Reforma Política e Constituinte Parcial Específica (Temática)

Se há algo que se pode concluir das manifestações populares que sacudiram o Brasil, é o fato de que a insatisfação com o sistema político é grande. O acúmulo de barbeiragens do nosso parlamento chegou no limite, e o povo não deixou barato. Collor, Maluf e quejandos voltando ao cenário político; Renan Calheiros assumindo a presidência do Senado, substituindo José Sarney; na Câmara, uma eleição presidencial igualmente controvertida; réus condenados no mensalão reassumindo os mandatos e sendo indicados para comissões importantes; Marco Feliciano nomeado para a Presidência da Comissão de Direitos Humanos; projetos polêmicos como a PEC 37 e a “cura gay” tramitando com chances de serem aprovados. Se não bastasse isso, vivemos diariamente os transtornos causados pelas obras da Copa, assistindo monumentais estádios sendo construídos ao lado de favelas que nem saneamento básico possuem. E o pior é que poucos podem participar plenamente da festa, já que os ingressos são inacessíveis para a grande parcela da população. Nas belíssimas campanhas publicitárias patrocinadas pelo governo, o Brasil é apresentado como um país de primeiro mundo, quando todos os nossos serviços públicos são precários, e os nossos índices de desenvolvimento humano nos colocam ao lado dos países mais miseráveis. Só mesmo um povo muito estúpido para assistir tudo isso calado. Felizmente, o recado foi dado em um tom muito firme. Não se zomba do povo impunemente.
Não sei como a história designará o que aconteceu (e está acontecendo): se uma revolução (ou proto-revolução), uma insurreição, um abalo estrutural ou simplesmente um carnaval democrático. De minha parte, enxergo todo esse movimento na sua melhor luz possível e tenho certeza de que o Brasil não será mais o mesmo depois daí. Espero, sinceramente, que pelo menos uma revolução de mentalidade e de comportamento tenha ocorrido. De qualquer modo, a hora é de reflexão e de discussão de propostas e, certamente, a pauta do momento é a tal da constituinte parcial para deliberar sobre a reforma política, sugerida pela Dilma, numa jogada estratégica para tentar acalmar os ânimos nesse momento de incerteza e imprevisibilidade.
É óbvio que, do ponto de vista jurídico-constitucional, a proposta é heterodoxa, já que a constituição não previu esse procedimento para alterar o texto constitucional. Pela nossa constituição, é o Congresso Nacional que tem o poder de modificar a constituição através de emendas constitucionais.
Confesso que, embora eu considere a proposta de uma constituinte parcial exclusiva juridicamente problemática (falarei sobre isso em outro texto), entendo que, do ponto de vista não-jurídico, a proposta não é de todo absurda.
Vou citar dez argumentos que poderiam ser desenvolvidos para destacar as vantagens (políticas e sociais) de uma assembleia constituinte para deliberar sobre a reforma política:
(a) em primeiro lugar, ao contrário de muitos juristas, não considero que a nossa constituição seja boa no que se refere à organização do estado (aqui incluído o sistema político). Se há algo de positivo na nossa constituição, é a proteção conferida aos direitos fundamentais e ainda assim se desconsiderarmos a força meramente simbólica de muitas normas;
(b) em segundo lugar, não creio que o jogo jogado nos termos da própria constituição atual seja capaz de levar a uma verdadeira reforma política, pois os membros do Congresso Nacional não têm o menor interesse em se auto-prejudicarem. Eles certamente não são imparciais para deliberarem sobre algo que significará a sua permanência ou saída do poder;
(c) em terceiro lugar, a convocação de parlamentares para deliberarem exclusivamente sobre isso, sem prejuízo do regular funcionamento do Congresso Nacional para outros fins, permitiria um maior aprofundamento qualitativo no nível dos debates dessa suposta assembleia constituinte, sem prejudicar a continuidade institucional do legislativo;
(d) em quarto lugar, seria possível, antes da convocação, estabelecer limitações para que os membros dessa suposta assembleia não possam se candidatar em eleições futuras (uma quarentena de quatro ou oito anos, por exemplo), permitindo que a deliberação seja mais republicana, voltada a uma política saudável de longo prazo;
(e) em quinto lugar, os prováveis membros dessa assembleia, a serem eleitos pela população, não precisariam ser políticos profissionais, podendo até mesmo ser pessoas sem vinculação partidária, ampliando-se a base de possíveis candidatos;
(f) em sexto lugar, nada impede que o procedimento de convocação preveja um quorum qualificado (semelhante ao da aprovação das emendas constitucionais), a fim de garantir um maior consenso nos temas debatidos;
(g) em sétimo lugar, nada impede que o instrumento de convocação preveja um rol especifico de artigos que poderiam ser modificados, evitando que referida assembleia se imiscua em temas estranhos ao seu objetivo;
(h) em oitavo lugar, nada impede que o instrumento convocatório preveja que o resultado da deliberação seja submetido a um processo de validação por referendo, garantido o consentimento popular não apenas da escolha dos parlamentares, mas também do mérito da discussão;
(i) nada impede que o instrumento convocatório preveja um prazo razoável para entrada em vigor das medidas aprovadas, evitando súbitas mudanças que poderiam distorcer a democracia;
(j) por fim, seria uma grande oportunidade para o povo sentir novamente o calor de um processo constituinte, que é extremamente saudável para revigorar a cidadania e o sentimento de participação no exercício do poder.
Obviamente, é preciso reconhecer os riscos de uma tal proposta, sobretudo em um ambiente de incerteza e desequilíbrio institucional, político e social. Por isso, é impossível afirmar categoricamente que se é a favor ou contra uma tal convocação. Tudo depende dos termos e dos limites da proposta global e das intenções por detrás do discurso. Além disso, no presente texto, não estou levando em conta os aspectos jurídicos da questão, pois, mesmo que se considere as vantagens políticas de uma reforma constitucional específica (temática), o mero fato de uma medida ser politicamente oportuna ou conveniente não significa que seja juridicamente viável. No próximo post, falarei sobre isso.

