As ações de reparação de dano moral são um campo fértil para pesquisar o funcionamento da mente do juiz. Como há uma ampla margem de subjetividade, as janelas se abrem para os preconceitos conscientes ou inconscientes, como já demonstraram vários estudos em psicologia social e de neurociência.
De certo modo, pode-se dizer que o arbitramento do dano moral envolve um exercício de empatia, onde o julgador tenta se colocar no lugar do outro para compreender a sua dor e, assim, aferir a intensidade do sofrimento. O valor pecuniário da reparação é arbitrado, em grande medida, em função desse sentimento: quanto maior a dor estimada, maior será o valor da indenização. Obviamente, o juiz “sente” maior a dor do outro quando é capaz de se colocar no seu lugar para ter uma noção do que ele passou. E é precisamente aqui que entra o preconceito, pois nem sempre o juiz será capaz de sentir a dor de uma pessoa muito diferente de si, que viveu uma humilhação que o juiz dificilmente irá sentir. Uma pessoa branca jamais será capaz de internalizar o sofrimento de um negro que sofre racismo. Um homem nunca terá plena noção do que é um assédio sexual em um ambiente machista. Uma pessoa rica será incapaz de perceber completamente o sofrimento de um pai pobre que não tem dinheiro para alimentar o filho porque foi demitido injustamente.
Recentemente, a assessoria do STJ divulgou uma matéria sobre a tentativa de padronização do valor dano moral por aquela Corte. Os casos citados são bem variados, indo desde morte em escola (500 salário mínimos) até fofoca social (30 mil reais), passando por protesto indevido de título de crédito (20 mil reais) e assim por diante. É um bom material para se ter uma noção geral de como está sendo arbitrado o valor do dano moral pelo Superior Tribunal de Justiça. Porém, referida matéria diz menos do que deveria. Ela esconde alguns paradoxos quase imperceptíveis que estão presentes nos julgamentos daquele tribunal em matéria de arbitramento de dano moral e que podem servir como base para uma pesquisa mais séria sobre a influência da empatia nas decisões judiciais.
A pesquisa não mostra, por exemplo, que há uma espécie de distinção subliminar – e, provavelmente, inconsciente – entre o “dano moral de rico” e o “dano moral de pobre”. Aparentemente, a capacidade de empatia dos julgadores é maior quando se trata de “dano moral de rico”, o que provoca dois fenômenos correlacionados: a presença do “dano moral do rico” é “provada” com mais facilidade, e o valor da indenização costuma ser maior. Vale conferir alguns exemplos.
O STJ reconheceu a uma pessoa que perdeu um jogo da Copa do Mundo por conta do apagão aéreo uma indenização de 30 mil reais pelo dano moral sofrido. Por outro lado, um preso que sofreu diversas violações a sua dignidade por conta do caos carcerário não teve direito a receber nenhum tostão a título de dano moral (clique aqui). Ou seja, a falha do serviço é indenizada quando se trata de serviço de rico (sistema aéreo), mas não é indenizada quando se trata de serviço de pobre (sistema penitenciário).
Outro exemplo: pais que tiveram seu filho assassinado em uma chacina praticada pela polícia têm direito a receber uma indenização de 50 mil reais cada (clique aqui), enquanto que um pai que teve seu filho morto em um hospital após um erro médico tem direito a receber 380 mil reais (clique aqui). Aqui o paradoxo é notório, pois a chacina é um dano intencional, que mereceria uma censura muito mais forte. Apesar disso, por alguma razão misteriosa, o valor da indenização é menor do que aquele arbitrado em uma situação de dano não-intencional (erro médico).
O caso mais curioso é quando comparamos o dano moral arbitrado em caso de morte em acidente aéreo (avião) e morte em acidente rodoviário (ônibus). Morrer em um acidente de avião gera um dano moral para os familiares de 500 salários mínimos (clique aqui). Morrer em um acidente de ônibus, por sua vez, gera um dano moral de 200 salários mínimos para a família (clique aqui).
Sem dúvida, há vários argumentos que poderiam ser invocados para justificar tais contradições. Afinal, o valor do dano moral não leva em conta apenas a intensidade do dano, mas também a posição econômica do ofensor e o seu grau de culpa, visando compensar o sofrimento causado e evitar que a ofensa se repita no futuro. Além disso, o método de arbitramento é bifásico, de modo que o julgador, num primeiro momento, estabelece um valor-base para somente depois minorar ou aumentar a condenação em razão das circunstâncias peculiares do caso. Assim, nem sempre danos semelhantes terão indenizações semelhantes, pois as circunstâncias do caso podem elevar ou diminuir o quantum debeatur.
