Palestra: Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais

Eis o vídeo da palestra que proferi em João Pessoa em 27 de maio de 2016, sobre “Combate à Corrupção e Garantias Constitucionais”, na Conferência Internacional “Investimento, Corrupção e o Papel do Estado: um Diálogo Suiço-Brasileiro”.

Foi uma palestra curta (de vinte minutos), em que parto de uma obviedade (“as garantias devem ser respeitadas”) para defender uma ideia simples, mas poderosa: “a justiça não é perfeita, nem infalível, mas tem a capacidade de aprender com os erros do passado”.

A partir daí, tento explicar como algumas teses jurídicas nas grandes operações anticorrupção foram construídas e se desenvolveram, a exemplo da condução coercitiva e da adoção da abertura do sigilo processual como regra. Algumas ideias já haviam sido adiantadas aqui.

Espero ter demonstrado que há um processo de aprendizagem contínua em que os órgãos anticorrupção se aprimoram, inclusive em reação às críticas do garantismo, para tentar conciliar a efetividade do processo penal com o respeito aos direitos fundamentais, seja por razões de princípios, seja por razões estratégicas. Em outras palavras: as críticas de ontem ajudam a explicar as práticas de hoje, e as críticas de hoje certamente moldarão as práticas futuras.

Um Empurrão para a Liberdade: duas propostas para evitar o encarceramento excessivo

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Não é preciso muito esforço para concluir que o sistema prisional brasileiro é caótico. O problema se agrava à medida que novos presos são incluídos no sistema, pois não há estrutura para tratar de modo individualizado e com celeridade a situação de cada preso. O resultado disso é a superlotação dos presídios com presos provisórios e com pessoas condenadas que já cumpriram sua pena ou já obtiveram o direito de progressão do regime, mas permanecem indevidamente presas sem uma resposta estatal em função da demora na análise de seus casos.

Diante desse quadro, serão formuladas no presente texto duas propostas de mudança na arquitetura decisória para facilitar o caminho para a liberdade. A ideia é baseada nos conceitos de “nudges” e “arquitetura de escolhas”, desenvolvidos pelas ciências comportamentais. Nudges são pequenos incentivos que podem influenciar o processo de tomada de decisões, sem cercear a liberdade de escolha. Arquitetura de escolhas corresponde ao formato do arranjo (design) adotado para que as melhores decisões sejam tomadas em uma determinada direção. A lógica é extremamente simples: existem alguns fatores sutis que influenciam a tomada de decisões que podem ser organizados para guiar as escolhas em uma determinada direção; logo, é possível promover a realização de objetivos desejáveis por meio de pequenas mudanças na arquitetura de escolhas, bastando que sejam criados mecanismos que reduzam os ônus da decisão na direção certa. Um exemplo clássico que ilustra o funcionamento de nudges e arquitetura de escolhas é a organização dos alimentos em uma prateleira de modo a facilitar o acesso a comidas saudáveis. Essa simples mudança “arquitetônica” é capaz de fazer com que as pessoas alterem seus hábitos de alimentação, sem que seja necessário impor qualquer tipo de dieta ou restrição alimentar (sobre isso, Thaler & Sunstein. Nudge: o empurrão para a escolha certa).

De certo modo, o processo penal já adota alguns modelos decisórios que são desenhados para promover a liberdade. Por exemplo, a própria decretação da prisão preventiva exige um ônus argumentativo maior do que o seu indeferimento. Nesse sentido, o dever de fundamentação funciona como um nudge (“empurraozinho”) capaz de facilitar a decisão em favor da liberdade, impondo um fardo intelectual maior para a escolha que implique o encarceramento. Do mesmo modo, a distribuição dos ônus da prova exige um esforço cognitivo mais intenso para a condenação do réu, tendo como base a presunção de inocência. O atual formato da prisão em flagrante também segue a mesma lógica: na ausência de fatores que justifiquem a decretação da prisão preventiva, o acusado deve responder o processo em liberdade.

Mas é possível ir além – e é justamente o propósito do presente texto. Serão formuladas duas propostas extremamente simples que possuem um enorme potencial de mudar a lógica do sistema. A premissa é esta: ninguém deve ficar preso por mais tempo do que o devido. Portanto, é preciso estruturar o modelo decisório de tal modo que as falhas do sistema não prejudiquem o direito de liberdade.

A primeira proposta é uma sutil modificação no sistema de decretação de prisão preventiva. A prisão preventiva, atualmente, é decretada sem prazo determinado, de modo que só há a soltura do acusado após outra decisão judicial concedendo a liberdade. Muitas vezes, há excesso de prazo na instrução processual, e a preventiva se estende por um prazo maior do que o permitido. Um meio simples de se evitar isso seria exigir que, em toda decisão judicial que decreta a prisão preventiva, já fosse incluída, obrigatoriamente, uma ordem de soltura após determinado prazo, salvo se fosse proferida decisão em sentido contrário. Ou seja, já ficaria pré-determinado o prazo final da prisão preventiva, de modo que a manutenção do réu na prisão para além desse prazo deveria exigir uma nova decisão judicial analisando a conveniência de mantê-lo preso. Perceba que não se trata de impedir a prorrogação da prisão preventiva, já que há casos mais complexos em que a instrução processual pode se estender razoavelmente para além do prazo previsto originalmente. A medida, em verdade, apenas impõe um ônus maior caso se decida que o réu deve continuar preso.

Esse tipo de nudge é conhecido como “regra padrão” (“default rule“) e costuma extremamente eficaz. A arquitetura de escolha é planejada para que a solução “automática” (regra padrão) seja a solução desejável, permitindo que o objetivo que se deseja promover seja alcançado de modo mais rápido e menos custoso. No caso, como se deseja que o preso provisório não fique encarcerado para além do estritamente necessário, cria-se um mecanismo de soltura automática, já embutido no próprio mandado de prisão (ou seja, em tese sequer seria preciso a expedição de um alvará de soltura, pois o próprio mandado de prisão cumpriria tal finalidade), sem impedir, contudo, a manutenção da prisão se houver necessidade. O arranjo decisional é configurado de tal modo que a inércia favoreça a liberdade.

A segunda proposta é igualmente simples e segue a mesma lógica, mas o campo de aplicação é a progressão de regime prisional. Hoje, muitos presos deixam de obter a progressão do regime por uma incapacidade do sistema de analisar a situação individualizada de cada preso. Uma fórmula fácil de resolver esse problema seria exigir que, já no início da execução da sentença condenatória, fosse estabelecido o calendário de progressão a ser observado, ressalvando-se a possibilidade de alteração do cronograma por decisão fundamentada. Ou seja, ao iniciar o cumprimento da pena, todos já saberiam de antemão quando ocorreria a mudança de regime e, caso não houvesse qualquer fato superveniente capaz de justificar a alteração dos planos, o processo de progressão seria automático e ocorreria independentemente de nova decisão judicial. Com isso, seriam reduzidos vários custos no processo de análise dos pedidos de progressão, e o sistema funcionaria naturalmente para que o preso não fique na prisão além do tempo devido. O réu não seria prejudicado pela falta de estrutura do sistema, uma vez que a progressão do regime já estaria previamente programada para ocorrer automaticamente, salvo se surgissem fatos supervenientes que justificassem uma nova decisão. Também não haveria violação da individualização da pena, pois estaria sempre aberta a possibilidade de revisão do programa original, cabendo ao estado o ônus de justificar qualquer mudança.

Como se vê, esses pequenos “empurrões” para a liberdade possuem um baixo custo de implementação e um alto impacto para a melhoria do sistema. A lógica é simples, intuitiva e fácil de ser assimilada, pois é baseada em uma mera mudança de configuração do arranjo decisório, a fim de evitar o encarceramento desnecessário. Além disso, não há uma restrição do poder decisório dos juízes, pois é sempre ressalvada a possibilidade de alteração do plano original por meio de uma decisão superveniente, que leve em conta as particularidades de cada situação. O segredo é estabelecer um arranjo decisório que tenha consciência das falhas estruturais do sistema e use isso em favor da liberdade. Isso é feito a partir de uma definição antecipada de determinados eventos pró-liberdade, que serão ativados automaticamente caso nenhum comando contrário seja dado em seguida. Talvez esses simples arranjos decisórios não sejam suficientes para resolverem todos os problemas do sistema prisional, mas com certeza podem pavimentar o caminho para que ninguém fique preso por mais tempo do que o necessário.

