Mafalda, Filosofia e os Direitos Fundamentais

Tive a oportunidade de ler, recentemente, o livro “Toda Mafalda”, do caturnista argentino Quino. Achei simplesmente fantástico. Há muitas lições de filosofia, de direitos fundamentais, de ética, entre outros temas que interessam aos juristas. Aqui, uma pequena amostra:

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Controle Judicial dos Direitos Fundamentais

A Emagis – Escola da Magistratura da 4a Região disponibilizou na sua página o “Caderno do Currículo Permanente – Direitos Fundamentais”, que serviu como material escrito das aulas que ministrei em 2008. Aqui o link.

Eis o texto de apresentação:

O direito constitucional, no Brasil, renasceu após a Constituição Federal de 1988. Creio que ninguém duvida disso.

Durante esses vinte anos de desenvolvimento e evolução do constitucionalismo brasileiro, os estudiosos do direito constitucional gastaram praticamente todas as suas energias para defender a supremacia da Constituição e a máxima efetividade das normas constitucionais. Não se pode negar que o esforço valeu a pena, já que hoje são poucos os que duvidam da força normativa da Constituição e da possibilidade de o Judiciário exercer o controle de constitucionalidade dos atos normativos.

Apesar disso, o avanço do direito constitucional não está completo. Existe ainda uma lacuna muito grande no estudo do conteúdo ético das normas constitucionais. Os juristas tiveram grande êxito em dissecar os aspectos processuais do controle de constitucionalidade, mas esqueceram que o importante, dentro do ensino dessa disciplina, é fazer com que as pessoas assimilem e compartilhem os mesmos valores que inspiram o ordenamento constitucional.

Esse vácuo aos poucos vem sendo preenchido, graças ao avanço da proteção judicial dos direitos fundamentais, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Acredito que uma nova fase no constitucionalismo brasileiro está começando, onde a preocupação será principalmente em como concretizar os direitos fundamentais através da jurisdição constitucional. O controle de constitucionalidade, de agora em diante, será o básico; os direitos fundamentais, o “plus”. É o que se pode chamar de Constitucionalismo 2.0, para lembrar os vinte anos da Constituição. O foco agora será o conteúdo ético da Constituição e não uma análise meramente formal das normas constitucionais.

Foi dentro desse contexto que recebi com muita alegria o convite para participar do Módulo V do Currículo Permanente de Direito Constitucional da Emagis, que girará em torno de um único tema: os direitos fundamentais.

O destaque que a Emagis está dando aos direitos fundamentais demonstra que a Escola está em sintonia com os novos rumos do direito constitucional brasileiro. É de suma importância que a magistratura federal como um todo perceba essa mudança de paradigma, sabendo extrair das normas constitucionais os valores éticos necessários à construção de uma sociedade mais justa e solidária, tal como imaginada pelo constituinte originário. O objetivo do presente texto é facilitar esse processo.

Procurei apresentar um quadro geral desse novo constitucionalismo, através de um texto relativamente informal e sem muita preocupação com a estética acadêmica. Evitei citações excessivas e apelo aos argumentos de autoridade, que costumam prevalecer no discurso jurídico tradicional.

Algumas passagens foram extraídas de meu “Curso de Direitos Fundamentais”, publicado pela editora Atlas; outras, extraí de meu blog: “direitos fundamentais.net”, onde procuro sempre debater os temas mais polêmicos e atuais envolvendo essa matéria. Boa parte do texto, contudo, foi escrita especialmente para o curso a ser ministrado na EMAGIS. Espero que seja uma leitura agradável e proveitosa.

Fortaleza, 22 de agosto de 2008

George Marmelstein

Dever de Ação

O texto abaixo é do amigo Carlos Marden, cujas palavras de indignação refletem, de certo modo, o meu sentimento. Como ele, o que mais me indigna é essa falta de reação por parte da sociedade. Será que a indignação é mesmo uma mosca sem asas que não ultrapassa as portas de nossas casas?

Espero que não.

“OS INIMIGOS DO POVO ESTÃO NO PODER”

Eu tenho andado assustado com a atual crise no Congresso Nacional (atos secretos no Senado e farra das passagens na Câmara)! Não que eu fosse ingênuo a ponto de achar que todos os políticos fossem honestos ou mesmo que eu tivesse alguma esperança que 10% deles deixassem de correr em caso de alguém gritar: “Pega ladrão“! O que tem me tirado o sono (literalmente alguns dias!) é o fato de que a população toda está aceitando a situação com a maior naturalidade do mundo…

Eu sou um eterno otimista quando se trata da situação brasileira, principalmente no que diz respeito ao progressivo amadurecimento da nossa neófita democracia. Eu tinha certeza de que nós, “os caras-pintadas“, seríamos uma resistência consistente, oferecendo alternativas éticas que fossem viáveis para o fortalecimento e a perenidade das instituições. Eu vi o impeachment do Collor aos 14 anos, com o orgulho de quem tinha ao seu lado uma nação, um povo que dava um sinal de “basta de desmandos”!

