Desafivelando a Máscara: o uso de máscaras nas manifestações

O objetivo do presente post é analisar a constitucionalidade das leis que proíbem o uso de máscara em manifestações públicas. Não me preocuparei com a questão da competência legislativa (se federal, estadual ou municipal), mas apenas com a questão de fundo. Afinal, são válidas as restrições ao uso de máscaras?

É preciso reconhecer que há bons argumentos a favor de ambas as teses. De um lado, não há como negar que o uso de máscara pode ser uma forma de expressão, incluído, portanto, no manto protetor da livre manifestação do pensamento. Além disso, o direito de reunião também concorre para que desconfiemos das proibições ao uso de máscaras em manifestações, pois o principal requisito constitucional para a proteção da reunião é o caráter pacífico, e o uso de máscara, por si só, não significa violência. De outro lado, a máscara dificulta a identificação do manifestante, podendo gerar o anonimato, que não está protegido constitucionalmente. Isso sem falar que algumas máscaras podem funcionar como instrumento de intimidação (p. ex. o capuz usado pelos membros da Ku Klux Klan), configurando uma espécie de hate speech não protegida pela liberdade de expressão. Assim, é possível mobilizar um suporte constitucional para dar sustentação a qualquer opinião nessa seara.

Para resolver o problema, é essencial perquirir o contexto fático e jurídico que está por detrás do debate. Por exemplo, nos Estados Unidos, que é um país que confere ampla proteção à liberdade de expressão, há várias leis proibindo o uso de máscaras. Acontece que essa proibição foi influenciada sobretudo pela ação da Ku Klux Klan, no início do século XX. Somente depois é que a proibição foi estendida, por uma questão de integridade e coerência, para outros grupos.

Aqui no Brasil, o pretexto da proibição de uso de máscaras em manifestações é óbvio: a preocupação com a tática Black Bloc. Tem-se verificado que alguns manifestantes mascarados aproveitam-se do anonimato para causar o pânico, seja por via de uma violência simbólica (usando roupas pretas, tocando fogo em latas de lixo ou queimando pneus, bandeiras ou bonecos), seja por via de uma violência real (destruindo o patrimônio público e privado, agredindo policiais e membros da imprensa etc.). Essa violência causada por alguns mascarados criou um estereótipo de que todo mascarado é violento, e que quem está usando máscaras quer praticar crimes. Esse foi o leitmotiv da proibição do uso de máscaras em manifestações.

Aqui há um erro claro de tomar a parte pelo todo. Afinal, nem todo mascarado está mal-intencionado. Na verdade, há vários motivos para se usar máscaras durante uma manifestação. A máscara pode ser uma forma de se proteger contra os efeitos do gás lacrimogêneo e das balas de borracha atirados pela polícia. A máscara pode ser uma forma de expressar uma ideia, como a própria máscara do Guy Fawkes, que tem se tornado um símbolo mundial da revolta popular contra a tirania. Também pode servir como símbolo de protesto, tal como ocorreu quando a sociedade brasileira foi às ruas com os rostos pintados para defender o impeachment do Collor. Do mesmo modo, a máscara pode ser uma forma de demonstrar pertença a um grupo, como o uso de máscaras cirúrgicas em uma manifestação de profissionais de saúde. Aliás, em alguns casos, o uso de máscaras cirúrgicas em espaço público pode decorrer até mesmo de razões médicas, a fim de evitar a transmissão de doenças. Pode ser também uma expressão de religiosidade, como o uso da burca em uma reunião de mulheres muçulmanas. Ou um equipamento obrigatório, como o uso de capacetes em uma manifestação de motoqueiros. Ou parte de uma vestimenta alegórica, para fins de diversão, como as máscaras usadas pelos foliões no carnaval.  E pode funcionar até mesmo para preservar a identidade do manifestante, numa situação de anonimato legítimo, como por exemplo a hipótese de um servidor público querer protestar contra o governante, mas tem justo receio de sofrer retaliação. Em todos esses casos, cobrir o rosto não é necessariamente um ato preparatório para a prática de crimes.

Além disso, nem toda pessoa que esteja de máscara está sempre agindo de forma anônima. Em muitas situações, uma pessoa pode estar mascarada, e todos saberem de quem se trata. Na maioria das vezes, basta que a polícia peça os documentos da pessoa, inclusive retirando temporariamente a máscara, para identificá-la. Isso sem falar que é possível cobrir o rosto sem usar máscara. Um boné, com óculos escuros, ou uma barba e bigode postiços, são capazes de tornar qualquer pessoa irreconhecível, e nem por isso se pensa em proibir o uso desses apetrechos durante as manifestações.

