“Coimbra tem mais encantos na hora da despedida”

Foi-se o primeiro ano do curso de doutorado. É ainda muito cedo para fazer um julgamento conclusivo sobre os méritos e deméritos do curso. Do meu ponto de vista pessoal, aproveitei o máximo que pude essa oportunidade única.
Oportunidade única em vários sentidos.
Em primeiro lugar, o curso é multidisciplinar, numa rara união entre a sociologia e o direito, que não se costuma ver em parte nenhuma do mundo. Em regra, o que prevalece é a filosofia do “cada um no seu quadrado”. (aqui mesmo em Coimbra, esse tipo de curso é uma exceção). À frente da organização, os dois mais conhecidos professores de Coimbra das humanidades: Boaventura de Sousa Santos, na sociologia, e José Joaquim Gomes Canotilho, no direito.
Em segundo lugar, foi a primeira vez desde que me formei em que pude dedicar toda a minha força intelectual apenas para a academia. Ainda que a licença dada pelo meu Tribunal tenha sido curta (9 meses apenas), foi o suficiente para levar a contento essa fase inicial que é a mais puxada, com muitas aulas presenciais e muitos papers para escrever e apresentar.
Sou um “bookahollic” desde os meus catorze anos. Apesar disso, acho que nunca li tanto em toda a minha vida em tão curto espaço de tempo. Ainda não contei todos os livros que li na íntegra nesses nove meses, mas especulo que tenha sido mais de cem. E não apenas livros fáceis, mas alguns de complicada leitura, algo relativamente novo para mim, pois, na minha tradição de autodidata, só costumo ler aquilo que me dá prazer.
Um aspecto importante dessa fase de coleta de informações foi o compromisso que assumi comigo mesmo de realizar uma leitura compreensiva de todos os textos que ia lendo. A diversidade de concepções ideológicas entre os professores do direito e da sociologia era tão grande que me forçou a adotar uma postura que eu chamaria de “abertura crítica”, ou seja, ler, criticar e compreender, sempre tentando aproveitar o que cada pensador pode oferecer de útil, ainda que eu não concordasse com o núcleo de suas teorias.
Essa atitude pode parecer banal, mas é muito rara no meio acadêmico. É algo paradoxal: todo mundo fala em “compreender o outro”, mas ninguém está interessado em compreender os seus próprios colegas de academia. Em geral, marxistas não lêem anti-marxistas e vice-versa. Quem pensa “hegemonicamente” não quer saber daquilo que os que pensam “contra-hegemonicamente” estão dizendo. Quando tentam ouvir o que o outro tem a dizer, não se preocupam em compreender honestamente as suas idéias: é uma leitura desconfiada, de má-vontade, preocupada apenas em tentar encontrar defeitos ou deturpar os argumentos alheios, como se o debate acadêmico fosse uma competição em que o vencedor é aquele que consegue destruir completamente o adversário e o que mais importa é fazer prevalecer as suas idéias a qualquer custo.
Na minha ótica, uma leitura compreensiva (por isso, ética) exige uma postura diferente. Mesmo que os argumentos do outro sejam inconsistentes, suas idéias talvez contenham alguma informação útil que deve ser levada em conta, nem que seja para ser devidamente refutada. Na prática, isso não costuma ocorrer nos debates acadêmicos. Há pouco diálogo e troca de informações entre grupos antagônicos. O que há normalmente são insultos mais ou menos velados e a busca de prestígio para si ou para os de seu próprio grupo intelectual. Cada membro de um grupinho se bajula mutuamente como um bando de crianças ávidas por auto-afirmação. Criam-se nichos de “pseudo-pensadores” que se alimentam das próprias criações, desenvolvendo expressões grandiloqüentes que só são compreendidas pelos membros do mesmo grupo, como se fosse uma placa de “propriedade privada” colocada num determinado assunto para que estranhos não se aproximem e não enxerguem os escombros argumentativos por detrás daquela fachada de mentirinha.
Procurei não fazer parte desse tipo de atitude, pois entendo que é um empecilho para o crescimento intelectual. Sem diálogo, não há uma compreensão mútua. Sem uma compreensão mútua, não há conhecimento objetivo. No final, como diria Hume, não é a razão que alcança o prêmio, mas sim a eloqüência.
