Anencefalia: o resultado

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Não surpreendeu o resultado do julgamento da ADPF 54/2004. Porém, fiquei surpreso com o placar: 8 a 2. Achei que seria 7 a 3 ou 6 a 4. A saída da Min. Ellen Gracie e a morte do Min. Menezes Direito certamente influenciaram o resultado do julgamento, facilitando a folga no placar.

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Não assisti a íntegra do julgamento. Do que vi, gostei dos opostos: o começo e o fim. A sustentação oral do Luís Roberto Barroso foi brilhante como sempre. Mas também foi brilhante o voto do Min. Peluso, que julgava improcedente o pedido. Sem dúvida, o seu melhor voto na sua passagem pelo STF.

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Não gostei, como era de se esperar, da falta de uma preocupação com a unidade do fundamento da decisão. O STF precisa remodelar a sua estrutura de julgamento urgentemente. Uma boa saída é fazer como a maioria dos tribunais pelo mundo, em que o voto final é escrito depois do julgamento, consolidando a opinião comum do grupo vitorioso. Não são precisos oito votos, com vários argumentos nem sempre coerentes, dizendo que o aborto em caso de anencefalia não é crime. Basta um voto escrito a várias mãos, em que só entra na fundamentação aquilo que todos concordam.

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Achei exagerada a insistência do Min. Marco Aurélio no princípio da laicidade do estado. Creio que os argumentos pela criminalização do aborto não são meramente religiosos. Também não gostei da insistência de que o feto anencéfalo não tem vida. Isso parece ser contra-intuitivo. Vida há. Se a proteção a essa vida deve ser absoluta, isso é outra história.

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Um aspecto curioso do julgamento foi o uso de palavras de legitimação por ambos os lados. Os defensores da descriminalização usavam o eufemismo “antecipação terapêutica do parto”. Os contrários à descriminalização usavam a expressão “aborto eugênico” ou “assassinato de inocente” para se referir ao fenômeno.

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Diante da falta de um cuidado argumentativo, é difícil estabelecer até que ponto o referido julgamento pode afetar outras decisões, como aquelas envolvendo a eutanásia ou a poligamia, por exemplo. De minha parte, percebi uma preocupação elevada com a autonomia individual, dando a entender que o STF está adotando, certamente, uma linha liberal que vai ter repercussões importantes em questões morais complexas. A jurisdição constitucional, definitivamente, está se transformando em um trunfo de proteção da liberdade, estabelecendo limites à interferência estatal e criando uma zona de privacidade que o estado não pode invadir. É importante insistir nisso, pois isso derruba o argumento da usurpação do poder legislativo. Na verdade, a jurisdição constitucional, nessas hipóteses, está devolvendo ao indivíduo o seu poder de decisão. Em situações envolvendo conflitos morais razoáveis, não cabe ao legislador decidir. A decisão deve caber, em linha de princípio, ao indivíduo.

O Barco do Aborto, a Soberania Estatal e a Liberdade de Expressão

Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por haver, em 2004, proibido a entrada de um barco em suas águas territoriais. Para quem não se recorda da polêmica, o barco em questão era este:

O barco “Borndiep” fora fretado por associações favoráveis à legalização do aborto e, ao tentar entrar em águas territoriais portuguesas, foi impedido por um navio da marinha de Portugal.

As associações responsáveis pelo barco questionaram judicialmente o ato do governo português, mas não obtiveram êxito nas instâncias judiciais nacionais.

O Tribunal Europeu, por outro lado, entendeu que houve violação da liberdade de expressão por parte de Portugal e concedeu uma indenização simbólica de dois mil euros para as três associações pró-aborto que haviam fretado o “Borndiep”. (clique aqui para ver o press release em inglês) (a decisão, em francês, pode ser lida aqui).

Ainda não tive oportunidade de ler a decisão, por isso deixo de emitir comentários pessoais…

Mas quero fazer um comentário sobre um aspecto mais “teórico” da decisão.

Esse caso demonstra com perfeição que não há ato governamental imune ao controle judicial. Em princípio, o ato de decidir quem pode entrar e quem não pode entrar em um país é um ato de soberania. Logo, não poderia ser questionado judicialmente.

Ocorre que a questão muda completamente quando há violação a direitos fundamentais. Foi o que ocorreu no caso, pelo menos sob a ótica do Tribunal Europeu. O ato governamental impediu o exercício de um direito fundamental e, por isso, o Estado foi condenado.

Numa versão originária do meu Curso de Direitos Fundamentais, eu comentava o caso Larry Rotther, como exemplo semelhante desse fenônomeno. Por motivo de espaço, acabei tirando o texto, mas reproduzo-o aqui:

Uma importante conseqüência da plena exigibilidade dos direitos fundamentais é a redução da liberdade discricionária do administrador, quando há violação de direitos fundamentais. Segundo o Tribunal Constitucional Federal alemão, a importância da garantia da vida judicial “reside principalmente no fato de ele acabar com a ‘autocracia’ do Poder Executivo na relação com os cidadãos; nenhum ato do Executivo que intervenha em direitos dos cidadãos pode ficar fora do controle judicial” [1].

Nesse sentido, vale citar um emblemático caso ocorrido no Brasil, envolvendo a liberdade de imprensa: o caso “Larry Rohter”[2].

Larry Rohter é um polêmico jornalista americano do “New York Times”, que atua como correspondente aqui no Brasil. Em uma de suas reportagens, Larry Rohter criticou os hábitos etílicos do Presidente da República, dizendo que “hábito de beber de Lula se torna preocupação nacional”.

Inconformado com o teor da reportagem, o Presidente Lula determinou ao Ministério da Justiça que o visto diplomático do referido jornalista não fosse renovado. O ministro interino da Justiça, acatando a ordem do Presidente, publicou a seguinte nota:

Em face da reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do país no exterior, publicada na edição de 9 de maio passado do jornal “The New York Times”, o Ministério da Justiça considera, nos termos do artigo 26 da Lei 6815, inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto. Nessas condições, determinou o cancelamento do visto temporário do senhor William Larry Rohter Júnior[3].