Ao proibir o uso de máscara, sem relacionar esse uso com a violência, o poder público está restringindo desnecessariamente uma série de direitos fundamentais (liberdade de reunião, liberdade de expressão, liberdade artística etc.). Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que proibir o uso de mochilas durante as manifestações. Afinal, vários vândalos usam mochilas para levar seus artefatos de violência (coquetéis molotovs, pedras, estilingues, manoplas, bastões etc.). Então, por que não proibir as mochilas? Certamente, a proibição de uso de mochilas em manifestações seria facilmente considerada como uma medida excessiva (desproporcional). Por isso, a meu ver, e por um motivo semelhante, a proibição pura e simples, de forma absoluta, do uso de máscaras também deveria ser vista como uma solução arbitrária.

Há, porém, um aspecto que merece ser levado em conta. É totalmente legítima a preocupação do estado em tentar impedir a violência durante as manifestações. Vamos fingir, só pra não polemizar, que a culpa pela violência é sempre dos manifestantes e nunca da polícia. Como o estado poderia dar uma resposta ao vandalismo, já que vários manifestantes estão mascarados?

É um princípio básico de direito que todo aquele que, no exercício da liberdade, causa danos a outras pessoas e ao patrimônio alheio, deve ser responsabilizado pelos seus atos. Também é um princípio básico na teoria dos direitos fundamentais a ideia de que o exercício do direito não pode justificar a prática de atos que violem os direitos de outras pessoas. Isso significa dizer que os manifestantes violentos não gozam de proteção jurídica e devem sim ser punidos pelos crimes que cometerem. Mas como punir esses manifestantes se o uso da máscara dificulta sua identificação?

Há várias soluções possíveis para esse problema. Uma delas, bem melhor do que a proibição pura e simples do uso de máscaras, veio do Canadá. Lá, por ocasião de vários protestos violentos que ocorreram durante eventos internacionais, foi aprovada uma lei criminalizando o uso de máscaras durante tumultos (Bill C 309). Assim, não há uma proibição específica para o uso de máscara em manifestações pacíficas. Somente durante um tumulto ou uma manifestação ilegítima é que os manifestantes não podem usar máscaras.

Mesmo assim, referida lei tem sido alvo de diversas críticas. É que uma pessoa pode estar usando máscaras durante um tumulto e não necessariamente estar praticando violência. Essa pessoa pode, inclusive, está tentando evitar que os manifestantes pratiquem violência, e o uso da máscara seja apenas uma proteção contra as armas não-letais usadas pela polícia. Apesar disso, por força da referida lei canadense, a pessoa de máscara está praticando crime pelo simples fato de estar ali. (Perceba-se que o manifestante violento de máscara precisará de algum modo ser identificado para ser punido, de modo que a criminalização do uso de máscara não resolve o problema do anonimato. O criminoso anônimo continuará a praticar seus crimes anonimamente).

Talvez a melhor solução seja considerar o uso de máscara um mero agravante para o crime de vandalismo ou outro que o valha. O relevante para configurar a antijuridicidade não é usar máscara, mas praticar atos de violência durante as manifestações. Assim, quem estiver praticando violência teria a sua pena agravada caso estivesse usando máscara para dificultar sua identificação. Mas aquele que estivesse de máscara, sem praticar violência, não poderia ser punido, pois o uso de máscara não é, por si só, lesivo a qualquer bem jurídico. Aqui vale mais um esclarecimento: o fato de o anonimato não estar incluído no âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento não implica necessariamente a repressão ao anonimato. O anonimato somente deve ser reprimido quando causar dano a outrem. O pensamento anônimo destituído de lesividade não é, de per si, antijurídico, ainda que não goze da proteção constitucional.

Outra solução foi dada pela Corte Constitucional alemã, envolvendo especificamente a tática Black Bloc. Lá, alguns manifestantes pretendiam realizar um protesto Black Bloc nas proximidades do local em que se realizaria a reunião do G8, em 2007. O poder público proibiu a realização do protesto, e o caso foi parar no Tribunal Constitucional Federal. O TCF, em decisão liminar, reconheceu a validade da proibição, sob o argumento de que, diante do histórico das ações Black Bloc, a manifestação teria presumivelmente um caráter violento. Assim, como as manifestações violentas não merecem proteção constitucional, seria possível proibir, previamente, a realização de uma manifestação em que a violência, provavelmente, estaria presente.