Mas isso não afeta o absurdo que é levar em conta, ainda que de forma velada, a posição econômica e social do ofendido como parâmetro para aferição do dano moral. É difícil não perceber, nesses exemplos, que há um pouco de enviesamento provocado pela incapacidade de empatia dos julgadores em relação aos pobres (os psicólogos sociais provavelmente diriam tratar-se do efeito da disponibilidade da experiência sobre a formação do juízo). Parece que os juízes conseguem se colocar na posição de um passageiro que perde um voo, mas não conseguem se colocar na posição de um preso que tem seus direitos violados no presídio. Ou então na posição de um pai que perde seu filho no hospital por conta de um erro médico, mas não na posição de um pai que perde seu filho em uma chacina. Ou até mesmo na posição de alguém que pode morrer em um acidente de avião, mas não de ônibus, porque raramente andam de ônibus.
Posso estar enganado, até porque a amostragem de casos foi deliberadamente escolhida para provar minha hipótese, o que não é cientificamente correto. Mas essa hipótese não foi construída em função desses casos. Tenho percebido, a partir de observações despretensiosas de alguns casos que tive a oportunidade de presenciar, que há, por parte dos julgadores, uma indignação maior quando ocorre uma empatia com a situação da vítima. O juiz que passa por uma experiência semelhante àquela sofrida pelo autor da ação tende a compartilhar a sua dor e, por isso, tende a ser mais generoso no arbitramento do dano moral. Por sua vez, quando se trata de situação longe de sua realidade, o arbitramento tende a ser mais frio, e os valores mais baixos. Isso parece afetar a praticamente todos os juízes, inclusive a mim. Não se trata, pois, de uma observação individualizada, visando atingir ao juiz A ou B. O problema não é de um ser humano em particular, mas da mente humana de um modo geral.
bah, com todo o respeito ao texto (e muito bem escrito, por sinal), acredito que houve um pequeno equivoco qt a metodologia de comparação; em que pese simpatizar com a ideia da empatia para fins de definição de percentuais\valores de condenação. E o equivoco a que me refiro, recai sobre a ocorrência de fatos dissonantes como fator de comparação. Para que se possa fazer uma segura mensuração, necessário se faz estabelecer-se apenas um peso e uma medida, de forma a efetivamente conhecer-se se a empatia em questão difere de acordo com possíveis pré-conceitos do julgador. Ou seja, para a premissa ser válida, entendo que necessário seria avaliar a condenação por morte de crianças no mesmo hospital, de idades parecidas, e de classe econômicas diferentes, para que assim se tenha alguma noção acerca da existência de uma “empatia segregacional”.
É verdade, Lorenzo. Mas o texto não visa provar o preconceito à pessoa do pobre, mas às situações de vida do rico e do pobre. A empatia tratada no texto é quanto ao tipo de dano: o dano moral de rico (atraso em vôo, extravio de bagagem etc.) costuma ser valorizado mais do que o dano moral de pobre (violência policial, má-prestação de serviços públicos etc.).
Muito bom este texto. Há também um pouco de auto-crítica. Todos os juízes deveríam fazer isto. Afinal, se colocar na situação do outro não é tarefa fácil. Nos colocarmos em nossa própria situação já não e coisa mole!
A empatia influencia a sentença que, conforme Mauro Cappelletti, vem de sentir (Ajuris 23). Isso é acentuado pela superficialidade que cresce na atividade jurisdicional.
Sobre começar a “acordar” como como e por que isso acontece algumas pinceladas:
http://padilla-luiz.blogspot.com.br/2013/06/espertos-agindo-como-tolos.html
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Abraços
Prof. Padilla
O Direito é um sistema de valores. E ele sofre influência do regime econômico em que é aplicado pelo agente estatal. O prejuízo sofrido por um argentário, que dirige um potente veículo, atingido por outro, é diferente daquele suportado por um cidadão que conduzia um automóvel popular. Existe uma desproporção na recomposição patrimonial pelo Poder Judiciário do bem da vida, porque as vítimas possuem posições sociais e econômicas distintas. Mas, o texto se revela excelente, na medida em que, demonstra certas situações nas quais o prejuízo sofrido pelo ofendido não consegue ser captado pelo ente estatal, porque não participa daquela realidade.
