A Âncora da Mente: o efeito da ancoragem no arbitramento do dano moral

No último post, comentei que existem diversas pesquisas científicas que ajudam a entender a mente dos julgadores a partir da análise de casos envolvendo o arbitramento de dano moral. Alguns desses estudos foram comentados pelo psicólogo social e prêmio Nobel de economia Daniel Kahneman, no seu livro “Pensar, depressa e devagar” (na edição brasileira: “Rápido e Devagar – duas formas de pensar”). São pesquisas muito interessantes, em particular, as que envolvem o efeito da ancoragem na tomada de decisões.

O efeito da ancoragem é produzido a partir da inclusão de uma discreta sugestão numérica no problema a ser resolvido. Considere, por exemplo, as seguintes perguntas: (1ª) quanto você estima que é o custo unitário de um processo de execução fiscal? (2ª) em sua estimativa, o custo unitário de um processo de execução fiscal é superior ou inferior a R$ 20.000,00? Quanto seria esse custo? (3ª) em sua estimativa, o custo unitário de um processo de execução fiscal é superior ou inferior a R$ 1.000,00? Quanto seria esse custo?

Conforme se pode notar, a primeira pergunta não contém nenhuma ancoragem, ao passo que, na segunda e na terceira, foram incluídos valores estimativos, que funcionam como um parâmetro capaz de influenciar a resposta a ser apresentada. Certamente, um questionário contendo apenas a primeira pergunta resultará em números bastante diferentes de um questionário contendo apenas as segundas e terceiras perguntas. Provavelmente, o valor estimado do segundo questionário será superior ao valor estimado do terceiro questionário, apesar de a pergunta central ser exatamente a mesma.

Fica fácil perceber como isso pode afetar o arbitramento do dano moral. Analise agora as seguintes perguntas: quanto deve ser o valor da indenização em caso de tortura policial? O valor deve ser superior ou inferior a R$ 200.000,00? O valor deverá ser superior ou inferior a R$ 50.000,00? A depender da forma como a pergunta for elaborada, o valor poderá aumentar ou diminuir.

Nos Estados Unidos, há um grande debate em torno dos elevados valores de indenização por dano moral. As grandes corporações tremem diante de uma ação de indenização. Há, inclusive, um forte lobby visando estabelecer tetos indenizatórios nas ações judiciais. Aqui no Brasil, também há projetos de lei no mesmo sentido, embora exista uma jurisprudência pacificada no sentido da inconstitucionalidade do tarifamento do dano moral. De qualquer modo, não custa perguntar: estipular um limite máximo para o valor da indenização aumentará ou diminuirá o valor das condenações pecuniárias?

Há estudos que demonstram que o efeito de ancoragem do teto indenizatório evita eventuais condenações estratosféricas, mas aumenta o montante do valor da condenação em situações em que a indenização  seria pequena em relação ao teto. Assim, um teto de um milhão de reais produziria o efeito de ancoragem para cima nos casos banais. Por outro lado, em situações muito graves, o juiz não poderia dosar o montante da indenização, salvando a empresa de um grande prejuízo mesmo diante de uma grave violação dos direitos de personalidade da vítima. Desse modo, pequenas empresas que causaram pequenos danos morais seriam mais prejudicadas do que as grandes empresas que causaram grandes danos morais. (Para acessar o estudo, clique aqui).

Por fim, vale ressaltar que existem técnicas para evitar o efeito provocado pela ancoragem. Os psicólogos Adam Galinsky e Thomas Mussweiller, por exemplo, sugerem que o efeito da ancoragem pode ser reduzido se forem criados expedientes mentais para anular a sugestão causada pela âncora. Se o propósito da âncora for elevar o valor para cima, é preciso pensar no valor mínimo que seria aceitável. Se o propósito da âncora for elevar o valor para baixo, o raciocínio se inverte. Ou seja, devemos tentar perceber a ilusão causada pela âncora e refletir conscientemente com nossa própria cabeça, tentando neutralizar os efeitos a partir de nossa própria percepção e experiência.

Como defende Daniel Kahneman, mesmo que sejamos influenciados por diversos fatores inconscientes que não podemos evitar, também temos instrumentos cerebrais para “sair do automático” e “pensar devagar”.

Juízes: sacerdotes ou “homo economicus”?

O post passado, como não poderia ser diferente, acendeu um debate que fugiu completamente do controle. Acredito que toda essa confusão decorre de uma falta de compreensão sobre o papel do juiz neste século XXI, que nem mesmo os juízes sabem qual é.