A solução do TCF se alicerça em uma base fática difícil de ser avaliada por quem não conhece o contexto das ações Black Bloc naquele país. De minha parte, concordo que uma manifestação em que há uma elevada possibilidade de violência praticada por manifestantes pode sim ser proibida previamente, desde que haja prova real de que os organizadores da manifestação estejam planejando agir de forma não-pacífica. Para isso, não bastam conjecturas e presunções superficiais (parece-me que a maior parte das críticas à decisão do TCF decorreu de uma falta de aprofundamento na demonstração da presunção de violência da tática Black Bloc). Há de haver o devido processo, a fim de que seja reconhecido, por uma autoridade imparcial, o caráter violento da manifestação. Mutatis mutandis, seria o mesmo que proibir a atuação de uma torcida organizada que, sob o manto de um suposto direito de associação, esteja praticando crimes. Para esses casos, a Constituição cria uma reserva de jurisdição, estabelecendo que uma associação somente pode ser suspensa com ordem judicial, exigindo o trânsito em julgado para a dissolução definitiva.

Como conclusão, em princípio, a proibição pura e simples do uso de máscara em manifestações é inconstitucional. É possível, contudo, estabelecer restrições ao uso de máscara quando associado à violência. De lege ferenda, o agravamento da pena pela prática de crime de vandalismo e correlatos quando o criminoso estiver usando máscara para dificultar a identificação é perfeitamente possível. Por outro lado, aquele que estiver usando máscaras de forma não-violenta não pode ser punido, pois não está violando nenhum bem jurídico capaz de justificar a sua responsabilização. Usar máscara não é crime, nem pode ser crime, a não ser num contexto de violência. As leis que têm sido aprovadas pelo Brasil afora são, no fundo, meros pretextos legais, destituídos de juridicidade, para reprimir as manifestações populares, numa clara afronta à liberdade de expressão e de reunião.

 

A Arrogância do Crime

Muitos me acusam de ser incoerente ao ser um ferveroso defensor dos direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, concordar com algumas medidas mais rigorosas envolvendo presos de alta periculosidade, a exemplo da quebra do sigilo das comunicações entre o advogado e seu cliente mediante fundamentada ordem judicial.

O vídeo abaixo reforça meu entendimento. Mesmo atuando muito esporadicamente na jurisdição criminal, já tive a oportunidade de realizar interrogatórios muito semelhantes, onde o réu demonstra uma total indiferença perante as instituições e se acha acima do bem e do mal. Vale conferir:

Fonte: Judex, Quo vadis?

A propósito, recomendo a leitura do blog “Judex, Quo vadis?”, de onde extraí o vídeo acima. O referido blog denuncia vários dramas vividos pela magistratura contemporâne, fornecendo de um modo leve e bem humorado (rir para não chorar?) alguns absurdos do sistema atual. O ponto negativo é o anonimato que é justificado apenas parcialmente pela possibilidade de represália, diante da falta de abertura crítica de nossas cúpulas.

Direito de Protesto e Igrejas

A foto acima é auto-explicativa: um grupo de cidadãos mulçumanos estão rezando em homenagem às vítimas que foram mortas durante o ataque de Gaza por parte Israel. Até aí nada demais. O problema é que, ao fundo, se vê a Catedral de Milão (belíssima, por sinal).

Por conta de protestos semelhantes, em janeiro de 2009, o Ministro dos Assuntos Internos da Itália emitiu uma circular que aconselha aos “prefeitos” [representante do Estado Central nas capitais de Província] e os “questores” [chefes da Policia em âmbito local] a não conceder autorização para realização de passeatas, marchas e protestos em espaços públicos “que estejam na frente de lugares religiosos e de culto”.

Essa questão foi debatida aqui no curso de doutorado.

O professor Giovanni Allegretti, que é italiano, criticou a circular governamental, defendendo basicamente o seguinte (idéias dele, com as quais concordo, parcialmente, desde que o protesto em área pública não gere violência física):

Está cada vez mais estigmatizado o legítimo intercâmbio de idéias no espaço público, o que é uma grave afronta à democracia. Disse ainda que a circular faz parte de uma cultura da “criminalização do dissenso”, que se manifesta com ataques ao direito de expressão e de crítica, direito de reunião e de circulação e com a estigmatização do conflito como “produto de uma síndrome  NIMBY”.