* O presente artigo foi escrito com a colaboração de Fernando Braga, que forneceu as ideias para o insight original e ajudou com alguns argumentos.

Lava-Jato e o Efeito Bumerangue do Garantismo

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Já adianto que o presente post não é sobre o acerto ou erro das decisões proferidas na Lava-Jato, embora algumas questões polêmicas daquele processo servirão para ilustrar a tese central. Também não é pretensão deste texto tentar justificar ou legitimar a condução do processo pelo Juiz Sérgio Moro, mas apenas auxiliar a compreender como algumas teses processuais foram construídas. O propósito central é demonstrar que alguns posicionamentos envolvendo, por exemplo, o protagonismo judicial na fase de investigação, a condução coercitiva durante o cumprimento de mandados de busca e apreensão ou a abertura do sigilo das interceptações telefônicas se originaram de preocupações garantistas ou, pelo menos, foram desenvolvidas em resposta a uma jurisprudência garantista que se firmou nos tribunais superiores.

Dada a polaridade de visões sobre a condução da Lava-Jato (alguns vendo o Juiz Sérgio Moro como “herói”; outros, como “fascista”), não espero que concordem com o que eu digo, mas garanto que minha preocupação não é esta. A função deste texto é mais descritiva do que normativa. Tentarei demonstrar, a partir de exemplos, que algumas soluções criticadas por serem anti-garantistas são, na verdade, uma evolução de práticas ainda menos garantistas. Ou seja, as decisões estão inseridas em um contexto jurisprudencial ainda não muito bem definido (e, portanto, em um limbo jurídico à espera de definição), mas que procuram alcançar um tipo de equilíbrio entre a efetividade do processo e as garantias processuais. (O quanto essa preocupação em conciliar a efetividade do processo com as garantias individuais tem sido bem-sucedida é um ponto que deixo ao leitor decidir).

Como ponto de partida, temos que perceber que o modelo processual penal brasileiro não foi arquitetado para o combate à macrocriminalidade e, portanto, não temos uma larga experiência em lidar com demandas desse tipo. Somente nos últimos 10 ou 15 anos é que começaram a ser regulamentados alguns institutos de combate à organização criminosa (como a delação premiada ou a escuta ambiental, por exemplo) e alguns processos de grande complexidade, envolvendo organizações criminosas poderosas, passaram a ser alvo de ações planejadas, sendo que, muitas delas, foram anuladas em grau de recurso justamente porque não havia ainda uma jurisprudência bem consolidada sobre os limites da investigação. Foi construída, em torno disso, uma jurisprudência garantista, que, dentre outras coisas, estabeleceu que diversas medidas invasivas estariam sujeitas à chamada reserva de jurisdição e, portanto, somente poderiam ser autorizadas por um juiz. A aplicação rigorosa da tese da proibição de provas ilícitas reforçou ainda mais a necessidade de cautela nesta fase, tornando o juiz uma figura central na investigação da macrocriminalidade, pois as autoridades responsáveis pela investigação, com receio de que suas condutas fossem anuladas judicialmente, passaram a se socorrer do judiciário sistematicamente, a fim de respaldar suas ações.

Então, perceba que o protagonismo do judiciário ainda nesta fase de investigação já nasce de uma preocupação garantista. A atuação judicial na decretação de quebra de sigilo, busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica e ambiental, é uma exigência que funciona como limite aos poderes das autoridades responsáveis pela investigação. Certamente essa fórmula não é um remédio capaz de impedir completamente eventuais abusos cometidos até mesmo pelos juízes. Mas não há dúvida de que há uma preocupação garantista nesta exigência de reserva de jurisdição, sobretudo quando acompanhada de outras exigências garantistas relacionadas ao exercício da jurisdição (imparcialidade, independência, dever de fundamentação, direito ao recurso etc.).

Um ponto que pode ser passível de questionamento é saber até que ponto um juiz que participa diretamente da investigação, autorizando uma série de medidas invasivas contra os investigados, julgará o caso com isenção, já que pode haver uma tendência psicológica de querer confirmar o acerto de suas decisões passadas. Não tenho dúvida de que, no futuro, pode haver uma evolução no sistema para impedir que o juiz que atua na fase de investigação julgue a ação penal, possibilitando uma maior imparcialidade na avaliação das informações colhidas durante a investigação. Hoje, o modelo processual adotado no Brasil não estabelece nenhum tipo de impedimento para que o juiz que atuou na fase de investigação também participe do processo e julgamento, o que pode ser considerado como uma falha do sistema.

Outra tese garantista para evitar abuso da investigação foi construído em torno da decretação da prisão temporária. Em regra, quando havia a necessidade de se realizar uma busca e apreensão em vários locais ao mesmo tempo e evitar a destruição de provas ou a conversa entre os investigados antes da tomada dos depoimentos, decretava-se a prisão temporária. A medida, em muitas situações, era excessiva e funcionava (como, em alguns casos, ainda funciona) como uma forma de humilhação pública do investigado. É nesse contexto que o garantismo, corretamente, denunciou (como ainda denuncia) a banalização das prisões temporárias.

A reação a isso foi a construção da tese da condução coercitiva como medida substitutiva da prisão temporária. Ao invés de se decretar uma prisão de 5 dias, o juiz concede uma ordem para que o investigado tenha a sua liberdade de locomoção restringida pelo prazo necessário para o cumprimento dos mandados de busca e apreensão e para a tomada do depoimento. Após isso, o investigado é liberado independentemente de qualquer ordem judicial. Veja-se que a função dessa condução coercitiva é relativamente distinta da condução coercitiva de testemunhas e investigados que se recusam a comparecer perante a autoridade para serem ouvidos, pois, nestes casos, sequer é preciso ordem judicial, e a mera recusa de comparecimento já é, por si só, fundamento bastante para se autorizar a condução coercitiva. No caso da condução coercitiva como forma de garantir a eficácia do cumprimento dos mandados de busca e apreensão e evitar a comunicação entre os investigados, o que se tem, a rigor, é uma prisão temporária com prazo mais curto, o que, obviamente, exige ordem judicial e deve ser fundamentada (o nome “prisão temporária de curtíssimo prazo” não é adotado justamente para não gerar um estigma capaz de diminuir a posição do investigado perante a sociedade. Aliás, nem mesmo os juízes chamam essa condução coercitiva de prisão e provavelmente não concordarão com isso, mas, no fundo, sua função é de restringir a liberdade de locomoção para possibilitar a coleta de dados necessários à investigação, o que, na minha ótica, é uma quasi-prisão).

No caso da condução coercitiva do ex-Presidente Lula, há uma série de controvérsias fáticas (e políticas!) que tornam a análise mais difícil. De qualquer modo, é preciso que se tenha em mente que o objetivo da condução coercitiva decretada judicialmente não foi somente a tomada do depoimento do investigado, mas também a facilitação da coleta dos demais elementos de provas, como meio substitutivo da prisão temporária. Mesmo que se considere inconstitucional a condução coercitiva de um investigado para ser ouvido perante a autoridade policial, já que ele possui o direito ao silêncio ou o direito de não colaborar com a investigação contra si, isso, em princípio, não afasta a outra finalidade da condução coercitiva em casos assim: evitar a comunicação com os outros investigados durante o cumprimento dos vários mandados de busca e apreensão. Se isso é juridicamente possível ou não, é algo a se discutir. O certo é que a autorização para a condução coercitiva condicionada à recusa de acompanhamento voluntário teve, por incrível que possa parecer, uma preocupação garantista de evitar a decretação da temporária (que, aliás, foi pedida pela acusação, mas indeferida pelo juiz) que certamente seria uma medida bem mais gravosa.

Ressalto que não há como ter certeza se a própria adoção de medidas invasivas contra o ex-Presidente eram necessárias ou não, ante a falta de informações completas que levem a uma avaliação mais ampla do ocorrido. Não é possível afirmar categoricamente que o juiz errou ou acertou sem conhecer todos os fatos detalhadamente, a não ser se você partir de posições absolutas do tipo “o juiz pode tudo” ou “contra o ex-Presidente nada pode ser feito”. De qualquer modo, repito que não é minha intenção avaliar a decisão judicial ou não, mas tão somente explicar que até mesmo a condução coercitiva tem uma origem “garantista”, como forma de evitar a prisão temporária.

E a abertura do sigilo processual? Como isso pode ser fruto de uma tese garantista?

