O propósito deste post é analisar uma possível evolução no conceito de liberdade. Indo direto ao ponto: defenderei que a liberdade deixou de ser um direito cujo exercício estaria condicionado ao respeito à lei para se transformar em um limite jurídico ao próprio legislador. Se antes um comportamento contrário à lei era visto como um abuso da liberdade, hoje, em determinadas situações, a desobediência à lei pode ser considerada juridicamente legítima, desde que se reconheça que o legislador interferiu arbitrariamente em uma esfera pessoal protegida pela liberdade e, portanto, imune ao controle estatal. Para compreender essa mudança de sentido da liberdade conforme à lei para a lei conforme à liberdade, e as consequências de tal (r)evolução, é preciso aprofundar um pouco mais…
A ideia de que o ser humano deve ser o autor da própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo é recente. Foram os pensadores liberais da modernidade, especialmente Locke e Kant, que desenvolveram com mais profundidade essa concepção de liberdade fundada na autonomia pessoal. Antes disso, a concepção de liberdade que se tinha era aquela que Benjamin Constant designou de “liberdade dos antigos”, que nada mais era do que a liberdade de participação na vida pública. O cidadão da Antiguidade era livre para deliberar sobre a decretação de uma guerra, mas não era livre para escolher sua religião, nem mesmo para cuidar do seu filho. Quase todos os aspectos da vida privada – da família ao lazer, da propriedade ao trabalho, da religião ao comércio – eram de algum modo controlados pela polis, como bem demonstrou Fustel de Coulanges em seu indispensável A Cidade Antiga.
A passagem da “liberdade dos antigos” para a “liberdade dos modernos” envolve o amadurecimento da ideia de laicidade do estado. De fato, quando os papéis do estado e da religião sobrepunham-se, pouco restava ao indivíduo em termos de autonomia. O estado, através da legislação, institucionalizava abertamente a moral religiosa, utilizando a força das instituições para impor um padrão moral uniforme para toda a sociedade. A pessoa era obrigada a renunciar as suas convicções quando esta se chocava com os valores oficialmente impostos. A derrocada do álibi teológico que dava suporte ao estado, justificando as mais arbitrárias interferências estatais na vida privada, possibilitou a valorização da liberdade no sentido moderno, influenciada, no campo teórico, pela sublimação da autonomia como parte integrante da dignidade humana. Em palavras menos rebuscadas: o estado perdeu grande parte de sua legitimidade para agir como um sacerdote moral da sociedade, proporcionando a abertura necessária para que o indivíduo começasse a assumir a condição de sujeito ético responsável por suas escolhas e ações.
Mas os pensadores liberais modernos, mesmo exaltando a autonomia pessoal e reconhecendo a íntima conexão entre o poder de autodeterminação individual e a dignidade do ser humano, não foram capazes de desenvolver uma fórmula institucional apta a garantir efetivamente a proteção da liberdade individual. No fundo, a liberdade era sempre submetida à obediência à lei, de modo que o ser humano “livre” era obrigado a respeitar incondicionalmente as leis aprovadas pelo “corpo do povo”. As primeiras declarações de direitos, ao incorporarem a noção de liberdade como direito natural, quase sempre submetiam o exercício do direito ao respeito à lei. A técnica da reserva legal (“o direito X será exercido nos termos da lei”) tornou-se o padrão dessas primeiras declarações de direito. Desse modo, a liberdade não tinha a força de limitar verdadeiramente o legislador. Na verdade, o legislador era “livre” para limitar a liberdade como bem lhe aprouvesse. O velho princípio de que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei” é a consagração dessa ideia. No fundo, o que esse princípio estabelece é apenas um obstáculo formal à restrição da liberdade, exigindo que as obrigações involuntárias decorram de lei, mas sem impor nenhum empecilho forte ao legislador no que concerne ao conteúdo da legislação aprovada. Um dos poucos pensadores modernos a reconhecer que a tirania do legislador deveria ser combatida foi Locke. Porém, seu modelo tinha pouca valia prática, pois se baseava num direito de resistência do indivíduo oprimido contra a força do estado, sendo notório que a assimetria de poder torna inócua a resistência individual. Além disso, ao fim e ao cabo, quem tinha a última palavra para arbitrar os conflitos entre o indivíduo e o estado era o corpo do povo, guiado pela vontade da maioria, cujo potencial opressivo é tão grande quanto o do próprio estado. Vale lembrar que, em Locke, ao legislador é conferido o status de “poder supremo”.