Diante disso, preferi adotar uma linha de leitura diferente, tentando não julgar nenhum pensador pelo rótulo ou pelo som de suas cornetas, mas pelo valor de suas idéias e pela força de seus argumentos.
Talvez a função jurisdicional tenha contribuído para essa atitude que tomei. A atividade como magistrado me obriga a sempre ouvir os dois lados das controvérsias e a nunca tomar partido por qualquer debatedor antes de permitir que todos exponham seus pontos de vista. Outra técnica interessante que a atividade judicial oferece e que bem poderia ser aproveitada nos debates acadêmicos é a fixação de pontos controvertidos: deve-se delimitar todos aqueles pontos em que todos estão de acordo para evitar discussão inútil. Infelizmente, não se vê isso na academia. Há um superdimensionamento das controvérsias, mas, ao se analisar bem, percebe-se que há mais acordos do que desacordos.
As aulas foram interessantes. De um modo geral, as da sociologia foram mais animadas do que as do direito. Na sociologia, tivemos mais debate, mais polêmicas, menos formalismo e menos dogmatismo. O direito de Portugal, em muitos aspectos, deixa a desejar em relação ao direito brasileiro, ainda que tal comparação seja sempre grosseira e suscetível de uma má-avaliação por se tratar de contextos e tradições diversos. É a tal da incomensurabilidade. De qualquer modo, acho que nós, brasileiros, temos muito que aprender dos portugueses no que se refere ao estudo da filosofia do direito, da sociologia do direito e da história do direito, mas temos muito que oferecer, em termos de exemplos, no que se refere aos chamados novos direitos: ambiental, consumidor, minorias etc. Até mesmo a nossa jurisprudência em direitos fundamentais é mais rica. (Se bem que eles têm os exemplos dos tribunais europeus que são riquíssimos). Acho que, após essa experiência, me tornei um pouco mais patriota, pois percebi que o Brasil não está tão atrasado assim em relação ao resto do mundo e, em alguns temas, somos mesmo os únicos pentacampeões.
Nas primeiras aulas, havia muitos ruídos de comunicação decorrentes de uma má-vontade recíproca entre o direito e a sociologia. Depois, os debates fluíram mais tranquilamente. Os juristas têm uma mentalidade mais voltada para a solução de problemas, enquanto que a sociologia busca essencialmente identificar problemas, provocando e, propositadamente, incomodando aqueles que pensam de acordo com a mentalidade dominante. Os juristas possuem uma ingenuidade consciente, ou seja, sabem que os problemas existem, mas se contentam com a solução possível, ainda que imperfeita. Isso pode levar a um auto-engano, mas é um auto-engano prático e bem intencionado, pelo menos na grande maioria das vezes. Os sociólogos (ou alguns sociólogos), por sua vez, tentam enxergar uma teoria da conspiração em tudo, como se por detrás de toda solução descoberta pelos juristas houvesse uma tentativa de dominação ilegítima, já que os juristas, em regra, representam a classe que está no poder. Ressalto que essa é uma impressão particular minha, que, como qualquer generalização, corre o risco de gerar injustiças pontuais.
No início do curso, me senti muito incomodado com essa postura da sociologia de achar que tudo é um jogo de poder, onde o que vale é a ideologia e os interesses de classe. Até mesmo os direitos humanos e a democracia são analisados com desconfiança como se fossem um instrumento pós-colonial de exploração utilizado pelos países ocidentais do norte para continuar a dominação sobre os povos mais pobres do sul. Todo discurso, na ótica sociológica, sob inspiração de Foucault, encobriria uma tentativa de manipulação ideológica de um grupo social sobre outro. O mundo seria dividido em mocinhos e bandidos. Ou você está comigo ou é contra mim. A ciência seria uma arma de dominação que não poderia reinvidicar qualquer superioridade epistemológica, na lição de Feyerabend. E assim por diante…
Esse tipo de pensamento gerou em mim uma necessidade de encontrar os fundamentos para as minhas convicções mais básicas. Sempre acreditei no poder emancipatório da razão. Sempre achei que a objetividade alcançada pelo método científico era elogiável e desejável. Nunca duvidei do poder de libertação e de mudança social proporcionada pelos direitos fundamentais. De repente tudo isso foi posto em dúvida pela sociologia de Coimbra.