Diante das massivas denúncias de corrupção que vêm nos atropelando durante os últimos anos (com pequenos intervalos de poucos meses, suficientes apenas para que tomemos fôlego!), entretanto, não posso evitar que tal convicção seja estremecida por uma dúvida cada vez mais consistente. Os mesmos canalhas que assustavam o Brasil durante a Ditadura Militar continuam no poder, com uma importância tão grande que não sei dizer se a democracia efetivamente já chegou. Para piorar a situação, hoje eles têm a seu lado as “crias” da prometida democracia, que se deturpou em uma demagogia cada vez mais assustadora!

Parece que estamos todos esperando que as coisas se resolvam por si mesmas, como aquele tipo de pai ou mãe que simplesmente desiste do filho e deixa ele chorar até se cansar… Sendo que, enquanto isso, ele incomoda todos ao redor. Claro que esse “algo” que esperamos é a mídia! Foi ela quem promoveu o movimento do “Fora Collor” e é ela quem tem decidido qual a importância que as denúncias têm desde então. Foi ela também quem transformou um “escândalo menor” em motivo de renúncia de mandato de Renan Calheiros… Ora, vejam só: exatamente este forma com Collor a dupla alagoana que hoje representa a comissão de frente que defende o Senador José Sarney, tudo com o aval explícito do Presidente Lula, que, tendo o Princípio da Separação de Poderes para legitimar a sua pertinente indiferença, preferiu sair em defesa daquele que meses atrás para ele e seu partido era apenas mais um inimigo político na luta pela Presidência do Senado Federal.

Entretanto, não estou culpando a mídia… A mídia é feita pelos homens e seus interesses, sejam estes individuais ou coorporativos. A culpa é da sociedade como um todo: ONG´s; todas as classes sociais; (pseudo)intelectuais; escritores; empresários; esportistas; artistas; estudantes; acadêmicos etc. Alguns músicos (Caetano Veloso, Chico Buarque e companhia) são considerados como baluartes da luta contra o Regime Militar e agora, quando não existe censura, quando não existe opressão, quando a corrupção é a olhos vistos, eles se calam! Não posso evitar pensar que se movem pelo lema: “Desde que me permitam falar, eu não me incomodo de ficar calado“!

Os escritores não são melhores! A Academia Brasileira de Letras, onde supostamente deveriam estar concentrados os grandes intelectuais brasileiros, se esconde, não apenas porque faz questão de ser omissa no processo democrático, mas porque o principal acusado da atual crise (José Sarney) é um de seus membros, ocupante da cadeira de número 38, que já foi assento de um dos grandes orgulhos nacionais: Santos Dumont!

Também quero deixar claro que este não é um panfleto político-partidário contra o PMDB ou contra o senhor José Sarney, mas sim contra toda a crise ética que se instalou no Congresso Nacional! Os primeiros atos secretos datam de 1995; a suposta compra de votos da reeleição foi para a eleição de 1998… Quantos escândalos não assistimos calados neste intervalo de 11 anos? Cito apenas o (até agora impune) Mensalão, para explicar o meu ponto de vista. A crise não chegou a agora, ela é atemporal e apartidária, envolvendo todo o processo de escolha dos nossos representantes e os parâmetros de exercício de seus mandatos parlamentares. Toda essa baderna instalada é apenas a gota d’água!

Quer dizer que algum desses políticos realmente quer que acreditemos que ele não via nenhum mal em nomear parentes; pagar assessores que moravam no exterior; adulterar o painel eletrônico do Senado; vender a sua cota de passagens aéreas; morar em imóvel funcional tendo residência em Brasília; pagar passagens aéreas para a namorada ou para um time de futebol? Será que somos tão burros que elegemos como representantes um grupo de sujeitos que têm um conceito moral tão diferente daquele reconhecido pelo senso comum? Será que eles têm a mesma visão ética quando vão educar os seus filhos e netos? Não creio que as respostas a estas perguntas sejam positivas!