Essa “síndrome NIMBY” é algo bastante interessante. NIMBY é um acrônimo inglês de “Not In My Back Yard”, que pode ser traduzido como “não no meu quintal”. Apesar de ser utilizado por urbanistas (por sinal, o professor Allegretti é arquiteto), também se aplica com perfeição ao mundo dos direitos fundamentais. Há muita gente que defende a democracia, a liberdade e a igualdade, mas “não no meu quintal”.

De minha parte, deixo para comentar essa questão depois de ouvir os comentários, já adiantando que a questão não é tão simples assim…

Acesso à Justiça e Abuso de Direito: o Caso da Igreja Universal versus Folha de São Paulo

De acordo com notícia publicada no Conjur (clique aqui), a Igreja Universal estaria orientando seus fiéis a ingressarem com ações judiciais por todo o Brasil contra a Folha de São Paulo, alegando que uma matéria publicada naquele jornal teria violado a honra daqueles que acreditam nos ideais religiosos pregados pelo Bispo Edir Macedo.

Trata-se de um caso típico de abuso de direito fundamental, especificamente do direito fundamental de ação (Acesso à Justiça).

Esse princípio – o da proibição de abuso de direito fundamental – é, na minha ótica, um dos mais importantes para a correta interpretação desses direitos, embora, lamentavelmente, aqui no Brasil, praticamente ninguém fale dele com profundidade.

A idéia básica da proibição de abuso é a seguinte: nenhuma pessoa pode invocar direitos fundamentais para justificar a violação de outros direitos fundamentais igualmente importantes. Daí porque, por exemplo, a incitação de idéias racistas ou nazistas não pode ser considerada como alvo de proteção das normas jusfundamentais que garantem a liberdade de expressão, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Caso Ellwanger.

No caso da Igreja Universal, é nítido que o direito fundamental de ação está sendo utilizado, de forma abusiva, como instrumento para embaraçar o exercício da liberdade de imprensa. Se fosse uma única ação, o exercício do direito de ação seria legítimo, cabendo ao Poder Judiciário definir qual direito deve prevalecer (se a honra da Igreja Universal ou a liberdade de imprensa). Mas ao propor milhares de ações pelo Brasil afora fica claro que o intuito do processo judicial é gerar prejuízo financeiro para a Folha de São Paulo, com a contratação de advogados, sem o propósito honesto de se buscar uma reparação justa, o que não pode ser tolerado pela Justiça.

Se eu fosse o juiz processante, além de condenar os autores por litigância de má-fé, intimaria a Igreja Universal para participar de todos os processos, fazendo com que ela prove um pouco do próprio veneno.

Upgrade

Alguns comentários dos leitores, me forçaram a apresentar novos argumentos em favor do meu ponto de vista. Vamos lá.

Em primeiro lugar, a má-fé (intenção deliberada de prejudicar) é praticamente impossível de ser provada. Por isso, são as circunstâncias objetivas dos fatos que nos permitem concluir, por presunção, que está havendo abuso.

Todos sabem que as igrejas de um modo geral exercem uma grande influência sobre os seus fiéis.

A reportagem da Folha foi um ataque direto à reputação da Igreja Universal. Logo, é natural que os pastores da igreja insuflem os seus seguidores a reagiram a esse ataque.

Até aí tudo bem. Há várias formas de reação: cartas ao jornal, boicotes, protestos enfim, é uma reação normal e esperada em uma democracia.

De repente, alguns dias depois da publicação da matéria, começam a aparecer, pelo Brasil afora, centenas de ações de indenização, com petições praticamente idênticas, exigindo a configuração da responsabilidade civil da empresa jornalística. Observe que o ataque foi à Igreja e não seus fiéis, o que já poderia configurar uma ilegitimidade ativa, mas isso é uma questão mais complexa. O importante por ora é tentar demonstrar o abuso. Pois bem.

É muita coincidência que todos os fiéis – individualmente – sem consultar à direção da Igreja resolvam ingressar com a mesma ação em diferentes Estados e – veja que interessante – nos juizados especiais, onde há gratuidade da justiça em primeira instância.

O vínculo entre eles, justamente por fazerem parte da mesma congregação religiosa, é indiscutível, a meu ver.

