A Hipocrisia Jurídica ou de Como a Argumentação Jurídica é o Antro da Dissimulação

Ninguém costuma assumir seus preconceitos. No mundo do politicamente correto, todos querem transmitir a impressão de que fazem parte do grupo dos mocinhos. O resultado prático disso certamente não é um mundo melhor, mas um mundo com mais desonestidade e hipocrisia. Pois bem… E o que isso tem a ver com o direito?

O direito é um espaço institucional onde o mundo das aparências vale mais do que o mundo das reais convicções. E não me refiro apenas às roupas caras, as vestes talares e à linguagem fria e pomposa dos juristas. Refiro-me especificamente à argumentação, onde as mentiras exteriorizadas são mais relevantes do que as crenças sentidas, mas não-ditas. A argumentação jurídica, nesse ponto, é o antro da dissimulação. É o lugar em que os juristas jogam pra debaixo do tapete os “fatores reais do decidir” toda vez que eles possam colidir com a aparência do “bom direito”.

Por “bom direito” entenda-se aquilo que pode ser, de algum modo, inferido da normatividade oficial. O que importa, de fato, não é que a decisão seja válida, mas que tenha uma aparência de validade. Para dar uma aparência de validade aos seus pontos de vista, os juristas apenas mostram os argumentos que estão em consonância com as normas legais, constitucionais ou com qualquer outra “fonte oficial” reconhecida como dotada de positividade (tratados, precedentes, costumes etc.). Todos os fatores que possam se “chocar” com o tal do “bom direito” são evitados e ocultados. Assim, mesmo quando a solução jurídica é inspirada em algum critério exterior ao sistema normativo, o jurista se esforça para desenvolver uma justificativa que, na aparência, seja condizente com aquilo que se espera de uma decisão jurídica. Em outras palavras, não se pede para o jurista fornecer todas as reais razões que o levaram a tomar aquela decisão, mas apenas que ele apresente alguma justificativa compatível com o sistema legal, ainda que o sistema legal não tenha tido nenhuma influência na formação do juízo decisório.

O jurista inglês Patrick Devlin, no seu livro “The Judge”, chega a sugerir descaradamente que o juiz deve mesmo mentir para manter as aparências da aplicação positivista do direito. Para ele, mesmo quando seja necessário se afastar da lei para fazer justiça substantiva, os juízes não deveriam assumir essa atitude abertamente. Os reais motivos da decisão precisariam ser ocultados em nome das aparências que dão sustentação às instituições responsáveis pela realização do direito.

Curiosamente, no meio jurídico, essa lógica de fingimento deliberado costuma ser aceita sem maiores questionamentos. De um modo geral, ninguém se preocupa com o que está por detrás da argumentação jurídica. O que vale é o que foi escrito e apresentado “objetivamente” como “razão de decidir”, mesmo que isso seja fruto de um mal-disfarçado embuste.

Na teoria da argumentação jurídica, esse expediente é reforçado pela distinção, já bem conhecida na filosofia da ciência, entre o contexto da descoberta e contexto da justificação. O contexto da descoberta seria o momento criativo e introspectivo da elaboração da solução para o problema (a palavra descoberta é apenas um jogo de linguagem, pois, no mais das vezes, a solução é construída ou inventada e não propriamente descoberta). Esse momento introspectivo costuma ser considerado como irrelevante para a análise da validade da resposta oferecida. O relevante, para o controle da racionalidade jurídica, são apenas os fatores que foram exteriorizados no contexto da justificação, que seria o momento objetivo em que o solucionador do problema apresenta as razões por ele desenvolvidas após a “descoberta” da resposta.  Como não há um liame lógico necessário entre um momento e outro, a pessoa não precisaria ser sincera no contexto da justificação. O que se exige é que suas razões exteriorizadas sejam compatíveis com o sistema normativo, ainda que o próprio solucionador do problema não acredite seriamente nessas razões.

Parece óbvio que essa cisão entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação é o campo mais propício para o florescimento da dissimulação. Uma pessoa pode ser preconceituosa, racista, vingativa, mesquinha, corrupta e destituída de qualquer virtude, mas se a sua resposta for apresentada com a roupagem do “bom direito”, todos os seus pecados serão expiados, e a sua palavra pode se tornar a encarnação da justiça!

É preciso desmascarar essa hipocrisia. Para isso, há um longo caminho a percorrer, o que não pretendo fazer em um singelo post. De qualquer modo, o primeiro passo é reconhecer a relevância metodológica do contexto da descoberta, a fim de que possamos verificar se há uma real correlação entre a decisão e os reais motivos que a inspiraram. Os valores que hão de orientar a atividade jurídica – e que podem transformar o direito em um autêntico instrumento para a convivência ética – devem estar presentes em todo o processo de realização do direito, desde a formação do juízo decisório, passando pela interpretação e integração jurídicas, até chegar à argumentação, que precisam de ser integrados na mesma rede axiológica. Sem esse entrelaçamento metodológico de todas as fases do processo de realização do direito, a atividade jurídica não passará de um embuste, ou seja, de um ornamento de fachada que tenta dissimular os escombros de um decisionismo nem sempre bem orientado.

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9 comentários em “A Hipocrisia Jurídica ou de Como a Argumentação Jurídica é o Antro da Dissimulação”

  1. Caro George,

    Como sempre, excelente o seu post e o questionamento que traz.

    Eu pergunto: o desmascaramento da hipocresia não passaria, de algum modo, por levar às últimas consequências o contexto da justificação e argumentação utilizada para decidir?