Sem adentrar na verdade ou falsidade da notícia, o certo é que o seu desdobramento resultou em uma das maiores afrontas à Constituição Federal, em especial ao direito à liberdade de expressão.

Ricardo Noblat, conhecido jornalista brasileiro, narra como foi o processo de tomada de decisão neste lamentável episódio:

Na reunião ontem em que decidiu o destino do correspondente do NYT no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resistiu aos apelos de ministros e de assessores para que não tomasse a decisão que tomou. Todos ou quase todos que ele ouviu foram contra a cassação do visto de permanência no país do jornalista. A certa altura da reunião, um dos ministros argumentou: – Presidente, o jornalista é casado com uma brasileira. E a Constituição concede a ele o direito de ficar aqui… A frase do ministro foi interrompida pelo comentário do presidente: – Foda-se a Constituição. O presidente estava furioso. Mais do que furioso: descontrolado em alguns momentos. Berrou, disse palavrões e esmurrou a mesa do seu gabinete de trabalho no Palácio do Planalto. A decisão de expulsar o jornalista foi dele, unicamente dele. O ministro Márcio Thomas Bastos, da Justiça, está em Genebra, a serviço. Consultado por telefone, foi contra expulsar o jornalista. Só soube que a expulsão fora decretada depois que ela fora assinada pelo ministro interino da Justiça. Os ministros Luiz Gushiken, da Comunicação Social, e Celso Amorim, das Relações Exteriores, também foram votos vencidos. Gushiken telefonou hoje para Thomas Bastos e conversou a respeito do assunto. Os dois, mais Celso Amorim e outros auxiliares do presidente estão tentando reverter a decisão dele. Já avaliaram que foi péssima e que só tenderá a ser pior a repercussão do ato presidencial – aqui e lá fora. O presidente continua determinado a não voltar atrás.

“Foda-se a Constituição!”, eis as palavras do Chefe de Estado brasileiro. Até os militares, no auge do regime ditatorial, foram mais sutis com a Constituição. No máximo, chamaram-na de “livrinho”, o que não deixa de ser até carinhoso (embora, na prática, as atitudes do regime militar fossem bem mais graves – do ponto de vista da violência física – do que as do Presidente Lula).

O certo é que um senador (Sérgio Cabral) impetrou habeas corpus em favor de Larry Rohter perante o Superior Tribunal de Justiça, defendendo que a não renovação do visto de trabalho do jornalista seria um atentado à liberdade de imprensa.

O Ministro Peçanha Martins, em louvável voto, concedeu o habeas corpus, assinalando o seguinte:

O ato de concessão ou revogação de visto de permanência no país de estrangeiro, em tese, está subordinado aos interesses nacionais (art. 3º da Lei nº 6.815/80). O visto é ato de soberania. Pergunto-me, porém, se uma vez concedido poderá ser revogado pelo fato do estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela Constituição, qual o de externar a sua opinião no exercício de atividade jornalística, livre de quaisquer peias? Estaria tal ato administrativo a salvo do exame pelo Judiciário? Neste caso penso que não. É que no Estado Democrático de Direito não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da Administração. E aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no art. 5º e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas não pode haver quanto ao direito de livre manifestação do pensamento (inciso IV) e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, “independentemente de censura ou licença” (inciso IX)[4].

Depois da concessão do habeas corpus e da repercussão negativa no exterior que o evento causou ao governo brasileiro, o Ministério da Justiça resolveu voltar atrás e renovou o visto do jornalista.

O caso demonstra com perfeição que também o Executivo está vinculado aos direitos fundamentais, não havendo mais espaços estatais livres da fiscalização judicial nessa seara, mesmo em um terreno tradicionalmente discricionário como a concessão de vistos de permanência para estrangeiros.


[1] SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 812.

[2] STJ, HC 35445-DF, rel. Min. Peçanha Martins, 13 de maio de 2004.

[3] Nota publicada pelo jornal “O Globo” do dia 12.5.2004.

[4] voto do Min. Peçanha Martins no HC 35445-DF.

11 a 0? – acho difícil…

Li uma reportagem (clique aqui) em que o Min. Marco Aurélio, do STF, relator da ADPF da Anencefalia, afirmou que o julgamento da referida ação será de 11 a 0 em favor da não-criminalização do aborto em caso de fetos anencéfalos.

Já afirmei algumas vezes que sou favorável à mesma tese, mas acho muito difícil que essa decisão seja unânime. Aliás, não coloco a mão no fogo por resultado algum. A discussão está ainda muito indefinida e, se tomarmos como base o julgamento das pesquisas com células-tronco, é muito provavél que a ADPF da Anencefalia seja indeferida. Explico.

O placar do caso das células-tronco foi de 6 a 5, e a questão era bem mais simples. Uma coisa é utilizar células-tronco em pesquisas e outra coisa, muito mais séria, é autorizar o aborto de um feto que já apresenta diversos traços humanos, inclusive o batimento cardiáco, ainda que sua morte seja iminente. O feto anencefálico é uma vida muito mais complexa do que uma célula-tronco. Dificilmente, alguém choraria de tristeza se uma célula-tronco morresse. A morte de um feto anencefálico, por sua vez, sempre causa grande emoção. Apesar de poder ser mal interpretado, diria que a dignidade do feto anecefálico é muito maior do que a dignidade de uma célula-tronco.

E digo mais: no caso das células-tronco, a Min. Ellen Gracie manifestou-se a favor das pesquisas. É bastante provável que ela vote contra o aborto dos fetos anencéfalos, pois ela já manifestou essa opinião anteriormente. Ou seja, dos seis que votaram a favor das pesquisas, pelo menos um vai mudar de lado no caso da anencefalia.

Por isso, penso eu, seja qual for a decisão a ser tomada pelo STF, será ela por maioria apertada.