E veja que não estou falando que precisam de cem ou duzentas ações para configurar o abuso. Essa quantidade enorme é tão somente um fator bastante objetivo para inverter o ônus da prova: agora quem tem que provar que está de boa-fé são os autores da ação. E a boa-fé, nesse caso, é fácil de ser provada: basta ele jurar – perante Deus :-) – que não foi incentivado pelo pastor a ingressar com a ação.

Se fossem duas ações somente, também poderia estar configurado abuso se (e aí o ônus da prova é da Folha) ficasse demonstrado que houve um conluiu para prejudicar a empresa.

Em uma sociedade massificada, é perfeitamente possível (e isso ocorre com freqüência) que o mesmo fato dê ensejo a diversas ações, de diferentes autores, em muitos Estados da federação. As ações tributárias, as ações de consumidor (tarifa básica, por exemplo), as ações previdenciárias, são exemplos nesse sentido. Mas o caso ora comentado, aparentemente, não se inclui nessa hipótese, pois as circunstância objetivas que o rodeiam levam à conclusão oposta, qual seja, a de que houve sim má-fé, salvo se os autores comprovarem o contrário.

Como juiz, se o autor da ação jurasse, com a mão na Bíblia, que não houve uma deliberada intenção de prejudicar a Folha, aceitaria o argumento de que ele estava de boa-fé, embora isso, por si só, não justificasse, em princípio, uma ação indenizatória, pois a liberdade de imprensa, na minha ótica, proteje as críticas às instituições, inclusive às igrejas.

Um tapinha dói ou não dói? A Censura na Música após a Constituição de 88 – Limites à Liberdade de Expressão Musical

Como este post está um pouco longo, recomenda-se a sua leitura ao som da música “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento, um hino contra a censura.
Ou, se preferir algo mais moderno, clique aqui para ouvir a bela música “Um tapinha não dói”, do Furacão 2000. (Infelizmente, se você escolher essa opção, terá que sair do blog, pois aqui não toca música ruim).
Afinal, um tapinha dói ou não dói?

Será que ainda existe censura musical no Brasil? A resposta fornecida pela mais importante lei do país, que é a Constituição, é bastante clara: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E mais: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

A realidade, porém, demonstra que a solução não é tão simples assim. É possível encontrar diversos exemplos de composições musicais que foram, de algum modo, censuradas (proibidas), inclusive com o aval do Poder Judiciário, mesmo depois da democratização do país, simbolizada com a Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.

O que os exemplos abaixo demonstram é que as instituições brasileiras, especialmente o Poder Judiciário, não consideram que a liberdade de expressão seja um valor absoluto, sem freios ou limites (aliás, nenhum direito fundamental é absoluto). Pela leitura das decisões abaixo conclui-se que devem existir limites ao direito de se manifestar artisticamente. E esses limites, curiosamente, também estão previstos na própria Constituição Federal, assim como o próprio direito à liberdade artística!

Veja um exemplo: a Constituição, ao mesmo tempo em que garante a liberdade de expressão, condena o preconceito e o racismo. Então, será que algum artista poderia, em nome da liberdade de expressão, compor uma música contendo idéias preconceituosas ou pregando o ódio racial?

Este é o dilema: qual dos dois valores em jogo é o mais importante? A liberdade artística ou o combate ao preconceito?

A resposta nem sempre é simples.

Certamente, é fácil concordar com uma decisão (ver abaixo) como a do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao condenar a Banda Zurzir, que nitidamente utiliza a música para disseminar idéias preconceituosas de cunho nazista. Letras musicais que elogiam Hitler e defendem o extermínio de judeus certamente não estão protegidas pela liberdade artística.

Por outro lado, bem mais difícil é aceitar uma decisão como a do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que condenou a música “Veja os cabelos dela”, do Tiririca, que, apesar do mau gosto musical, nada mais é do que uma manifestação tosca do típico humor brasileiro (ou pelo menos, do humor cearense).

Como meio termo, muito mais complexo é definir se a música “E por que não?” da banda gaúcha Bidê e Balde deve ser proibida. Ela insinua o incesto e a pedofilia (por sinal, a letra é de extremo mau gosto, embora a melodia seja até legal). Até que ponto a sociedade, em nome da democracia e da liberdade de expressão, deve tolerar esse tipo de manifestação artística? É difícil responder, sobretudo pelo fato de ainda sermos muito imaturos em matéria de liberdade de expressão.

Justamente por conta de nossa imaturidade democrática, defendo que, por enquanto, é melhor ousar em favor da liberdade de expressão, podando-se apenas os extremos (como no caso da Banda Zurzir).