Esse é um ponto bem interessante, porque, no passado, a regra era a manutenção do sigilo do processo durante toda a investigação, inclusive para os advogados. Em alguns casos, o sigilo era mantido mesmo depois da decretação da temporária, o que violava claramente o direito de defesa, pois os advogados não tinham acesso a qualquer informação para questionar a medida. Foi nesse contexto que surgiu a tese garantista de que os advogados teriam direito de acesso aos elementos de provas já documentados necessários ao exercício do direito de defesa (súmula 14 do STF).

A súmula 14 gerou uma situação curiosa, pois o sigilo da investigação geralmente era decretado para garantir a eficiência da coleta de dados, sobretudo de interceptações telefônicas. A partir do momento em que o advogado passa a ter o direito de acesso aos dados coletados, o sigilo parece perder o sentido (pelo menos do ponto de vista da investigação), pois, obviamente, de nada adianta uma interceptação de um investigado que sabe que está sendo gravado. Além disso, como várias pessoas diferentes passaram a ter direito de acesso às informações interceptadas, o risco de vazamento tornou-se muito maior.

Diante disso, alguns juízes passaram a defender (isso muito antes da Lava-Jato) que, uma vez coletados os elementos de prova, a tramitação sigilosa do processo não faria mais sentido. Há vários fundamentos para isso: (a) a constituição impõe, como regra, a publicidade do processo; (b) a sociedade tem o direito de saber o que se passa nos autos (seja para fiscalizar a atuação do juiz, seja para ter conhecimento dos dados processuais, sobretudo quando envolve pessoas politicamente expostas); (c) a manutenção do sigilo restringe o direito de informação e a liberdade de imprensa etc…. Sobre isso, vale muito a pena analisar os argumentos desenvolvidos pelo Nagibe Melo para justificar a abertura do sigilo das interceptações.

Assim, a abertura do sigilo pode ser, em algum sentido, uma medida salutar que, a um só tempo, permite o cumprimento da súmula 14 do STF e garante maior transparência na divulgação das informações de interesse público, evitando, em tese, o vazamento seletivo de apenas parte dos dados e proporcionando acesso igualitário da imprensa ao conteúdo dos elementos de prova coletados. Veja-se que essa prática começou bem antes da Lava-Jato e hoje tem sido uma medida adotada até mesmo pelo ministro Teori Zavaski. Muitas informações divulgadas durante as diversas fases da Lava-Jato, onde houve acusação de “vazamento seletivo”, nada mais foi do que a abertura do sigilo processual que ocorre em relação a todos os atos processuais realizados. (Se a imprensa usa esse material de forma seletiva, para fins políticos, aí são outros quinhentos. Mas, a rigor, todos os depoimentos tomados estão disponíveis ao público, até mesmo aqueles que podem eventualmente constranger o próprio julgador).

É óbvio que se pode questionar a abertura do sigilo quando há informações de caráter privado ou a divulgação tendenciosa que viola a presunção de inocência. Também é de se questionar a própria validade da interceptação realizada, sobretudo em relação a eventuais conversas que ocorreram quando já havia uma ordem judicial determinando a interrupção da interceptação. Mas ao afirmar isso já estamos entrando em um nível mais avançado do debate, que é partir para a correção ou não das decisões concretas, o que depende de uma análise mais detalhada dos dados fáticos que embasaram as decisões, algo que foge aos escopos do presente texto.

Como se vê, há todo um contexto mais amplo por detrás de cada posicionamento judicial adotado. Isso não significa que tais posicionamentos sejam corretos, nem que atingiram o nível ideal de equilíbrio entre a efetividade e a garantia. Pelo contrário. Como disse, não foi o meu objetivo defender essas práticas, mas apenas descrever o desenvolvimento dos posicionamentos adotados para contribuir para o amadurecimento do debate. Por mais questionáveis que sejam as técnicas investigativas adotadas durante as grandes Operações Policiais, inclusive a Lava-Jato, não se pode negar que tem havido, por parte da jurisprudência, uma preocupação com as garantias individuais e, em muitos casos, os posicionamentos que atualmente são acusados de serem anti-garantistas são reações ou respostas à jurisprudência garantista até então dominante nos tribunais superiores. Pode ser que essas medidas venham a ser tidas como inconstitucionais, mas é preciso saber que elas já são uma segunda etapa da primeira onda que houve nas grandes operações policiais, que foram anuladas por violação das garantias. É por isso que os advogados de defesa sentem dificuldades em mudar as decisões da Lava-Jato. De algum modo, as decisões tentam se amoldar à jurisprudência garantista firmada durante a “primeira onda” e trazem inovações que ainda não foram suficientemente amadurecidas pela jurisprudência.

É importante que essas questões sejam mesmo submetidas a um escrutínio público mais amplo, para verificar o seu erro ou o seu acerto. É preciso sim verificar se houve abusos e controlá-los pelas vias recursais previstas. Como existem, pelo menos, três instâncias de julgamento acima do juiz de primeiro grau, há ampla margem de debate jurídico sobre a correção de todas as decisões judiciais, seja sob o aspecto da correta avaliação dos fatos, seja pelo aspecto da correta avaliação do direito aplicável. É preciso também desconfiar do poder, independentemente de quem o exerce. O que não me parece saudável é criar rótulos sem se dar ao menos ao trabalho de conhecer com mais profundidade o contexto das teses adotadas.

Prisão após condenação recorrível e presunção de inocência: oscilações de uma jurisprudência esquizofrênica

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Alerta Preliminar: este texto é ensaboado.

Não é fácil falar sobre o acerto ou o erro da decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a execução da pena após decisão condenatória de segunda instância ainda recorrível. Apesar de envolver conceitos supostamente técnicos (presunção de inocência, execução provisória da pena, efeitos dos recursos não-ordinários etc.), o tema está inserido em uma rede ideológica mais ampla que abrange questões espinhosas como a legitimidade e os fundamentos do direito penal, a finalidade da pena, o escopo do processo penal, a eficiência da política de encarceramento, o respeito à dignidade dos presos, a confiança nos juízes e assim por diante. Então, é óbvio que uma pessoa minimante consciente das mazelas do modelo penal brasileiro deve sentir arrepios só de se pensar em mandar alguém pra prisão, sobretudo quando há um recurso pendente de apreciação e se sabe que os danos causados pelo encarceramento são sérios e irreversíveis.

Diante disso, aplaudir, sem um olhar crítico, o posicionamento do STF em favor da execução antecipada da pena tende a gerar uma certa conivência com uma prática de violações sistemáticas de direitos que cotidianamente são praticadas contra os presos, que já foi constatada pelos próprios ministros recentemente (ADPF 347/DF).

Por outro lado, também não se pode fechar os olhos para a impunidade seletiva que existe no Brasil. Há determinados réus que praticam determinados tipos de crime que jamais irão cumprir sua pena por uma razão muito simples: o sistema não consegue alcançá-los. Isso não é uma falha pontual do sistema. Qualquer advogado que conhece os labirintos do processo penal brasileiro é capaz de evitar, na maioria dos casos, a punição de seu cliente e, sem dúvida, a blindagem gerada pela interpretação que o STF vinha dando à presunção de inocência contribuía bastante para esse estado de coisas.

Do mesmo modo, não se pode deixar de reconhecer uma ambivalência do direito penal, onde ora ele funciona como um instrumento essencial para uma convivência ética entre as pessoas, ora funciona como um instrumento de opressão contra determinados grupos. Crimes são praticados contra bens jurídicos fundamentais (vida, liberdade, integridade física e moral etc.), e, portanto, deixar impunes essas violações de direitos transforma também o Estado em um violador de direitos por omissão (por não cumprir o dever de proteção). Ao mesmo tempo, há muito abuso cometido em nome do poder de punir, afetando especialmente os subcidadãos, para quem as garantias constitucionais costumam ser uma quimera. Tem-se aí, portanto, a ambivalência do direito penal. Por isso, é preciso evitar a todo custo um discurso maniqueísta do tipo: se você é a favor das garantias, é amiguinho dos bandidos; se você é contra as garantias, é um velhaco fascista. Menos. Nem toda punição é ilegítima, mas também não é legítima de per si. A polarização do debate, em que os extremos não se escutam, nem fazem questão de dialogar, parece ser uma das principais causas do fracasso do modelo criminal brasileiro.