O sistema judicial contemporâneo é extremamente materialista na prática e cada vez mais assume abertamente essa característica ao incorporar na administração judiciária exigências de eficiência e qualidade próprias das empresas privadas. Apesar disso, esse mesmo sistema, que espera e cobra do juiz uma postura gerencial, trata-o, em muitos aspectos, de forma idealista, como se a magistratura devesse ser, verdadeiramente, um sacerdócio.

Há, portanto, duas figuras inconciliáveis: a do juiz-sacerdote, que sacrifica a vida em favor de sua nobre missão sem esperar receber nada em troca por isso, e a do juiz-administrador, que também faz sacrifícios, mas recebe incentivos para tanto, como qualquer homo economicus.

Especulo que um dos grandes motivos da insatisfação dos juízes decorre do fato de eles serem tratados ora como sacerdotes, ora como gerentes, conforme a conveniência. Se se deseja tirar direitos dos juízes, então são sacerdotes; se se deseja obrigar-lhes a trabalhar com eficiência, então são gerentes.

É lógico que um sistema que não dê qualquer tipo de incentivo para um trabalho gerencial bem feito está fadado a ruir tão logo os seus administradores percebam que estão sendo manipulados. É mais ou menos o que está ocorrendo hoje em dia. Não há psicologia motivacional que consiga convencer os juízes que vale a pena dar o seu sangue, suor e lágrimas sem receber sequer o aplauso da sociedade.

Perceba que não estou dizendo que os juízes ganham pouco. Eu seria um leviano se afirmasse isso. Acho até que o subsídio dos juízes, hoje fixado em pouco mais de catorze mil reais líqüidos, é uma quantia suficiente para uma vida familiar confortável, pelo menos em cidades onde o custo de vida é menor. A meu ver, o que causa indignação aos juízes não é propriamente o valor do subsídio, mas esse tratamento discriminatório em relação a outras carreiras de Estado. Os juízes estão sempre numa situação abaixo (pelo menos das carreiras federais), pois todos utilizam o valor do subsídio dos juízes como base e recebem outros benefícios a mais, sem que esses benefícios sejam estendidos aos juízes. Isso sem falar que cada vez mais aumentam as tarefas gerenciais dos juízes, que são extremamente desgastantes, e nenhum tipo de incentivo é dado em troca. Ressalto que a realidade que conheço de perto é a dos juízes federais, de modo que não posso falar por outras categorias de juízes.

Por mim, o salário dos juízes poderia ser de mil reais ou até menos. Com isso, assumiríamos de vez que a função judicial é um sacerdócio. Mas, se isso ocorresse, então teríamos que tratar os juízes como sacerdotes de verdade, à moda antiga e full time. Os juízes ficariam livres de qualquer preocupação material, não contrairiam dívidas, nem se preocupariam com o valor do aluguel, nem com o custo da educação ou saúde de seus filhos e familiares. Não sei se num sistema assim a sociedade poderia exigir metas ou um elevado nível de eficiência e qualidade. Mas pelo menos ficariam livres de juízes chatos e resmungões que querem ser tratados com coerência.