Imagine um pêndulo onde, de um lado, esteja a censura e do outro a liberdade de expressão. Durante praticamente trinta anos, o pêndulo esteve do lado da censura em razão do regime militar. Será que não é hora de jogar o pêndulo para o outro lado com toda a força? Se, desde já, tentarmos buscar o equilíbrio certamente o pêndulo ainda continuará do lado da censura. Especificamente no caso das músicas de protesto (300 Picaretas – Paralamas do Sucesso, Vossa Excelência – Titãs), não vejo qualquer razão para proibi-las. Esse tipo de manifestação artística é perfeitamente compatível com a democracia. Elas não violam qualquer valor constitucional. Pelo contrário: a democracia ganha pontos ao respeitar esse tipo de manifestação de pensamento. A democracia funciona assim mesmo. É da essência da democracia que o cidadão tenha o direito de falar mal dos políticos e das autoridades.

Além disso, há um argumento pragmático em favor da liberdade de expressão: é praticamente impossível aplicar a censura diante de um ambiente tecnológico como a internet. Basta um conhecimento elementar em informática para conseguir baixar, com relativa facilidade, pelos programas e sites de compartilhamento (especialmente, os chamados P2P – usuário para usuário), as músicas que foram proibidas pelo Judiciário. Qualquer pessoa, hoje, pode ouvir, sem maiores problemas, as músicas nazistas da Banda Zuzir, os funks “proibidões” do Rio de Janeiro que elogiam o crime organizado, a “música” “proibida” do Tiririca e do Bidê ou Balde etc…

Se isso é bom ou ruim, também não sei dizer. O que posso dizer com toda certeza é que, em matéria de censura, a internet dá um banho no Direito. E se o Judiciário pensa que pode controlar todas as condutas sociais, é melhor mudar seus conceitos. Aliás, foi isso que reconheceu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na decisão do Caso “Bidê ou Balde”. É só conferir logo abaixo.

Músicas Censuradas

E Por Que Não? – Bidê ou Balde
(Autores: Carlinhos Carneiro e Rossato)
“E por que não? / Eu estou amando a minha menina / E como eu adoro suas pernas fininhas / Eu estou cantando pra minha menina / Pra ver se eu convenço ela a entrar na minha.
E por que não? / Teu sangue é igual ao meu, é igual ao meu / Teu nome fui eu quem deu / Te conheço desde que nasceu.
E por que não? / Eu estou adorando / Ver a minha menina / Com algumas colegas / Dela da escolinha / Eu estou apaixonado / Pela minha menina / O jeito que ela fala, olha, / O jeito que ela caminha”.
A referida música foi alvo de ação judicial, tendo a Banda Bidê ou Balde sido acusada de apologia à pedofilia. A Banda, em nota oficial, protestou contra a acusação. O certo é que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em grau de recurso, decidiu o seguinte:

“Inegável que a letra da música ‘E por que não?’, da banda ‘Bidê ou Balde’, materializa apologia ao incesto e à pedofilia, sendo impossível, material e constitucionalmente, a pura e simples extirpação do material do universo social, já entranhada nos lares e à disposição em centenas de ‘sites’ na Internet. Hipótese de reconhecimento judicial da ofensa, com minimização de seus efeitos, com aplicação de multa, por veiculação e decorrente de parcela dos lucros, em benefício de órgão estadual de bem estar do menor”.

Na minha ótica, a decisão foi razoável. Na verdade, o TJRS não proibiu a música, apenas aplicou uma multa pesadíssima toda vez que a música for veiculada. A Banda Bidê ou Balde preferiu não pagar pra ver (ou melhor, tocar), fazendo um acordo com o ministério público se comprometendo a não mais executar a música nos seus shows.

Veja a decisão na íntegra.

Para demonstrar que censura não combina com internet, o clipe da música pode ser visto facilmente no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=oEn71o4fkjI

Banda Zurzir

Também é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a decisão que condenou a Banda Zurzir, que pregava idéias nazistas (como é que ainda existe gente assim?).

Eis a ementa do acórdão:

“PRECONCEITO DE RAÇA. ORNAMENTOS. QUE UTILIZA A CRUZ SUÁSTICA. Se de um lado a constituição exaltou a liberdade de pensamento como um dos direitos fundamentais, ficou preservada também a dignidade humana, com repúdio à discriminação ou preconceito. Comprovada conduta preconceituosa, divulgação de música de apologia ao líder nazista, é de ser mantida a condenação. APELO IMPROVIDO”.