Um passo influente para mudar o conceito moderno de liberdade foi dado por John Stuart Mill que, no seu On Liberty (1859), desenvolveu uma ideia de liberdade como princípio de legitimação estatal fundamentado para além da lei. Para Mill, a única justificativa capaz de legitimar a restrição da liberdade seria para evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros. Tem-se aí o chamado princípio do dano, que traduz um critério de intervenção estatal na liberdade relativamente simples, mas poderoso. Por essa fórmula, qualquer restrição da liberdade, inclusive através da lei, que não tenha por escopo evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros seria ilegítima. O potencial revolucionário dessa ideia é notório. Basta imaginar, por exemplo, a regulamentação dos costumes presente no código penal, o tratamento jurídico da família constante no código civil, a proibição da eutanásia, da poligamia, da homossexualidade e assim por diante. Basicamente, uma conduta sem vítimas efetivas ou potenciais, isto é, que não interfira negativamente na esfera alheia, não poderia ser objeto de censura jurídica.
Embora o princípio do dano possa ser alvo fácil de diversas objeções (pense, por exemplo, na proibição de comércio de órgãos humanos ou na obrigação do uso de cinto de segurança), não há dúvida de que um grande passo foi dado para superar a velha noção de que o exercício da liberdade só é legítimo se for conforme à lei. Com Mill, é a própria lei que poderá deixar de ser legítima se não respeitar a liberdade.
A concepção de liberdade como limite ao legislador demorou bastante para ser incorporada ao pensamento jurídico. Na verdade, até hoje, ainda não se sabe com precisão até onde vai o poder de negar validade a uma lei que viole arbitrariamente a liberdade, até porque toda lei, em essência, restringe o exercício da liberdade. O certo é que o avanço do constitucionalismo, da jurisdição constitucional, dos direitos fundamentais criou um ambiente propício ao desenvolvimento dessa nova concepção de liberdade como limite ao legislador. Um dos marcos mais relevantes dessa concepção foi estabelecido no caso Griswold v. Connectutti, em 1965, pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Naquele julgamento, uma lei estadual que proibia a compra e venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional por violar a autonomia privada, vale dizer, o direito dos casais de decidir sobre relações sexuais e reprodução. Depois disso, o mesmo princípio já foi invocado para anular leis que criminalizavam a sodomia, ou seja, a prática de relações sexuais entre adultos (caso Lawrence vs. Texas, de 2004), a proibição da eutanásia passiva (caso Cruzan v. Director, MDH, de 1990) e até mesmo a liberdade de escolha da mulher de interromper a gravidez nas primeiras semanas de gestação (caso Roe vs. Wade, de 1972). Em todos esses casos, o parâmetro de anulação da lei foi idêntico: a autonomia privada como limite ao legislador.
Falar em limite ao legislador é reconhecer um parâmetro de validade jurídica superior à lei. O poder político, nesse sentido, não teria legitimidade para interferir em uma determinada zona de privacidade pessoal, ainda não bem definida, mas claramente protegida contra os arroubos do legislador. Na sua influente teoria da justiça, John Rawls trouxe essa ideia para dentro do primeiro princípio de justiça, estabelecendo que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as outras. Assim, a restrição da liberdade somente seria justificada como forma de garantir o exercício simultâneo da liberdade pelos diversos membros da sociedade. Usando uma linguagem diferente, mas com propósitos semelhantes, Ronald Dworkin, no seu último livro “Justice for Hedgehogs”, defende a existência de um direito fundamental à independência ética, consistente em um direito da pessoa de tomar decisões refletidas, no autêntico exercício de sua autonomia. Assim, ninguém teria o direito de usurpar do sujeito ético a sua capacidade de ser o autor de própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo. Esse direito geraria para a pessoa um poder institucional de resistência, ou seja, um poder de questionar a validade jurídica da lei perante os órgãos responsáveis pelo controle de constitucionalidade.
Certamente, ainda falta muito para que alcancemos um nível de maturidade institucional em que a liberdade – como proteção da autêntica autonomia – seja reconhecida como um verdadeiro limite ao poder estatal. A possibilidade de discutir, perante órgãos do próprio estado, a validade jurídica de uma lei contaria à liberdade, embora constitua um avanço, certamente ainda é um mecanismo demasiadamente frágil de emancipação do sujeito ético contra o estado. De qualquer modo, é notória a evolução que tem ocorrido. Claramente mudamos o sentido da liberdade. Se, antes, a liberdade era conformada pela legalidade, hoje, pelo contrário, é a legalidade que está cada vez mais sendo conformada pela liberdade.
Muito bom, professor. É exatamente isso que dizem esses julgados do STF:
“Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da CF: liberdade de ‘manifestação do pensamento’, liberdade de ‘criação’, liberdade de ‘expressão’, liberdade de ‘informação’. Liberdades constitutivas de verdadeiros bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da nossa Constituição intitula de ‘Fundamentais’: ‘livre manifestação do pensamento’ (inciso IV); ‘livre (…) expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação’ (inciso IX); ‘acesso a informação’ (inciso XIV). (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30‑4‑2009, Plenário, DJE de 6‑11‑2009.)
(…) No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, IV, IX, XIV, e o art. 220 não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5º, IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação. Jurisprudência do STF: Representação 930, Rel. p/ o ac. Min. Rodrigues Alckmin, DJ de 2-9-1977.” (RE 511.961, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-6-2009, Plenário, DJE de 13-11-2009.)
O articulista se esquece que, estamos em um Estado Democrático de Direito e não de Direito Democrático. O pensamento contraria as raízes da Constituição Brasileira!!!
Excelente texto, George. Agora, quais são os parâmetros para se definir, em dado momento, que o agir de um sujeito atinge a esfera de liberdade dos demais membros da comunidade? Isso é muito subjetivo, pois vai depender dos aspectos culturais de cada grupo. Acredito que é nesse contexto que surge a difícil questão das minorias.
O texto segue as pegadas de Dworkin, um autodeclarado “liberal”.
A propósito, como um autor liberal de carteira – francamente declarado – pode fazer tanto sucesso no Brasil – refiro-me ao americano? Como um autor que faz toda sua teoria a partir do direito anglo-saxão pode fazer tanto sucesso em país de origem romanística?
É curioso como uma teoria liberal do direito possa fazer tanto sucesso no Brasil, cuja Constituição tem clara pretensão de mudar o atual estado de coisas, que, por sua vez, tanto interessa aos liberais.
Ao teorizar sobre a igualdade, Dworkin distingue dois momentos. No primeiro, há distribuição dos bens primários. É como dizer: você tem tudo na vida: ar, terra, água e fogo. Está dada a largada para que junte esses elementos e faça dinheiro com eles. O que isso gera: desigualdade. Conclusão, aliás, francamente admitida por Dworkin.
O americano, em segundo momento, propõe solução de uma vagueza ímpar para corrigir o problema vislumbrado. Adverte o autor:
“Convém elaborar um esquema de redistribuição, na medida do possível, que neutralize os efeitos dos talentos diferentes, mas preserve as conseqüências da escolha de ocupação segundo a noção que a pessoa tem do que deseja fazer da vida.”
Redistribuição que vise corrigir apenas o que o talento foi capaz de desigualar. Nada mais é possível segundo Dworkin. Esqueçam esse negócio de salário mínimo com serventia para lazer, saúde e cultura. Só podemos desigualar para corrigir o talento.
É mais ou menos como dizer no Brasil: vamos saquear a herança do AYRTON SENNA, mas, por favor, deixem o Abílio Diniz em paz! Eita virtude soberana… para os americanos.
Além disso, a praticidade de lá implica considerar a qualidade da decisão judicial com fundamento na sua aptidão para melhor resolver o conflito. Quanto mais pacificada a controvérsia, quanto mais as partes aceitarem a justeza da decisão, maior será a sapiência da sentença. Isso justifica obviamente a preocupação ampliada deles com a legitimidade.
Aqui, o estudo enfadonho decorre da nossa vinculação à Lei. Daí nossas preocupações quanto à estrutura de norma que veicule moralismos, de um raciocínio limitado aos institutos jurídicos, de uma teoria da decisão judicial que melhor a qualifica quanto mais cumpridora da lei. Preocupações, aliás, que acometem todo País que tenha direito com raízes em França, cujo raciocínio do jurista parte do abstrato ao concreto.
Não se trata de escolher o melhor dos modelos. A essa altura, não podemos negar nossas origens. Não vejo outro caminho que não seja fazer uma teoria que respeite nossas instituições sociais e jurídicas, sob pena de fazermos ciência para “inglês ver”.
George, no post acima, segue a mesma pegada. Mas, claro, o pressuposto para inflamar a não intervenção é sempre um ato abusivo. Mais ou menos como se um policial nos mandasse arriar as calças em plena luz do dia. Precisamos combater esse perigo iminente. Viva a revolução silenciosa dos liberais.
George, se a liberdade (ou as liberdades) está(ão) consagrada(s) em norma(s) de hierarquia constitucional, talvez não seja tão revolucionário assim reconhecer liberdade contra a lei, ou, melhor dizendo, reconhecer a invalidade de uma norma infraconstitucional (lei) que restringe de forma desproporcional o alcance de uma norma constitucional (que consagra certa liberdade). Talvez isso já seja possível faz tempo, e já venha sendo feito também há algum tempo. A rigor, o que falta, como você bem indica, são critérios para fazer esse cotejo.