Senso de Justiça Teórico

Ao André Coelho, pelo seu imenso senso de justiça teórico

Quando uma pessoa justa presencia uma prática de injustiça contra outra pessoa ou quando se presencia a entrega de um prêmio para alguém que não merece, a tendência natural, provocada por alguma química no córtex cerebral ou seja lá o que for, é reagir contra aquela situação. Essa é uma das grandes virtudes da humanidade e, aparentemente, não só da humanidade, pois também é possível perceber essa atitude em outras espécies. O que chamo de “senso de justiça teórico” é uma adaptação dessa atitude para o campo do debate teórico. Para ser mais claro: o senso de justiça teórico é uma preocupação com a avaliação justa das propostas teóricas. Não se trata, portanto, de um contraponto a um eventual “senso de justiça prático”, mas de uma defesa da justiça na arena das disputas entre teorias concorrentes. Essa atitude provoca, no teórico justo, uma revolta contra uma injustiça presenciada, e a assunção de um compromisso de tentar corrigir a situação.

A ideia é simples: se alguém com um forte senso de justiça teórico presencia um ataque injusto contra uma determinada proposta teórica, sua tendência é defender aquele ponto de vista, mesmo que não concorde com ele. A defesa não é um endosso à proposta, mas apenas uma reação contra o ataque injusto, ou seja, a proposta pode até não ser a melhor, mas o ataque contra ela é tão desonesto, seja por desconfigurá-la, seja por apresentá-la de forma incompleta, que é preciso tentar de algum modo lutar contra isso. E a melhor forma de lutar é apresentando a proposta injustamente atacada em sua melhor luz (muitas vezes, em uma luz ainda melhor do que a da proposta original). Assim, a tendência do teórico justo é destacar os aspectos positivos que foram injustamente negligenciados pelos detratores da proposta e apontar os equívocos que foram cometidos no processo de refutação.

Na sua feição alternativa, o senso de justiça teórico não se conformará com o fato de uma teoria ou um teórico receber uma fama imerecida e tentará denunciar a situação para que outros percebam o embuste. Neste último caso,  a pessoa com forte senso de justiça teórico terá um conflito interno a ser resolvido, pois ela sabe que o ataque contra o sucesso imerecido não pode ser feito com os mesmo expedientes que foram adotados para destruir a teoria injustiçada. Assim, o teórico justo deverá buscar um equilíbrio entre o dever de apresentar toda teoria na sua melhor luz (princípio de caridade) e o receio de que isso possa aumentar ainda mais o prestígio indevido daquela proposta. Isso pode ser feito através de uma ênfase na indicação das falhas teóricas que contaminam aquelas ideias, de modo que eventuais méritos da proposta são minimizados (embora não sejam ignorados) para que os defeitos apareçam de um modo mais nítido. O teórico justo, por exemplo, reservará mais espaço e mais tempo para os pontos negativos, e menos espaço e menos tempo para os pontos positivos na apresentação daquela proposta.

É muito difícil encontrar no meio acadêmico pessoas com um forte senso de justiça teórico. Em geral, os acadêmicos são partidários: apegam-se a determinados referenciais teóricos de um modo apaixonado e incorporam um espírito beligerante para defender suas teses favoritas. Ao incorporar um espírito beligerante, tendem a adotar expedientes da arte da guerra para vencer o debate e destruir seus oponentes.  O método mais comum é por meio da falácia do espantalho, em que a posição teórica a ser enfrentada é distorcida de tal modo que poucos teriam coragem de defendê-la. É nesse contexto que o senso de justiça teórico reagirá para impedir o ataque injusto.

Mas há outro aspecto do senso de justiça teórico, ainda mais interessante, que vale a pena enfatizar, pois envolve uma situação mais ampla de injustiça cometida de modo sistemático pela comunidade acadêmica.

Em uma determinada comunidade acadêmica, é normal que algumas teorias prosperem e outras sejam rejeitadas. Muitas vezes, as teorias vencedoras alcançam seu sucesso não por um mérito intrínseco, mas pelo uso de estratégias ilegítimas de afirmação ou pela adoção de estratégias espúrias de destruição das teses opostas. Outras vezes, isso pode ocorrer por uma mera questão de acaso: naquele momento em particular, uma determinada teoria ganhou a adesão do público porque um conjunto de fatores aleatórios fizeram-se presentes ao mesmo tempo para que a teoria florescesse naquele ambiente. Aliás, em alguns casos, a situação é tão curiosa que pode ser que a teoria dominante somente tenha sido capaz de alcançar seu sucesso porque ela própria foi mal-compreendida ou distorcida para se amoldar aos interesses específicos de seus defensores. O certo é que toda a comunidade passa a ser seduzida por aquela proposta, criando uma prática sistemática de destruição ideológica das teorias concorrentes e de enaltecimento exagerado das qualidades de suas próprias ideias, numa aplicação fiel da chamada “Lei de Ricupero”.

É aqui que o senso de justiça teórico será acionado para tentar resgatar a dignidade das teorias injustiçadas e, também, para se insurgir contra o sucesso imerecido das teorias dominantes. Porém, como a comunidade acadêmica já está tão contagiada por um sentimento de exaltação da teoria dominante e de ojeriza pelas teorias opostas, é muito difícil conseguir se fazer ouvir, por várias razões. Em primeiro lugar, porque a comunidade acadêmica não está interessada em ouvir. A abertura ao pluralismo, no meio acadêmico, parece sofrer da síndrome NIMBY. Em segundo lugar, porque provavelmente as ideias  serão distorcidas, correndo-se o sério risco de o teórico justo ser também hostilizado e passar a carregar a má-fama que a comunidade tem em relação à teoria injustiçada (e veja que o teórico justo não necessariamente precisa concordar com a teoria injustiçada!). Em terceiro lugar, o teórico justo não estará disposto a entrar no jogo sujo de manipulação que os adeptos da teoria dominante adotaram, o que lhe coloca numa posição de inferioridade de armas, além de tirar a audiência daquela platéia que quer ver sangue. A situação é bem complexa, pois o teórico justo alcançaria seu propósito com muito mais facilidade se entrasse no jogo do adversário; mas, se entrar no jogo, terá que deixar de lado algumas de suas virtudes e, ao fazer isso, deixaria de ser justo.

Para finalizar, uma última observação para evitar um mal-entendido. O uso de um “ponto de vista justo”, aplicado à avaliação das propostas teóricas nos moldes aqui apresentado, não deve ser confundido com uma postura de “piedade” em relação às teorias “oprimidas e hipossuficientes”. O “princípio do coitadinho” não parece ser um princípio de justiça válido, nem no mundo dos fatos, nem no mundo das teorias. O que o teórico justo faz não é elevar o status de uma teoria que, por si só, não tem mérito nenhum, mas apontar os pontos positivos de propostas teóricas que são valiosas em alguns aspectos, mas que, em razão de expedientes espúrios, foram menosprezadas pela comunidade acadêmica. Assim, ao apresentar a teoria injustiçada em sua melhor luz, o teórico justo tenta resgatar a dignidade que lhe foi suprimida e não desenvolver um programa de “ação afirmativa” para dar igual oportunidade às teorias epistemicamente “mais pobres”.

Apesar disso, não se pode negar que o senso de justiça teórico pode, em algumas circunstâncias, afetar a imparcialidade e, talvez, até mesmo a objetividade na avaliação das teorias. Afinal, como o senso de justiça tem uma forte influência emocional, o teórico justo pode ser inconscientemente afetado por um desejo de fazer justiça a qualquer custo e, nesse processo, pode acabar sendo demasiadamente benevolente em relação às teorias injustiçadas e hostil em relação às teorias dominantes. O seu esforço intelectual será distribuído em função desse desejo de recolocar as coisas em seu devido lugar e isso pode significar uma supervalorização de teorias que talvez não sejam mesmo tão importantes (mas que foram injustiçadas) e uma desvalorização de teorias que talvez possuam algum mérito, mas foram exageradamente enaltecidas. Saber equilibrar os pratos dessa balança sem adulterar os pesos talvez seja a virtude soberana do teórico justo.

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