Análise Econômica dos Direitos Fundamentais

Para não passar a semana em branco, apresento um texto que acabei de escrever em menos de uma hora. As idéias estavam na minha cabeça já há algum tempo e resolvi colocá-los no papel. Não é um texto acabado. São apenas algumas idéias ainda meio soltas sobre a chamada análise econômica do direito, com os olhos voltados para a teoria dos direitos fundamentais.
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Análise Econômica dos Direitos Fundamentais
Minha primeira impressão sobre a chamada “Análise Econômica do Direito” (AED) foi a pior possível. Também pudera: o livro que me introduziu às idéias da AED era o best-seller “Freakonomics”, que, apesar de ter entre seus autores um doutor da prestigiada Faculdade de Economia do MIT, não é um livro “sério” do ponto de vista acadêmico.
No livro, os autores fizeram uma análise bastante curiosa, tentando demonstrar que a redução da criminalidade nos EUA, durante os anos 90, foi resultado da liberalização do aborto ocorrida no julgamento do caso “Roe vs. Wade” de 1973. A idéia básica era a seguinte: os criminosos de hoje foram abortados há vinte anos. Aquelas mulheres que engravidaram sem planejamento e resolveram abortar certamente conceberiam a crianças problemáticas que se tornariam potenciais criminosos no futuro.
Na minha pesquisa durante o mestrado, do mesmo modo, tive oportunidade de conhecer as idéias de Thomas Malthus, que também possuem um inegável viés econômico. Malthus defendia as epidemias, as guerras e o infanticídio e era intransigentemente contra os atos de caridade, já que, para ele, havia pouca comida para muita gente e, portanto, era melhor que deixassem os pobres em paz para morrerem sossegadamente nas ruas sobrando mais comida para o restante da população.
Foi esse tipo de raciocínio que gerou em mim uma barreira em relação à AED – Análise Econômica do Direito. Na minha ótica, o pensamento ético-jurídico não deveria funcionar desse modo. O argumento econômico seria capaz de justificar as maiores barbaridades, como a pena de morte, a eutanásia eugênica, o experimento médico com seres humanos e até mesmo o extermínio de indivíduos indesejados. Não teria sido isso que os nazistas fizeram?
Por isso, preferi não me envolver com esse tipo de análise econômica. Os economistas pensam em como conseguir mais eficácia com vistas à maximização das riquezas. É totalmente diferente do pensamento ético e jurídico. Pensar eticamente, na minha ótica, é pensar no outro, independentemente de quem seja o outro e independentemente das vantagens que trará para nós mesmos.
Ocorre que fui convidado para proferir uma aula sobre “Direito e Economia” e tive que tentar assimilar com um pouco mais de profundidade as idéias da “Análise Econômica do Direito” para não ensinar nada de forma distorcida.
Confesso que não li muita coisa, até porque não houve tempo. Li somente o essencial sobre Richard Posner, Ronald Coase, Douglas North, entre outros teóricos da chamada AED. Mesmo sim, me surpreendi positivamente com as idéias básicas da AED e percebi que há muita coisa que pode ser útil para a teoria dos direitos fundamentais, que é a minha atual área de pesquisa.
Não pretendo aqui desenvolver nenhuma idéia revolucionária ou mesmo científica. A minha pretensão é tão somente compartilhar as minhas impressões (ainda imaturas) sobre a AED e sobre as possibilidades de sua utilização em favor dos direitos fundamentais.
Em primeiro lugar, chamou-me a atenção o conhecido Teorema de Pareto, bastante utilizado entre os economistas e que está na base do raciocínio econômico. Uma situação econômica é ótima no sentido de Pareto se ao menos um indivíduo melhora de situação, sem que o outro piore. Uma idéia simples, mas extremamente valiosa.
Assim que li sobre o Teorema de Pareto lembrei-me imediatamente do problema da colisão de direitos fundamentais.
O princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais exige que o intérprete sempre tente fazer com que o direito fundamental atinja a sua realização plena. O ideal é que, ao realizar essa tarefa de concretização, nenhum outro direito fundamental seja afetado de modo negativo. Ou seja, a situação perfeita é conseguir maximizar a efetividade de um dado direito fundamental sem prejudicar a situação jurídica de outras pessoas. Percebeu a ligação dessa idéia com o Teorema de Pareto?
Ocorre que, muitas vezes, essa meta não poderá ser atingida. Havendo colisão de direitos, certamente haverá pelo menos um deles que será atingido de forma negativa, ainda que parcialmente. Sendo assim, surge outra preocupação para o intérprete: tentar dar a máxima efetividade ao direito fundamental, restringido o mínimo possível o outro valor constitucional colidente.
É nesse sentido que aparece o princípio da concordância prática.
O princípio da concordância prática, de acordo com o Tribunal Constitucional alemão, “determina que nenhuma das posições jurídicas conflitantes será favorecida ou afirmada em sua plenitude, mas que todas elas, o quanto possível, serão reciprocamente poupadas e compensadas”. Trata-se, portanto, de uma tentativa de equilibrar (ou balancear) os valores conflitantes, de modo que todos eles sejam preservados pelo menos em alguma medida na solução adotada.
Também no princípio da concordância prática há uma preocupação de buscar a “eficiência no sentido de Pareto”, de modo que o direito fundamental afetado seja sacrificado o mínimo possível.
Intuitivamente, eu sabia que essa ligação que fiz entre o Teorema de Pareto e o fenômeno da Colisão de Direitos Fundamentais não era original. Algo me dizia que alguém já havia pensado nisso antes. Assim, consultei o oráculo (Google) e descobri pelo menos um texto em língua portuguesa que fez essa relação: “Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade”, de ninguém menos do que Robert Alexy. Estou em ótima companhia (vale ressaltar que a análise de Alexy sobre o teorema de Pareto não é, nesse texto, tão profunda).
Há, ainda, diversos princípios dentro da teoria dos direitos fundamentais que são uma manifestação clara, ainda que inconsciente, das idéias econômicas. O tão alardeado princípio da “reserva do possível” é exemplo disso. Por esse princípio, os direitos fundamentais cuja realização implique em gastos financeiros (como o direito à saúde, por exemplo) somente podem ser efetivados na via judicial se estiverem dentro do financeiramente razoável ou proporcional.
O raciocínio que inspira o princípio da reserva do possível é inegavelmente econômico: implementar um direito a prestação exige a alocação de recursos, em maior ou menor quantidade, conforme o caso concreto, e, vale ressaltar, não apenas recursos financeiros, mas também recursos não-monetários, como pessoal especializado e equipamentos. No entanto, há menos recursos do que o necessário para o atendimento de todas as demandas. As decisões que visam concretizar um dado direito podem, muitas vezes, gerar novas formas de ameaças, privando outros potenciais beneficiários da fruição dos bens ou serviços a que também teriam direito. Logo, o Judiciário, quando for julgar demandas que importem em alocação de recursos, deverá levar em conta que sua decisão poderá interferir na realização de outros direitos, de modo que somente deve agir se estiver seguro que não causará um mal maior.
É lógico que, muitas vezes, o aspecto econômico não será tão relevante ao ponto de impedir a concretização de um direito fundamental. Afinal, conforme entendimento do STF, manifestado em voto do Min. Celso de Mello, “entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana” (Pet. 1.246-SC).
Outra conseqüência da Análise Econômica do Direito, dentro da teoria dos direitos fundamentais, envolve a chamada aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas (eficácia horizontal).
Os direitos fundamentais foram concebidos, originariamente, como instrumentos de proteção dos indivíduos contra a opressão estatal. O particular era, portanto, o titular dos direitos e nunca o sujeito passivo. É o que se pode chamar de eficácia vertical dos direitos fundamentais, simbolizando uma relação de poder em que o Estado se coloca em uma posição superior em relação ao indivíduo.
No entanto, atualmente, tem-se reconhecido que os valores contidos nos direitos fundamentais irradiam-se também nas relações entre particulares, até porque os agentes privados – especialmente aqueles detentores de poder social e econômico – são potencialmente capazes de causar danos efetivos aos princípios constitucionais e podem oprimir tanto ou até mais do que o Estado. É o que se pode chamar de eficácia horizontal (ou irradiante) dos direitos fundamentais.
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais poderá ter forte influência no mercado econômico, afetando, inclusive, os chamados “custos de transação” dos negócios, já que limitará, eventualmente, a liberdade contratual em favor de outros direitos fundamentais.
O exemplo mais ilustrativo disso ocorre com o direito à moradia, que, por força do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, é, no Brasil, um verdadeiro direito fundamental.
Em razão do direito à moradia, os juízes brasileiros tendem a adotar uma postura de proteção em relação aos mutuários e inquilinos de imóveis. Numa relação entre um banco financiador e o mutuário que adquiriu um imóvel com dinheiro emprestado, há uma tendência judicial de se proteger a parte mais fraca da relação (o mutuário), em detrimento, eventualmente, daquilo que ficou pactuado no contrato de financiamento habitacional. Numa disputa judicial envolvendo um inquilino e o dono do imóvel, os juízes são reticentes em forçar o inquilino inadimplente a sair do imóvel, prejudicando o proprietário que nem recebe os aluguéis nem pode alugar o seu bem para outra pessoa que esteja disposta a pagar.
A “Análise Econômica do Direito” critica ferrenhamente essa postura protetiva do Judiciário brasileiro. Confira, a esse respeito, o seguinte argumento apresentado por Armando Castelar Pinheiro, um dos principais expoentes da AED aqui no Brasil:
“a maioria dos magistrados acredita que os juízes têm um papel social (redistributivista) a desempenhar, e que o objetivo de proteger a parte mais fraca na disputa justifica a violação de contratos. Este posicionamento reduz a segurança jurídica com que se desenrola a atividade econômica, e pode fazer com que determinados mercados não se desenvolvam, possivelmente prejudicando exatamente os grupos sociais que os juízes buscam beneficiar. A quase inexistência de um mercado de crédito imobiliário, notadamente para as famílias de mais baixa renda, é um exemplo ilustrativo de como uma boa intenção pode terminar tendo o efeito oposto ao originalmente buscado” (Judiciário, Reforma e Economia: a visão dos magistrados).
Trata-se, sem dúvida, de uma idéia que exige uma reflexão, sobretudo por um magistrado como eu que acredita que “os juízes têm um papel social (redistributivista) a desempenhar”.