Mas este é apenas um desabafo… Eu gostaria de ver a população de novo nas ruas, demonstrando (sem violência de nenhum lado!) que sabe o que está se passando, que não aceitará calada tal descaração, que marcará os responsáveis e que estes nunca mais ocuparão um cargo eletivo. Com certeza este é um sonho: viver num país de memória, onde o povo compreende que os políticos é que deveriam estar submissos ao povo e não o contrário… Um país no qual os eleitos teriam noção da grande responsabilidade que decorre do cargo que ocupam e do compromisso com o desempenho de sua nobre função.

Diante de tudo, porém, a minha sensação de impotência é total! Por via do amigo Rodrigo Sales, me vêm à cabeça as palavras de outro grande orgulho nacional, Rui Barbosa ao dizer que “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.

Eu não sou um filósofo conhecido, um grande escritor, alguém ligado à mídia ou uma celebridade, que poderia, quem sabe, mobilizar as massas! Eu nem sei o que cada um desses setores citados poderia fazer, mas eu me sentiria bem melhor se soubesse que eles estavam tentando fazer algo… Hoje eu vou dormir tranqüilo por ter começado a fazer a minha pequena parte… Pois, como diria Madre Teresa de Calcutá: “Eu sei que sou uma gota no oceano, mas, sem esta gota, o oceano seria menor“!

Deixo, por fim, um poema escrito em 1964 (coincidência ou não, no ano do Golpe Militar!) pelo fluminense Eduardo Alves da Costa, embora seja freqüente e erroneamente atribuído a Maiakovski:

Na primeira noite eles se aproximam,

Roubam uma flor do nosso jardim e não dizemos nada;
Na segunda noite, já não se escondem:

Pisam as flores, matam o cão e não dizemos nada;
Até que um dia, o mais frágil deles,

Entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e
Conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta

E já não podemos mais dizer nada!

É um bom momento de sabermos em que passo estamos da submissão… Terão os corruptos e imorais já arrancado a voz de nossa garganta? Ou ainda é tempo de proferirmos nosso grito de insurreição? Com a resposta, cada um de nós!

Carlos Marden Cabral Coutinho

Procurador Federal, Especialista e Mestre em Direito e, hoje, mais um brasileiro ajoelhado aos pés dos ocupantes do Poder.

P.S.: Sugiro aos amigos que escrevam seu próprio texto e o repassem, encaminhem, como o farei, para os membros do Congresso Nacional! Se vocês têm um blog, sigam meu exemplo e lá publiquem algo ou mesmo este texto, o que fica desde logo autorizado. No mais, peço, a quem achar que estas palavras valem alguma coisa, que as encaminhe adiante… Bastam 04 encaminhamentos de 20 pessoas cada, para que 160 mil pessoas recebam uma cópia. Imagine se cada um encaminhar pra cinqüenta pessoas. Talvez alguma autoridade o leia, talvez algum artista influente, talvez a mídia, sei lá… É uma réstia de esperança luminosa em meio à dominante corrupta escuridão!

Balanço geral do primeiro ano do doutorado: notas para uma futura auto-reflexão intelectual

“Coimbra tem mais encantos na hora da despedida”

Foi-se o primeiro ano do curso de doutorado. É ainda muito cedo para fazer um julgamento conclusivo sobre os méritos e deméritos do curso. Do meu ponto de vista pessoal, aproveitei o máximo que pude essa oportunidade única.

Oportunidade única em vários sentidos.

Em primeiro lugar, o curso é multidisciplinar, numa rara união entre a sociologia e o direito, que não se costuma ver em parte nenhuma do mundo. Em regra, o que prevalece é a filosofia do “cada um no seu quadrado”. (aqui mesmo em Coimbra, esse tipo de curso é uma exceção). À frente da organização, os dois mais conhecidos professores de Coimbra das humanidades: Boaventura de Sousa Santos, na sociologia, e José Joaquim Gomes Canotilho, no direito.

Em segundo lugar, foi a primeira vez desde que me formei em que pude dedicar toda a minha força intelectual apenas para a academia. Ainda que a licença dada pelo meu Tribunal tenha sido curta (9 meses apenas), foi o suficiente para levar a contento essa fase inicial que é a mais puxada, com muitas aulas presenciais e muitos papers para escrever e apresentar.

Sou um “bookahollic” desde os meus catorze anos. Apesar disso, acho que nunca li tanto em toda a minha vida em tão curto espaço de tempo. Ainda não contei todos os livros que li na íntegra nesses nove meses, mas especulo que tenha sido mais de cem. E não apenas livros fáceis, mas alguns de complicada leitura, algo relativamente novo para mim, pois, na minha tradição de autodidata, só costumo ler aquilo que me dá prazer.

