Não é preciso muito esforço para concluir que o sistema prisional brasileiro é caótico. O problema se agrava à medida que novos presos são incluídos no sistema, pois não há estrutura para tratar de modo individualizado e com celeridade a situação de cada preso. O resultado disso é a superlotação dos presídios com presos provisórios e com pessoas condenadas que já cumpriram sua pena ou já obtiveram o direito de progressão do regime, mas permanecem indevidamente presas sem uma resposta estatal em função da demora na análise de seus casos.
Diante desse quadro, serão formuladas no presente texto duas propostas de mudança na arquitetura decisória para facilitar o caminho para a liberdade. A ideia é baseada nos conceitos de “nudges” e “arquitetura de escolhas”, desenvolvidos pelas ciências comportamentais. Nudges são pequenos incentivos que podem influenciar o processo de tomada de decisões, sem cercear a liberdade de escolha. Arquitetura de escolhas corresponde ao formato do arranjo (design) adotado para que as melhores decisões sejam tomadas em uma determinada direção. A lógica é extremamente simples: existem alguns fatores sutis que influenciam a tomada de decisões que podem ser organizados para guiar as escolhas em uma determinada direção; logo, é possível promover a realização de objetivos desejáveis por meio de pequenas mudanças na arquitetura de escolhas, bastando que sejam criados mecanismos que reduzam os ônus da decisão na direção certa. Um exemplo clássico que ilustra o funcionamento de nudges e arquitetura de escolhas é a organização dos alimentos em uma prateleira de modo a facilitar o acesso a comidas saudáveis. Essa simples mudança “arquitetônica” é capaz de fazer com que as pessoas alterem seus hábitos de alimentação, sem que seja necessário impor qualquer tipo de dieta ou restrição alimentar (sobre isso, Thaler & Sunstein. Nudge: o empurrão para a escolha certa).
De certo modo, o processo penal já adota alguns modelos decisórios que são desenhados para promover a liberdade. Por exemplo, a própria decretação da prisão preventiva exige um ônus argumentativo maior do que o seu indeferimento. Nesse sentido, o dever de fundamentação funciona como um nudge (“empurraozinho”) capaz de facilitar a decisão em favor da liberdade, impondo um fardo intelectual maior para a escolha que implique o encarceramento. Do mesmo modo, a distribuição dos ônus da prova exige um esforço cognitivo mais intenso para a condenação do réu, tendo como base a presunção de inocência. O atual formato da prisão em flagrante também segue a mesma lógica: na ausência de fatores que justifiquem a decretação da prisão preventiva, o acusado deve responder o processo em liberdade.
Mas é possível ir além – e é justamente o propósito do presente texto. Serão formuladas duas propostas extremamente simples que possuem um enorme potencial de mudar a lógica do sistema. A premissa é esta: ninguém deve ficar preso por mais tempo do que o devido. Portanto, é preciso estruturar o modelo decisório de tal modo que as falhas do sistema não prejudiquem o direito de liberdade.
A primeira proposta é uma sutil modificação no sistema de decretação de prisão preventiva. A prisão preventiva, atualmente, é decretada sem prazo determinado, de modo que só há a soltura do acusado após outra decisão judicial concedendo a liberdade. Muitas vezes, há excesso de prazo na instrução processual, e a preventiva se estende por um prazo maior do que o permitido. Um meio simples de se evitar isso seria exigir que, em toda decisão judicial que decreta a prisão preventiva, já fosse incluída, obrigatoriamente, uma ordem de soltura após determinado prazo, salvo se fosse proferida decisão em sentido contrário. Ou seja, já ficaria pré-determinado o prazo final da prisão preventiva, de modo que a manutenção do réu na prisão para além desse prazo deveria exigir uma nova decisão judicial analisando a conveniência de mantê-lo preso. Perceba que não se trata de impedir a prorrogação da prisão preventiva, já que há casos mais complexos em que a instrução processual pode se estender razoavelmente para além do prazo previsto originalmente. A medida, em verdade, apenas impõe um ônus maior caso se decida que o réu deve continuar preso.
Esse tipo de nudge é conhecido como “regra padrão” (“default rule“) e costuma extremamente eficaz. A arquitetura de escolha é planejada para que a solução “automática” (regra padrão) seja a solução desejável, permitindo que o objetivo que se deseja promover seja alcançado de modo mais rápido e menos custoso. No caso, como se deseja que o preso provisório não fique encarcerado para além do estritamente necessário, cria-se um mecanismo de soltura automática, já embutido no próprio mandado de prisão (ou seja, em tese sequer seria preciso a expedição de um alvará de soltura, pois o próprio mandado de prisão cumpriria tal finalidade), sem impedir, contudo, a manutenção da prisão se houver necessidade. O arranjo decisional é configurado de tal modo que a inércia favoreça a liberdade.