E isso foi ótimo, pois me levou a dar um salto mais alto: sair da cômoda positividade normativa do mundo jurídico e ir para os fundamentos últimos dessas minhas crenças. Só a filosofia seria capaz de fornecer esse alicerce – ou não. Tive que entrar a fundo na epistemologia e, logo depois, na filosofia moral. Consegui tirar muitas dúvidas “existencialistas” que estavam na minha mente. Outras surgiram. Mas, no final, tudo ficou mais claro.
A minha primeira incursão intelectual foi pela epistemologia e também pela filosofia e sociologia das ciências. Disso resultou o meu primeiro paper, ainda imaturo, onde tentei aproveitar as idéias metodológicas de Popper para melhorar a atividade do juiz. O mérito principal desse paper, penso eu, foi defender uma maior humildade intelectual por parte dos juízes. Se os juízes forem um pouco menos arrogantes, do ponto de vista intelectual, certamente suas decisões passarão a ser mais tolerantes e, por isso mesmo, mais legítimas. Ter consciência de que ninguém é dono da verdade – e de que sequer é possível descobrir com certeza se uma idéia é absolutamente verdadeira – é o primeiro passo para encontrar a solução mais justa (ou a menos injusta, se assim preferir).
Um defeito grave do paper foi não ter dado a atenção suficiente às idéias de Thomas Kühn, que muito influenciaram a chamada sociologia do conhecimento. Li o seu “A Estrutura das Revoluções Científicas” com um olhar preconceituoso, já “advogando” as idéias de Popper, e, por isso, deixei de aproveitar algumas teses kuhnianas que são muito interessantes e se aplicam com muita precisão ao mundo jurídico. Mas não convém falar disso agora. Desenvolverei isso na futura tese.
O certo é que, nessas primeiras leituras sobre a filosofia da ciência, encontrei uma frase forte que foi decisiva para os passos seguintes das minhas pesquisas. Li, não lembro onde, que “o papel dos cientistas é transformar filosofia em ciência”. Achei essa idéia fantástica, simples, poderosa e esclarecedora. De fato, várias teorias científicas surgiram de especulações metafísicas que depois conseguiram transformar-se em um campo fértil para investigações empíricas. O insight seguinte foi quase automático: se o papel dos cientistas é transformar filosofia em ciência, o mesmo se pode dizer dos juristas, ou seja, cabe aos juristas transformar filosofia em direito. Mas que filosofia? Quais são as idéias filosóficas que almejam transformar-se em direito? A reposta é óbvia: a ética! A ética é o campo da filosofia que tenta definir o conceito de justo/injusto, bom/mau, correto/incorreto, fornecendo argumentos para possibilitar que descubramos como viver melhor em sociedade. A ética precisa do direito para institucionalizar-se e o direito precisa da ética para legitimar-se. O papel dos juristas é transformar ética em direito dentro dos limites normativos definidos pelo Estado Democrático de Direito.
Percebi que nessa idéia simples havia uma possibilidade quase infinita de pesquisa que poderia servir como base para uma futura tese de doutorado, onde se poderia analisar os benefícios e inconvenientes dessa hipótese. O segundo paper teve essa pretensão de fincar algumas estacas para um aprofundamento futuro. O título foi precisamente: “Transformar Ética em Direito: o ativismo judiciário na perspectiva da filosofia moral”. Também considero que seja um trabalho imaturo sob vários aspectos. O meu estudo sistemático de filosofia moral ainda estava engatinhando (e ainda hoje deixa muito a desejar), e a minha visão acerca da realização do direito ainda era muito influenciada pela minha atividade judicial. Até aquele momento, não havia conseguido “tirar a toga” para analisar a questão o mais objetivamente possível. Aliás, acho que até hoje não consegui me desvincular totalmente dos valores decorrentes da minha atividade judicial, nem sei se isso é possível e desejável.