Para finalizar, gostaria de apontar uma importante distinção entre a questão das células-tronco e a dos fetos anencéfalos. No primeiro caso (células-tronco), houve uma prévia deliberação do Congresso Nacional. O STF não inovou no mundo jurídico, apenas reconheceu que a decisão política tomada pelo parlamento não afrontou o direito à vida previsto na Constituição. No caso do aborto em caso de anencefalia, o Congresso Nacional ainda não definiu a questão. Ou seja, o STF vai decidir o tema mesmo sem ter sido objeto de debate nas instância democráticas tradicionais.

Por ser matéria intimamente ligada aos valores constitucionais (vida, liberdade de escolha, dignidade humana etc.), acho que o STF tem legitimidade para apreciar esse tema. Mas a decisão seria muito mais legítima se apenas confirmasse eventual solução tomada pelo parlamento, tal como foi feito no caso das células-tronco. Infelizmente, contudo, nosso Congresso Nacional não gosta de fazer seu trabalho e prefere passar a maior parte do tempo fatiando o orçamento público do que cumprir seu papel de tomar as decisões políticas mais sensíveis.

As angustiadas famílias que vivem esse drama não podem esperar. Uma resposta jurídica definitiva, seja de quem for, seja em que sentido for, deve ser dada.

Independente Futebol Clube: uma defesa da autonomia da vontade

“Não estatize meus sentimentos. Para o seu governo, o meu estado é independente”.

Uma explicação prévia: este post talvez seja um dos mais longos que já escrevi e certamente será um dos mais polêmicos, pois procurei demonstrar a coerência do meu pensamento sobre diversos temas de alta complexidade com base em um único fio condutor. Esse tipo de reducionismo certamente não é desejável. No entanto, adianto que minha intenção, ao escrever o post, não foi construir um edifício argumentativo todo bonitinho e mobiliado em defesa do meu ponto de vista. Quando muito, pretendi apenas tentar fincar uma base sólida num terreno extremamente arenoso, que ainda precisa de muito cimento para se tornar seguro.

Sei que não convencerei a muitos, talvez a maioria. Mas mesmo aqueles que não concordarem com o resultado final da minha argumentação, certamente aceitarão a premissa, que pode ser sintetizada nos belos versos de Renato Russo, na música Baader-Mainhof-Blues, acima transcritos.

Outra explicação prévia: este post estará em constante evolução e, portanto, esta não é a versão definitiva e acabada de meus argumentos. À medida em que meu pensamento for amadurecendo em um ou outro ponto, acrescentarei meu ponto de vista no corpo do texto.

Em defesa da autonomia da vontade

A idéia deste texto não é defender a autonomia da vontade como um valor absoluto nem mesmo como o valor constitucional mais importante de todos, mas tão somente apresentá-lo como um valor importante, nem mais nem menos “fundamental” do que outros valores.

O que me motiva nessa tarefa é saber que, apesar de ser um dos mais relevantes atributos da dignidade humana, a autonomia da vontade tem sido bastante negligenciada pelos teóricos brasileiros.

Na minha ótica, a solução de diversos problemas de alta complexidade jurídica envolvendo os direitos fundamentais passa, necessariamente, por uma correta noção do que seja a autonomia da vontade.

Diga-me qual a força que você confere à liberdade de escolha que te direi qual a sua opinião sobre eutanásia, aborto, homossexualismo, eficácia horizontal, renúncia de direitos fundamentais, só para ficar com alguns exemplos.

Ouso dizer que todos os direitos fundamentais decorrem, em alguma medida, dessa faculdade (alguns, como Virgílio Afonso da Silva, chamariam de competência). Por isso, a autonomia da vontade talvez seja um dos mais importantes atributos da dignidade humana, embora com toda certeza não seja o único, já que ninguém nega que as crianças e os doentes mentais sejam seres dotados de dignidade, apesar de não possuírem capacidade plena de discernimento e, portanto, não poderem exercer livremente a sua autonomia da vontade.

Vou tentar justificar meu ponto de vista.

Em primeiro lugar, vou tentar formular um conceito bem simples de autonomia da vontade. Vamos lá:

Uma definição de autonomia da vontade

Autonomia da vontade é a faculdade que o indivíduo possui para tomar decisões na sua esfera particular de acordo com seus próprios interesses e preferências.

Isso significa basicamente o reconhecimento do direito individual de fazer tudo aquilo que se tem vontade, desde que não prejudique os interesses de outras pessoas. Para ser mais claro: cada um deve ser senhor de si, agindo como um ser responsável por suas próprias escolhas, especialmente por aquelas que não interferem na liberdade alheia.

Esse conceito, sem dúvida, tem um forte apelo individualista. É por isso que os norte-americanos o idolatram tanto. Lá, quem melhor defendeu essa idéia foi Stuart Mill, no livro “Ensaio sobre a Liberdade”, escrito durante o Século XIX.

Mill sustentou que sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano. Para ele, as escolhas pessoais de cada um, desde que tomadas de forma verdadeiramente livre e que não sejam prejudiciais aos interesses dos outros, não devem sofrer interferências indevidas nem do Estado nem da sociedade como um todo.

Aqui no Brasil, por uma série de razões, a autonomia não é tão valorizada quanto nos EUA. Acredito que um dos principais motivos desse fato é a grande desigualdade econômica existente na nossa sociedade. É difícil acreditar que uma pessoa faminta e analfabeta seja completamente livre para tomar decisões importantes a respeito de sua vida sem ser influenciada por outras pessoas mais poderosas.

Por isso, o Estado brasileiro costuma ser mais paternalista do que o normal. Nós precisamos de uma legislação trabalhista para proteger o empregado, de um código para proteger o consumidor, entre outras normas que limitam a autonomia privada para evitar a prática de injustiças contra setores desfavorecidos. Veja bem: não estou criticando esse tipo de lei. Pelo contrário. Acho que elas são extremamente necessárias para equilibrar as forças e permitir que o exercício da autonomia privada se dê com igualdade de armas. O que quero dizer é que, em uma situação ideal, onde não houver desequilíbrio de forças, os cidadãos deveriam ser livres para pactuar entre si da forma como bem entenderem. Numa relação trabalhista ou de consumo esse equilíbrio natural é uma quimera, pelo menos diante da realidade brasileira.