É nesse cenário meio esquizofrênico que irei manifestar minha opinião. Vou me concentrar no lógica do sistema de imputação de responsabilidade penal e o que se pode extrair de relevante da garantia constitucional de presunção de inocência. Eis as teses a serem defendidas: (a) a presunção de inocência não impede a prisão após decisão condenatória recorrível; (b) por outro lado, o mesmo princípio não autoriza (na verdade, proíbe) a prisão automática (sem fundamentação) após decisão condenatória recorrível; (c) a prisão após decisão condenatória recorrível deve ser justificada à luz das circunstâncias do caso concreto e deve ter uma natureza cautelar e não de antecipação provisória da pena.

De início, é preciso desfazer alguns mal-entendidos.

Primeiro. É erro dizer que o STF sempre interpretou o princípio da presunção de inocência como uma cláusula proibitiva da prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Pelo contrário. A jurisprudência do STF, seguindo uma linha que parece ser a dominante no resto do mundo, sempre admitiu a prisão após sentença condenatória recorrível (de primeira instância!), só vindo a mudar esse posicionamento em 2009, quando passou a entender que a execução provisória da pena seria incompatível com a presunção de inocência. Logo, é exagero afirmar que o STF quebrou uma longa tradição ou rompeu com uma histórica garantia consolidada na consciência jurídica nacional. Longe disso. O STF apenas voltou atrás, mudando um entendimento que vigorou por cerca de seis anos.

Segundo. Mesmo depois de 2009, o STF admitia a prisão antes do trânsito em julgado em determinadas situações (e não me refiro apenas às prisões cautelares típicas ou à prisão em flagrante). Assim, por exemplo, era e continua sendo praxe no processo do júri que o réu vá preso após a decisão condenatória dos jurados, mesmo que interponha recurso. O mesmo também ocorre em relação a crimes violentos graves (roubo, latrocínio, estupro etc.), onde as prisões provisórias costumam ser mantidas por longo tempo antes e após a condenação, mesmo sem o trânsito em julgado. Assim, a jurisprudência que impedia a execução provisória da pena tinha um viés seletivo e beneficiava sobretudo os réus de crimes não-violentos (não necessariamente menos graves), cujos advogados eram capazes de manejar o processo penal para impedir o trânsito em julgado, o que não é algo tão difícil de fazer. Para a massa de presos provisórios que superlotam os presídios nacionais, esse vai e vem jurisprudencial tem um efeito muito pequeno.

Feitos esses esclarecimentos, vamos ao principal. Afinal, como compatibilizar uma prisão antes do trânsito em julgado com o princípio da presunção de inocência?

Essa é uma pergunta interessante e parece só fazer sentido no Brasil, pois, de um modo geral, a sentença condenatória, mesmo de primeira instância, já é suficiente para justificar o encarceramento na imensa maioria dos países que adotam o princípio da presunção de inocência (sobre isso, vale uma leitura no voto do Min. Zavascki, onde foi citado um estudo comparando o tratamento dessa tema em vários países).

A possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória na quase totalidade dos países que adotam esse princípio decorre da origem histórica dessa garantia. A expressão “ninguém será considerado culpado” está mais relacionada com o ônus da prova, no sentido de compete à acusação apresentar provas convincentes e suficientes da culpa (para além de qualquer dúvida razoável), demonstrando de modo consistente que o réu praticou o crime. Em caso de dúvida sobre autoria ou materialidade do delito, o réu deve ser inocentado. Assim, boa parte do desenvolvimento jurisprudencial humanitário global que se desenvolveu em torno da presunção de inocência gira em torno do direito probatório e não da decretação da prisão antes do trânsito em julgado.

Mas é óbvio que, ao afetar o direito probatório, a presunção de inocência também pode e deve influenciar a aplicação de medidas restritivas de direitos dos acusados. Em princípio, o réu não pode sofrer diminuição de seu status jurídico (perder bens, liberdade ou vida) sem que a sua responsabilidade seja aferida dentro do devido processo legal, com todas as garantias daí inerentes. Foi nesse contexto que, no Brasil, o princípio da presunção de inocência foi transferido, acertadamente, para o tema das prisões, visando evitar a decretação banalizada de medidas restritivas de direitos antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A decretação da prisão, portanto, em nome do princípio da presunção de inocência e da liberdade, deve ser tratada como medida excepcional.

Mas perceba que, mesmo quando incorporado ao debate sobre decretação de prisão, a presunção de inocência não tem o condão de impedir a restrição de direitos antes do trânsito em julgado. Há várias situações em que é possível a prisão sem que haja uma condenação definitiva, bastando lembrar a prisão em flagrante e a preventiva. Equiparar a expressão “ninguém será considerado culpado” com “ninguém será preso” ou “ninguém terá direitos restringidos” [antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória] é uma interpretação que não parece nem um pouco razoável, até porque a constituição expressamente prevê a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado (artigo 5o, inc. LXI).

Além disso, o contexto problemático que justificou a adoção da presunção de inocência, conforme já dito, não estava relacionado ao uso de prisões antes do trânsito em julgado, mas à inversão do ônus da prova contra o réu. Confesso que não conheço nenhum país que interprete a expressão “ninguém será considerado culpado” como uma blindagem jurídica a impedir qualquer medida restritiva contra o réu durante a tramitação do processo criminal. Sobre isso, lanço o seguinte desafio: há algum país que interprete a garantia de presunção de inocência como uma proibição de decretação de prisão após sentença condenatória recorrível? Que tal levar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos para ver o que ela diz?

O que a presunção de inocência exige, em matéria não-probatória, é que a restrição de direitos seja precedida do devido processo, respeitando-se as garantias daí inerentes, especialmente o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade do julgador e o dever de fundamentar a decisão. Antes do trânsito em julgado, o juiz pode, por exemplo, sem violar a presunção de inocência, determinar, de forma fundamentada, o bloqueio ou sequestro de bens do acusado, a suspensão de algumas atividades, a prisão preventiva, a quebra de sigilo de dados pessoais, a interceptação telefônica, a busca domiciliar, dentre inúmeras outras medidas restritivas.

Assim, na minha ótica, quando aplicado ao campo das prisões, o princípio da presunção de inocência tem sim alguma relevância, mas não ao ponto de impedir, por completo e em absoluto, a restrição da liberdade de locomoção. A presunção de inocência é capaz de, por exemplo, gerar a inconstitucionalidade das leis que exigem o recolhimento à prisão como pressuposto de admissibilidade de recursos ou então quando estabelecem que a sentença condenatória é suficiente para justificar, sem outras considerações, a decretação automática da prisão. De certo modo, a jurisprudência de 2009, ao mudar o posicionamento anterior e proibir a execução provisória da pena, teve, pelo menos, o mérito de deixar claro que as técnicas anteriormente adotadas (que banalizavam a decretação da prisão antes do trânsito em julgado) eram inconstitucionais. O erro naquela ocasião foi jogar o pêndulo para o extremo oposto, sem prever qualquer possibilidade de decretação da prisão após a condenação recorrível, mesmo diante de uma eventual risco de inefetividade da tutela penal ou mesmo diante do manifesto caráter protelatório dos recursos interpostos.

A nova decisão (de 2016), ao permitir a execução provisória da pena após decisão de segunda instância recorrível, aparentemente joga de volta o pêndulo para o lado contrário, talvez de um modo desastrado, pois não foi capaz de assimilar as críticas que justificaram o movimento pendular. Certamente seria melhor, para a busca de um equilíbrio, admitir a possibilidade da decretação da prisão após decisão condenatória apenas em determinadas circunstâncias. Ou seja: ao invés de autorizar a prisão automática após a decisão condenatória de segunda instância, seria melhor desenvolver parâmetros capazes de justificar a decretação da prisão, de natureza cautelar, após a condenação em segunda instância, para “assegurar a aplicação da lei penal”, como está inclusive previsto no artigo 312 do CPP.

E que parâmetros seriam esses?

A meu ver, os parâmetros propostos no Projeto da Ajufe são  um bom ponto de partida para um debate mais qualificado. Ao invés de autorizar a execução provisória da pena após a confirmação da sentença condenatória em segunda instância, o projeto prevê uma possibilidade de decretação da prisão preventiva ou outra medida cautelar após o acórdão condenatório, apenas para determinados crimes e somente em determinadas circunstâncias.

Os crimes que justificam a decretação da medida cautelar são de natureza bem grave, como os crimes hediondos, de tortura, de terrorismo, de corrupção etc.

Além disso, a prisão poderá ser substituída por medida cautelar “se houver garantias de que o condenado não irá fugir ou não irá praticar novas infrações penais se permanecer solto“.