A segunda proposta é igualmente simples e segue a mesma lógica, mas o campo de aplicação é a progressão de regime prisional. Hoje, muitos presos deixam de obter a progressão do regime por uma incapacidade do sistema de analisar a situação individualizada de cada preso. Uma fórmula fácil de resolver esse problema seria exigir que, já no início da execução da sentença condenatória, fosse estabelecido o calendário de progressão a ser observado, ressalvando-se a possibilidade de alteração do cronograma por decisão fundamentada. Ou seja, ao iniciar o cumprimento da pena, todos já saberiam de antemão quando ocorreria a mudança de regime e, caso não houvesse qualquer fato superveniente capaz de justificar a alteração dos planos, o processo de progressão seria automático e ocorreria independentemente de nova decisão judicial. Com isso, seriam reduzidos vários custos no processo de análise dos pedidos de progressão, e o sistema funcionaria naturalmente para que o preso não fique na prisão além do tempo devido. O réu não seria prejudicado pela falta de estrutura do sistema, uma vez que a progressão do regime já estaria previamente programada para ocorrer automaticamente, salvo se surgissem fatos supervenientes que justificassem uma nova decisão. Também não haveria violação da individualização da pena, pois estaria sempre aberta a possibilidade de revisão do programa original, cabendo ao estado o ônus de justificar qualquer mudança.
Como se vê, esses pequenos “empurrões” para a liberdade possuem um baixo custo de implementação e um alto impacto para a melhoria do sistema. A lógica é simples, intuitiva e fácil de ser assimilada, pois é baseada em uma mera mudança de configuração do arranjo decisório, a fim de evitar o encarceramento desnecessário. Além disso, não há uma restrição do poder decisório dos juízes, pois é sempre ressalvada a possibilidade de alteração do plano original por meio de uma decisão superveniente, que leve em conta as particularidades de cada situação. O segredo é estabelecer um arranjo decisório que tenha consciência das falhas estruturais do sistema e use isso em favor da liberdade. Isso é feito a partir de uma definição antecipada de determinados eventos pró-liberdade, que serão ativados automaticamente caso nenhum comando contrário seja dado em seguida. Talvez esses simples arranjos decisórios não sejam suficientes para resolverem todos os problemas do sistema prisional, mas com certeza podem pavimentar o caminho para que ninguém fique preso por mais tempo do que o necessário.
* O presente artigo foi escrito com a colaboração de Fernando Braga, que forneceu as ideias para o insight original e ajudou com alguns argumentos.
As propostas são facilmente refutadas, com o argumento da ausência de previsão legal. A engenharia proposta seria pouco para mudar a vontade de ser carrasco, muito em voga atualmente.
Vejo mérito na segunda proposta: a lei de organização criminosa fixa o prazo de 120 dias para a instrução (art. 22, parágrafo único, da Lei 12850), sob pena de revogação da prevemtiva, o que poderia ser aplicado analogicamente a outros casos (Giacomolli)
O problema? A facilidade de refutar a tese, com o argumento da especificidade da lei de organização criminosa, e, ainda, diante da denominada “síndrome moro”, a vontade de ser carrasco e ser reconhido como tal
Quanto à progressão, o diretor de presídio afirmaria que a progressão depende do bom comportamento, além de decisão específica do Juízo de execuções, pouco importando o prognóstico do Juízo de conhecimento.
Enfim, não há engenharia que dê jeito à vontade de ser mal, o que vai além do preconceito.
A execução da pena corporal resultante de regular procedimento
processual ocorre, em “terrae brasilis” em células que constituem filiais do inferno. Mas, com a reincidência penal atingindo nível de setenta por cento dos reeducandos, não se pode aceitar que o escopo da aflição seja a recuperação do criminoso.
Os criminosos são tratados como se não tivessem culpa pelos atos praticados; a culpa, integral, é transferida à sociedade.
O psiquiatra inglês Anthony Daniels mais conhecido em seu país como Theodore Dalrymple, faz uma análise impiedosa: “Rousseau difundiu a ideia de que o ser humano é naturalmente bom, e que a: sociedade o corrompe. Eu não sou religioso, mas considero a visão cristã de que o homem nasce com o pecado original mais realista. Isso não significa que o homem é inevitavelmente mau, mas que tem de lutar· contra o mal dentro de si. Por influência de Rousseau, nossas sociedades relativizaram a responsabilidade dos indivíduos. O pensamento intelectual dominante procura explicar o comportamento das pessoas como lima conseqüência de seu passado, de suas circunstâncias psicológicas e de suas condições econômicas. Infelizmente, essas teses são absorvidas pela população de todos os estratos sociais. Quando trabalhava como médico em prisões inglesas, com freqüência ouvia detentos sem uma boa educação formal repetindo teorias sociológicas e psicológicas difundidas pelas universidades. Com isso, não apenas se sentiam menos culpados por seus atos criminosos, como de fato eram tratados dessa maneira. Trata-se de uma situação muito conveniente para os bandidos, pois permite manter a consciência tranqüila. Podem dizer que roubam porque não tiveram oportunidades de estudo, porque nasceram na pobreza ou porque sofreram algum trauma de infância, entre outras desculpas. “Enquanto a sociedade não mudar, não se pode esperar que eu me comporte de outra forma”, tal é o discurso corrente entre os presos”.
É ultrapassada a concepção de que a prisão tem função ressocializadora. A segregação é necessária, para que os meliantes não voltem a ofender os membros da comunidade. Se a razão está com Hegel que vê na maldade expressão da liberdade humana, ela encontra limites na liberdade do outro que não fez opção pelo mal.