Um aspecto importante dessa fase de coleta de informações foi o compromisso que assumi comigo mesmo de realizar uma leitura compreensiva de todos os textos que ia lendo. A diversidade de concepções ideológicas entre os professores do direito e da sociologia era tão grande que me forçou a adotar uma postura que eu chamaria de “abertura crítica”, ou seja, ler, criticar e compreender, sempre tentando aproveitar o que cada pensador pode oferecer de útil, ainda que eu não concordasse com o núcleo de suas teorias.

Essa atitude pode parecer banal, mas é muito rara no meio acadêmico. É algo paradoxal: todo mundo fala em “compreender o outro”, mas ninguém está interessado em compreender os seus próprios colegas de academia. Em geral, marxistas não lêem anti-marxistas e vice-versa. Quem pensa “hegemonicamente” não quer saber daquilo que os que pensam “contra-hegemonicamente” estão dizendo. Quando tentam ouvir o que o outro tem a dizer, não se preocupam em compreender honestamente as suas idéias: é uma leitura desconfiada, de má-vontade, preocupada apenas em tentar encontrar defeitos ou deturpar os argumentos alheios, como se o debate acadêmico fosse uma competição em que o vencedor é aquele que consegue destruir completamente o adversário e o que mais importa é fazer prevalecer as suas idéias a qualquer custo.

Na minha ótica, uma leitura compreensiva (por isso, ética) exige uma postura diferente. Mesmo que os argumentos do outro sejam inconsistentes, suas idéias talvez contenham alguma informação útil que deve ser levada em conta, nem que seja para ser devidamente refutada. Na prática, isso não costuma ocorrer nos debates acadêmicos. Há pouco diálogo e troca de informações entre grupos antagônicos. O que há normalmente são insultos mais ou menos velados e a busca de prestígio para si ou para os de seu próprio grupo intelectual. Cada membro de um grupinho se bajula mutuamente como um bando de crianças ávidas por auto-afirmação. Criam-se nichos de “pseudo-pensadores” que se alimentam das próprias criações, desenvolvendo expressões grandiloqüentes que só são compreendidas pelos membros do mesmo grupo, como se fosse uma placa de “propriedade privada” colocada num determinado assunto para que estranhos não se aproximem e não enxerguem os escombros argumentativos por detrás daquela fachada de mentirinha.

Procurei não fazer parte desse tipo de atitude, pois entendo que é um empecilho para o crescimento intelectual. Sem diálogo, não há uma compreensão mútua. Sem uma compreensão mútua, não há conhecimento objetivo. No final, como diria Hume, não é a razão que alcança o prêmio, mas sim a eloqüência.

Diante disso, preferi adotar uma linha de leitura diferente, tentando não julgar nenhum pensador pelo rótulo ou pelo som de suas cornetas, mas pelo valor de suas idéias e pela força de seus argumentos.

Talvez a função jurisdicional tenha contribuído para essa atitude que tomei. A atividade como magistrado me obriga a sempre ouvir os dois lados das controvérsias e a nunca tomar partido por qualquer debatedor antes de permitir que todos exponham seus pontos de vista. Outra técnica interessante que a atividade judicial oferece e que bem poderia ser aproveitada nos debates acadêmicos é a fixação de pontos controvertidos: deve-se delimitar todos aqueles pontos em que todos estão de acordo para evitar discussão inútil. Infelizmente, não se vê isso na academia. Há um superdimensionamento das controvérsias, mas, ao se analisar bem, percebe-se que há mais acordos do que desacordos.

As aulas foram interessantes. De um modo geral, as da sociologia foram mais animadas do que as do direito. Na sociologia, tivemos mais debate, mais polêmicas, menos formalismo e menos dogmatismo. O direito de Portugal, em muitos aspectos, deixa a desejar em relação ao direito brasileiro, ainda que tal comparação seja sempre grosseira e suscetível de uma má-avaliação por se tratar de contextos e tradições diversos. É a tal da incomensurabilidade. De qualquer modo, acho que nós, brasileiros, temos muito que aprender dos portugueses no que se refere ao estudo da filosofia do direito, da sociologia do direito e da história do direito, mas temos muito que oferecer, em termos de exemplos, no que se refere aos chamados novos direitos: ambiental, consumidor, minorias etc. Até mesmo a nossa jurisprudência em direitos fundamentais é mais rica. (Se bem que eles têm os exemplos dos tribunais europeus que são riquíssimos). Acho que, após essa experiência, me tornei um pouco mais patriota, pois percebi que o Brasil não está tão atrasado assim em relação ao resto do mundo e, em alguns temas, somos mesmo os únicos pentacampeões.