No Projeto da Ajufe, a decretação da prisão ou da medida cautelar não é automática, devendo ser fundamentada com base, por exemplo, na culpabilidade, antecedentes, consequências e gravidade do crime, bem como no fato de o produto do crime ter sido recuperado ou não e o dano reparado ou não.

Também são previstos mecanismos de controle de validade da decisão que decreta a prisão preventiva ou a medida cautelar, como a possibilidade de atribuição do efeito suspensivo aos recursos extraordinários e especiais interpostos contra o acórdão condenatório. Aliás, nesse ponto, está prevista uma interessante possibilidade de se evitar a decretação da preventiva diante da propositura de recursos especiais ou extraordinários que apresentem questões jurídicas relevantes. Caso seja possível verificar a probabilidade de sucesso do recurso, o próprio tribunal recorrido poderá conceder o efeito suspensivo e evitar a decretação da prisão ou da medida cautelar. Por outro lado, um recurso meramente protelatório, que apenas reproduza argumentos já rechaçados da jurisprudência consolidada, não terá efeito suspensivo em relação às medidas cautelares decretadas.

Há, portanto, uma vantagem qualitativa (do ponto de vista das garantias) entre o projeto proposto pela Ajufe e a solução dada pelo STF. A decisão do STF permite a execução provisória da pena de um modo automático após a condenação em segunda instância, sem estabelecer qualquer parâmetro para isso. A mera decisão de segunda instância já é suficiente para decretar a prisão. A proposta da Ajufe impõe uma série de critérios para justificar a prisão preventiva ou medida cautelar que tenha como base a decisão condenatório de segunda instância e só vale para determinados tipos penais.

Diante disso, para concluir:

(a) a decisão do STF que permitiu a execução provisória da pena talvez não tenha sido a melhor solução para o problema, mas não foi necessariamente absurda se tivermos em mente o sentido jurídico da presunção de inocência em outros países e mesmo no Brasil antes de 2009;

(b) do ponto de vista semântico, tão relevante quanto debater qual o sentido de “antes do trânsito em julgado” é debater o sentido normativo de “ninguém será considerado culpado”, que certamente não pode se confundir com “ninguém será preso” ou “ninguém poderá ter direitos restringidos”;

(c) a decretação da prisão antes do trânsito em julgado continua sendo medida excepcional e, mesmo após a confirmação da segunda instância, precisa, na minha ótica, ser fundamentada;

(d) mesmo após a decisão do STF, me parece que, em determinadas situações, nada impede que o recurso especial ou extraordinário interposto contra acórdão condenatório seja recebido com o efeito suspensivo, sobretudo quando houver probabilidade de êxito do recurso, aferido pela relevância jurídica dos argumentos desenvolvidos;

(e) apesar da decisão do STF, a decretação da prisão antes do trânsito em julgado deve ser tratada como uma prisão de natureza cautelar, aplicando-se-lhe, portanto, o regime jurídico das medidas cautelares, inclusive a substituição da prisão preventiva por outras menos drásticas, desde que adequadas e necessárias.

Mantenho a decisão

Quase todo juiz deve ter a sensação de que os desembargadores sentem um particular prazer em cassar as decisões de primeiro grau. Lembro que, assim que assumi a magistratura, achava que todas as minhas decisões liminares em matéria de SFH (leilão de imóveis financiados) eram reformadas seja qual fosse o meu posicionamento. Se eu concedia a tutela antecipada para impedir o leilão, o tribunal cassava e determinava que fosse realizado o leilão; se eu negava a tutela, o tribunal concedia e mandava parar o leilão. E o mais interessante é que, quanto mais longa fosse a minha decisão, mais curta era a decisão reformadora. Se eu concedia a tutela em 10 laudas, o tribunal cassava em 10 linhas. Se eu negava a tutela em 10 linhas, o tribunal concedia em 10 laudas. Depois disso, decidi que todas as minhas decisões seriam as mais curtas possíveis. Na minha “teoria psicológica da decisão”, desenvolvi a seguinte hipótese: quanto mais longa é a fundamentação, maior é chance de a decisão ser cassada*.

Certamente, essa sensação de que o tribunal gosta de reformar as decisões de primeiro grau é influenciada por uma má percepção das coisas. Como nós costumamos dar mais atenção às informações negativas do que às informações positivas que nos chegam, as inúmeras decisões que são confirmadas pelo tribunal passam despercebidas pelos nossos sentidos e, involuntariamente, não as contabilizamos nas nossas memórias. Por isso, temos essa sensação, que pode ser falsa, de que o tribunal faz questão de reformar tudo.

Mas o certo é que é bastante provável que exista sim um exagero na reforma de decisões de primeiro grau, ainda que a grande maioria das sentenças seja confirmada. No Brasil, não é adotada a prática de, na dúvida, manter a decisão recorrida. Essa prática seria bastante saudável, pois estimularia o sentimento de segurança e de integridade do sistema e prestigiaria os juízes de primeiro grau. “Prestigiar os juízes de primeiro grau” certamente não é uma razão forte, já que o prestígio deve ser conquistado e não entregue por caridade. Porém, “reforçar a integridade do sistema” é sim um valor a ser perseguido, já que essa é uma das funções essenciais do direito como um todo. O direito precisa de uma certa estabilidade. E esta estabilidade é abalada quando um juiz decide de um modo e o tribunal decide de outro modo sem atacar diretamente os fundamentos da decisão de primeiro grau. Esse prende-solta, nega-concede não é salutar se se deseja transmitir a idéia de que o direito é um conjunto ordenado e coerente de normas. O cidadão que vê esse fenômeno de fora deve perguntar ao juiz: “escute, amigo, se foi pra desfazer porque é que fez?”

Logicamente, juiz erra e quando isso ocorre cabe ao tribunal corrigir. Esse é o papel por excelência dos tribunais. Porém, em muitos casos, a reforma da decisão ocorre desnecessariamente, talvez por capricho ou vaidade, como se fosse uma vontade de dar a última palavra só para marcar território. Muitos desembargadores preferem desconsiderar completamente a sentença de primeiro grau e produzir uma decisão totalmente inédita sem levar em consideração as razões e avaliações de prova que já foram desenvolvidas pelo juiz sentenciante. E pior é que, às vezes, a reforma ocorre em situações em que não há uma resposta clara para o problema. Mesmo na dúvida, prefere-se reformar.

Tomemos como exemplo uma ação de dano moral. Digamos que, diante de um abalo de crédito causado por uma cobrança indevida, o juiz condene o que causou o dano a pagar uma indenização de dez mil reais. Há recurso. O tribunal (ou a turma recursal) entende que o valor é excessivo e reduz para oito mil reais ou então para seis mil reais. Também pode ocorrer a situação inversa: o tribunal considera que o valor é insuficiente e aumenta a condenação para treze mil ou quinze mil reais. Ora, qual é o sentido de se mudar a decisão nesses casos já que a redução ou o aumento do montante da condenação foi praticamente ínfimo? Por que não deixa mesmo em dez mil reais e se evita essa reforma desnecessária da sentença só para dizer quem tem o poder de dar a última palavra? De que serviu a decisão de primeiro grau se o tribunal preferiu julgar novamente o caso desconsiderando completamente o montante aplicado pelo juiz?

Arbitrar dano moral é um dos atos mais subjetivos que podem ser praticados por um juiz nos dias de hoje. Os parâmetros são praticamente inexistentes. Portanto, o tribunal somente deveria reformar uma sentença em caso de dano moral quando os valores fixados pelo juiz fossem completamente desproporcionais, seja por excesso seja por insuficiência. Não há o menor sentido em reduzir ou aumentar “só um pouquinho”, como se essa mudança significasse um acréscimo substancial de justiça na decisão. É claro que não acrescenta nada de positivo: só piora a imagem da justiça perante a sociedade que descobre que os juízes não são capazes de chegar a um consenso nem mesmo em situações relativamente simples como o arbitramento de dano moral em caso de abalo de crédito.

Na Turma Recursal, onde atuo há quatro anos, existem muitas questões fáticas bastante polêmicas, envolvendo, por exemplo, a concessão de aposentadoria por invalidez ou benefício assistencial para deficientes físicos. Um dos requisitos para a concessão desses benefícios é a incapacidade para o trabalho, cuja avaliação é extremamente difícil. Um surdo-mudo que sente muitas dificuldades em manter uma comunicação com pessoas fora de sua família é capaz ou incapaz? E o que dizer de uma pessoa portadora de epilepsia que sofre crises numa média de três vezes na semana? E uma pessoa que perdeu um braço, é analfabeta e sempre trabalhou na roça quando tinha plena capacidade física? São casos-limite que, em geral, dividem os juízes da turma. Com freqüência, esses casos são decididos com o placar de 2 a 1, depois de um acirrado debate.

