Em outubro de de 2017, tive oportunidade de julgar um caso bem interessante.
A rigor, o ponto central do debate não tinha muita coisa a ver com a questão dos direitos dos animais. Era apenas um pedido de anulação de multa aplicada pelo IBAMA cumulado com um pedido de devolução de alguns pássaros silvestres criados em cativeiro que haviam sido apreendidos durante uma fiscalização.
O pedido de devolução dos pássaros não tinha como ser deferido por uma impossibilidade prática: os pássaros já haviam sido libertados e devolvidos à natureza. Apesar disso, optei por fazer uma análise indireta do direito dos pássaros à liberdade (de voar).
Sei que é um tema polêmico, mas, a meu ver, a criação de pássaros silvestres em gaiolas constitui, na maior parte das situações, tratamento cruel vedado constitucionalmente e foi por isso que fiz questão de incluir esse debate na sentença.
Eu podia ter aprofundado a argumentação ético-filosófica, até porque, em minha tese de doutorado, tratei da expansão do círculo ético e conheço muitos autores que reforçariam a minha posição. Mas optei por uma argumentação mais minimalista para não desviar o foco do problema de fundo. De qualquer modo, há uma sutil menção ao enfoque das capacidades (inspirado em Amartya Sen e, especialmente, Martha Nussbaum), que foi utilizado para sugerir a existência de um direito de voar dos pássaros.
Na fundamentação, há também o reconhecimento do chamado viés de confirmação para sustentar a violação do direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo. Como não se costuma encontrar alusões aos vícios cognitivos sendo utilizados como critérios jurídicos, acho que também é um ponto que merece destaque.
Aqui vai a parte essencial da sentença:
Processo nº 0006688-97.2010.4.05.8100 – 3a Vara Federal/CE
Juiz Federal: George Marmelstein
1 RELATÓRIO
(…)
2 FUNDAMENTAÇÃO
Os seguintes fatos que motivaram a presente ação são incontroversos: (a) o autor é criador de pássaros silvestres; (b) após fiscalização do IBAMA, sete pássaros foram apreendidos e, em seguida, reintroduzidos em ambiente natural; (c) foi aplicada multa em razão das irregularidades apontadas pelo IBAMA.
Diante desses fatos, o autor pede, em termos sintéticos, o reconhecimento da nulidade da fiscalização do IBAMA, com a anulação da multa aplicada e a consequente devolução dos pássaros.
Quanto ao pedido de anulação da multa, a razão está com o autor. De fato, a multa foi aplicada antes mesmo de ter sido dada oportunidade de o autor apresentar a documentação que justificaria a posse das aves, o que representa uma clara violação do devido processo. Em outras palavras: o IBAMA aplicou a multa e apenas depois analisou a documentação. Mesmo que várias inconsistências na documentação tenham sido constatadas, o certo é que a punição somente pode ser aplicada após a apreciação da defesa do eventual infrator.
Além disso, o próprio IBAMA reconheceu que uma boa parte da documentação estava regular, ou seja, seis dos sete pássaros tinham origem legal. As inconsistências apontadas pelo IBAMA em sua contestação somente foram apontadas depois que a multa foi aplicada, indicando que o órgão ambiental primeiro aplicou a sanção para somente depois encontrar a infração. Em outras palavras: o órgão ambiental foi contaminado pelo chamado viés da confirmação, tentando encontrar razões para justificar sua atuação depois que a decisão de condenar já havia sido tomada.
Não é preciso nem mesmo adentrar no mérito sobre a possibilidade de fiscalização in loco realizada pelo IBAMA. Basta reconhecer que houve uma inversão processual em que o direito de defesa foi prejudicado pelo desejo do órgão ambiental de justificar a sua atuação.
Diante disso, o auto de infração deve ser anulado, inclusive com a suspensão da cobrança da multa aplicada.
Por outro lado, o pedido de devolução dos pássaros não pode ser acolhido. Primeiro por uma impossibilidade fática: conforme informações do IBAMA, os pássaros já foram reintroduzidos ao ambiente natural. Segundo por uma impossibilidade jurídica: é questionável o direito do autor de manter a posse dos pássaros.
Quanto a esse segundo ponto, há uma razão formal para negar o pedido. Conforme apontado pelo IBAMA, a documentação apresentada pelo autor possui diversas inconsistências que põem em dúvida a sua regularidade. Além de ter contradição entre os números das anilhas e as espécies de pássaros, também foram apontados problemas no nome dos proprietários, bem como no local de criação desses pássaros.
Além disso, há um aspecto que, embora não seja decisivo para a solução desse caso, é extremamente importante do ponto de vista da proteção dos animais: é bastante questionável se é válida uma licença ambiental que dá o direito a uma pessoa de criar um pássaro em cativeiro, sobretudo em gaiolas.
Os pássaros são seres sencientes que possuem a capacidade de voar. Nessa condição, qualquer medida que retire desses pássaros essa capacidade fundamental deve ser vista, em linha de princípio, como uma medida que submete os animais a crueldade e, nessa condição, viola o artigo 225, §1o, inc. VII, da Constituição Federal[1].
O Supremo Tribunal Federal tem sistematicamente anulado práticas que submetem os animais a crueldade, tal como ocorreu no julgamento do caso da Farra do Boi[2] e da Briga de Galo[3]. Mais recentemente, no julgamento da ADI 4.983/CE, o Supremo Tribunal Federal, conforme voto do Min. Luís Roberto Barroso, assinalou:
“A Constituição veda expressamente práticas que submetam animais a crueldade. O avanço do processo civilizatório e da ética animal elevou o resguardo dos seres sencientes (i.e. , capazes de sentir dor) contra atos cruéis a um valor constitucional autônomo, a ser tutelado independentemente de haver consequências para o meio – ambiente, para a função ecológica da fauna ou para a preservação das espécies” (STF, ADI 4.983/CE, voto do min. Luís Roberto Barroso).
Com relação à criação de pássaros em gaiolas, embora não exista nenhuma decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a matéria não é nova na jurisprudência global. De fato, no Caso “People For Animals vs Md Mohazzim & Anr“, a Alta Corte de Delhi, na Índia, reconheceu expressamente que os pássaros possuem o direito de serem livres e que o seu aprisionamento em gaiolas viola esse direito[4].
Veja-se que, no presente caso, há várias outras razões, além do direito dos pássaros à liberdade, para se negar ao autor o seu pedido. De qualquer modo, é importante trazer esse tema ao debate até para que a sociedade possa refletir até que ponto criar pássaros em gaiolas é uma medida civilizatória ou não. Independentemente disso, seja por razões práticas, seja por razões jurídicas, os pássaros apreendidos não podem ser mais devolvidos ao autor.
3 DISPOSITIVO
Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO DESTA AÇÃO tão somente para anular o autor de infração e a respectiva multa lavrada contra o autor. Quanto ao pedido de devolução dos pássaros, JULGO O PEDIDO IMPROCEDENTE.
O IBAMA arcará com as custas processuais e com os honorários de sucumbência, que arbitro em 15% sobre o valor atribuído à causa.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Fortaleza-CE, 24 de outubro de 2017
GEORGE MARMELSTEIN LIMA- Juiz Federal da 3ª Vara
[1] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
[2]A ementa do acórdão é a seguinte: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inc. VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda a prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’ (STF, RE 153.541-1-SC, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio).” Veja-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio, relator para o acórdão, que sintetiza o argumento vencedor: “é justamente a crueldade o que constatamos ano a ano, ao acontecer o que se aponta como folguedo sazonal. A manifestação cultural deve ser estimulada, mas não a prática cruel. Admitida a chamada ‘farra do boi’, em que uma turba ensandecida vai atrás do animal para procedimentos que estarrecem, como vimos, não há poder de polícia que consiga coibir esse procedimento. Não vejo como chegar-se à posição intermediária. A distorção alcançou tal ponto que somente uma medida que obstaculize terminantemente a prática pode evitar o que verificamos neste ano de 1997. O Jornal da Globo mostrou um animal ensanguentado e cortado invadindo uma residência e provocando ferimento em quem se encontrava no interior. Entendo que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República. Como disse no início de meu voto, cuida-se de uma prática cuja crueldade é ímpar e decorre das circunstâncias de pessoas envolvidas por paixões condenáveis buscarem, a todo custo, o próprio sacrifício do animal”.
