Apesar da ambivalência do comportamento humano, em que podemos encontrar ao mesmo tempo exemplos cotidianos de cooperação e de violência sem sentido, acredita-se, em geral, que a inteligência humana é capaz de discernir, com autonomia, o certo do errado. Se não fossem as falhas da razão e do caráter, é provável que os homens conseguissem viver harmonicamente sem precisar do estado para impor a ordem.
Por se desconfiar da capacidade humana de resolver por conta própria os seus conflitos de interesse, os grupos sociais, desde as mais remotas eras, criaram mecanismos para administrar a justiça, nomeando um terceiro imparcial (o juiz) para estabelecer, com o respaldo da força comunitária, quem tem e quem não tem razão. Os órgãos judiciais, nesse sentido, nada mais são do que um produto da desconfiança, ou seja, sua origem decorre da percepção de que os indivíduos não costumam ser bons juízes dos próprios conflitos e, por isso, é necessário um terceiro imparcial para impor uma solução definitiva.
Mas a mesma experiência que levou os homens a desconfiaram da capacidade do indivíduo de julgar suas próprias causas, também gerou uma desconfiança em relação aos juízes. Afinal, os juízes também são seres humanos limitados e, portanto, estão sujeitos às mesmas falhas da razão e do caráter de qualquer outro ser humano. Suas decisões nem sempre refletem um senso imparcial de justiça. A resposta cultural a essa desconfiança na capacidade de julgamento foi o estabelecimento de códigos normativos contendo, de forma vinculante para os julgadores, os parâmetros e critérios da decisão. As leis nascem, portanto, de um sentimento de desconfiança em relação aos juízes.
Mas os feitores das leis também são seres humanos limitados e, portanto, estão sujeitos às mesmas falhas da razão e do caráter de qualquer ser humano. Na história recente e antiga, há diversos exemplos que comprovam que a função legislativa pode ser usada de forma abusiva e opressora, reproduzindo a vontade do grupo que contingencialmente ocupa o poder. Em razão disso, as sociedades modernas estabeleceram, por meio de constituições escritas difíceis de seres alteradas, limites formais e materiais ao próprio legislador. Em alguns casos, a desconfiança levou ao extremo de impedir completamente a alteração do texto constitucional, por meio das chamadas cláusulas pétreas. E assim emergiu o constitucionalismo contemporâneo, fruto de uma clara desconfiança em relação àqueles que ocupam a função legislativa.
Ocorre que a função constituinte é também uma função exercida por seres humanos limitados. Os nobres membros da assembleia constituinte não estão imunes às mesmas falhas da razão e do caráter que podem afetar qualquer ser humano. Disso decorre a necessidade de estabelecer limites ao próprio poder constituinte, o que ainda não tem sido satisfatoriamente alcançado, pois a crença dominante na atualidade é a crença que o poder constituinte pode tudo. É certo que se tenta, de algum modo, mitigar esse entendimento, criando fórmulas de supremacia do direito internacional, no intuito de fazer com que o jus cogens humanitário esteja acima da soberania dos estados. Por mais que se louve essa pretensão, não há dúvida de que se trata apenas de subir mais um nível da escada problemática que parece nunca chegar ao fim. Afinal, aqueles que participam da construção do direito internacional também são seres humanos limitados e, portanto, sujeitos às mesmas falhas da razão e do caráter já mencionadas.
O mais interessante dessa história é que todo esse processo de desconfiança tem gerado cada vez mais uma valorização da autonomia moral do sujeito ético. Em outras palavras, os mecanismos de controle comportamental (juízes, legisladores, constituintes, órgãos internacionais de direitos humanos) têm produzido respostas institucionais visando, direta ou indiretamente, aumentar a capacidade de cada pessoa ser dona de si. Daí o grande paradoxo: toda essa rede de instituições criada em função da desconfiança em relação ao ser humano que deu início a esse processo parece terminar numa crença na pessoa enquanto ser capaz de tomar decisões autênticas por conta própria. Aparentemente, há um excesso de instituições para dizer exatamente a mesma coisa: os seres humanos talvez sejam capazes de resolverem seus problemas!
Texto simples, didático e quase perfeito (pois, humano!).
George,
Não tem muito a ver com o post, mas, como não encontrei um “Fale Conosco”, optei por informar aqui. :)
Segue uma decisão contra o Google, na França, que eu acho que você vai achar interessante: http://www.cnil.fr/linstitution/missions/sanctionner/Google/
Ver também: http://www.google.fr
Abraço.