A autonomia da vontade como fundamento dos direitos fundamentais

Afirmei anteriormente que a autonomia da vontade fundamenta praticamente todos os demais direitos. É verdade. A idéia que inspira a proteção da autonomia privada é a de que o Estado deve tratar as pessoas sob o seu domínio como agentes responsáveis e capazes de tomar por si próprios as decisões que lhes dizem respeito. Assim, por exemplo, cabe a cada indivíduo decidir por si mesmo que lugares que deseja freqüentar, qual a religião que deve acreditar, com quais pessoas queira se reunir ou se associar, qual a profissão que deseja seguir, quais os livros que pretende ler, e assim por diante. Daí os diversos direitos de liberdade: de locomoção, de religião, de associação e reunião, de profissão, de expressão etc. Logo, a positivação de inúmeros direitos fundamentais decorrem diretamente dessa idéia.

A autonomia da vontade é tão importante que as crianças de um modo geral sofrem uma série de restrições que as impedem de exercitarem inúmeros direitos fundamentais por lhes faltar a plena capacidade de discernimento. Assim, por exemplo, elas não podem trabalhar (salvo como aprendizes a partir de 14 anos), não podem freqüentar determinados lugares (como boates ou casas noturnas), não podem comprar produtos específicos ainda que lícitos (como cigarros ou bebidas, por exemplo), nem podem ter acesso a determinadas formas de manifestações artísticas destinadas ao público adulto (como revistas, filmes ou peças de teatro que contenham cenas de sexo, por exemplo). Essas restrições são justificadas em razão do fato de que uma criança, em regra, ainda não tem maturidade para exercer, com plenitude, a sua autonomia privada.

No mesmo contexto, pode-se dizer que o exercício da autonomia da vontade pressupõe que o indivíduo, ao tomar as decisões que afetem sua pessoa, esteja de posse de informações claras e corretas, de modo que ele possa conscientemente avaliar entre todas as escolhas possíveis aquela que melhor reflita seu ideal de vida. O direito privado considera que os atos jurídicos praticados com vícios de vontade em razão de erro, dolo, coação etc. podem ser anulados justamente porque a pessoa que foi enganada ou coagida não exercitou sua liberdade de escolha de forma autêntica.

A partir de agora, serão vistas algumas implicações práticas que demonstram a importância da autonomia privada para compreensão de uma série de fenômenos dentro da teoria dos direitos fundamentais.

Autonomia da Vontade e Contracepção

Assim como no Brasil, não há, nos EUA, nenhuma norma constitucional expressa protegendo a autonomia privada. Esse valor decorre essencialmente de uma construção jurisprudencial.

Uma das primeiras vezes em que a Suprema Corte norte-americana reconheceu a existência desse valor foi em 1965, no famoso caso “Griswold v. Connecticut”. Nele, ficou decidido que o poder público não poderia, nem mesmo por lei, proibir a comercialização ou a utilização de anticoncepcionais.

A lógica por detrás desse julgamento é a de que os casais deveriam ser livres para tomar as decisões ligadas à relação matrimonial, inclusive as questões ligadas à procriação, não cabendo ao poder público interferir nessas escolhas.

Aliás, esse entendimento é perfeitamente compatível com o espírito da Constituição brasileira que expressamente estabeleceu que “o planejamento familiar é livre decisão do casal (…) vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (art. 227, §7º, da CF/88).

Em outra oportunidade, tentarei demonstrar que o fundamento utilizado pela Suprema Corte norte-americana, no Caso Griswold, não foi bem a autonomia privada, mas o direito à privacidade. No entanto, o conceito de privacidade adotado pela Suprema Corte dos EUA em muito se assemelha à noção ora desenvolvida de autonomia da vontade.

Autonomia da Vontade e Aborto

Como conseqüência do Caso Griswold, a Suprema Corte dos EUA, em 1973, decidiu o polêmico caso “Roe versus Wade”.

No referido caso, a Suprema Corte norte-americana autorizou, por 7 votos a 2, a prática do aborto em determinadas situações. Basicamente, ficou decidido que: (1) os Estados possuem interesses legítimos em assegurar que a prática do aborto não coloque em risco a vida da mulher; (2) o direito à privacidade abrange o direito de a mulher decidir se interrompe ou não a gravidez; (3) o direito de interromper a gravidez não é absoluta, podendo ser limitado pelos interesses legítimos do Estado em manter padrões médicos apropriados e em proteger a vida humana em potencial; (4) o embrião não está incluído dentro da definição de “pessoa”, tal como usada na décima quarta emenda; (5) antes do fim do primeiro trimestre da gravidez, o Estado não pode interferir na decisão de abortar ou não; (6) ao fim do primeiro trimestre até o período de tempo em que o feto se tornar viável, o Estado pode regular o procedimento do aborto somente se tal regulação se relacionar à preservação da vida ou da saúde da mãe; (7) a partir do momento em que o feto se tornar viável, o Estado pode proibir o aborto completamente, a não ser naqueles casos em que seja necessário preservar a vida ou a saúde da mãe.

O fundamento que se pode extrair do caso Roe é o de que a mulher teria o direito constitucional de controlar seu próprio corpo, de modo que a opção sobre realizar ou não um aborto deveria ser, em princípio, uma escolha íntima e pessoal sua. Porém, ao mesmo tempo, foi reconhecido que o poder público também tem um legítimo interesse em proteger a vida “em potencial” do feto. Desse modo, na tentativa de conciliar os interesses conflitantes, decidiu-se que a liberdade de escolha da mulher somente seria pleno no estágio inicial da gravidez (equivalente aos três primeiros meses após a concepção), pois, quando o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero, a proibição do aborto seria legítima, exceto em algumas situações onde o parto pudesse colocar em risco a vida da mãe. Mesmo que não se concorde com o mérito da decisão, é inquestionável que houve, no caso, uma tentativa de prestigiar a autonomia da vontade da mulher.

Aqui no Brasil, por opção legislativa cuja constitucionalidade até agora não foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal, o aborto é proibido qualquer que seja o estágio da gravidez, exceto em caso de risco de vida da mãe ou quando a gravidez resulta de estupro.

Atualmente, está na pauta de julgamento do STF a questão do aborto de fetos sem cérebro (anencéfalos). Apesar de ser católico e acreditar na vida como um milagre (vide o artigo “O Princípio Antrópico como Justificativa para a Dignidade Humana”), creio que a solução mais compatível com os valores constitucionais é, realmente, a não criminalização do aborto em caso de anencefalia do feto. Na minha ótica, fere a Constituição punir criminalmente uma mulher que, diante de uma pressão psicológica tão grande, opte por interromper a gravidez.

Na ponderação de valores em si (vida do feto versus liberdade de escolha da mulher), até acho que a vida seja mais importante. Mas, no caso de fetos anencéfalos, a balança está tão equilibrada que punir a mulher seria uma grande injustiça. O melhor é que a escolha recaia sobre aquela pessoa que será a principal afetada por qualquer decisão: a própria gestante.

Por outro lado, para se perceber que não dou um caráter absoluto à liberdade de escolha, acredito que a não-criminalização do aborto em caso de gravidez resultante de estupro pode, em dadas situações, significar uma proteção insuficiente da vida do feto, especialmente naqueles casos em que a gravidez já se encontra em estado avançado e que exista viabilidade de vida extra-uterina. Nessa situação, ou seja, quando o feto já apresenta sinais que demonstram que ele pode sobreviver fora do útero, defendo que a liberdade de escolha da mulher deveria ser restringida em favor da vida. Essa questão ainda não foi judicializada aqui no Brasil.

Autonomia da Vontade e Opção Sexual

Outra questão interessante envolvendo a autonomia da vontade diz respeito à opção sexual. Até que ponto o Estado pode criminalizar a opção sexual do indivíduo?

Curiosamente, até o ano de 2003, a Suprema Corte norte-americana entendia que os Estados-membros seriam livres para criminalizar a sodomia e o homossexualismo. Era um posicionamento totalmente incoerente com a lógica adotada nos casos Griswold e Roe. Para ser mais direto: era uma solução hipócrita.

Para alegria geral da comunidade “raimbow”, em 2003, a Suprema Corte norte-americana, apesar de ser formado por juristas extremamente conservadores, mudou de opinião e anulou uma lei do Texas que punia criminalmente a prática do homossexualismo. Isso ocorreu no caso “Lawrence vs. Texas” (2003).

Na decisão, prevaleceu o argumento de que a sexualidade é uma opção íntima e pessoal que diz respeito a cada indivíduo em particular, sendo vedado ao Estado interferir nessa escolha quando tomadas consensualmente por pessoas adultas e plenamente capazes, já que, “no coração da liberdade”, está o direito de definir o próprio conceito de existência. Em outras palavras: “os adultos podem escolher determinado relacionamento na intimidade das suas casas e das suas vidas privadas e, ainda assim, manterem a sua dignidade como pessoas livres. Uma vez que a sexualidade se manifesta na conduta íntima com outra pessoa, essa conduta é apenas um elemento do comprometimento estável. A liberdade protegida constitucionalmente permite aos homossexuais fazerem esta escolha”. A decisão, na íntegra e em português, pode ser lida aqui.

Dentro dessa mesma lógica, a Suprema Corte norte-americana deve apreciar, em breve, a questão envolvendo o casamento gay.

No Caso Goodridge, julgado em 2003 pela Suprema Corte de Massachussetts, ficou decidido, por 4 votos a 3, que pares do mesmo sexo podem obter certidões de casamento a partir de maio de 2004. A polêmica decisão vale apenas para aquele Estado norte-americano.

Concordo plenamente com a decisão. Na verdade, sob uma ótica racional, nada justifica a proibição do casamento gay. A opção sexual de cada um não diz respeito ao Estado. Impedir que pessoas do mesmo sexo mantenham uma relação afetiva e se beneficiem dos mesmos favores legais que os casais entre homens e mulheres possuem significa uma discriminação desproporcional, totalmente incompatível com espírito libertário da atual sociedade pluralista e sem preconceitos que a Declaração de Direitos Humanos, desde 1948, pretendeu estabelecer em todo mundo.

Autonomia da Vontade e Pornografia

Dentro das inúmeras controvérsias geradas pela liberdade de expressão, insere-se a questão de saber se os materiais pornográficos estariam protegidos pela Constituição. Em caso afirmativo, as normas do código penal que punem a comercialização de obras com conteúdo obsceno seriam inconstitucionais.

Nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão tem uma proteção extremamente abrangente, a Suprema Corte decidiu, no caso “Miller vs. California” (1973), que o ato obsceno não desfrutaria de nenhuma proteção constitucional, mas deixou claro que o material com real valor literário, artístico, político ou científico ainda pudesse ser distribuído, mesmo que seu conteúdo fosse considerado como erótico. Trata-se, nitidamente, de uma decisão hipócrita e incoerente com diversas decisões envolvendo a liberdade de expressão daquela mesma Corte. Afinal, lá nos EUA, a liberdade de expressão é um direito preferencial e não há motivo algum para justificar a limitação desse direito constitucional por motivos de conservadorismo moral.

Trazendo o discurso para o direito brasileiro, observa-se que a pornografia é punida no artigo 234 do Código Penal. Perceba que o tipo penal é extremamente contra qualquer tipo de pornografia, proibindo até mesmo “escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”. No parágrafo único do referido artigo, chega-se ao cúmulo de punir qualquer “representação teatral ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter”, bem como as recitações de caráter obsceno!

Particularmente, penso que o tipo penal referido não está em sintonia com o caráter libertário contido na CF/88. Na nova ordem constitucional, a decisão sobre o que ler, ouvir, assistir, escrever, fotografar ou desenhar é uma escolha pessoal do indivíduo, que o Estado não deve se intrometer, salvo em situações excepcionais e tão somente para preservar outros valores constitucionais, dentro do critério da estrita necessidade. Não cabe ao Estado, nem mesmo ao juiz, definir o que tem valor artístico ou que é “pura pornografia”. É o indivíduo, plenamente consciente e eticamente responsável pelas suas escolhas, que deve exercer o juízo crítico e pessoal sobre aquilo que ele considera capaz de lhe engrandecer como ser humano.