Nas primeiras aulas, havia muitos ruídos de comunicação decorrentes de uma má-vontade recíproca entre o direito e a sociologia. Depois, os debates fluíram mais tranquilamente. Os juristas têm uma mentalidade mais voltada para a solução de problemas, enquanto que a sociologia busca essencialmente identificar problemas, provocando e, propositadamente, incomodando aqueles que pensam de acordo com a mentalidade dominante. Os juristas possuem uma ingenuidade consciente, ou seja, sabem que os problemas existem, mas se contentam com a solução possível, ainda que imperfeita. Isso pode levar a um auto-engano, mas é um auto-engano prático e bem intencionado, pelo menos na grande maioria das vezes. Os sociólogos (ou alguns sociólogos), por sua vez, tentam enxergar uma teoria da conspiração em tudo, como se por detrás de toda solução descoberta pelos juristas houvesse uma tentativa de dominação ilegítima, já que os juristas, em regra, representam a classe que está no poder. Ressalto que essa é uma impressão particular minha, que, como qualquer generalização, corre o risco de gerar injustiças pontuais.

No início do curso, me senti muito incomodado com essa postura da sociologia de achar que tudo é um jogo de poder, onde o que vale é a ideologia e os interesses de classe. Até mesmo os direitos humanos e a democracia são analisados com desconfiança como se fossem um instrumento pós-colonial de exploração utilizado pelos países ocidentais do norte para continuar a dominação sobre os povos mais pobres do sul. Todo discurso, na ótica sociológica, sob inspiração de Foucault, encobriria uma tentativa de manipulação ideológica de um grupo social sobre outro. O mundo seria dividido em mocinhos e bandidos. Ou você está comigo ou é contra mim. A ciência seria uma arma de dominação que não poderia reinvidicar qualquer superioridade epistemológica, na lição de Feyerabend. E assim por diante…

Esse tipo de pensamento gerou em mim uma necessidade de encontrar os fundamentos para as minhas convicções mais básicas. Sempre acreditei no poder emancipatório da razão. Sempre achei que a objetividade alcançada pelo método científico era elogiável e desejável. Nunca duvidei do poder de libertação e de mudança social proporcionada pelos direitos fundamentais. De repente tudo isso foi posto em dúvida pela sociologia de Coimbra.

E isso foi ótimo, pois me levou a dar um salto mais alto: sair da cômoda positividade normativa do mundo jurídico e ir para os fundamentos últimos dessas minhas crenças. Só a filosofia seria capaz de fornecer esse alicerce – ou não. Tive que entrar a fundo na epistemologia e, logo depois, na filosofia moral. Consegui tirar muitas dúvidas “existencialistas” que estavam na minha mente. Outras surgiram. Mas, no final, tudo ficou mais claro.

A minha primeira incursão intelectual foi pela epistemologia e também pela filosofia e sociologia das ciências. Disso resultou o meu primeiro paper, ainda imaturo, onde tentei aproveitar as idéias metodológicas de Popper para melhorar a atividade do juiz. O mérito principal desse paper, penso eu, foi defender uma maior humildade intelectual por parte dos juízes. Se os juízes forem um pouco menos arrogantes, do ponto de vista intelectual, certamente suas decisões passarão a ser mais tolerantes e, por isso mesmo, mais legítimas. Ter consciência de que ninguém é dono da verdade – e de que sequer é possível descobrir com certeza se uma idéia é absolutamente verdadeira – é o primeiro passo para encontrar a solução mais justa (ou a menos injusta, se assim preferir).

Um defeito grave do paper foi não ter dado a atenção suficiente às idéias de Thomas Kühn, que muito influenciaram a chamada sociologia do conhecimento. Li o seu “A Estrutura das Revoluções Científicas” com um olhar preconceituoso, já “advogando” as idéias de Popper, e, por isso, deixei de aproveitar algumas teses kuhnianas que são muito interessantes e se aplicam com muita precisão ao mundo jurídico. Mas não convém falar disso agora. Desenvolverei isso na futura tese.