Mas o certo é que tudo começou a fazer sentido para mim. Até então, estava sem um norte intelectual. De propósito, cheguei a Coimbra sem uma idéia muito precisa sobre o que pretendia escrever na tese. Pensei em algo sobre “Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional”, que é um tema muito na moda entre os juristas contemporâneos. Minha idéia era manter a minha mente bem aberta para receber o máximo de informações, aproveitando o fato de estar numa cidade universitária cosmopolita e ávida por conhecimento. De certo modo, continuei no mesmo tema, mas com uma perspectiva mais filosófica. Ao invés de direitos fundamentais, filosofia moral; ao invés de jurisdição constitucional, filosofia política, filosofia do direito e epistemologia. Na base de tudo isso, algumas contribuições da sociologia para não perder o foco da realidade e aguçar o senso crítico que o tema exige.
Outra pretensão minha seria escrever sobre a laicidade do Estado. Como “racionalista de carteirinha”, tinha uma ingênua esperança de que seria possível fazer uma separação rígida entre dogmas religiosos e teorias racionais. Por isso, pretendia defender que toda a legislação oficial que se baseasse em dogmas religiosos destituídos de racionalidade deveria ser reputada como inconstitucional por ferir o princípio da laicidade do Estado. Mudei sutilmente o meu ponto de vista e expliquei minhas novas idéias no paper “Ética e Eternidade: em busca de uma ética de longo prazo”.
Escrever esse paper foi muito interessante. Todas as idéias já estavam em minha cabeça e fiz o primeiro esboço em menos de uma semana. São os quatro posts sobre a “Ética da Eternidade”. Depois, demorei um pouco mais para dar-lhe uma aparência mais acadêmica, mas acho que valeu o esforço, pois consegui reunir o pensamento de alguns dos principais filósofos morais de um modo sistemático, onde todos os pontos se ligam (pelo menos para mim). E, sem falsa modéstia, acho que a relação que fiz entre eternidade/imortalidade e perpetuação genética foi uma solução bem interessante para fundamentar empiricamente a construção de uma ética de longo prazo.
Nesse percurso, tive o prazer de trocar algumas idéias com alguns excelentes professores daqui de Coimbra. Cito particularmente um, que me orientou na redação de alguns papers e será meu orientador na tese: José Manuel Aroso Linhares. Participei de várias aulas da sua disciplina “Pensamento Jurídico Contemporâneo”, ministrada no mestrado. Foram aulas extremamente proveitosas, onde pudemos percorrer toda a história contemporânea do pensamento jurídico, passando por Kelsen, Luhman, Teubner, Hans Albert, Habermas, Dworkin, Posner, Rawls, Gadamer, Balkin, Boyd-White, Castanheira Neves, entre vários outros. O Professor Aroso Linhares é, sem dúvida, o maior conhecedor de teorias jurídicas que eu já tive a oportunidade de conversar. É uma enciclopédia. Sabe tudo de tudo. Conhece com detalhes todas as teorias desenvolvidas na filosofia do direito e na filosofia de um modo geral. E não é nem um pouco arrogante. Pelo contrário: a sua humildade intelectual e a sua boa vontade para ensinar e transmitir o seu conhecimento nas aulas são notáveis. Tentei aproveitar ao máximo essa oportunidade única de aprender com ele. E fiquei extremamente feliz por ele ter aceitado ser o meu orientador, apesar de “discordar globalmente” de algumas idéias que defendo, o que só comprova a sua grandeza.
Através do Aroso Linhares, me vi tentado a conhecer melhor as idéias do professor Castanheira Neves, que é o norte intelectual (no campo filosófico) de quase todos os professores de Coimbra. Suas idéias são bem interessantes, pois ele tentou identificar todos os pontos fracos das principais correntes jurídicas e, a partir daí, construiu uma linha metodológica que aproveita o que cada teoria pode oferecer de positivo. A sua escola de pensamento é conhecida como jurisprudencialismo, que parte do problema concreto a ser resolvido sem fugir da noção de sistema jurídico, que deve ser o fundamento normativo de validade das decisões judiciais. Depois explico melhor esse ponto de vista, já que deverei explorá-lo detalhadamente na tese.
Valeu a pena? Ou melhor: está valendo a pena? A resposta de Fernando Pessoa vem a calhar: tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Mas navegar é preciso e é hora de arrumar as malas e voltar à realidade. Se, por um lado, “Coimbra tem mais encantos na hora da despedida”, por outro lado “Coimbra é uma lição de sonho e tradição. O lente é uma canção. E a lua a faculdade. O livro é uma mulher. Só passa quem souber. E aprende-se a dizer saudade”.
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