto na esfera penal quanto na administrativa. As duas esferas poderão apurar a responsabilidade do servidor de forma independente, cada qual ouvindo testemunhas, analisando documentos e realizando os demais atos de instrução pertinentes. Os processos judicial e administrativo tramitarão “em paralelo” e serão julgados por órgãos distintos. Em geral, o processo administrativo tramita mais rápido, pois os critérios de prova são menos rigorosos. Diante disso, é perfeitamente possível que a pena administrativa seja aplicada antes da condenação penal, não sendo preciso que se aguarde o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para aplicar uma sanção administrativa. O importante é que a instância administrativa tenha seguido todas as etapas do processo justo e concluído que há elementos suficientes para a formação da culpa em relação ao ilícito administrativo. Não é possível – nem deve ser possível – condicionar a aplicação da pena administrativa ao fim do processo criminal, até porque os critérios de apuração da responsabilidade são diferentes.
Não conheço os detalhes do caso julgado pelo STF, que levou à reinclusão de um candidato condenado criminalmente em um concurso para o cargo de agente penitenciário. Por isso, não tenho como formular qualquer juízo de valor sobre o acerto ou equívoco da decisão, nem pretendo fazê-lo. No entanto, se a análise da vida pregressa do candidato é uma parte importante no processo de seleção para o cargo de agente penitenciário, é preciso compreender bem o papel da comissão do concurso no desempenho típico dessa função.
A meu ver, um candidato pode ser, motivadamente, excluído do certame na fase de investigação da vida pregressa, caso existam razões fortes que justifiquem tal medida. O erro é considerar que a mera existência de um processo penal ou mesmo de uma condenação penal não-definitiva seja razão, por si só, suficiente para excluir alguém de um concurso. Não é por vários motivos: a pessoa pode ter sido condenada por um fato banal, que não justificaria a exclusão; a pessoa pode ter sido condenada sem provas; a pessoa pode ter sido condenada por um juízo incompetente. Enfim, há vários motivos que impedem uma automática exclusão do candidato tão só pelo fato de responder a uma ação criminal. Por exemplo, se o candidato tivesse sido condenado em primeira instância por um crime contra a honra ou por um crime qualquer que não significasse um óbice ao exercício do cargo de agente penitenciário, uma eventual exclusão do concurso seria, a meu ver, arbitrária.
Por outro lado, seria necessário ligar o “sistema de alerta” se o candidato tivesse sido condenado por associação com organizações criminosas ou outro crime que colocasse em dúvida a sua integridade para o exercício do cargo, sendo dever da comissão do concurso analisar com mais detalhe referida situação. Nessa hipótese, a comissão poderia levar em conta os elementos de prova produzidos na instância penal (prova emprestada) para avaliar a capacidade moral do candidato. Se os fatos que levaram à condenação criminal forem capazes de justificar a exclusão do referido candidato, não há qualquer problema em impedir a sua participação, sobretudo pela natureza específica daquele cargo.
Mas é preciso evitar outro erro: mesmo que o candidato responda a um processo por algum crime grave, é preciso que, na etapa da investigação da vida pregressa, a comissão formule um juízo autônomo de culpa (independente do juízo criminal), dando-se ampla chance de defesa para que o candidato possa apresentar suas razões, seguindo todas as exigências do contraditório e da ampla defesa. Formado o juízo de incapacidade moral na esfera administrativa, no sentido de concluir que aquele candidato praticou atos incompatíveis com a posição de um servidor público que atuará dentro de um presídio, parece-me perfeitamente possível excluí-lo do certame, ainda que a apuração criminal não tenha sido concluída em definitivo. Mas insisto: essa exclusão não pode ser motivada apenas com base na condenação criminal, pois é essencial que haja uma devida apuração dos fatos também na instância administrativa pela comissão do concurso. Em todo caso, é obviamente possível haver o controle judicial dos motivos adotados pela comissão.
Em conclusão: não se deve interpretar a presunção de inocência como um mecanismo de blindagem jurídica a impedir qualquer sanção administrativa ou civil antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, pois isso seria tratar a instauração do processo penal como uma espécie de prêmio concedido ao acusado. A esfera penal não é a única fonte de imputação de responsabilidade, nem pode ser tratada como um óbice para atuação das demais instâncias de julgamento. O princípio da presunção de inocência não permite, de fato, que a mera existência de processos criminais não-definitivos justifiquem automaticamente a restrição de direitos, mas não impede que os fatos que estão sendo objeto da apuração criminal possam ser mobilizados para justificar a restrição de direitos em outras searas.
Com essa onda cada vez mais freqüente de movimentos “#ocupa”, é importante conhecer algumas diretrizes humanitárias a respeito das desocupações forçadas. São documentos oficiais, recomendados, inclusive, pela ONU.
O mais importante é o Comentário Geral n. 7, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Embora o referido documento esteja relacionado ao direito à moradia, parece óbvio que muitas recomendações aplicam-se aos despejos, desalojamentos e desocupações de um modo geral. Desse documento cito, em particular, as seguintes passagens:
“13. Antes de realizar qualquer desalojamento, especialmente os que envolvem grupos largos de pessoas, os Estados Partes devem assegurar que sejam exploradas todas as possibilidades viáveis, conjuntamente com as pessoas afectadas, na tentativa de evitar, ou pelo menos minimizar, o uso da força”.
“O Comité considera que as protecções processuais que devem ser aplicadas no caso de desalojamentos forçados incluem entre outras: a) uma oportunidade de consulta verdadeira com as partes afectadas; b) aviso prévio e adequado aos afectados; c) facilitar a todos os desalojados, num prazo razoável, informações sobre o desalojamento proposto e, se for o caso, a que fim se destina o uso da terra ou casa; d) no caso de se tratar do desalojamento de grupos de pessoas, devem estar presentes funcionários ou representantes do Governo; e) todas as pessoas que efectuam o desalojamento devem identificadas de forma apropriada; f) o desalojamento não deve ser feito em dias de mau tempo ou à noite, a não ser que as pessoas afectadas estejam de acordo; g) provisão de recursos legais; e h) providenciar recursos legais; i) sempre que seja possível, oferecer assistência jurídica a aqueles que necessitem pedir recompensas nos tribunais”.
Outro documento importante é o “The Basic principles and guidelines on development-based evictions and displacement”, que tem uma versão adaptada para o português bem interessante.
O mais relevante em todos esses documentos é o reconhecimento de que as desocupações forçadas são sempre potencialmente violadoras de direitos humanos e, por isso, sua execução deve ser cumprida, quando necessário, com bastante cautela. Infelizmente, parece que ainda estamos muito longe de alcançar uma maturidade institucional necessária para saber usar a força estatal sem desrespeitar os direitos humanos/fundamentais.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE, entidade de âmbito nacional da Magistratura Federal, vem a público declarar apoio irrestrito ao Juiz Federal Substituto da 11ª Vara Federal da Seção Judiciária de Goiás, que preside o processo relacionado à denominada Operação Monte Carlo.
A AJUFE está prestando total assistência ao Magistrado e considera grave a divulgação indevida do ofício dirigido à Corregedoria Regional da Justiça Federal da 1ª Região.
A AJUFE já manteve contato com a Direção Geral do Departamento de Polícia Federal e com a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) para tratar da situação de risco enfrentada pelo Magistrado.
A AJUFE, intransigente na defesa das prerrogativas e da independência dos Juízes Federais, reafirma que a Magistratura Federal brasileira não se vergará a qualquer tipo de ameaça.
Brasília, 19 de junho de 2012.