Grande post, Big George. E que reflete à perfeição o “estado da arte” envolvendo o dano moral em nossos tribunais. A premissa essencial – a de que para os magistrados é muito mais difícil se sensibilizar com lesões existenciais provenientes de situações que lhes são estranhas – é dolorosamente verdadeira. Vou, contudo, além: embora o post se proponha mais a debater a espinhosa questão do arbitramento e da quantificação, o raciocínio se aplica inclusive num momento anterior, vinculado ao próprio mérito da temática: a identificação da presença do dano moral indenizável, algo que naturalmente precede qualquer cogitação em torno de valores. Dito de outra forma, já na hora de definir juridicamente se há verdadeira lesão à personalidade ou “mero aborrecimento do cotidiano”, o Judiciário é escancaradamente hostil ao “dano moral de pobre”. Consumidores de baixa renda são as maiores vítimas deste cenário perverso. Exemplo: uma pessoa humilde, após adquirir produto eletrônico que não funciona, decide, após meses de “via crucis” e “jogos de empurra” entre a loja, o fabricante e assistência técnica, mover ação de indenização por dano moral. O resultado, quase certamente, será de improcedência – porque se convencionou, nos tribunais, que via de regra o “mero inadimplemento contratual não gera dano moral”. E assim seguem as coisas: à guisa de combater uma quimérica “indústria do dano moral” (alguém conhece algum brasileiro que tenha ficado milionário por força de êxito judicial nesta matéria?), somos obrigados a conviver com uma consolidadíssima “indústria do ato ilícito” – dos bancos, planos de saúde, seguradoras, cartões de crédito, operadoras de telefonia celular, etc. – esta sim, cada vez mais rica, pujante, e sem o menor temor desse complacente Judiciário.
Abraço!
George,
1)Cada dia mais kelseniano… embora sem lhe dar o devido credito, como sempre.
Quando a teoria eh consistente, ela se afina com os demais RAMOS DA CIENCIA. Veja o caso FREUD E KELSEN. No tribunal da CIENCIA, o acordao eh assim ementado:
VAZIO NORMATIVO – DECISAO JUDICIAL – ATO DE VONTADE- IRRACIONALIDADE – EGO REPRIMIDO – IRRACIONALIDADE MASCARADA EM RACIONALIDADE.
Decisao unanime. Presentes a sessao Kelsen, Freud e PLATAO, que foi designado para redigir o acordao, tendo decidido nao gastar miolos ONDE NAO HA BUSCA PELA RAZAO, ocasiao em que se limitou a recepcionar a media dos valores fixados pelos demais julgadores na fixacao do dano.
2) Brincadeiras a parte, O FATO EH QUE:
Filhos de papai em sua maioria, JUIZES E ACESSORES sofrem ao esperar o aviao, e nao, buzu. Sensos de Justica moldado em ambiente burgues. Ficaria espantado se o resultado fosse diferente do relatado.
Talvez seja por que as indenizações levem em conta justamente a posição social do indivíduo. Para um assassino que ganhe 500 reais por mês (apenas um chute) deve ser muito alto o valor de 50000; ao passo que uma empresa como a Golden possa estar pagando um valor não tão alto comparativamente, mesmo sendo absolutamente maior. Se um pobre mata um rico num acidente de carro, por exemplo, não teria condições de pagar um indenização que bastasse ao rico- em valores absolutos- mas que talvez fosse uma grande despesa para o ofensor.
Não quero dizer que não haja essa tendência, mas não considero injusto, consideradas as realidades dos envolvidos. O que acho estranho é, sem fator de correção, haver a referência em valores absolutos para as indenizações.
Ou seja, se, num caso hipotético, o STJ fixe em 200000 reais indenização por causar a morte de outrem em acidente de trânsito, pode acontecer de num mesmo acidente um ônibus matar um cidadão de origem pobre, para cuja família o valor de 200000, embora não repare a perda (nunca repara), seja satisfatório em termos de ajuda financeira; e nesse mesmo acidente falecer um filho de um empresário próspero (talvez destruindo seu carro que vinha do outro lado), de patrimônio muito maior, para quem 200000, valor fixo, possa ser até considerado ofensa, dado o padrão de vida do próprio.
Concordo com a resposta do participante Eric Rodrigues da Silva. A indenização é recomposição do patrimônio; não serve para enriquecimento ilícito que, em nosso regime legal, no âmbito privado, é vedado pelo art. 884 do Código Civil. Mas, o que ilustre Juiz aponta é o fato de o pobre sofrer uma ofensa moral e ela não ser, devidamente, eliminada de seu patrimônio, em nível econômico.