O certo é que, nessas primeiras leituras sobre a filosofia da ciência, encontrei uma frase forte que foi decisiva para os passos seguintes das minhas pesquisas. Li, não lembro onde, que “o papel dos cientistas é transformar filosofia em ciência”. Achei essa idéia fantástica, simples, poderosa e esclarecedora. De fato, várias teorias científicas surgiram de especulações metafísicas que depois conseguiram transformar-se em um campo fértil para investigações empíricas. O insight seguinte foi quase automático: se o papel dos cientistas é transformar filosofia em ciência, o mesmo se pode dizer dos juristas, ou seja, cabe aos juristas transformar filosofia em direito. Mas que filosofia? Quais são as idéias filosóficas que almejam transformar-se em direito? A reposta é óbvia: a ética! A ética é o campo da filosofia que tenta definir o conceito de justo/injusto, bom/mau, correto/incorreto, fornecendo argumentos para possibilitar que descubramos como viver melhor em sociedade. A ética precisa do direito para institucionalizar-se e o direito precisa da ética para legitimar-se. O papel dos juristas é transformar ética em direito dentro dos limites normativos definidos pelo Estado Democrático de Direito.

Percebi que nessa idéia simples havia uma possibilidade quase infinita de pesquisa que poderia servir como base para uma futura tese de doutorado, onde se poderia analisar os benefícios e inconvenientes dessa hipótese. O segundo paper teve essa pretensão de fincar algumas estacas para um aprofundamento futuro. O título foi precisamente: “Transformar Ética em Direito: o ativismo judiciário na perspectiva da filosofia moral”. Também considero que seja um trabalho imaturo sob vários aspectos. O meu estudo sistemático de filosofia moral ainda estava engatinhando (e ainda hoje deixa muito a desejar), e a minha visão acerca da realização do direito ainda era muito influenciada pela minha atividade judicial. Até aquele momento, não havia conseguido “tirar a toga” para analisar a questão o mais objetivamente possível. Aliás, acho que até hoje não consegui me desvincular totalmente dos valores decorrentes da minha atividade judicial, nem sei se isso é possível e desejável.

Mas o certo é que tudo começou a fazer sentido para mim. Até então, estava sem um norte intelectual. De propósito, cheguei a Coimbra sem uma idéia muito precisa sobre o que pretendia escrever na tese. Pensei em algo sobre “Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional”, que é um tema muito na moda entre os juristas contemporâneos. Minha idéia era manter a minha mente bem aberta para receber o máximo de informações, aproveitando o fato de estar numa cidade universitária cosmopolita e ávida por conhecimento. De certo modo, continuei no mesmo tema, mas com uma perspectiva mais filosófica. Ao invés de direitos fundamentais, filosofia moral; ao invés de jurisdição constitucional, filosofia política, filosofia do direito e epistemologia. Na base de tudo isso, algumas contribuições da sociologia para não perder o foco da realidade e aguçar o senso crítico que o tema exige.

Outra pretensão minha seria escrever sobre a laicidade do Estado. Como “racionalista de carteirinha”, tinha uma ingênua esperança de que seria possível fazer uma separação rígida entre dogmas religiosos e teorias racionais. Por isso, pretendia defender que toda a legislação oficial que se baseasse em dogmas religiosos destituídos de racionalidade deveria ser reputada como inconstitucional por ferir o princípio da laicidade do Estado. Mudei sutilmente o meu ponto de vista e expliquei minhas novas idéias no paper “Ética e Eternidade: em busca de uma ética de longo prazo”.

Escrever esse paper foi muito interessante. Todas as idéias já estavam em minha cabeça e fiz o primeiro esboço em menos de uma semana. São os quatro posts sobre a “Ética da Eternidade”. Depois, demorei um pouco mais para dar-lhe uma aparência mais acadêmica, mas acho que valeu o esforço, pois consegui reunir o pensamento de alguns dos principais filósofos morais de um modo sistemático, onde todos os pontos se ligam (pelo menos para mim). E, sem falsa modéstia, acho que a relação que fiz entre eternidade/imortalidade e perpetuação genética foi uma solução bem interessante para fundamentar empiricamente a construção de uma ética de longo prazo.

Nesse percurso, tive o prazer de trocar algumas idéias com alguns excelentes professores daqui de Coimbra. Cito particularmente um, que me orientou na redação de alguns papers e será meu orientador na tese: José Manuel Aroso Linhares. Participei de várias aulas da sua disciplina “Pensamento Jurídico Contemporâneo”, ministrada no mestrado. Foram aulas extremamente proveitosas, onde pudemos percorrer toda a história contemporânea do pensamento jurídico, passando por Kelsen, Luhman, Teubner, Hans Albert, Habermas, Dworkin, Posner, Rawls, Gadamer, Balkin, Boyd-White, Castanheira Neves, entre vários outros. O Professor Aroso Linhares é, sem dúvida, o maior conhecedor de teorias jurídicas que eu já tive a oportunidade de conversar. É uma enciclopédia. Sabe tudo de tudo. Conhece com detalhes todas as teorias desenvolvidas na filosofia do direito e na filosofia de um modo geral. E não é nem um pouco arrogante. Pelo contrário: a sua humildade intelectual e a sua boa vontade para ensinar e transmitir o seu conhecimento nas aulas são notáveis. Tentei aproveitar ao máximo essa oportunidade única de aprender com ele. E fiquei extremamente feliz por ele ter aceitado ser o meu orientador, apesar de “discordar globalmente” de algumas idéias que defendo, o que só comprova a sua grandeza.

Através do Aroso Linhares, me vi tentado a conhecer melhor as idéias do professor Castanheira Neves, que é o norte intelectual (no campo filosófico) de quase todos os professores de Coimbra. Suas idéias são bem interessantes, pois ele tentou identificar todos os pontos fracos das principais correntes jurídicas e, a partir daí, construiu uma linha metodológica que aproveita o que cada teoria pode oferecer de positivo. A sua escola de pensamento é conhecida como jurisprudencialismo, que parte do problema concreto a ser resolvido sem fugir da noção de sistema jurídico, que deve ser o fundamento normativo de validade das decisões judiciais. Depois explico melhor esse ponto de vista, já que deverei explorá-lo detalhadamente na tese.

Valeu a pena? Ou melhor: está valendo a pena? A resposta de Fernando Pessoa vem a calhar: tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Mas navegar é preciso e é hora de arrumar as malas e voltar à realidade. Se, por um lado, “Coimbra tem mais encantos na hora da despedida”, por outro lado “Coimbra é uma lição de sonho e tradição. O lente é uma canção. E a lua a faculdade. O livro é uma mulher. Só passa quem souber. E aprende-se a dizer saudade”.

Um diálogo entre John Locke e Benjamin Linus

Locke: Não está gostando disso, está?

Ben: Disso o quê?

Locke: ter que fazer perguntas sem saber a resposta. Seguindo cegamente alguém na esperança de que esse alguém te leve ao que está procurando.

Ben: não, John. Não gosto nem um pouco.

Locke: então você sabe exatamente o que ser como eu.

Falou e disse

Sempre gostei de citações. Às vezes, uma frase certeira vale mais do que muitas teses. Por isso, uso e abuso de “quotes” em meus textos. Basta ver o meu livro para perceber que quase todos os capítulos começam com alguma citação.

Algumas vezes, encontro umas citações brilhantes que ficam perdidas nas minhas anotações pessoais. Assim, aproveitando essa maré de marasmo aqui no blog, vou iniciar uma nova sessão, em que incluirei as citações que eu achar mais interessantes.

Para começar, uma que tem tudo a ver com o meu momento atual do doutoramento.

Dizem que a regra básica do doutorado é composta por três “is”: informação, interpretação e inovação. Hoje, com tanta informação disponível, é difícil sobrar tempo para interpretar (criticamente) e, mais difícil ainda, conseguir inovar. A inovação quase sempre é uma repetição de algo que já se disse no passado, geralmente de uma forma mais complicada e rebuscada.

Por isso, gostei da frase abaixo. Faz parte das “Coisas de Arthur”, para lembrar o adormecido “Jardim” do Raul Nepomuceno.

Ei-la:

“Em geral estudantes e estudiosos de todos os tipos e de qualquer idade tem em mira apenas a informação, não a instrução. Sua honra é baseada no fato de terem informações sobre tudo, sobre todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e o conjunto de todos os livros. Não ocorre a eles que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma, no entanto é essa a maneira de pensar que caracteriza uma cabeça filosófica. Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah, essa pessoa deve ter pensando muito pouco para poder ter lido tanto!”

Arthur Schopenhauer – A Arte de Escrever


Igualdade entre Juízes Federais e Procuradores da República

Justificativa de ausências de posts: Estou praticamente concluindo os papers do doutorado. Já estou na reta final, na fase de “lapidação”. Tenho percebido que, mais difícil do que escrever, é submetê-lo à chamada “artesania coimbrana”. Essa artesania, na minha ótica, estraga um pouco a fluidez da leitura, pois consiste em indicar a fonte de tudo o que você está dizendo, citando o máximo de autores que já disseram a mesma coisa para não parecer que você está copiando idéias alheias. Não sou muito fã dessa técnica, mas sou obrigado a adotá-la. E dá um trabalho danado. Às vezes, tenho que lembrar quem disse uma idéia que estou adotando, mas não faço a menor idéia de onde ela saiu, embora saiba que não é originalmente minha. E como não estou com todos os meus livros, essa tarefa fica ainda mais difícil.