Veja a decisão na íntegra.

Uma das músicas citadas na decisão é chamada 88 Heil Hitler, cuja letra é a seguinte:

“SOBERANO GUERREIRO, COM SEUS PUNHOS DE AÇO TENTOU LIVRAR O MUNDO DA SINISTRA IRMANDADE
O TRIUNFO DA VONTADE GUIOU O IMPÉRIO
E A SERPENTE DESTILOU EM SEU VENENO MISTÉRIOS
88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER (duas vezes)
A FERRO E FOGO SUPORTOU AS MENTIRAS SIONISTAS
CONDENADO PELO MUNDO A PAGAR SEM RAZÃO
O NOBRE FUHRER FOI CALADO E SEU IMPÉRIO VENCIDO
PERDEU-SE UM GRANDE HERÓI. JAMAIS SERÁ ESQUECIDO
88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER, 88 HEIL HITLER (duas vezes)”
Lamentável… (a música, não a decisão).
Bonde da Chatuba – Funk Proibidão – Mc Frank

Os funks do Rio de Janeiro já se auto-proclamam “Proibidões”, utilizando a censura como instrumento de marketing. As suas letras visam chocar a sociedade, seja pela pornografia explícita, seja pelo elogio ao crime organizado (Comando Vermelho, Terceiro Comando da Capital etc.).
Curiosamente, são poucos os casos que foram parar na Justiça, até porque essas músicas não costumam ser comercializadas oficialmente. É tudo meio clandestino. Mesmo assim, pelo menos uma canção foi alvo de processo judicial e chegou até o Supremo Tribunal Federal. É a chamada “Bonde da Chatuba”, do Mc Frank, cuja letra diz o seguinte:

Bonde do 157

Não se mexe, não se mexe
Na Chatuba é 157
Não tira a mão do volante
Não me olha e não se mexe
É o Bonde da Chatuba
Do artigo 157
Vai, desce do carro,
Olha pro chão, não se move
Me dá seu importado
que o seguro te devolve
Se liga na minha letra
Olha nós aí de novo
É o Bonde da Chatuba
Só menor periculoso.

Audi, Civic, Honda,
Citröen e o Corolla
Mas se tentar fugir
Pá! Pum!
Tirão na bola
Na Chatuba é 157.

Aê, parado, ninguém se mexe…

Nosso bonde é preparado,
Mano, puta que pariu
Terror da Linha Amarela
E da Avenida Brasil
Nosso bonde é preparado
Não tô de sacanagem
Um monte de homem-bomba
No estilo Osama Bin Laden.

A referida música faz, claramente, uma alusão ao crime de roubo, tipificado no artigo 157 do Código Penal. Em razão disso, Mc Frank foi acusado de apologia ao crime. Não conformado, o funkeiro ingressou com habeas corpus perante o STF tentando barrar a ação penal. O Min. Marco Aurélio indeferiu o pedido, alegando que havia realmente indícios da prática da apologia ao crime. (Obs: os argumentos apresentados pelos advogados do cantor são bem interessantes. Agora, querer comparar a letra de “Pivete“, de Chico Buarque, com esse funk é meio forçar a barra, não é mesmo?).

Confira a decisão na íntegra.

Tiririca

Em um de seus momentos mais criativos, o poeta e compositor Tiririca brindou a humanidade com a seguinte canção:
Veja os cabelos dela
Alô, gente, aqui quem fala é o Tiririca
Eu também estou na onda do Axé Music
Quero ver os meus colegas dançando
Veja, veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas seus cabelos não têm jeito, não
A sua catinga quase me desmaiou
Olha, eu não agüento o seu grande fedor
Veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Eu já mandei ela se lavar
Mas ela teimou e não quis me escutar
Essa nega fede!
Fede de lascar
Bicha fedorenta, fede mais que um gambá
Veja, veja, veja os cabelos dela
Como é que é?
A galera toda aí
Com as mãozinhas pra cima
Veja, veja, os cabelos dela
Bonito, bonito!Aí, morena, você, garotona
Veja, veja, veja os cabelos dela
A beleza poética da letra é tão inspiradora quanto a melodia da música. Vale conferir. Logicamente, Tiririca não pretendia ganhar nenhum “Grammy” por essa canção. Sua intenção era tão somente fazer humor. Aliás, ele chegou a afirmar que a música foi feita em “homenagem” à sua esposa. Mas não foi isso que algumas entidades entenderam. Para alguns, a música representaria um desrespeito à mulher negra e, por isso, deveria ser proibida. O caso foi parar na Justiça. No âmbito penal, Tiririca foi inocentado da acusação de racismo, a meu ver corretamente, já que o intuito da música era fazer humor. Na esfera cível, porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou o caso em grau de apelação, condenou a Sony Music a pagar uma indenização de trezentos mil reais. Veja a íntegra da decisão.
Comentário particular: para ser sincero, acho que o TJRJ exagerou um pouco. Acho que aqui caberia os mesmos argumentos da sentença do Mandarino, no caso Diogo Mainardi. Ou seja, entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, é preferível a tolerância em nome da liberdade.
Afinal, como diz outra belíssima canção popular, um tapinha não dói…

Outras músicas ou bandas que tiveram problemas com a Justiça

As músicas acima foram inegavelmente censuradas, na medida em que tiveram sua veiculação total ou parcialmente proibida.
Houve inúmeras outras músicas e bandas que também tiveram problemas com a Justiça, como por exemplo:

Legalize Já – Planet Hemp – Os membros da Banda Planet Hemp chegaram a ser presos no Distrito Federal, sob a acusação de fazer apologia ao consumo de drogas, por cantarem músicas como “Legalize Já“. Felizmente, o Poder Judiciário reconheceu que a atividade artística dos músicos estava, no caso, protegida pela liberdade de expressão. Veja a decisão.

Comentário pessoal: acredito que defender a legalização do uso da droga é diferente de defender o consumo da droga. No caso da Banda Planet Hemp, acredito que eles defendem uma idéia que, a rigor, não está proibida pela Constituição, que é a legalização da maconha.
Além disso, há diversas música que, de algum modo, se referem às drogas. De cabeça, me recordo das seguintes: Malandragem dá um tempo – Bezerra da Silva, A Feira – O Rappa, Cachimbo da Paz – Gabriel, o Pensador.
Não creio que qualquer dessas músicas faça apologia ao uso de drogas, embora, em quase todos os casos, exista um elogio indisfarçado às pessoas que consomem maconha. Apesar disso, considero que seria um exagero tentar qualquer forma de censura em relação a essas músicas.
300 Picaretas – Paralamas do Sucesso – Inspirados em uma frase bombástica do então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, os Paralamas do Sucesso fizeram uma música “homenageando” os “300 Picaretas” que faziam parte do parlamento brasileiro (otimistas, não? Afinal, só 300?). Houve, na época, uma tentativa de proibição da música por parte da Procuradoria do Congresso Nacional. Felizmente, o processo judicial não deu em nada.
Se, em uma democracia, ninguém puder falar mal dos governantes, parlamentares, juízes etc., então certamente não se trata de uma democracia.
Vossa Excelência – Titãs – Na mesma linha da música dos Paralamas, os Titãs fizeram, em 2006, uma música criticando o Poder Judiciário (e o poder público de um modo geral), chamada Vossa Excelência. Confira abaixo um clipe bem interessante da música extraído do Youtube.
Ao contrário dos congressistas, que tentaram proibir a música “300 Picaretas”, os juízes brasileiros (pelo menos, os federais) não se sentiram “menores” por conta da música dos Titãs. Pelo contrário. Naquele mesmo ano, os Titãs foram convidados a participarem do encerramento do “Encontro Nacional dos Juízes Federais”, que ocorreu em São Paulo. Por cautela, os Titãs preferiram não incluir a música “Vossa Excelência” no repertório do show, já que a platéia estaria lotada de magistrados. Em vão, pois os juízes e familiares ali presentes clamaram pela música. Os gritos de “Vossa Excelência, Vossa Excelência” não deixaram alternativa para os Titãs senão tocar a música. Antes de tocar, um temeroso Tony Belotto ainda perguntou para a platéia: “vocês sabem mesmo o que estão pedindo?”
No final, os aplausos foram emocionantes.
É por essas e outras que tenho orgulho de fazer parte da magistratura federal!
Para finalizar o post, presto uma pequena homenagem ao Senado Federal, que hoje absolveu o Senador Renan Calheiros. Assim, nesse clima de indignação, curta o clipe da música Vossa Excelência direto do Youtube:
%d blogueiros gostam disto: