Lá pelos idos de 2011, assisti, em Curitiba, a uma palestra do juiz Reinhard Gayer, do Tribunal Constitucional Alemão, sobre direitos sociais e reserva do possível. Ao término da palestra, quando se iniciaram os debates (que, infelizmente, não foram disponibilizados no youtube), questionaram-no se, na Alemanha, os juízes costumavam emitir ordens judiciais determinando que o poder público fornecesse medicamentos a uma pessoa doente que estaria a beira da morte. A resposta foi enfaticamente negativa. Seria impensável uma intervenção do Poder Judiciário no sistema de saúde alemão. Logo em seguida, foi perguntado o que um paciente deveria fazer se o hospital se negasse a fornecer o tratamento prescrito pelo médico. Depois de franzir os olhos como se não tivesse entendido a pergunta, o juiz respondeu perplexo: que hospital cometeria tamanha loucura de se negar a fornecer o tratamento prescrito por um médico?
Ao longo de minha vida acadêmica e profissional, dediquei muitas e muitas horas de reflexão para o tema da judicialização da saúde. Vivi várias “fases do D”, conforme ia amadurecendo as ideias. Já tive uma fase de deslumbramento, um tanto quanto romântica e ingênua, em que acreditava que o judiciário poderia ter um papel transformador e concretizador do direito à saúde, tendo como “evento confirmador” o sucesso na política de fornecimento de remédios para portadores de HIV, que foi impulsionada pela justiça nos idos de 1990. Depois, vivi uma fase de decepção, ao perceber os excessos e abusos que podem ser cometidos sob o pretexto de concretização do direito à saúde (como pessoas ricas querendo tratamento de ponta ou pessoas querendo furar filas de transplantes, isso sem falar nas fraudes). Já mais recentemente, passei a sentir um desencanto, ao compreender que as capacidades do judiciário são beeem limitadas nesse processo de efetivação do direito à saúde, havendo muitas situações em que uma comovente decisão judicial vale muito pouco para garantir um tratamento adequado. Depois, comecei a ter muitas dúvidas e uma certa desesperança, por perceber com cada vez mais nitidez que a judicialização pode até piorar o problema da saúde, em vários sentidos. Misturado com tudo isso, uma dose de desespero e desânimo com uma pitada de demência, por se sentir engolido por um sistema caótico, que se agiganta, sem um mínimo de racionalidade.
Diante desse cenário meio desolador, resolvi tentar colocar no papel algumas ideias que já venho adotando em minhas decisões mais recentes e que buscam dar mais unidade e coerência ao sistema de saúde. O pano de fundo talvez seja fruto da lição que extraí daquela palestra lá em 2011: a judicialização da saúde não faz o menor sentido quando o sistema funciona corretamente. O problema é que o sistema falha e, infelizmente, a falha costuma ser estrutural e generalizada. Mesmo assim, parece-me que é preciso repensar o papel da judicialização, pois, a meu ver, a solução judicial deveria mirar o resgate do sistema, ou seja, a sua correção, e não a sua substituição por um sistema paralelo que tende a tornar a situação ainda mais caótica.
Foi com esse espírito que, na preparação de uma palestra que proferi no 4 Congresso Médico e Jurídico, acabei escrevendo um artigo sistematizando alguns pontos de vista que tenho defendido. Disponibilizo aqui o texto preliminar para um debate prévio, antes de enviá-lo à publicação acadêmica. Quem puder contribuir para o debate, sinta-se convidado:
Prezado Dr. George Marmelstein,
à com muito prazer que me dirijo ao senhor, a quem admiro pela profÃcua e invejável produção cientÃfica. A respeito de seu artigo (âYou canât…â) e da mensagem que o trouxe a mim tenho algumas dúvidas. Inicialmente, devo esclarecer que sou procurador do Estado0 de Minas Gerais e que, nesta condição, durante um ano, tive a oportunidade de atuar na Procuradoria do IPSEMG â Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais, quando defendi o Estado e o IPSEMG em milhares de ações visando a tratamentos médicos e medicamentos. Atualmente, assessoro, na qualidade de procurador do Estado, o Secretário de Saúde de MG. Apesar disso, estou longe de me considerar especializado nessa matéria, estando ainda no estágio de âcuriosoâ. Pois bem. A primeira questão é sobre o que informa a respeito da Alemanha: tenho viva na minha lembrança que o debate sobre distribuição de medicamentos e de tratamento médico existe naquele paÃs e que lá enfrentam as mesmas dificuldades que nos traz a discussão no Brasil: o direito fundamental à saúde vs. restrições orçamentárias. Tenho a firme convicção de que já li a respeito e que, talvez, tenha sido um texto até de sua autoria. O tema seria tratado, com muita dificuldade pela Corte Constitucional. Em segundo lugar, como não ultrapassei a condição de um prático curioso nesta matéria, quero lhe dizer que, durante um ano cuidando de milhares de processos (uns 3.000, aproximadamente) nunca vi um só indeferimento do pedido. Repito: nunca tive a oportunidade de testemunhar uma só liminar indeferida. Pelo que ouço falarem os colegas que lidam com fornecimento de medicamentos na Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais, a situação dos processos de que cuidam não se altera. Então, a minha dúvida é: em que condições o Judiciário indefere pedidos de medicamentos e de tratamento médico. Tenho casos interessantes sobre o tema, como o do juiz que determinou que uma cirurgia bariátrica fosse feita em 48h sob pena de multa. Na contestação, eu afirmei que o cumprimento da decisão poderia matar o paciente, pela falta de exames necessários à cirurgia.
Obrigado pela atenção.
Cordialmente,
Olá! Vejam Aline falando sobre Política no Brasil e no Mundo.