[3]“CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO: CRUELDADE. ‘BRIGA DE GALOS’. I. – A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre ‘galos combatentes’, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: C.F., art. 225, § 1o, VII. II. – Cautelar deferida, suspendendo-se a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro.” (STF, ADI no 1.856/MC, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 22/9/2000).
[4] Eis, no original, o trecho relevante do julgamento: “after hearing both sides, this Court is of the view that running the trade of birds is in violation of the rights of the birds. They deserve sympathy. Nobody is caring as to whether they have been inflicting cruelty or not despite of settled law that birds have a fundamental right to fly and cannot be caged and will have to be set free in the sky. Actually, they are meant for the same. But on the other hand, they are exported illegally in foreign countries without availability of proper food, water, medical aid and other basic amenities required as per law. Birds have fundamental rights including the right to live with dignity and they cannot be subjected to cruelty by anyone including claim made by the respondent. Therefore, I am clear in mind that all the birds have fundamental rights to fly in the sky and all human beings have no right to keep them in small cages for the purposes of their business or otherwise” (Disponível on-line: http://tinyurl.com/y8l97aox).
A política brasileira de trato dos animais silvestres é péssima, pior ainda é se basear numa outra tragédia, a da corruptocracia indiana, onde o estado está em tudo, inclusive referendando o sistema de castas e os seres humanos são tratados como lixo.
Penso que a política americana para o trato do tema é a mais acertada, com amplas possibilidades de liberdade de criação lícita de animais de todo tipo, silvestres ou não. Preservando assim a natureza, pois é possível ter a criação lícita.
Por outro lado vejo um claro viés de confirmação na própria sentença. Ora, já que não dá pra devolver mais as aves ao legítimo dono vamos inventar o direito de voar aqui e dizer que os documentos estão confusos (nessa parte colacionada não ficou clara nem detalhada a problemática documental, até porque foi dito que 6 das 7 aves estavam regulares. Estavam ou não?).
Por fim, para manter a coerência, espero ver os sintomas da inanição em breve, já que não só os animais silvestres tem o direito de voar, mas os frangos tem o direito de correr, voar e viver, o boi de correr e respirar, os peixes de nadar, os alfaces e verduras de crescer, viver e fazer fotossíntese, os frutos de espatifarem na terra e espalhar suas sementes, ou seja… melhor comer terra. A não ser que está tenha algum direito inventado para justificar qualquer coisa.
Eu compreendo perfeitamente as aflições de quem é contra aves engaioladas. Eu também não vejo sentido nisso, mas respeito que gosta e não acho “crueldade”. Há criadores e os criminosos. Não podemos confundir ambos, penso eu.
Se existe uma legislação especial que regulamenta o assunto e garante aos interessados ter as aves em cativeiro, acho muito equivocado dizer ser inconstitucional privá-las de liberdade (voar) por ser algo “cruel”. Ora, eu posso dizer o mesmo das pessoas que se julgam no direito de colocar cães em coleira e desfilar com eles pelas ruas como se fossem objeto de ostentação (Schopenhauer, por exemplo, em um de seus livros, manifestava o pior dos sentimentos por quem fazia isso. Para ele era algo extremamente cruel). O mesmo poderia ser dito de peixes ornamentais ou até mesmo da pesca feita nos rios do Pantanal.
Eu realmente acho delicado tudo isso e acredito que exista uma zona cinzenta sobre o assunto e sobre a qual nossos legisladores devem se debruçar no momento de elaborar uma lei.
Ser juiz deve ser um drama. Eu não gostaria de ser. Deve ser um sofrimento imenso, pois é quase impossível dissociar essas questões éticas na hora de sentenciar. Compreendo quem acha uma crueldade ver os animais enjaulados, mas se temos uma lei regulamentando o assunto, não podemos punir aqueles que agiram e agem de boa-fé.
Concordo plenamente, entretanto penso que não é tão difícil assim ser juiz, até porque esse dilema só aparece na ora de julgar o direito alheio e encontrar, ou inventar, um fundamento para decidir. Na vida prática não os vejo com esses dilemas, como exemplo, segundo pesquisa que fiz apenas três membros de todo o Brasil não solicitaram o auxílio-moradia (ou eram casados com alguém que recebia e não “recorreram” como o MM. Bretas), não creio que tenha sido um grande dilema no momento de realizar a solicitação do privilégio.
Por outro lado, quem fica com o assunto muito tempo na cabeça, de verdade, são os assessores, já que os meritíssimos, os bons, só lançam as ideias centrais (no presente caso seria assim: defere anulação da multa e nega a restituição das aves.), quem realmente redige e fundamenta e fica com o negócio na cabeça é a assessoria, inclusive é quem deve ter lançado mão desse argumento esdrúxulo, do direito ao voo, após árdua pesquisa para bem fundamentar o entendimento do chefe.
Zé, acho q vc e eu podemos concordar q um dos critérios ensinados para separar a espécie humana das não-humanas é o uso razão. Mas vc tb não vai dizer q uma pessoa desprovida da razão por motivos de saúde não perde seus direitos.
Tem outra coisa q vc vai concordar: no passado, os escravos viviam assim como os pássaros, enjaulados, com a anuência da ordem jurídica. Seriam “seres humanos” mas sem o direito à liberdade. O que mudou? O esforço da civilização q naquela época pôs o homem no centro, e hj vê q a natureza clama por essa centralidade tb.
Me convença: qual a utilidade de se manter um pássaro numa gaiola? Sem viés ético, apenas utilitário. Se vc me disser que existe uma utilidade nisso, eu mudo de ideia.
Enfim, sua opinião, conservadora mas respeitável, tende a sucumbir assim como lá atrás outras sucumbiram.
Pessoalmente eu não vejo utilidade nenhuma em manter pássaros em gaiolas, entretanto muitas pessoas gostam de ouvir o canto desses animais e a legislação permite. Não acho legítimo que o judiciário fique criando direitos ou restrições de forma totalmente arbitrária, mesmo que essas criações reflitam meu pensamento individual, pois é um abuso que não pode ser tolerado.
Creio que uma grande falha de muitas decisões é querer fundamentar demais, ora o juiz já tinha um argumento irrefutável: as aves foram soltas! Querer encher linguiça com argumentos revolucionários não serve pra nada para a sociedade, talvez satisfaça o ego do julgador, mas não ajuda ninguém. Na verdade o MPF poderia ajuizar uma ACP pedindo a libertação de todas as aves em cativeiro com base nesse direito inventado. É só debate jurídico que não contribui em nada com a melhora da sociedade, na verdade ajuda a piorar.
Na verdade, juiz federal, em 90% do tempo, só serve para deferir benefícios previdenciários que qualquer técnico do INSS poderia deferir se pudesse fazer essa interpretação expandida da lei e decidir com base em prova testemunhal.
Por outro lado, não acho razoável comparar a escravidão de pessoas com o engaiolamento de aves ou o encoleiramento de cachorros. Há também a dificuldade de saber o que o animal pensa/sente sobre isso, já no caso da escravidão humana é fácil saber o que o escravizado pensa. Do meu ponto de vista o tamanho da gaiola é relevante, mas não sou ave, não sei o que elas acham disso.
Quando a essa mudança de paradigma, acho possível, porém bastante improvável. Certamente esses posicionamentos tendem a ganhar força entre os inteligentinhos do discurso politicamente correto, entretanto isso fica apenas no marketing e nunca é implementado na realidade, muito menos no Brasil, onde na prática nem o homicídio é de fato proibido.
Bem, a gente poderia até debater o assunto com a profundidade possível q o espaço dos comentários permite. Mas qnd vc termina com “inteligentinhos” e “politicamente correto”, pra no final dizer que “na prática o homicídio não é ‘de fato’ proibido”, aí fica difícil. Enfim, respeito sua opinião sobre os pássaros, mas de terror, só o filme do Hitchcock…
Mas será que faz sentido falar, salvo de um modo mais atécnico, em um “direito à liberdade” para animais? Lembrei inclusive que a ideia de expansão do círculo ético do Peter Singer, por exemplo, que me parece ser fundada em um conceito utilitarista que prescinde de uma concepção de “direito à liberdade” para os animais.