De minha parte, adotei a estratégia de, em regra, sempre seguir o laudo pericial e a decisão de primeiro grau se eu não tiver uma certeza muito forte de que o juiz errou. Não faço um segundo julgamento. Não faço tabula rasa do que já foi realizado pelo juiz de primeiro grau. Tento respeitar ao máximo a convicção do juiz sentenciante, que estava mais perto do conflito, teve oportunidade de ficar cara a cara com a parte e está acostumado a decidir casos semelhantes. Posso cometer erros pontuais, mas prefiro errar em boa companhia a fingir que sou capaz de enxergar mais longe do que outros juízes tão ou mais preparados do que eu. Não faço isso por achar que o juiz sentenciante necessariamente está certo. Algumas vezes, confirmo decisões que talvez eu não tomasse se estivesse no lugar do juiz de primeiro grau. Mas mesmo assim confirmo a sentença por não ter certeza de que aquela decisão foi nitidamente equivocada. Numa situação em que não é possível saber se o juiz errou ou não, é melhor confirmar a decisão, pois a manutenção dos julgamentos de primeiro grau é um aspecto, que por si só, merece ser levado em conta. Pelo menos vou pensar assim enquanto estiver na posição de juiz de segunda instância.

***

Sobre o asterisco lá de cima: lembro que, quando eu estava em Mossoró, havia muitas execuções contra devedores que não moravam naquele município. Desenvolvi uma longa tese de várias páginas defendendo que o juiz poderia reconhecer a incompetência de ofício naquelas situações, pois, do contrário, o executado teria muito prejuízo para se defender, já que teria que contratar advogado em município distante de sua residência para defendê-lo e teria muitos gastos para acompanhar pessoalmente o desenrolar da ação. Enfim, me parecia que não fazia o menor sentido entrar com uma execução em Mossoró quando o executado está morando no sul do país, por exemplo, sobretudo quando o credor tem representantes em todo o país (como a a União, a CEF ou a ECT, por exemplo). Minha decisão era longa e bem fundamentada. O exeqüente sempre recorria. O tribunal costumava cassar as minhas decisões em três ou quatro linhas dizendo que a incompetência territorial não poderia ser reconhecida de ofício. Pois bem. Como estava convicto de que não havia o menor sentido em processar aquele tipo de execução em Mossoró, substituí aquela longa e fundamentada decisão por uma mais ou menos assim, quase ipsis literis: “Considerando que o executado não é domiciliado neste município, remetam-se os autos para a vara competente. Intimem-se”. Curiosamente, o exeqüente não recorria dessa decisão. Enfim, acabou dando certo, o que confirma, a contrario sensu, a minha tese de que “quanto mais longa é a fundamentação, maior é chance de a decisão ser cassada”. Hoje, a jurisprudência se pacificou no sentido de que a execução deve ser proposta no domicílio do executado e que o juiz pode remeter o processo de ofício para o foro competente.

Porcos assados, Viktor Navorski e os Juizados Federais

O Júlio Schattscheider é juiz federal em Santa Catarina e pode ser considerado como o verdadeiro pai da teoria da katchanga, já que foi ele quem divulgou a piada durante o curso que lá ministrei.

O artigo abaixo é dele e, na minha opinião, é fantástico. Uma pequena amostra da realidade nua e crua do que a Justiça Federal está se tornando: um balcão do executivo.

Ressalto que sou fã do modelo dos Juizados. Na minha ótica, o rito célere, informal e oral dos JEFs deveriam ser a regra para todas as causas. Já escrevi sobre isso diversas vezes e sempre lembro com emoção do período em que dei o meu “sangue, suor e lágrimas” para fazer o JEF de Mossoró funcionar mesmo sem a devida estrutura. O problema não são os JEFs, mas a complacência dos juízes (mea culpa) em aceitar essa postura do Executivo, em especial, do INSS, em transferir suas atribuições mais básicas (como conceder benefícios previdenciários e assistenciais) para o Judiciário. E o pior é que, durante algum tempo, quando eu atuava em feitos previdenciários, cheguei a indeferir a realização da instrução judicial para que o INSS fizesse corretamente o procedimento administrativo e, em todos os casos, o TRF revogou minha decisão dizendo que seria “cerceamento de defesa”. Hoje, como o TRF não apita mais nas causas de competência do JEF, seria uma boa oportunidade de tentar reavivar a tese.

Enfim, vale a pena a leitura. A propósito, o princípio constitucional do “coitadinho” é uma pérola.

Porcos assados, Viktor Navorski e os Juizados Federais

1. O que têm em comum a origem do assado de carne suína e os Juizados Federais?

Muitos provavelmente já leram ou pelo menos ouviram falar da “fábula dos porcos assados”. A sua autoria é incerta, porém é um texto realmente intrigante e que pode ser obtido facilmente por meio da internet. Diz ele, em resumo, que certa vez uma floresta foi acidentalmente incendiada. Quando os moradores daquela região conseguiram dominar o fogo, notaram que havia entre as cinzas alguns porcos completamente assados. Foi então que se descobriu a verdadeira delícia que era aquela carne, até então servida crua.

A partir daquele momento, “logicamente”, toda vez que se pretendia saborear um porco assado, tocava-se fogo na floresta. Com o passar do tempo e o conseqüente aumento da demanda, foi necessário aprimorar as técnicas de ignição e, principalmente, de controle dos suínos – que, como se sabe, são animais arredios por natureza e não se lançam ao fogo tão facilmente.

Então o “sistema” teve que ser “aperfeiçoado”. Diversos profissionais foram treinados (inclusive em Universidades estrangeiras). Criaram-se áreas de atuação específicas e, consequentemente, toda uma estrutura burocrática, que ao longo do tempo foi aumentada para gerir de forma mais “eficiente” todo o procedimento de assadura dos porcos.

Porém não tardou a que problemas surgissem, pois o “sistema” não dava mais conta da demanda, exponencialmente crescente. E havia sempre alguém a declarar que ele estava à beira da falência. Promoviam-se seminários, congressos e “audiências públicas”, com a participação dos mais notáveis especialistas. Novas idéias surgiam e mudanças eram realizadas. Mas os problemas não só persistiam como aumentavam.

Um cidadão, cujo nome era João Bom-Senso, por fim resolveu dar a sua colaboração e encaminhou-se ao “Diretor Geral de Assamento” afirmando que o problema todo se resolveria a partir de uma prática muito simples. Ao invés de queimar a floresta, bastava matar o porco, limpá-lo e assá-lo, colocando-o sobre uma grelha acima de uma fogueira previamente preparada.

Embora aquele alto burocrata tivesse reconhecido a logicidade da idéia, ele concluiu que ela não funcionaria “na prática”, pois não se previa solução para outro problema que surgiria em face da sua aplicação: o que se faria com todo o “sistema” (que se criou, evidentemente, a partir de uma concepção absolutamente equivocada do problema original?).

Não é preciso dizer que ele foi convencido pelo Diretor a abandonar as suas teorias, pois até mesmo poderia vir a enfrentar problemas na sua promissora “carreira” de “acendedor de bosques”.

Vez por outra volto a ler esta estória e a encaminho para outros juízes. E a cada nova leitura ainda mais me convenço de que ela, sem que o seu autor ao menos imaginasse, tornou-se uma caricatura do que é hoje em dia o sistema federal de Justiça, especialmente os Juizados Especiais Federais (JEF’s) especializados em questões previdenciárias.

A meu ver (tentarei explicar o meu ponto de vista com mais profundidade adiante, a partir de um exemplo prático), a proliferação sempre insuficiente destes Juizados decorre de uma concepção originariamente equivocada de atuação Judicial e que tem contribuído para tornar toda a administração pública ineficiente.

2. Cada um deveria resolver os seus próprios problemas (o caso Viktor Navorski)

O que aconteceria hoje se uma mãe, que se considerasse dependente do filho falecido, resolvesse requerer ao INSS a fruição do benefício de pensão em função da sua morte? Se a Lei fosse efetivamente aplicada pela Autarquia Previdenciária, os seus agentes, inicialmente, inquiririam algumas testemunhas arroladas, nos termos do artigo 108 da Lei n. 8.213/1991 (Mediante justificação processada perante a Previdência Social, observado o disposto no § 3º do art. 55 e na forma estabelecida no Regulamento, poderá ser suprida a falta de documento ou provado ato do interesse de beneficiário ou empresa, salvo no que se refere a registro público).