6 comentários em “Reforma Política e Constituinte Parcial Específica (Temática)”

  1. Lamentavelmente, enquanto não for incorporado ao ensino o processo de pensamento e de comunicação (ou outro mecanismo que o estimule), as pessoas continuarão a não perceber quando estão sendo manipuladas.
    Quase invariavelmente, o verdadeiro inimigo não é aquele que joga as pedras; não raro, esse indivíduo é pleno de boas intenções e motivado por elevados ideais. Contudo, induzido por falsas crenças, acredita que no ataque como o caminho a trilhar. Nosso inimigo está oculto, manipulando. Combatermos quem joga as pedras só cria desgaste.
    As pessoas bem intencionadas são anuladas simplesmente sendo jogadas, umas contra as outras, através de manipulações, preconceitos, bullyng, difamações, assédio! Eu fui jogado, de um lado para outro, por quase duas décadas, até que… Acordei do torpor!
    Para completar a teia de paradoxos com as quais o processo de pensamento é anulado, professores e outras atividades importantes para disseminar a cultura e a paz social como as ARTES MARCIAIS são aviltados e infamadas enquanto os politicorruptos e as pessoas superficiais (como os big brothers, jogadores de futebol, e toda sorte de fuleiras que exibem o corpo) a mídia noticia que eles se “dão bem”:
    O que é isso? uma inversão de valores que estimula a acultura da superficialidade e da indecência!
    Por isto que, no Brasil, vivemos a disfarçada escravidão da acultura da superficialidade. Da Copa, aos Jogos, tudo que se vê são pretextos para acentuar a inflação, que é a mais disfarçada forma de aumentar os impostos, que já são excessivos, e alimentar a maior corrupção do planeta.
    Os protestos demonstram que as pessoas decentes cansaram de serem reduzidas a engrenagens em um sistema criado pelos ricos para eles acumularem todas as riquezas.
    A democracia foi concebida em povoações nas quais todos os cidadãos reuniam-se para debater e decidir. No mundo moderno, é um engodo, que disfarça a ditadura da minoria que controla o processo de comunicação e as crenças coletivas. Leia mais em http://www.padilla.adv.br/processo/pensamento/superficial/