Vale ressaltar que defender a proteção constitucional da pornografia não implica dar uma “carta branca” para a exploração sexual de seres humanos. Conforme se afirmou, a proteção que ora se defende decorre principalmente do livre exercício da autonomia privada, que pressupõe a plena capacidade de discernimento e a livre vontade de decidir. Sem esses pressupostos não há que se falar em proteção constitucional.

Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

A idéia de que os direitos fundamentais se aplicam não apenas nas relações entre o cidadão e o Estado (eficácia vertical), mas também nas relações privadas (eficácia horizontal), envolve, no fundo, uma colisão de valores em que, de um lado, estará sempre a autonomia da vontade.

É por isso que não se deve estranhar a doutrina da “state action” vigente nos EUA. Conforme se viu, os EUA valorizam sobremaneira a autonomia da vontade. Por isso, eles negam completamente a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, salvo se houver lei expressamente prevendo essa aplicação ou então se o agente privado estiver exercendo uma função estatal.

Entre nós, prevalece o entendimento bem mais favorável à incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, independentemente de lei dispondo a respeito. É a chamada eficácia direta.

Isso ocorre, sobretudo, em razão da desigualdade de forças já mencionada. Nem sempre as relações privadas serão 100% simétricas. Aliás, na maioria das vezes, haverá um agente privado com muito mais poder econômico tentando usar todo tipo de influência para lucrar à custa da parte mais fraca. Em regra, quem está em condições de inferioridade não consegue exercer a liberdade de escolha com plena autonomia. Daí porque é importante aceitar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais como forma de limitar os poderes privados.

E mesmo numa relação plenamente simétrica, não se deve afastar totalmente a possibilidade de incidência dos direitos fundamentais, sobretudo quando o valor constitucional em jogo seja de tal modo relevante que a sua limitação mereceria um repúdio do Estado. Como se disse, no final, tudo vai desembocar numa ponderação de valores.

Autonomia da Vontade e Renúncia de Direitos Fundamentais

Finalmente, um dos pontos mais delicados. A renúncia de direitos fundamentais.

Nove entre dez juristas afirmam que os direitos fundamentais são indisponíveis e irrenunciáveis. Discordo.

Renunciar e até mesmo negociar a direitos fundamentais é algo que ocorre com bastante freqüência. Na verdade, não permitir que uma pessoa, com plena capacidade de discernimento e livre de qualquer tipo de pressão, negocie ou renuncie a direitos fundamentais é violar a sua autonomia da vontade.

Logicamente, somente será possível aceitar uma renúncia de direitos fundamentais quando a pessoa estiver realmente em condições psicológicas de tomar uma decisão livre de pressões e com plena capacidade de discernimento. Um trabalhador, que no desespero para se manter no emprego, aceite trabalhar vinte horas por dia, sem direito a férias ou descanso, ganhando menos do que um salário mínimo, não está decidindo livre de pressões. Não há, aqui, verdadeira liberdade de escolha, razão pela qual é razoável não aceitar a renúncia.

A renúncia a um direito fundamental somente pode ser proibida quando o exercício da autonomia privada não for autêntico.

Por isso, é plenamente válida a regra que criminaliza a negociação de partes do corpo humano. Um sujeito que resolva vender uma parte do seu corpo (um rim, por exemplo) certamente não está realizando essa escolha com tranqüilidade de espírito. Provavelmente, a decisão de vender um rim é decorrente de graves privações financeiras, não havendo aí plena capacidade de discernimento. Por isso, a lei que proíbe o comércio de órgãos humanos deve ser considerada válida.

Por outro lado, dentro desse mesmo contexto, seria desproporcional, na minha ótica, punir alguém que optasse por vender, por exemplo, seus cabelos, já que a violação à integridade física é mínima, devendo prevalecer, no caso, a autonomia da vontade. Aliás, por incrível que pareça, existe um mercado intenso de compra e venda de cabelos para fabricação de perucas.

No fundo, a discussão em torno da possibilidade de renúncia de direitos fundamentais vai desemborcar, mais uma vez, no sopesamento de valores, onde, de um lado, estará a autonomia da vontade e, do outro, o direito a ser renunciado. Em alguns casos, prevalecerá a autonomia da vontade; em outros, o direito fundamental em jogo, conforme a importância de cada um desses valores no caso concreto. Geralmente, aceita-se com mais facilidade a renúncia de direitos fundamentais de cunho patrimonial. Já os direitos mais ligados à dignidade humana, como o direito à vida e à integridade física e moral, são bem menos flexíveis, mas ainda assim podem ceder em determinadas situações.

Observe, por exemplo, um esporte como a luta de boxe. Quase sempre, a luta ocorre com o consentimento dos envolvidos, ou seja, os lutadores estão ali por que querem, num exercício claro da autonomia da vontade. Por outro lado, é típico do esporte que ocorra lesão à integridade física dos esportistas. Mesmo assim, ninguém ousaria defender a proibição do esporte, nem a punição dos lutadores ou mesmo dos empresários que exploram o boxe. Aliás, há até mesmo um estímulo ao esporte, com patrocínios públicos e privados para aqueles que se dedicam a essa atividade.

O importante, para verificar a proporcionalidade do ato, é saber se o exercício da liberdade de escolha está sendo autêntico. Se essa tomada de decisão for sincera, o máximo que o Estado pode fazer é desenvolver mecanismos para que o indivíduo tenha perfeita consciência da conseqüência do seu ato, mas jamais interferir na sua escolha, sobretudo quando a decisão não atingirá a dignidade de outras pessoas.

Não cabe ao Estado, por exemplo, impedir que uma pessoa ultra-religiosa pratique atos de autoflagelação. Em princípio, pode ser um ato irracional e contrário às convenções sociais, que está certamente violando a integridade física daquele que o pratica. Mas se a pessoa que opta por fazer isso acredita firmemente – de forma sincera e autêntica – que a auto-flagelação lhe dará um conforto espiritual que compensará, no final das contas, o sacrifício, não cabe ao Estado embaraçar essa decisão, já que é uma escolha que diz respeito apenas ao indivíduo afetado, por mais irracional que seja.