Em seguida, profeririam uma decisão, confirmando ou não o fato da efetiva dependência. Se ela fosse favorável à beneficiária, ela passaria a receber, a partir da data de entrada do requerimento, o benefício respectivo. Se não, o requerimento seria indeferido e então o acesso ao Judiciário estaria livre, já que, a partir de então, haveria lesão a direito.

Porém, o magistrado, ao decidir a causa, faria a análise do procedimento administrativo para primeiro emitir um juízo acerca da sua validade: a pretensa dependente teve a ampla oportunidade de produzir a prova da sua alegação? Se sim, então ele estaria apto a produzir um segundo juízo a respeito do próprio mérito da pretensão, a partir da resposta à seguinte indagação: de acordo com as provas produzidas no processo administrativo, ela comprovou a alegada dependência econômica?

Se a resposta fosse negativa, a pretensão teria que ser rejeitada. Em caso contrário, o pedido seria acolhido, emitida ordem para que o benefício fosse pago e prolatada condenação do INSS no pagamento das parcelas em atraso desde a entrada do requerimento. Tudo isto, logicamente, sem a realização de qualquer prova, pois ela toda já estaria contida nos autos do processo administrativo (o mandado de segurança, por exemplo, seria a ação ideal).

Mas quem sabe como as coisas funcionam tem noção de que a Lei, neste aspecto em particular, raramente é observada. O que há, na vida real, é algo semelhante ao que foi retratado no filme “O Terminal”, dirigido por Steven Spielberg.

Ele narra a estória de Viktor Navorski (interpretado por Tom Hanks), um cidadão que desembarca no aeroporto de Nova York no exato momento em que há um golpe de Estado no seu país de origem (a ficcional Krakozia). Os EUA não o reconhecem mais como nação e o seu visto perde a validade. Como não se pode voltar (devido à guerra civil instaurada) ou ser admitido na América, ele passa então a viver no aeroporto. Mas a situação se torna problemática para o administrador do terminal. E como ela é, de fato, insolúvel, ele resolve induzir Viktor a abandoná-lo, pois se isto acontecesse, ele se tornaria um P.O.P. (Problema de Outra Pessoa).

No filme, porém, Viktor (percebendo que iria entrar numa fria) decide ficar, obrigando a administração do terminal a resolver o seu próprio problema ao invés de repassá-lo às autoridades de imigração.

Mas no caso da pensionista, isto não acontece. Fora das telas, os agentes do INSS sequer admitem o processamento da justificação administrativa, fundamentando a sua decisão na ausência de “início de prova material” (a depender do ponto de vista, ela até poderia ser considerada correta) ou na mera não-comprovação da dependência econômica.

Porém, o mais interessante é que, ainda nos casos em que aquele “início de prova” existe, o benefício é indeferido e nunca (eu disse nunca) é realizada a justificação. Benefícios de pensão, nesta hipótese, tão-só são deferidos se a dependência econômica é provada por documentos que, por si só, já demonstram uma verdade incontestável (se a mãe, por exemplo, já constava há muitos anos como dependente do filho para efeitos de imposto de renda).

Na esmagadora maioria dos casos, a requerente recebe a decisão de indeferimento e, ao contrário de Viktor Navorski, passa pelas portas da agência do INSS em direção à rua e se torna um P.O.P. (Problema de Outra Pessoa).

Aliás, ela se torna um P.P.J. (Problema do Poder Judiciário).

3. O princípio constitucional do “coitadinho” e sua aplicação prática

E o que faz o Judiciário?

Ele recebe a pretensão da beneficiária, cita o réu e instrui o processo de forma integral – isto é, produz a prova oral em audiência, inquirindo as testemunhas que os agentes do INSS não quiseram inquirir (afinal, a obrigação de realizar a justificação, de acordo com a Lei, era deles e não do Juiz).

Mas se esta é uma atribuição do próprio INSS, porque os Juízes em geral admitem que isto aconteça? Acredito que haja várias respostas, mas a principal é: “porque sempre foi assim” (em outras palavras, já se tornou normal tocar fogo no mato quando se quer assar carne de porco). O Judiciário assimilou esta atividade e a maioria dos Juízes já foi criada dentro desta realidade (anteriormente já foram advogados, servidores da Justiça ou do próprio INSS, procuradores federais, etc.) e nunca exerceram um Juízo crítico acerca desta questão (no meu próprio caso, apenas percebi este absurdo após já ter ouvido, provavelmente, mais de dez mil testemunhos).

Muitos Juízes com quem tenho discutido esta questão afirmam que até compreendem que o INSS está errado (e até admitem que, a depender do caso concreto, a hipótese pode caracterizar o crime de prevaricação), mas ficam com pena do segurado ou beneficiário, que ao ajuizar a sua demanda esperava uma resposta definitiva para a sua questão.

Eis aí uma hipótese de aplicação prática do princípio constitucional do “coitadinho”.

Porém, o que tem acontecido nos últimos quinze anos é que esta transferência da atividade administrativa para os Juízes, com o consequente e óbvio aumento da sua carga de trabalho, tem forçado a criação de soluções (às vezes péssimas) dentro da própria Justiça ao invés de induzir a ampliação e a melhoria dos serviços do INSS. A criação dos JEF’s, especialmente os previdenciários, e a demanda crescente pela sua expansão são a prova mais evidente da falta de solução do verdadeiro problema. Hoje, quase 100% das audiências designadas para a produção de prova oral naqueles Juizados são, na realidade, justificações administrativas que não foram realizadas no INSS (É necessário convir, todavia, que a estratégia é genial: eu transfiro o meu serviço para o Judiciário e ainda tenho o direito de contestar e recorrer se o Judiciário não o fizer direito).

Porém, isto deveria mudar. Mas, mudar por quê? Apenas por que os Juízes têm feito muitas audiências? Não, pois o efeito mais pernicioso desta situação é que o segurado ou beneficiário que efetivamente tenha direito a um benefício – e que poderia recebê-lo após poucos meses de tramitação de um processo administrativo simples, informal, sem direito a contraditório em favor do INSS ou a intermináveis recursos que ele pudesse interpor – tão-só o tem reconhecido ao final de uma demanda judicial que pode durar anos, pois os JEF’s se burocratizaram, estão congestionados e já não respondem com a efetividade que se pretendia tivessem quando foram criados.

E o pior de tudo é que este excesso de demanda é artificial, pois induvidosamente decorre da inoperância do Poder Executivo. Já se ouve falar que mais de 50% por cento dos benefícios concedidos pelo INSS atualmente são decorrentes de sentenças judiciais (tanto que em Florianópolis houve a criação até mesmo de uma agência específica para lhes dar cumprimento).

4. Mas qual é a solução (aliás, há solução?)

Só há uma forma de mudar esta realidade: devolver ao INSS o trabalho que sempre foi dele. Quando exerci o cargo de Juiz junto ao JEF Previdenciário de Itajaí – SC, não admitia que ao Judiciário fosse transferida tarefa que era da própria Autarquia. Costumava limitar o conhecimento da lide ao que efetivamente havia sido decidido no âmbito da administração e não acolhia pretensões que não tivessem sido lá de fato formuladas ou efetivamente decididas.

A sentença proferida nos autos JEF n. 2006.72.08.003294-9 dá a exata noção deste ponto de vista:

A cópia da carteira de trabalho do autor (fl. 40) prova que as anotações estão em ordem cronológica, sem rasuras aparentes e sem qualquer indício de que tenham sido adulteradas. Além disso, o INSS não juntou qualquer documento que pudesse elidir a sua presunção de veracidade. Desta forma, o contrato devidamente anotado e não considerado pelo INSS (2-8-1973 a 29-2-1980), deve ser computado no tempo total de serviço.

Este processo demonstra a absoluta falta de respeito do INSS pelos seus segurados e, principalmente, a total e induvidosa desconsideração (ou ignorância?) da lei vigente por seus servidores. O autor requereu benefício em 11-11-2005 (fl. 13). Juntou documentos relativos a atividade rural (fls. 14 e 20 a 26) e foi submetido a entrevista (fls. 26 a 29). A conclusão do entrevistador – que não se sabe quem é, pois não houve identificação – é representada pela seguinte pérola: “diz o declarante que a família trabalhava junto na lavoura em regime familiar” (é até compreensível que o emissor de tal bobagem quisesse permanecer anônimo). Nada mais! Em 15-2-2006 surge a “decisão” administrativa (fl. 35): “DESPACHO: 35 INDEFERIMENTO MOTIVO: 024 – FALTA DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO ATÉ 16/12/98 OU ATÉ A DATA DE ENTRADA DO REQUERIMENTO“.