Mas o post tem uma pretensão diferente.

Sempre defendi, interna corporis, a tese abaixo, ou seja, a de equiparação entre a magistratura federal e o ministério público federal. É incoerente que eles tenham mais vantagens do que nós. Não faz o menor sentido que todos os servidores federais do país recebam auxílio-alimentação e só os juízes não possam se beneficiar dessa vantagem por causa de uma interpretação mesquinha da LOMAN. Isso sem falar em inúmeros benefícios que, somados, dá uma quantia razoável. Enfim: espero que a tese se saia vencedora, embora eu seja diretamente interessado na causa.

E o melhor de tudo é que, talvez com isso, as pessoas parem de achar que os juízes federais são uns marajás que estão no topo da carreira federal.

O pedido foi subscrito pelo Professor Luís Roberto Barroso. Eis a notícia:

Diretoria da Ajufe pede no CNJ a igualdade entre juízes Federais e procuradores da República

A diretoria da Ajufe, em cumprimento a uma promessa feita durante a campanha eleitoral da entidade, deu entrada hoje, 19, no Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no “pedido de simetria constitucional entre os regimes jurídicos do Ministério Público Federal e da Magistratura federal.” A Ajufe quer que sejam estendidos aos juízes Federais todas as vantagens funcionais concedidas aos procuradores da República, como as de caráter geral e indenizatório.

No pedido, assinado pelo advogado e professor Luís Roberto Barroso, a Ajufe pede que caso não seja reconhecido aquele direito, que seja aplicada a carreira de juiz Federal “o regime jurídico dos servidores civis da União, até que seja editada uma nova disciplina especial para os juízes.”

No documento enviado ao CNJ, a diretoria da Ajufe lembra que “nos últimos anos, por conta de uma sucessão de alterações constitucionais e legislativas, nem sempre inteiramente sistemáticas, foi reconhecida uma série de vantagens a outras carreiras jurídicas públicas sem a necessária adequação do regime jurídico da Magistratura”.

O documento prossegue: “A tal ponto se chegou que, ao invés de figurar no topo das carreiras jurídicas públicas, como pretendeu a Constituição – sem qualquer demérito aos demais agentes públicos – a Magistratura, em muitos lugares, corre o risco de se transformar em carreira “de passagem”, ocupada apenas temporariamente por profissionais que acabam atraídos pelas melhores condições oferecidas por outras instituições (sem mencionar a iniciativa privada).”

Ainda dentro dessa linha, o Pedido de Providências encaminhado pela Ajufe ao CNJ, adverte que “servidores públicos subordinados a magistrados gozam, freqüentemente, de regime funcional mais favorável que aquele que tem sido aplicado aos magistrados”. E completa: “A incoerência da interpretação do sistema acaba por produzir, como se vê, um resultado claramente inconstitucional”.

Sobre o artigo 65, §2º, da LOMAN (LC nº35/79), que vedava a concessão de adicionais ou vantagens pecuniárias não previstas na própria LOMAN, o que impediria uma solução jurídica para a questão, o Pedido recorda que “o dispositivo não se aplicava a vantagens não pecuniárias, de modo que, quanto a elas, o suposto óbice era inexistente. E continua: “O argumento, de todo modo, e independentemente de sua extensão, é inconsistente por uma razão simples: o dispositivo mencionado encontra-se revogado”.

Para o presidente da Ajufe, Fernando Mattos, que deu entrada no pedido no CNJ, “o pleito dos magistrados federais é justo e está baseado em direitos legítimos. Por isso, acredito que os membros do Conselho que conhecem a grandeza e o trabalho dos juízes Federais, serão sensíveis a essa nossa reivindicação. Afinal, colocar em pé de igualdade o Ministério Público e a Magistratura Federal é atender o que determina a nossa Constituição Federal”.

Durante a entrega do documento o presidente da Ajufe estava acompanhado dos juízes Federais Ivanir Cesar Ireno Junior, coordenador de comissões da Ajufe, Carla Evelise Justino Hendges, vice-presidente da 4ª Região da Ajufe, e dos advogados Luís Roberto Barroso e Renata Saraiva.

Clique aqui para ler a íntegra do documento encaminhado pela Ajufe ao CNJ.

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