O argumento é, efetivamente, forte e está correto em grande parte. O problema é que levar a “proteção ao contrato” ao extremo significa, muitas vezes, compactuar com iniqüidades. Afinal, conforme já dizia o Abade Lacoirdaire há dois séculos, “entre o grande e o pequeno, entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza, o direito liberta” (cf. COSTA, Adriano Pessoa da. Direitos Fundamentais entre Particulares na Ordem Jurídica Constitucional Brasileira. Dissertação de mestrado).
Por outro lado, o desrespeito aos contratos também não pode ser a regra. Há que haver um meio termo entre a proteção aos contratos (que, em última análise, significa respeitar a autonomia privada, que também é um direito fundamental) e a proteção ao sistema de valores que emana dos direitos fundamentais.
Nesse ponto, a teoria dos direitos fundamentais fornece um princípio bastante interessante que, apesar de ser uma ferramenta importantíssima, tem sido pouco utilizado pelos juízes: o princípio da proibição de abuso de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais não devem servir para acobertar práticas ilícitas. Trazendo esse raciocínio para os direitos sociais, pode-se dizer que os direitos sociais não podem servir de desculpa para a prática de atos moralmente injustificáveis ou para burlar a lei.
Sobre o assunto, já tive a oportunidade de julgar um processo em que consignei o seguinte: “O direito fundamental à habitação, cujos fundamentos são tão nobres, não pode servir de escudo ao locupletamento sem causa, nem pode ser invocado ao ponto de garantir o direito de se morar em prédio de ótima localização sem que se pague nada por isso. Atitudes como a da ré somente fazem aumentar a crise do Sistema Financeiro da Habitação, pois retira a oportunidade de pessoas de boa-fé habitarem no imóvel”.
Para finalizar esse despretensioso artigo, merece ser feita uma breve análise do caso da (im)penhorabilidade do bem de família do fiador, um julgamento do STF que se baseou essencialmente na análise econômica do direito.
Por força da Lei 8.009/90, o imóvel residencial do casal ou da entidade familiar (bem de família) passou a ser considerado impenhorável. Ocorre que a Lei 8.245, de 18.10.91, acrescentou o inciso VII à Lei 8.009/90, para ressalvar a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. Em razão disso, o imóvel residencial daquele que assumiu o encargo de fiador tornou-se passível de penhora.
Em um primeiro momento, no STF entendeu que seria inconstitucional a referida lei, por violar o artigo 6º da Constituição que reconhece o direito à moradia como um direito fundamental (art. 6º).
Eis a ementa: “CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido” (STF, RE 352490, rel. Min. Carlos Velloso, j. 25 de abril de 2005).
Contudo, menos de um ano depois, o STF modificou seu posicionamento, passando a entender que seria possível a penhora do único imóvel de uma pessoa que assuma a condição de fiador em contrato de aluguel. Na ementa, ficou assentado que “a penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do artigo 3º, inc. VII, da Lei 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República.
O argumento central apresentado no voto do Min. Cezar Peluso, que foi o grande artífice da virada jurisprudencial no caso da penhora do bem de família do fiador, foi de índole econômica. A lógica foi a seguinte: não aceitar a penhora do bem de família do fiador tornará o contrato de aluguel menos atrativo para os proprietários de imóveis. Logo, o contrato se tornará mais caro. O contrato mais caro irá impedir ou dificultar o acesso à moradia para muitas pessoas menos abastadas. Portanto, ao invés de prejudicar o direito à habitação, a norma que autoriza a penhora do bem de família do fiador, na verdade, possibilita que mais pessoas tenham acesso à moradia, por um preço menor. Em outras palavras, “a norma, abrindo a exceção à inexpropriabilidade do bem de família, é uma das modalidades de conformação do direito de moradia por via normativa, porque permite que uma grande classe de pessoas tenha acesso à locação”.
Particularmente, não concordo com a conclusão do STF, embora reconheça que o argumento econômico foi bem interessante. Na minha visão, a solução poderia ser outra tanto com base na teoria dos direitos fundamentais quanto na própria análise econômica da questão.
Do ponto de vista da teoria dos direitos fundamentais, parece-me que o direito à moradia é um valor mais importante do que o cumprimento do contrato, no caso específico, até porque a obrigação principal foi assumida por terceiro. Além disso, aparentemente, houve violação da isonomia, na medida em que aquele que contraiu a obrigação principal (o inquilino) não poderá perder um eventual imóvel que tenha e o fiador sim.
Mas o importante é o argumento econômico. A idéia levantada pelo Min. Peluso foi a de que a restrição ao direito à moradia do fiador (autorização da penhora do seu bem de família) daria maior garantia aos proprietários de imóveis, reduzindo os custos de inadimplência e, conseqüentemente, baratearia o valor do aluguel, permitindo que mais pessoas pudessem alugar o imóvel. Ou seja, no final das contas, o direito à moradia estaria sendo prestigiado.
Faltou, contudo, demonstrar o acerto do raciocínio com dados mais consistentes. Não há, nos argumentos apresentados, qualquer estudo mais profundo demonstrando que aceitar a penhora do bem de família do fiador irá diminuir o preço das locações ou que não aceitar essa penhora acarretará uma diminuição da oferta de moradias para locação.

Do mesmo modo que o Ministro Peluso estabeleceu uma lógica econômica em favor da sua tese, também é possível, com a mesma lógica (ou seja, sem base empírica), chegar a solução completamente oposta. Vejamos, pois, a questão sob a ótica do fiador para demonstrar que a penhora do bem de família do fiador poderá prejudicar o mercador imobiliário para pessoas de baixa renda.

A partir do momento em que uma pessoa sabe que, assumindo o encargo de fiador, poderá perder seu bem de família, certamente ele pensará duas vezes antes de assinar o contrato. Ou seja, menos pessoas aceitarão ser fiadores de contratos de locação e, conseqüentemente, será mais difícil conseguir alugar um imóvel. É preciso reconhecer que ninguém ganha dinheiro sendo fiador. O encargo é, muitas vezes, resultado de uma relação de confiança e não algo que trará alguma vantagem financeira ao fiador.

Desse modo, como o fiador poderá perder seu imóvel se o inquilino não cumprir com suas obrigações, poucas pessoas aceitarão esse encargo. Logo, os proprietários terão que aceitar alugar seu bem mesmo sem a assinatura de um fiador e, conseqüentemente, terão menos garantias de que o contrato será cumprido. Com menos garantias, os custos de locação aumentarão e, conseqüentemente, o preço de aluguel também irá subir, fazendo com que menos pessoas consigam ter a capacidade econômica para firmar o contrato de inquilinato.
Portanto, até mesmo sob a ótica econômica, a possibilidade de penhora do bem de família do fiador não se justifica. Observe que não tenho qualquer estudo sério capaz de comprovar minha análise econômica da questão, como também o STF não apresentou nada nesse sentido.
Para finalizar, apresento minha conclusão sobre a relação entre direito e economia:
Nem sempre a economia “baterá de frente” com o direito e vice-versa. O pensamento econômico não resulta necessariamente em soluções anti-éticas ou amorais. Aliás, muitas vezes o raciocínio econômico e o ético caminharão juntos, levando aos mesmos resultados, reforçando-se mutuamente na tarefa de convencimento social. Não adianta simplesmente afastar ou deixar de utilizar uma ferramenta que pode ajudar ao invés de atrapalhar a realização de direitos fundamentais.
Além disso, mesmo naqueles pontos em que o direito e a economia “baterão de frente”, o importante é ter em conta que esse fenômeno é natural, típico de qualquer disciplina que envolve poder e ideologia. Tanto o direito é pressionado pela economia quanto a economia é pressionada ou limitada pelo direito. Os agentes econômicos sempre procuram moldar as normas jurídicas aos seus interesses econômicos, pressionando o legislador, os juízes e o governo para que as leis sejam úteis aos seus objetivos de maximização das suas riquezas. É a economia pressionando o direito. Por outro lado, o Direito pressiona a economia, limitando o impulso lucrativo dos agentes econômicos, de forma que o capitalismo funcione de maneira mais ética e solidária.

Fortaleza, 12 de dezembro de 2007
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