Existe um direito fundamental de bloquear estradas?

caminhao

Publiquei lá no Instagram (@direitos_fundamentais_net) um post/slide sobre o caso Schmidberger v Austria, julgado em 2003 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
É um caso muito interessante para entender os limites do direito de manifestação quando o seu exercício pode causar transtornos ao trânsito de veículos ou à livre circulação de mercadorias. E o mais legal é que é uma espécie de versão invertida do protesto dos caminhoneiros a que estamos assistindo no Brasil.
Esse tipo de inversão é sempre útil para permitir uma análise mais imparcial do problema que queremos enfrentar, pois nos permite fixar balizas mesmo quando o “nosso lado” não é beneficiado. É uma forma prática de buscar um “acordo ou consenso por sobreposição” (Rawls), capaz de proteger imparcialmente todos os interesses em jogo, dentro da ideia básica de que todas as pessoas merecem ter seus direitos respeitados em igual medida.
Então, se você é a favor do exercício incondicional e ilimitado do direito de protesto no caso dos caminhoneiros, também deve adotar a mesma postura quando o protesto vier de outros grupos, inclusive prejudicando os caminhoneiros. Do mesmo modo, se você acredita que é preciso estabelecer alguns limites para minimizar os transtornos causados aos direitos de terceiros, então esses limites devem valer para outras situações semelhantes. Em outras palavras: em se tratando de limites para o exercício do direito de manifestação, não se pode estabelecer critérios ad hoc, que ficam mudando conforme a conveniência ou os interesses políticos em jogo. O que vale para um grupo vale para o outro.
Sei que o protesto dos caminhoneiros tem alguns componentes que dificultam a simplificação do debate. Mas considero, sim, que o caso deveria ser analisado à luz do direito fundamental de manifestação (com os limites a ele inerentes) e não como um caso de greve ou lock-out, já que a reivindicação não está relacionada a disputas trabalhistas. O movimento é um claro protesto contra o governo e não um conflito laboral. Sendo assim, deveria ser analisado à luz da liberdade de manifestação, reunião e expressão, com todos os ônus argumentativos que derivam da estrutura normativa dos direitos fundamentais.
Enfim… é apenas minha contribuição para o debate.

Aqui o slide originalmente publicado no Instagram:

 

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Desafivelando a Máscara: o uso de máscaras nas manifestações

O objetivo do presente post é analisar a constitucionalidade das leis que proíbem o uso de máscara em manifestações públicas. Não me preocuparei com a questão da competência legislativa (se federal, estadual ou municipal), mas apenas com a questão de fundo. Afinal, são válidas as restrições ao uso de máscaras?

É preciso reconhecer que há bons argumentos a favor de ambas as teses. De um lado, não há como negar que o uso de máscara pode ser uma forma de expressão, incluído, portanto, no manto protetor da livre manifestação do pensamento. Além disso, o direito de reunião também concorre para que desconfiemos das proibições ao uso de máscaras em manifestações, pois o principal requisito constitucional para a proteção da reunião é o caráter pacífico, e o uso de máscara, por si só, não significa violência. De outro lado, a máscara dificulta a identificação do manifestante, podendo gerar o anonimato, que não está protegido constitucionalmente. Isso sem falar que algumas máscaras podem funcionar como instrumento de intimidação (p. ex. o capuz usado pelos membros da Ku Klux Klan), configurando uma espécie de hate speech não protegida pela liberdade de expressão. Assim, é possível mobilizar um suporte constitucional para dar sustentação a qualquer opinião nessa seara.

Para resolver o problema, é essencial perquirir o contexto fático e jurídico que está por detrás do debate. Por exemplo, nos Estados Unidos, que é um país que confere ampla proteção à liberdade de expressão, há várias leis proibindo o uso de máscaras. Acontece que essa proibição foi influenciada sobretudo pela ação da Ku Klux Klan, no início do século XX. Somente depois é que a proibição foi estendida, por uma questão de integridade e coerência, para outros grupos.

Aqui no Brasil, o pretexto da proibição de uso de máscaras em manifestações é óbvio: a preocupação com a tática Black Bloc. Tem-se verificado que alguns manifestantes mascarados aproveitam-se do anonimato para causar o pânico, seja por via de uma violência simbólica (usando roupas pretas, tocando fogo em latas de lixo ou queimando pneus, bandeiras ou bonecos), seja por via de uma violência real (destruindo o patrimônio público e privado, agredindo policiais e membros da imprensa etc.). Essa violência causada por alguns mascarados criou um estereótipo de que todo mascarado é violento, e que quem está usando máscaras quer praticar crimes. Esse foi o leitmotiv da proibição do uso de máscaras em manifestações.

Aqui há um erro claro de tomar a parte pelo todo. Afinal, nem todo mascarado está mal-intencionado. Na verdade, há vários motivos para se usar máscaras durante uma manifestação. A máscara pode ser uma forma de se proteger contra os efeitos do gás lacrimogêneo e das balas de borracha atirados pela polícia. A máscara pode ser uma forma de expressar uma ideia, como a própria máscara do Guy Fawkes, que tem se tornado um símbolo mundial da revolta popular contra a tirania. Também pode servir como símbolo de protesto, tal como ocorreu quando a sociedade brasileira foi às ruas com os rostos pintados para defender o impeachment do Collor. Do mesmo modo, a máscara pode ser uma forma de demonstrar pertença a um grupo, como o uso de máscaras cirúrgicas em uma manifestação de profissionais de saúde. Aliás, em alguns casos, o uso de máscaras cirúrgicas em espaço público pode decorrer até mesmo de razões médicas, a fim de evitar a transmissão de doenças. Pode ser também uma expressão de religiosidade, como o uso da burca em uma reunião de mulheres muçulmanas. Ou um equipamento obrigatório, como o uso de capacetes em uma manifestação de motoqueiros. Ou parte de uma vestimenta alegórica, para fins de diversão, como as máscaras usadas pelos foliões no carnaval.  E pode funcionar até mesmo para preservar a identidade do manifestante, numa situação de anonimato legítimo, como por exemplo a hipótese de um servidor público querer protestar contra o governante, mas tem justo receio de sofrer retaliação. Em todos esses casos, cobrir o rosto não é necessariamente um ato preparatório para a prática de crimes.

Além disso, nem toda pessoa que esteja de máscara está sempre agindo de forma anônima. Em muitas situações, uma pessoa pode estar mascarada, e todos saberem de quem se trata. Na maioria das vezes, basta que a polícia peça os documentos da pessoa, inclusive retirando temporariamente a máscara, para identificá-la. Isso sem falar que é possível cobrir o rosto sem usar máscara. Um boné, com óculos escuros, ou uma barba e bigode postiços, são capazes de tornar qualquer pessoa irreconhecível, e nem por isso se pensa em proibir o uso desses apetrechos durante as manifestações.

Ao proibir o uso de máscara, sem relacionar esse uso com a violência, o poder público está restringindo desnecessariamente uma série de direitos fundamentais (liberdade de reunião, liberdade de expressão, liberdade artística etc.). Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que proibir o uso de mochilas durante as manifestações. Afinal, vários vândalos usam mochilas para levar seus artefatos de violência (coquetéis molotovs, pedras, estilingues, manoplas, bastões etc.). Então, por que não proibir as mochilas? Certamente, a proibição de uso de mochilas em manifestações seria facilmente considerada como uma medida excessiva (desproporcional). Por isso, a meu ver, e por um motivo semelhante, a proibição pura e simples, de forma absoluta, do uso de máscaras também deveria ser vista como uma solução arbitrária.

Há, porém, um aspecto que merece ser levado em conta. É totalmente legítima a preocupação do estado em tentar impedir a violência durante as manifestações. Vamos fingir, só pra não polemizar, que a culpa pela violência é sempre dos manifestantes e nunca da polícia. Como o estado poderia dar uma resposta ao vandalismo, já que vários manifestantes estão mascarados?

É um princípio básico de direito que todo aquele que, no exercício da liberdade, causa danos a outras pessoas e ao patrimônio alheio, deve ser responsabilizado pelos seus atos. Também é um princípio básico na teoria dos direitos fundamentais a ideia de que o exercício do direito não pode justificar a prática de atos que violem os direitos de outras pessoas. Isso significa dizer que os manifestantes violentos não gozam de proteção jurídica e devem sim ser punidos pelos crimes que cometerem. Mas como punir esses manifestantes se o uso da máscara dificulta sua identificação?

Há várias soluções possíveis para esse problema. Uma delas, bem melhor do que a proibição pura e simples do uso de máscaras, veio do Canadá. Lá, por ocasião de vários protestos violentos que ocorreram durante eventos internacionais, foi aprovada uma lei criminalizando o uso de máscaras durante tumultos (Bill C 309). Assim, não há uma proibição específica para o uso de máscara em manifestações pacíficas. Somente durante um tumulto ou uma manifestação ilegítima é que os manifestantes não podem usar máscaras.

Mesmo assim, referida lei tem sido alvo de diversas críticas. É que uma pessoa pode estar usando máscaras durante um tumulto e não necessariamente estar praticando violência. Essa pessoa pode, inclusive, está tentando evitar que os manifestantes pratiquem violência, e o uso da máscara seja apenas uma proteção contra as armas não-letais usadas pela polícia. Apesar disso, por força da referida lei canadense, a pessoa de máscara está praticando crime pelo simples fato de estar ali. (Perceba-se que o manifestante violento de máscara precisará de algum modo ser identificado para ser punido, de modo que a criminalização do uso de máscara não resolve o problema do anonimato. O criminoso anônimo continuará a praticar seus crimes anonimamente).

Talvez a melhor solução seja considerar o uso de máscara um mero agravante para o crime de vandalismo ou outro que o valha. O relevante para configurar a antijuridicidade não é usar máscara, mas praticar atos de violência durante as manifestações. Assim, quem estiver praticando violência teria a sua pena agravada caso estivesse usando máscara para dificultar sua identificação. Mas aquele que estivesse de máscara, sem praticar violência, não poderia ser punido, pois o uso de máscara não é, por si só, lesivo a qualquer bem jurídico. Aqui vale mais um esclarecimento: o fato de o anonimato não estar incluído no âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento não implica necessariamente a repressão ao anonimato. O anonimato somente deve ser reprimido quando causar dano a outrem. O pensamento anônimo destituído de lesividade não é, de per si, antijurídico, ainda que não goze da proteção constitucional.

Outra solução foi dada pela Corte Constitucional alemã, envolvendo especificamente a tática Black Bloc. Lá, alguns manifestantes pretendiam realizar um protesto Black Bloc nas proximidades do local em que se realizaria a reunião do G8, em 2007. O poder público proibiu a realização do protesto, e o caso foi parar no Tribunal Constitucional Federal. O TCF, em decisão liminar, reconheceu a validade da proibição, sob o argumento de que, diante do histórico das ações Black Bloc, a manifestação teria presumivelmente um caráter violento. Assim, como as manifestações violentas não merecem proteção constitucional, seria possível proibir, previamente, a realização de uma manifestação em que a violência, provavelmente, estaria presente.

A solução do TCF se alicerça em uma base fática difícil de ser avaliada por quem não conhece o contexto das ações Black Bloc naquele país. De minha parte, concordo que uma manifestação em que há uma elevada possibilidade de violência praticada por manifestantes pode sim ser proibida previamente, desde que haja prova real de que os organizadores da manifestação estejam planejando agir de forma não-pacífica. Para isso, não bastam conjecturas e presunções superficiais (parece-me que a maior parte das críticas à decisão do TCF decorreu de uma falta de aprofundamento na demonstração da presunção de violência da tática Black Bloc). Há de haver o devido processo, a fim de que seja reconhecido, por uma autoridade imparcial, o caráter violento da manifestação. Mutatis mutandis, seria o mesmo que proibir a atuação de uma torcida organizada que, sob o manto de um suposto direito de associação, esteja praticando crimes. Para esses casos, a Constituição cria uma reserva de jurisdição, estabelecendo que uma associação somente pode ser suspensa com ordem judicial, exigindo o trânsito em julgado para a dissolução definitiva.

Como conclusão, em princípio, a proibição pura e simples do uso de máscara em manifestações é inconstitucional. É possível, contudo, estabelecer restrições ao uso de máscara quando associado à violência. De lege ferenda, o agravamento da pena pela prática de crime de vandalismo e correlatos quando o criminoso estiver usando máscara para dificultar a identificação é perfeitamente possível. Por outro lado, aquele que estiver usando máscaras de forma não-violenta não pode ser punido, pois não está violando nenhum bem jurídico capaz de justificar a sua responsabilização. Usar máscara não é crime, nem pode ser crime, a não ser num contexto de violência. As leis que têm sido aprovadas pelo Brasil afora são, no fundo, meros pretextos legais, destituídos de juridicidade, para reprimir as manifestações populares, numa clara afronta à liberdade de expressão e de reunião.

 

Interpretação sobre as Manifestações – André Coelho

O video abaixo corresponde à palestra proferida pelo professor André Coelho, em setembro de 2013, na Justiça Federal do Ceará, em um evento sobre os limites e possibilidades da liberdade de reunião. O professor André tentou explicar para uma plateia bem heterogênea, composta por membros da Academia Estadual de Segurança Pública e dos movimentos populares, sua reflexão sobre os protestos que ocuparam as ruas do Brasil.

Sem exagero, posso dizer que foi uma das palestras mais brilhantes que já assisti, tanto pela clareza com que as ideias foram expostas, quanto pela profundidade dos argumentos apresentados. É impressionante a capacidade que o André possui de apresentar teorias complexas em uma roupagem simples, sem perder a essência do pensamento analisado.

No finalzinho, há ainda uma breve apresentação minha sobre os limites e possibilidades do direito de reunião, à luz da jurisprudência internacional e estrangeira.

Direto do Oráculo

14 de junho

“Da legalização em si [do consumo de machonha], os astros nada me disseram. Mas a marcha da maconha será liberada em breve pelo próprio Supremo Tribunal Federal” – George Marmelstein, no comentário ao post “Profecias Jurisprudenciais”

15 de junho

STF considera constitucional a “marcha da maconha”

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de reconhecer a constitucionalidade da chamada “marcha da maconha”. A decisão, unânime, foi tomada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 187, realizado nesta quarta-feira (15).

A ação foi ajuizada no STF pela Procuradoria-Geral da República, em 2009, para questionar a interpretação que o artigo 287 do Código Penal tem eventualmente recebido da Justiça, no sentido de considerar as chamadas marchas pró-legalização da maconha como apologia ao crime.

Seguindo o voto do relator, ministro Celso de Mello, a Corte deu interpretação conforme a Constituição ao dispositivo do Código Penal, para afastar qualquer entendimento no sentido de que as marchas constituem apologia ao crime. Para os ministros presentes à sessão, prevalece nesses casos a liberdade de expressão e de reunião. Os ministros salientaram, contudo, que as manifestações devem ser lícitas, pacíficas, sem armas, e com prévia notificação da autoridade competente.

Essa decisão tem eficácia para toda a sociedade e efeito vinculante aos demais órgãos do Poder Público, tendo validade imediata como preveem os parágrafos 1º e 3º do artigo 10 da Lei da ADPF (9.882/99).

***

Agora é sério: a decisão do STF, no caso da marcha da maconha, embora pareça óbvia, representa um imenso avanço no amadurecimento democrático do Brasil e deveria ser comemorada mesmo por aqueles que são contra a legalização das drogas. Já havia comentado a questão aqui, e também inclui uma análise mais acadêmica no meu texto sobre direito de reunião, publicado no scribd, onde conclui que “parece inquestionável que os organizadores do evento “Marcha da Maconha” possuem todo o direito de defender a legalização da cannabis sativae em espaços públicos ou abertos ao público, sendo legítima as passeatas que organizam em várias cidades brasileiras, não cabendo qualquer intervenção estatal para proibir em abstrato e a priori essas manifestações. Qualquer excesso ou abuso que eventualmente possa ocorrer durante os eventos deve ser punido pontualmente, caso efetivamente fique demonstrada a prática de alguma ilicitude por algum indivíduo específico. Mas a proibição geral, abstrata e prévia da manifestação é uma clara afronta à democracia e ao direito de liberdade de reunião”.

Ao ouvir o voto da ministra Carmén Lúcia, quase a vi citando a seguinte passagem do meu artigo:

“A Ágora – símbolo maior da democracia grega – era a praça em que os cidadãos atenienses se reuniam para deliberarem sobre os assuntos da pólis. A liberdade dos antigos, para usar a conhecida expressão de Benjamin Constant, era justamente a liberdade de “deliberar em praça pública” sobre os mais diversos assuntos: a guerra e a paz, os tratados com os estrangeiros, votar as leis, pronunciar as sentenças, examinar as contas, os atos, as gestões dos magistrados e tudo o mais que interessava ao povo[1]. A democracia nasceu, portanto, dentro de uma praça.

A praça também pode ser considerada como um ícone da liberdade dos modernos de que falava Constant. Foi na Place de la Bastille, em Paris, que se realizou pela primeira vez, em 14 de julho de 1790, a Fête de la Fédération (“A Festa da Federação”), para comemorar a Revolução Francesa que tinha se iniciado um ano antes naquele mesmo local, com a famosa queda da prisão da Bastilha, que simboliza o começo da modernidade.

No Brasil, o Movimento Diretas Já, que acelerou o fim da ditadura militar, teve como palco principal as praças das grandes cidades brasileiras: a Praça da Sé e a Praça Charles Müller, em São Paulo; Praça Cinelândia e Praça da Candelária, no Rio de Janeiro; Praça Rio Branco, em Belo Horizonte; Praça do Bandeirante, em Goiânia; Praça Gentil Ferreira, em Natal; Praça XV de Novembro, em Florianópolis, entre várias outras.

Muitas praças foram território de batalhas sangrentas pela liberdade no mundo todo. Em Pequim, na China, a Praça da Paz Celestial (Tian’anmen) presenciou um dos grandes atentados contra a liberdade da história contemporânea: o Massacre de 4 de Junho de 1989, onde milhares de estudantes chineses, que protestavam pacificamente contra a repressão e a corrupção do governo comunista chinês, foram mortos pelo exército sem qualquer respeito aos mais básicos direitos humanos.

Mas a praça não é somente o lugar de discussões políticas. Na praça, criam-se vínculos pessoais das mais variadas espécies: afetivos, econômicos, políticos, culturais, lúdicos. A praça é o lugar onde se sente a preguiça no corpo e se bebe uma água de coco, como diz a canção de Vinícius de Morais[2]. No meio da praça a meninada canta a alegria da vida, diria Mário Quintana[3]. A praça é o ponto de encontro dos amigos, o banco dos namorados, a calçada para se andar de mãos dadas, as procissões religiosas, o pregador mais exaltado, os passeios de bicicleta, a pista de corrida do atleta, o futebol de latas das crianças, a pipoca do domingo, a comemoração da vitória, o jogo de dama dos idosos, o bate-papo despretensioso do intervalo do trabalho e o discurso mais sério do operário em greve. A praça é a memória do povo, a lembrança de momentos felizes e a saudade de um lugar qualquer. Mas a praça é também o banheiro dos vira-latas, o banquete dos pombos, a malemolência do vagabundo, a perspicácia dos trombadinhas, o território das gangues, a cama gelada dos mendigos, o balcão de negócios da prostituta, a passarela desequilibrada do bêbado, o ganha-pão dos ambulantes e dos artistas populares. É a vitrine invisível dos excluídos, onde até os ausentes estão presentes. É aquele sítio “lógico e plebeu” para usar um verso de Fernando Pessoa[4]. Ou então, ainda com o mesmo poeta, é o lugar em que “tudo o que passa e nunca passa”. É o lugar dos comerciantes, vadios, escrocs exageradamente bem-vestidos, membros evidentes de clubes aristocráticos, esquálicas figuras dúbias, chefes de família vagamente felizes, das cocotes, das burguesinhas, dos pederastas: e afinal tem alma lá dentro[5]! Se a praça é tudo isso, então a praça não pertence ao Estado.  A praça! A praça é do povo, como bem bradou Castro Alves. E quando a voz sublime do povo se eleva nas praças, um raio ilumina a treva[6].

Marcha da Maconha: um "tapinha" na democracia

Assistindo ao Fantástico ontem à noite, fiquei impressionado com a falta de maturidade democrática de nosso país, especialmente porque, no caso, houve o aval do Judiciário.

Foram concedidas diversas ordem judiciais pelo Brasil afora proibindo a realização da “Marcha da Maconha“, evento que pretendia reunir pessoas favoráveis à legalização da droga no país.

Confesso que não tenho opinião formada quanto ao mérito da questão em si (liberação da maconha), mas a tese não é tão absurda ao ponto de se proibir até mesmo a sua discussão. Talvez existam alguns crimes que sejam tão abomináveis que a mera defesa de sua descriminalização soe como uma heresia. Pedofilia e racismo se incluem nessa linha. Mas a legalização da droga? Desde que me entendo por gente esse assunto é discutido abertamente sem censura, até mesmo em respeitáveis congressos jurídicos. Por que proibir uma marcha em defesa da tese?

O Dimitri Dimoulis e o Leonardo Martins, no seu “Teoria dos Direitos Fundamentais” (ed. Revista dos Tribunais), apresentam um estudo de caso bem interessante envolvendo uma questão muito parecida. Eles chamaram o hipotético caso de “A Polêmica da Camiseta”. Em síntese, um estudante universitário foi punido disciplinarmente pela faculdade em que estudava por usar uma camiseta com os seguintes dizeres: “meu patrão, que bebe uísque, é considerado um cidadão exemplar. Eu, que fumo maconha, sou chamado de marginal? Legalize já!”

Eles apresentaram excelentes argumentos em favor do aluno, concluindo que sua atitude estaria protegida pelo direito fundamental à liberdade de expressão, já que o que o aluno fez foi uma defesa, no plano das idéias, da mudança da lei penal e não um defesa do seu desrespeito, o que configuraria apologia ao crime.

Pelo que vi no site do movimento “Marcha da Maconha“, também não há qualquer estímulo ao desrespeito à lei penal, tanto que há a seguinte advertência em destaque: “é proibido o uso da maconha na marcha”.

Estou ansioso para ver o fundamento das decisões judiciais, pois confesso que não consigo encontrar qualquer suporte jurídico minimamente consistente capaz de justificar uma medida tão anti-democrática.

Onde está o direito de reunião? Onde está a liberdade de expressão? Defender a legalização da maconha é ato ilícito?

Enquanto houver esse tipo de patrulhamento ideológico, não se pode dizer que se vive numa democracia.

De qualquer modo, os organizadores do evento certamente atingiram seu objetivo que foi chamar a atenção da sociedade. Nas capitais em que a marcha foi autorizada, praticamente não houve repercussão. Se havia cem manifestantes era muito e tudo transcorreu tranqüilamente. Já nas cidades em que houve proibição, houve confronto com a polícia e a mídia divulgou tudo abertamente. No final, as ordens judiciais foram até boas (do ponto de vista publicitário) para os participantes da marcha. Tenho certeza de que a próxima contará com algumas dezenas de milhares de participantes… Tudo graças à proibição!

Para finalizar, dentro do espírito do post, disponibilizo um video clipe de uma música do Bob Marley interpretada pelo Ministro Gilberto Gil:

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