Mais um exemplo: um militar que resolva participar de um treinamento de guerra para fazer parte da tropa de elite das forças armadas sabe que passará por inúmeras privações biológicas (fome, frio, calor, sede etc.) e psicológicas, podendo, em alguns casos, chegar até mesmo a sofrer violências físicas. No entanto, ele sabe que, quanto mais rigoroso for o treinamento, melhores serão suas condições de participar de uma guerra e maior será a sua auto-estima e reputação perante os demais membros do grupo social em que ele vive. Logo, caberá a ele sopesar os valores conflitantes e decidir se quer ou não participar do treinamento, sem prejuízo da punição dos organizadores do evento, caso fique demonstrada a prática de excessos criminosos.

Do mesmo modo, se uma pessoa plenamente capaz resolve colocar um “piercing” ou então fazer uma tatuagem, está no legítimo exercício do direito fundamental de dispor do próprio corpo. Guardadas as devidas proporções, é uma decisão semelhante àquela tomada por uma mulher que aceita se submeter a uma intervenção cirúrgica meramente estética, como o aumento dos seios, por exemplo. Essa mulher certamente sabe dos riscos que está assumindo, sabe que haverá uma violação a sua integridade física, sabe que poderão existir complicações cirúrgicas e sabe que terá imenso sofrimento após a cirurgia. Se ainda assim resolve fazer a plástica, o Estado, em principio, não pode impedir.

Por isso, é de discutível constitucionalidade, pelo menos se interpretado à risca, o artigo 13 do Código Civil: “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Na verdade, toda pessoa que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais e tenha condições concretas e autênticas de tomar por si próprio as decisões que lhe dizem respeito tem o direito fundamental de dispor do próprio corpo da forma como bem entender, desde que não prejudique o direito de terceiros, não podendo o Estado, ressalvadas algumas situações bem peculiares, interferir no exercício desse direito.

Eutanásia

Dentro desse contexto, já se pode intuir qual minha opinião a respeito da eutanásia. Entendo que a solução mais compatível com os valores constitucionais é que o Estado autorize a eutanásia voluntária, ou seja, aquela em que o sujeito expressamente manifesta seu desejo de não mais viver, mas, por razões físicas, não pode realizar a sua vontade. Parece-me que a decisão de como e quando morrer é uma das ‘mais íntimas escolhas pessoais que uma pessoa pode fazer na vida’, uma escolha que é o centro da dignidade e autonomia. Na minha ótica, fere a Constituição não permitir que alguém, diante de uma pressão psicológica e de um desgosto de viver tão grande, opte por abreviar o seu sofrimento.

Era isso. Como se disse, este post estará em constante evolução adaptativa, razão pela qual peço, se possível, comentários e críticas dos leitores.

Para aprofundar:

As idéias acima possuem uma forte influência do pensamento de Ronald Dworkin, em especial dois livros: “A Leitura Moral da Constituição” e “Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais”, ambos publicados no Brasil pela editora Martins Fontes.

Para finalizar, reproduzo a música que deu origem ao título do post:

“Se a gente está aqui

comendo capim

É porque a gente quer

Se não quiser

Nós somos livres

Independente Futebol Clube!”

Ultraje a Rigor, na música “Independente Futebol Clube”

Se você tivesse legitimidade para a propositura de ADPF, o que você faria?

Vou fazer uma premonição: o STF vai começar uma onda de ativismo judicial nunca antes visto.

As mais polêmicas questões constitucionais serão alvo de ADPFs e ADIns.

Quem abriu o precendente foi o PDT ao impetrar a ADPF 130, questionando a lei de imprensa. Praticamente não houve críticas à decisão. A mídia, de pé, aplaudiu, sem nem mesmo saber ao certo o que foi decidido. Todos foram elogiados, desde o deputado Miro Teixeira, passando pelo Min. Carlos Ayres Brito, e indo até o ministros que defenderam a revogação da lei de imprensa como um todo.

Daqui a pouco vem mais duas questões de altíssima relevância: a possibilidade de pesquisas com células-tronco e a não-criminalização do aborto de fetos anencéfalos. Não é à toa que a campanha da fraternidade da CNBB é o direito à vida: é a “sociedade aberta” dos intérpretes da Constituição tentando influenciar a decisão do STF.

Entrando nessa onda de ativismo judicial, pensei em algumas questões ligadas aos direitos fundamentais que também poderiam ser alvo de ADPFs. Estou aqui apenas levantando a bola. Quem tem o poder de fazer o gol são os legitimados ativos para a ADPF.

Eis algumas questões:

1 – Limitação ao direito da realização do aborto em caso de estupro

Atualmente, o Código Penal não considera crime a realização do aborto em caso de gravidez decorrente estupro, sem estabelecer qualquer limite temporal para a escolha da mulher.

Em tese, se uma mulher grávida nessa situação optar por fazer o aborto no oitavo mês de gravidez, não há qualquer óbice legal para essa conduta.

A meu ver, a partir do momento em que se comprova que o feto tem possibilidade de vida extra-uterina, não cabe mais à mulher o direito de realizar o aborto. É uma violação ao direito à vida.

Aliás, até mesmo nos EUA, onde o aborto é permitido , a Suprema Corte, no famoso caso Roe vs. Wade, decidiu que é obrigação do Estado impedir o aborto após os seis meses de gravidez.

Assim, só para concorrer com a ADPF 54 (a do aborto dos fetos anencéfalos), acho que seria interessante a propositura de uma ADPF para que fique estalecido (interpretação conforme à Constituição) que o art. 128, inc. II, do Código Penal, deve ser interpretado no seguinte sentido:

“Não se pune o aborto praticado por médico: (…) II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal, até o momento em que o feto apresente viabilidade extra-uterina, conforme parecer médico“.