Nem uma única palavra acerca do motivo pelo qual o tempo de serviço rural não foi computado. Trata-se de evidente negativa de vigência do inciso I do artigo 50 da Lei n. 9.784/99: “Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses” (grifei).

Além disso, apesar da óbvia existência de início de prova material, ignorou-se outro dispositivo de lei vigente, o artigo 108 da Lei n. 8.213/91: “Mediante justificação processada perante a Previdência Social, observado o disposto no § 3º do Art. 55 e na forma estabelecida no Regulamento, poderá ser suprida a falta de documento ou provado ato do interesse de beneficiário ou empresa, salvo no que se refere a registro público” (grifei).

Início de prova material, como disse, efetivamente há (fls. 14 e 20 a 26), razão pela qual acolho parcialmente a pretensão do autor para: [a] declarar a existência do vínculo empregatício no período de 2-8-1973 a 29-2-1980; [b] declarar a existência de início de prova material para fins de reconhecimento de atividade rural (30-7-1963 a 1-8-1973); e [c] determinar ao INSS que reabra o procedimento administrativo de interesse do autor, proceda à justificação, intimando-o a apresentar rol de testemunhas e outras provas, se desejar; e, [d] por fim, decida de forma motivada o seu requerimento, indicando expressamente os fatos e fundamentos jurídicos na hipótese de negativa do seu eventual direito.

Lavre-se ofício ao Superintendente do INSS em Santa Catarina e ao Procurador da República em Itajaí, a fim de que tenham ciência do ocorrido nos autos do PA n. 137.388.477-8 e tomem as providências que a hipótese exige.

Se não houver uma mudança radical e genérica neste sentido, não tenho dúvidas que no futuro continuaremos a ter um INSS ruim – porém, além disso, teremos JEF’s ainda piores, pois com o incremento da demanda fatalmente haverá necessidade de ampliação. E, cedo ou tarde, ela esbarrará em contingências orçamentárias e a qualidade dos serviços prestados continuará a decair (nesse dia, então, os segurados e beneficiários não terão mais a quem recorrer).

5. Conclusão

A crescente assimilação e a direta realização de atividades tipicamente administrativas pelo Poder Judiciário, além de inconstitucional, têm contribuído para que toda a administração se torne cada vez mais ineficiente. As soluções que deveriam ser fomentadas no âmbito da própria Autarquia não têm sido sequer consideradas. Isto porque os atos administrativos que, de acordo com a Lei, lá deveriam ser praticados têm sido ilicitamente (em muitos casos criminosamente) transferidos aos Juízes Federais, que na prática se transformaram, sem se aperceber, em chefes de agência do INSS.

À Justiça deve ser reservada a tarefa de controlar a legalidade dos atos administrativos seus e dos demais poderes – não lhe cabe praticá-los diretamente. Se não há estrutura material e de pessoal suficientes para que o próprio Poder Executivo exerça as suas atribuições, este é um problema que ele mesmo deve resolver (a Receita Federal do Brasil não teria atingido o nível de excelência que possui hoje se esta fosse uma tarefa impossível).

Os segurados e beneficiários da Previdência Social que possuem direito a um benefício com certeza gostariam de recebê-lo sem necessidade do ajuizamento de qualquer demanda. Em suma, eles querem ser vistos como um problema do próprio INSS e não como um problema de outra pessoa.

por Julio Guilherme Berezoski Schattschneider
Juiz da Vara Federal Ambiental de Florianópolis – SC

O texto foi linkado do site do IBRAJUS – Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=124

Processo Disciplinar e Advogado

No ano passado, fiz um post comentando e criticando a Súmula 343 do STJ, que previa a obrigatoriedade da presença do advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar. Na minha ótica, a solução representaria um garantismo exagerado.

Hoje, vi que o STF, após ler meu post :-), modificou o entendimento do STJ. Na verdade, o novo pensamento foi consolidado na súmula vinculante número 5: “a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

Eu faria um pequeno acréscimo no texto para deixar claro que a presença do advogado, embora não seja obrigatória, não pode ser proibida. É que há muitos regimentos disciplinares nos Estados que não permitem a participação do advogado. Aqui mesmo no Ceará, até um dia desses, a defesa do policial militar nos processos disciplinares era realizada pelos próprios oficiais, o que não parece ser adequado ao princípio da ampla defesa.

De qualquer modo, concordo com a decisão adotado pelo STF.

Eis a notícia na íntegra:

Notícias STF

Quarta-feira, 07 de Maio de 2008

STF decide que não é obrigatória defesa elaborada por advogado em processo administrativo disciplinar

Por votação unânime, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, em sua sessão desta quarta-feira (07), sua 5ª Súmula Vinculante para estabelecer que, em processo administrativo-disciplinar (PAD), é dispensável a defesa técnica por advogado. A redação desta súmula é a seguinte: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 434059, interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e pela União contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entendeu ser obrigatória a presença do advogado em PAD e até editou uma súmula dispondo exatamente o contrário do que decidiu hoje o STF.

Diz esta súmula do STJ, de nº 343: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases de processo administrativo disciplinar”. A decisão de editar a nova súmula vinculante, aceita pelo relator do RE, ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, e pelos demais ministros, foi tomada em função de sugestões dos ministros Joaquim Barbosa e Cezar Peluso sobre sua conveniência, diante da existência desta súmula do STJ.

Nesta decisão, o Plenário se baseou em três precedentes em que o STF assentou que a presença de advogado de defesa é dispensável, em processo administrativo disciplinmar. Trata-se do Agravo Regimental (AR) no RE 244277, que teve como relatora a ministra Ellen Gracie; do AR em Agravo de Instrumento (AI) 207197, relatado pelo ministro Octávio Gallotti (aposentado), e do Mandado de Segurança (MS) 24961, relatado pelo ministro Carlos Velloso (aposentado).

Presença de advogado em PAD é facultativa

No acórdão (decisão colegiada) contestado pelo INSS e pela AGU, o STJ concedeu Mandado de Segurança (MS) à ex-agente administrativa do INSS em Márcia Denise Farias Lino, que se insurgia contra a portaria do Ministro da Previdência que a exonerou do cargo. Alegou violação aos artigos 5º, inciso LV, e 133 da Constituição Federal. O primeiro desses dispositivos garante o direito do contraditório e da ampla defesa, enquanto o segundo dispõe que o advogado é indispensável à administração da justiça. Segundo a ex-servidora, ela não teria contado com assistência técnica de advogado durante o processo administrativo disciplinar que precedeu a sua demissão.

Os ministros entenderam, no entanto, que, no PAD, a presença do advogado é uma faculdade de que o servidor público dispõe, que lhe é dada pelo artigo 156 da Lei 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos), não uma obrigatoriedade. Exceções seriam o caso de servidor que, submetido a tal processo, se encontre em lugar incerto e não sabido, caso em que cabe ao órgão público a que pertence designar um procurador; e, ainda, o fato de o assunto objeto do processo ser muito complexo e fugir à compreensão do servidor para ele próprio defender-se. Neste caso, se ele não dispuser de recursos para contratar um advogado, cabe ao órgão público colocar um defensor a sua disposição.

AGU: risco de demitidos serem premiados

Ao defender a posição da União na sessão plenária de hoje, o advogado-geral, José Antônio Dias Toffoli, advertiu para o risco de, a se consolidar o entendimento do STJ, servidores demitidos a bem do serviço público, nos Três Poderes, “voltarem a seus cargos com poupança, premiados por sua torpeza”. Isto porque, para todos eles, o processo administrativo disciplinar é regido pelo artigo 156 da Lei 8.112 (Estatuto do Funcionalismmo Público). E a decisão do STJ daria ensejo a demandas semelhantes, em que os servidores, além de sua reintegração ao cargo, poderiam reclamar salários atrasados de todo o período em que dele estiveram ausentes.

Toffoli informou, neste contexto, que o chefe da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage, lhe informou que, de janeiro de 2003 até hoje, 1.670 servidores da União foram demitidos a bem do serviço público.

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