    Explico: a argumentação utilizada, ainda que dissimule outros motivos, não deveria ser também utilizada para todos os outros casos semelhantes, de modo a se aplicar o velho brocardo: onde as mesmas razões, deve ser aplicado o mesmo direito. Assim, aquele que dissimula se veria descoberto ou, pelo menos, constrangido, no julgamento de casos futuros semelhantes, mas onde o dissimulador aplicaria argumentos ou razões diferentes.

    Esse tratamento desigual parece-me capaz de desmascarar a argumentação fingida. O que vc acha?

    Um forte abraço,

    Nagibe

    1. Nagibe, isso resolve apenas parte do problema, e ainda assim precariamente. Como o sistema normativo possui diversos mecanismos para se desviar da universabilidade das decisões, é relativamente fácil escapar das amarras das razões passadas sem ser tachado de incoerente.

  2. Prezado George,

    Muito oportuno e interessante o “post”.

    Você indicaria algum material (Livro, artigos, etc) dentro dessa perspectiva? Pois o assunto muito me interessa.

    É insuportável lidar com o mundo jurídico onde os sentimentos mais atávicos da creatura fomentam, guiam e constroem o que vemos. No mundo do “bom direito” o império da vaidade predomina, escondendo por trás os interesses mais escusos.

    Nesse mundo jurídico não se trava uma “guerra” de ideias, tampouco, somente de interesses ou “bons argumentos”, mas sim de vaidades, orgulho e outras vicissitudes se escondem por trás daqueles que “constroem” esse “bom direito”.

    Desde já, grato pela atenção.

    Abraços,

    Domingos Rocha

    1. Prezado Domingos, não há uma bibliografia específica. No âmbito do direito, li algo a respeito da dissimulação dos juízes nos livros do Posner. Mas quem trata disso com mais perspicácia são os filófosos: Nietzsche, Schopenhauer, Hume podem dar uma boa luz.

  3. George,
    Muito preciso este seu post! Revela uma realidade que eu próprio já havia constatado, pensado em escrever sobre, mas que o temor de não ser compreendido, ou pior, de notar que era em mim que residia a falta de compreensão, impedia-me de ir adiante na investigação.
    Volta e meia, no entanto, arrebatava-me aquele sentimento de desolação tão natural quando dos momentos em que a vida nos impõe, com certo vigor, uma verdade dissonante das convicções com as quais conduzíamos nossos atos e pensamentos, que constituíam, por assim dizer, nosso “modo de ver o mundo”.
    Assim me ocorrera ao tomar ciência, de súbito, que no ato de julgar havia muito mais por detrás daquelas linhas escritas, algo que não somente aqueles argumentos ali bem alinhados, mas que não refletiam de modo algum o processo psíquico por meio do qual o julgador tomara efetivamente a sua decisão; refiro-me àquele instante reflexivo em que nele [julgador] se reúnem todos os elementos – v.g., desejos, preconceitos, afinidades, enfim, toda espécie de idiossincrasia, para ficar apenas nos não-jurídicos – que constituem a matéria-prima do simples ato de refletir e pensar, processo do qual, no caso de uma decisão judicial, o argumento jurídico é apenas a técnica de conformação estrutural da posição que dele resulta, mas que para ela [decisão], porém, contribuiu muito pouco, quando não quase nada.
    O desespero que daí advém, como você muito bem advertiu, e isso fica bastante óbvio a quem bem compreendeu o problema, é que a atividade judiciária ficaria reduzida a um mero joguete de palavras, de frases bem articuladas e de semântica, mas sem algo real e concreto, sem uma substância que dê razão e sentido a tudo isso, pois do processo reflexivo que busca encontrar uma verdade real que se pretenda unívoca e somente a partir de então aplicá-la ao caso concreto, o texto retém de fato muito pouco.
    Talvez seja desse “mato-sem-cachorro” que resulta a brecha que permite aos não tão bem-intencionados proferir decisões tecnicamente irrepreensíveis mas cujas motivações ficarão para sempre dissimuladas na aplicação de um principio constitucional ou de uma regra legal genérica, que jamais permitirão as seus futuros leitores identificar o conteúdo da decisão com as suas reais razões e pretensões.

    Abraço.

    Andre L. Pereira

    1. É justamente esse o problema, André. O argumento vale mais do que as intenções, já que as intenções ficam ocultas na consciência. Quando se consegue desvelar essas intenções, percebemos com mais clareza o que a roupagem do “bom direito” pretende encobrir.

  4. O jeito é caminhar para o positivismo jurídico, não? Acusem seus integrantes de tudo, menos de insinceros.

    Regras do raciocínio jurídico:
    1) quando houver noma, aplique-a.
    2) no vazio normativo, duas soluções são possíveis: i) decisionismo, ii) institucionalismo (jurídico ou social)

    Todo o resto é marketing dos autores para ganhar um trocado. Dworkin vem com o tal juiz Hércules, que não é nada mais que um especialista em descobrir o real sentido das instituições. Alexy também é institucionalista, pois no juízo de precedência dos princípios – antes da aplicação dos critérios de argumentação – devemos escolher o valor mais forte, que sem dúvidas deve estar afinado com as peculiaridades do local de aplicação do direito.

    A propósito, MARCELO NEVES parece ter percebido essa ideia de marketing. Basta ver os seus livros mais recentes “transconstitucionalismo” “conflitos entre regras e princípios: entre hidra e hércules”.

    Sobre a proposta de ESCANCARAR TUDO NA SENTENÇA, tenho posição diversa, com a devida vênia ao autor do post:

    O trabalho de JURISTA É DESCOBRIR AS MÁSCARAS por detrás desses autores ou dos juízes que aplicam o direito.
    Querer que o juiz expresse sua convicção filosófica no corpo da sentença é preciosismo que não interessa à parte, e não releva ao jurista de verdade, que sempre conseguirá identificar a fonte do raciocínio em cada decisão.

    Um abraço,
    João Paulo

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