2 – Inconstitucionalidade da Vedação de Acesso das Mulheres às Forças Armadas

Seria interessante uma adpf questionando a discriminação quanto ao acesso de mulheres nas forças armadas.

Existem, no Brasil, diversas restrições de acesso às mulheres às armas de combate do Exército ou da Marinha. A participação da mulher é limitada às funções militares que não exigem muito esforço físico, exceto na Aeronáutica, onde as mulheres já ocupam funções de combate, tendo se destacado como pilotos de caça.

Analisando essas restrições à luz do princípio da proporcionalidade, sobretudo sob a ótica da adequação, parece inquestionável que há uma violação à isonomia.

Geralmente, são apontados três argumentos principais capazes de justificar a restrição: (a) o Exército terá que reformar todas as suas instalações, criando alojamentos e banheiros exclusivamente para mulheres; (b) as mulheres não têm força física nem perfil psicológico para suportar os rigores da educação militar e (c) os homens, em combate, ao verem mulheres morrendo, perderiam o controle emocional.

Esses argumentos são facilmente rebatidos. Em primeiro lugar, é natural que as forças armadas façam adequações nas suas instalações para receber combatentes femininos. Trata-se de um mero empecilho operacional que não é forte o suficiente para justificar a discriminação. Aliás, o STF também teve que reformar suas instalações quando recebeu a Ministra Ellen Gracie, a primeira mulher a ocupar uma cadeira na mais alta Corte do país.

Com relação à fragilidade física e mental das mulheres, não há base científica para a afirmação. Além disso, esse argumento poderia impedir a conclusão do curso, não o ingresso. Também há homens que ingressam nas forças armadas que não têm condições físicas nem mentais de estarem ali e, por isso, são reprovados ao longo do treinamento.

Por fim, com relação ao abalo psicológico dos demais combatentes masculinos, que poderão fraquejar ao verem mulheres morrendo, também não há comprovação científica para a afirmação. E o treinamento militar serve justamente para impedir isso. Certamente, uma pessoa despreparada que veja um amigo morrer em combate também iria enlouquecer, ainda que o amigo fosse do sexo masculino.

Em um famoso caso julgado nos EUA (VMI vs. US, 1993), a Suprema Corte norte-americana, analisando a mesma questão aqui colocada, decidiu, por 7 votos a 1, que a existência de escolas militares exclusivamente para homens violaria a cláusula da igualdade. Hoje, nos EUA, as mulheres já estão presentes em praticamente todos os setores das forças armadas. Aliás, no filme “Até o Limite da Honra” (“A Few Good Man”), a atriz Demi Moore faz o papel de uma mulher, já militar, que deseja ingressar na tropa de elite da Marinha norte-americana, lutando para ser tratada em igualdades de condições. O filme demonstra que o tratamento diferenciado entre homens e mulheres, em termos de combate, não se justifica.

3 – Não-Criminalização da Bigamia por Motivos Religiosos

Hoje, a bigamia é punida pelo Código Penal no artigo 235.

Referida norma entra em choque, em determinadas hipóteses, com a liberdade religiosa. Várias religiões, especialmente as orientais, aceitam e praticam a poligamia até por orientação do Profeta.

Logo, é incompatível com uma sociedade plural e sem preconceitos a proibição da bigamia. Uma ADPF resolveria o problema.

4 – Interpretação Conforme à Constituição do Artigo 226, §3º, da CF/88: união homossexual

O art. 226, §3º, da CF/88, estabelece que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Vários juízes interpretam a referida norma constitucional como se ela proibisse o reconhecimento estatal da união estável entre pessoas do mesmo sexo, o que é um flagrante equívoco.

Basta analisar atentamente o referido dispositivo para perceber que a norma constitucional, considerada em si mesma, não proíbe as relações entre pessoas do mesmo sexo, nem mesmo autoriza a discriminação negativa em relação a essas pessoas. A norma apenas prevê uma discriminação positiva para o casal formado por homem e mulher. Ou seja, o Estado tem a obrigação de reconhecer a união estável heterossexual e estimular que esses relacionamentos sejam convertidos em casamento. Por outro lado, não há qualquer obrigação constitucional de incentivo para a união estável entre pessoas do mesmo sexo.

O fato de a Constituição estimular a conversão da união estável entre homem e mulher em casamento, no entanto, não significa dizer que está autorizada a discriminação negativa em relação aos homossexuais. Na verdade, a Constituição estabelece um mandamento ético-jurídico de respeito ao outro, independentemente de quem seja o outro. Não interessa sua cor, sua idade, sua etnia, nem sua opção sexual. Logo, qualquer discriminação negativa em relação aos homossexuais deverá passar pelo teste da proporcionalidade para ser válida, o que não ocorre no caso.

Interpretar o artigo 226, §3º, de outra forma seria bater de frente com o restante do texto constitucional e com o próprio sentimento de tolerância que é uma marca histórica da sociedade brasileira.

Assim, uma ADPF seria capaz de autorizar uma interpretação harmônica e adequada do texto constitucional numa interessante situação de interpretação da norma constitucional conforme à Constituição.

Jurisprudenciando: ADPF 54 – Aborto – Fetos Anencefálicos

Finalmente, o Supremo Tribunal Federal publicou o acórdão analisando o pedido de liminar na Argüição de Descumprimento a Preceito Fundamental n. 54/2004, aquela em que se discute a possibilidade de realização de aborto (interrupção da gravidez) em casos de fetos anencefálicos.
Ainda não tive tempo de ler a decisão na íntegra (são 220 páginas!). Por isso, não posso comentá-la ainda.
No entanto, para que este post tenha algum sentido, disponibilizo a decisão:
Veja bem: ainda não é o mérito da ação. Por enquanto, o STF apenas analisou a concessão da liminar e o cabimento formal (adequação processual) da ADPF. Aliás, o julgamento ocorreu em 27/4/2005. O julgamento do mérito deverá ocorrer em breve.
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apenas para contribuiur para o debate, clique aqui para obter a íntegra da petição inicial elaborada por Luís Roberto Barroso, na citada ADPF 54/2004 (extraída do Conjur).
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