  2. Gostaria de fazer alguns comentários a respeito também.
    Acho que, ao invés de simplesmente realizar uma nova Assembléia Constituínte, seria mais facil realizar um plebiscito no seguinte sentido: Alterar Estrutura do Legislativo? SIM ou NÃO. A parti daí, se criam, por meio dos parlamentares, PEC relacionadas às respostas positivas do plebiscito, prevendo-se a necessidade INAFASTÁVEL de referendo para validação da PEC, além do trâmite normal. Acho que isso por si só já resolveria problemas de vícios ou manipulações políticas.
    Quanto a questão meramente opinativa de se reformar a Constituição, penso que não só não é absurda como entendo como uma conclusão óbvia por parte de quem é mais leigo. Pois, se somos um Estado Democrático de Direito, teoricamente deveriamos nós, o povo, conseguir requerer mudanças na Constituição por meio de plebiscitos. Digo teoricamente porque, na prática, a própria Constituição cria meios que dificultam sua alteração. E digo óbvia por que se nosso Estado segue normas que emanam do povo, em outras palavras, que as leis são na verdade a vontade do povo, me parece que, em argumentação bem simples e rasa, poderiamos questionar porque então a Constituição não poderia ser mudada em ua cláusula pétrea independente de um dispositivo ser objeto de desejo de mudança de 80, 90% da população brasileira.
    Agora, algo que até mencionei certa vez no meu blog, que humildemente venho linkar aqui “http://gfeldens.blogspot.com.br/2010/08/eleicoes-2010.html”
    Nele, acho que a única coisa que hoje penso de forma um pouco diferente é em relação ao voto ser facultativo. Mas de resto, continuo achando o que mencionei lá.

  3. Uma questão, George: o constituinte originário pode nascer com tantas limitações, à exemplo da agenda prévia e referendo sobre os temas deliberados?

    Outra: podemos estabelecer sanções ao constituinte originário caso ele descumpra as limitações (admitindo que elas são possíveis)?

    Receio, sinceramente, que o “calor” dessa constituinte se transforme em fogo e o cidadão não disponha de água/poder nenhum para apagá-lo.

    Aproveito para registrar a minha felicidade com o seu retorno às postagens. Espero que não coloque mais o site de castigo. :)

    Caio – @caiocezarfp
    http://www.oprocesso.com

  4. Segundo Rodrigo Sias, economista do Instituto de Economia da UFRJ: “Isso (falando sobre as manifestações populares) não é um súbito “despertar de cidadania”, é apenas, a exposição pública de um grau de alienação grotesco das massas. Milhares de pessoas na rua, gritando contra “tudo isso que está aí”, sem perceber que, ao provocarem uma situação artificial de convulsão social, precipitam mudanças, as quais, no fim, favorecem quem está no poder, ampliando exatamente “tudo isso que está aí”. Embora haja muitos manifestantes – talvez a grande maioria – que tenham até boas intenções, eles servem de massa de manobra para quem verdadeiramente encontra-se posicionado para impor sua agenda à sociedade. Essa é a revolução gramsciana perfeita”.

  5. George, admiro, sinceramente, sua boa-fé, ao dizer: “De minha parte, enxergo todo esse movimento na sua melhor luz possível e tenho certeza de que o Brasil não será mais o mesmo depois daí. Espero, sinceramente, que pelo menos uma revolução de mentalidade e de comportamento tenha ocorrido”. No entanto, embora louvável seu bom coração, com todo respeito, uma opinião desta, vinda de um juiz, só aumenta o tamanho do abismo gramscista que está dilacerando a magistratura brasileira. Já parou para pensar, por exemplo, que, quando se fala da ausência de representatividade dos partidos políticos, quase nada é mencionado sobre o vácuo resultante da inexistência de partidos com uma orientação conservadora, próxima ao sentimento médio da maioria da população brasileira? Definitivamente, vivemos um socialismo fabiano perfeito. Como bem explicou o filósofo Olavo de Carvalho em seu artigo “Caos e estratégia (I)”, o Brasil está passando do período de “transição” para a fase da “ruptura”. Se o governo conseguir instalar essa tão desejada constituinte, estaremos a um passo de consolidar um regime socialista como determinou o Foro de São Paulo. E para quem não sabe, Fundado em 1990 por Lula e Fidel Castro — por ideia de Lula, como ele mesmo revelou em maio de 2011 —, o “Foro de São Paulo é a mais vasta organização política que já existiu na América Latina e, sem dúvida, uma das maiores do mundo. Dele participam todos os governantes esquerdistas do continente. Mas não é uma organização de esquerda como outra qualquer. Ele reúne mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos sequestros, como as Farc e o MIR chileno, todas empenhadas numa articulação estratégica comum e na busca de vantagens mútuas. Nunca se viu, no mundo, em escala tão gigantesca, uma convivência tão íntima, tão persistente, tão organizada e tão duradoura entre a política e o crime”, como escreveu o filósofo Olavo de Carvalho em 2007. A Venezuela com Chávez começou assim. É hora de pôr as barbas de molho e rezar. Muito.

Os comentários estão encerrados.

%d blogueiros gostam disto: