Anencefalia: o resultado

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Não surpreendeu o resultado do julgamento da ADPF 54/2004. Porém, fiquei surpreso com o placar: 8 a 2. Achei que seria 7 a 3 ou 6 a 4. A saída da Min. Ellen Gracie e a morte do Min. Menezes Direito certamente influenciaram o resultado do julgamento, facilitando a folga no placar.

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Não assisti a íntegra do julgamento. Do que vi, gostei dos opostos: o começo e o fim. A sustentação oral do Luís Roberto Barroso foi brilhante como sempre. Mas também foi brilhante o voto do Min. Peluso, que julgava improcedente o pedido. Sem dúvida, o seu melhor voto na sua passagem pelo STF.

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Não gostei, como era de se esperar, da falta de uma preocupação com a unidade do fundamento da decisão. O STF precisa remodelar a sua estrutura de julgamento urgentemente. Uma boa saída é fazer como a maioria dos tribunais pelo mundo, em que o voto final é escrito depois do julgamento, consolidando a opinião comum do grupo vitorioso. Não são precisos oito votos, com vários argumentos nem sempre coerentes, dizendo que o aborto em caso de anencefalia não é crime. Basta um voto escrito a várias mãos, em que só entra na fundamentação aquilo que todos concordam.

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Achei exagerada a insistência do Min. Marco Aurélio no princípio da laicidade do estado. Creio que os argumentos pela criminalização do aborto não são meramente religiosos. Também não gostei da insistência de que o feto anencéfalo não tem vida. Isso parece ser contra-intuitivo. Vida há. Se a proteção a essa vida deve ser absoluta, isso é outra história.

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Um aspecto curioso do julgamento foi o uso de palavras de legitimação por ambos os lados. Os defensores da descriminalização usavam o eufemismo “antecipação terapêutica do parto”. Os contrários à descriminalização usavam a expressão “aborto eugênico” ou “assassinato de inocente” para se referir ao fenômeno.

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Diante da falta de um cuidado argumentativo, é difícil estabelecer até que ponto o referido julgamento pode afetar outras decisões, como aquelas envolvendo a eutanásia ou a poligamia, por exemplo. De minha parte, percebi uma preocupação elevada com a autonomia individual, dando a entender que o STF está adotando, certamente, uma linha liberal que vai ter repercussões importantes em questões morais complexas. A jurisdição constitucional, definitivamente, está se transformando em um trunfo de proteção da liberdade, estabelecendo limites à interferência estatal e criando uma zona de privacidade que o estado não pode invadir. É importante insistir nisso, pois isso derruba o argumento da usurpação do poder legislativo. Na verdade, a jurisdição constitucional, nessas hipóteses, está devolvendo ao indivíduo o seu poder de decisão. Em situações envolvendo conflitos morais razoáveis, não cabe ao legislador decidir. A decisão deve caber, em linha de princípio, ao indivíduo.

20 comentários em “Anencefalia: o resultado”

  1. Onze pessoas comuns opinam a respeito do caso…

    A decisão é a mesma dos ministros do STF…

    A decisão foi baseada no bom senso. O Fantástico poderia denunciar o salário pago para os Ministros do STF como mais um caso de DESPERDÍCIO DE DINHEIRO PÚBLICO…

    Pelo menos quando o caso envolve CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS, JURISTAS NÃO SÃO OS ESPECIALISTAS PARA RESOLVER O PROBLEMA. O recurso utilizado para resolver o problema é a argumentação, matéria objeto do estudo da filosofia…

    Portanto, QUEM DEVE RESOLVER O CASO SÃO FILÓSOFOS, acostumados com déficits na argumentação, CONTRADIÇÃO, PREMISSAS QUE NÃO PERMITEM CONCLUSÕES OU que não são dedutíveis daquelas, enfim, toda arte da retórica…

    Há dois anos vi a ainda MINISTRA ELEN GRACIE na Livraria Cultura. Não era livros jurídicos que procurava. Nem livros de filosofia escrito por juristas. Ela procurava livros de lógica, argumentação… Buscava conhecer mais sobre o ferramental a utilizar no dia-a-dia… Buscava conhecer sobre assunto que O FILÓSOFO ESTÁ CARECA DE SABER, POIS É MATÉRIA DE SUA CADEIRA….

    Contratar juristas para aplicar princípios é o mesmo que contratar dentista para construir prédio… pode até ser que consigam fazer, mas é provável que o ESPECIALISTA SEJA MELHOR e produza melhores resultados….

  2. Conversando com um amigo médico ele ficou espantado com o fundamento da decisão, segundo ele agora a literatura médica também teria de ser mudada. Acabou-se por criar um conceito médico de aborto – onde o anencéfalo possui vida, embora inviável – e um conceito jurídico, onde nem vida há. Estranho estas elaborações jurídicas, só me pergunto, como pode algo que não tem vida morrer?

  3. Paulo Juliano, fala-se em “vida humana”, não apenas em “vida”. Alguns consideram que o cérebro humano é essencial para se caraterizar um ser humano, caso não haja, não é pessoa humana, é uma coisa, ou outro ser vivo qualquer (eu não saberia dizer qual).

    O problema (jurídico) de se considerar que há “vida humana” nos anencéfalos é o problema de serem eles abarcados e protegidos pelo maioral “direito à vida”. Como este é o principal direito que existe, nenhum sofrimento da mulher (que não acarretasse risco de vida para ela, caso inclusive já abarcado por uma das hipóteses de aborto permitido) pesaria menos na balança que o direito à vida dos seres humanos que estariam para nascer (ainda que fossem viver pouco, são seres humanos, são protegidos pelo “direito à vida”).

    Por exemplo, a igreja católica considera que a partir da concepção (fecundação do óvulo pelo espermatozóide) inicia-se a vida, independentemente de qualquer coisa, exato motivo pelo qual ela é intransigente com o aborto, em qualquer hipótese. Se há vida, nenhum direito da mulher vai valer mais (exceto que também sua vida esteja em jogo) que uma vida humana que já se formou (na concepção).

    Por isso eu discordo do Marmelstein que o Marco Aurélio foi insistente demais na questão da falta de vida humana dos anencéfalos. Não que eu concorde, mas acho o ponto essencial para se defender aborto de anencéfalos. O Ministro quis evitar RELATIVIZAR A VIDA, dizer que uma vida humana pode valer menos que outra. Isso, sim, aumentaria a chance de discursos pro-eugenia. Então ele simplificou dizendo que não há vida humana. Considero um bom argumento sim.

    1. Schumman,

      o erro está em achar que, havendo vida humana, o aborto deve ser obrigatoriamente proibido, por meio de uma tipificação legal. Essa premissa é falsa. E é falsa não apenas na quase totalidade dos países com alto IDH, mas também no Brasil, que permite o aborto mesmo quando há vida humana viável, pelo menos em algumas hipóteses.
      Pior do que relativizar a vida é mudar o conceito de vida, pois aí sim abririmos uma brecha para relativizações dissimuladas.
      É o que está acontecendo com a tortura. Abranda-se o conceito de tortura, dizendo, por exemplo, que privar o interrogado de comida e de sono não constitui tortura, e, no discurso, diz-se que não está relativizando a proibição de tortura.
      O debate sobre conflitos morais aqui no Brasil ainda é muito novo. Não sabemos argumentar. Somos dissimulados. Tentamos criar palavras de legitimação para esconder a realidade.
      Temos que ser mais sinceros e expressar com clareza o que pensamos.
      Já disse que gostei – embora discordando no mérito – do voto do Min. Cesar Peluso. Mas ele pisou na bola quando tentou justificar o aborto em caso de estupro. Ele teria sido muito mais convicente, consistente e coerente se assumisse a sua postura de intransigência em relação à proteção da vida em qualquer hipótese, inclusive em caso de estupro. Como não fez isso, todo seu discurso inicial de que a proteção da vida sempre há de prevalecer caiu por água abaixo. A grande vantagem em ser sincero é que fica mais fácil perceber as incoerências.

      George

      1. O fato é que argumentar sobre o aborto é tarefa pra Hércules, e não para ministros do STF. TODOS os onze juristas lá são estritamente juristas, possuem a profundidade filosófica de uma poça d’água. Se tu vê um Dworkin, um Finnis, um Singer, um McMahon se descabelando para fundamentar de maneira “mais ou menos” um posicionamento sobre o aborto, imagina os caras que só decoram leis. O fundamento que os ministros encontraram poderia ser dado por qualquer um do povo, de tão grosseiros que foram. Contudo, a direção penso que tenha sido correta, menos mal.

        PS: Essa do “não há vida humana” foi simplesmente bizarra. O feto anencéfalo deve ter uma vida canina. Pergunto para o brilhante defensor dessa tese, se a criança anencéfala vem a nascer, e os pais não se importam com a condição de seu filho(a) e se dispõe a cuidar dele(a) enquanto sobreviver… se por algum infortúnio um maluco assassinar essa criança, não se configurará homicídio correto? Pois efetivamente não há vida humana segundo os sábios de toga do STF. Essa criança não poderá certamente sequer ser registrada. É sem dúvidas um raciocínio impecável este, temos que parabenizar os ministros.

    2. schumman, a meu ver não se trata considerar ou não considerar vida, trata-se de um constatação biológica não uma tese jurídica. Não se poder constituir um conclusão prévia e depois sair buscando argumentos para justificá-la, aí está o erro. A conclusão deve decorrer do processo dialético e não antecede-lo. Desta forma, mais digno é aceitar que existem hipóteses de não prevalência absoluta de um direito a vida, como já o é nas hipóteses específicas de aborto – como no caso do aborto dito humanitário -, do que promover malabarismos jurídicos para validar um tese que se torna insubsistente.

  4. Discordo dos dois. Não acho que seja dissimulação. O direito pode muito bem definir o que é ser humano, já que o “direito à vida” protege este, e não peixes ou besouros. A biologia realmente considera que um feto sem cérebro é um ser-humano vivo? Quem disse? Não sei. Mas, de qualquer forma, existem várias acepções para “ser-humano”, não apenas a biológica. Para mim (e para o Marco Aurélio), o cérebro é a parte mais significativa e determinante do ser-humano, o cérebro comando TUDO que se caracteriza por “humano” (e não animal), de modo que não achamos absurdo e nem “malabarismo” se tratar o feto anencéfalo como não-vida-humana.

    Ser humano pinta, aprende, canta, dança ama, calcula, sonha, testa, reflete, comunica-se, etc., OU tem potencial para isso (no caso dos fetos), em maior ou menor grau. Anencéfalo nada disso faz, em NENHUM GRAU, e nem nunca fará. E aí, é “vida humana” mesmo?

    Continuo pensando que é uma saída válida sim, e nada dissimuladora.

    George, então argumente como que um sofrimento, sem risco de vida, pode valer mais que uma vida legítima (se o feto sem cérebro o é)? Tirar uma vida legítima apenas para diminuir o sofrimento da mãe, é isso mesmo? Argumentos de autoridade de que países com alto IDH assim o fazem não servem para mim. Hitler já foi autoridade.

    1. Schumman,
      há uma contradição no seu pensamento. Você é contra o aborto, mas coloca o cérebro como nota essencial para caracterizar um ser humano. Então seria válido o aborto nas primeiras semanas de gravidez, quando o cérebro ainda não se desenvolveu?

      George

      1. Se o cérebro e a capacidade dele advinda é essencial para caracterização do ser humano, seria justificável uma classificação de seres humanos conforme sua capacidade cognitiva? Pessoas com déficits advindos de patologias neurológicas seriam menos seres humanos ou uma categoria inferior destes?

  5. George, eu quis dizer que é logicamente válido o argumento, que é um bom argumento e é coerente, não disse se sou contra ou a favor ao aborto de anencéfalos ainda. Quando eu falei “não que eu concorde”, numa parte lá do primeiro texto, não quis dizer que eu discordava (apenas que eu não necessariamente concordasse). Sim, para quem considera que o cérebro é essencial para a caracterização da vida humana, seria válido, sim, abortar enquanto não houvesse cérebro ainda.

    E, Paulo Juliano, ora, por essa classificação, é humano porque tem cérebro, agora, que possui menos habilidades humanas, não há dúvidas. Apenas um hipócrita diria que não possui. Você realmente considera um Mozart, um Gauss, um Machado de Assis, tão capaz quanto alguém com síndrome de Down? Considera que eles possuem as mesmas habilidades humanas? Se você quer chamar isso de “menos humano”, é uma outra forma (mais agressiva) de se dizer a mesma coisa. Mas isso não significa que não sejam todos humanos, afinal, todos têm cérebro (pela classificação em questão).

    Agora eu pergunto: E você dizer que o feto anencéfalo é ser humano vivo, mas pode ser abortado para diminuir algum eventual sofrimento da mãe (ainda que não haja risco a sua vida), mas a mesma regra não vale para outro feto com cérebro normal, não deixa implícita também uma gradação: quanto menos cérebro, menos vale??? Por que o sem-cérebro pode ser abortado e o com-cérebro não, se ambos são seres humanos vivos? O que tem cérebro vale mais? Então alguém mais inteligente/capaz vale mais do que alguém menos inteligente, ou alguém com alguma patologia neurológica? Você caiu no mesmo problema que tentou me colocar.

    Parece-me que meu argumento (e do Marco Aurélio) que parecia ridículo, “malabarismos”, segundo vocês, não é tão ridículo assim, não é?

    1. schumman, o que permite o aborto do anencéfalo não é o fato de ter cérebro ou não, isto não foi colocado, creio ter deixado explicito que o fundamento do aborto reside na inviabilidade da vida, mesmo porque existem hipóteses de aborto de fetos viáveis, ainda que sob outros fundamentos, o que afasta a tese de gradação de importância. No mais, o critério de habilidades que utilizas leva em conta ponto específicos da personalidade do indivíduo. A tendência à genialidade para uma forma de inteligência não significa sua abrangência completa, desta forma, não considero que Mozart, Gauss ou Machado possuam mais habilidades que o homem médio, apenas habilidades diferentes, o que muda é a importância despendida pelo núcleo social à habilidade apresentada e as condições que permitam o seu desenvolvimento. A incrível habilidade motora de um jogador de futebol o torna mais humano ou um humano mais qualificado? Temo esta gradação por habilidades para caracterizar o ser-humano pois dá azo a discursos eugenicos, o que, por claro, não é o teu caso, mas poderia ser utilizado como argumento de legitimação para o fim.

  6. Incomoda-me profundamente que pessoas tão ilustradas façam comentários nos quais se confunde “cérebro” com inteligência. Em razão deste ponto tão elementar, orignou-se uma divagação que muito remotamente LEMBRA o ponto em que se começou o debate.

    Não se trata de habilidades (se me garantissem que o bebê cresceria sem todas as habilidades, eu seria contra esse aborto), certamente não se trata de inteligência (tiremos Gauss e os portadores de síndrome de down da equação, por favor). Trata-se de um bebê – não fosse algumas horas ou poucos dias de sobrevivência – seria um natimorto.

  7. Prof.,
    estou espantado com o “bate-boca” público entre os Min. Peluso e J. Barbosa divulgado essa semana pela imprensa! Que absurdo!

    Bem que o sr. poderia redigir um posto sobre o tema.
    Me parece que essas agressões públicas enfraquecem a instituição.

    Abraços.

  8. Fiquei temeroso quanto ao excesso de fixação na “laicidade” do Estado manejado no julgamento. Falta a meu ver no mínimo uma perspectiva pragmática e política de que tal princípio deve ser empregado na condução de decisões que afetem a ordem pública, as dimensões externas da cidadania e o princípio soberano (como doações a igrejas, privilégios para cultos, alianças espúrias como as que vicejam em ano eleitoral etc). NO caso em questão, afeto a esfera da intimidade, da dimensão moral a tal “laicidade ” poderia e deveria ser descartada como argumento. Fica assim MEU APOIO AO PAULO JULIANO pela falta de descortino dos juristas na seleção de elementos argumetnativos para fundar suas prévias decisões. Fica a sensação de um vácuo em que o problema suscitado ao invés de pacificado ou acomodado numa linha média das percepções sociais, recebeu mais carga problemática. COmo pessoa de fé, fico agora sumamente desconfiado da percepção que o STF tem de religião, de crenças, de relações entre crenças e cotidiano. Realmente precisamos do filósofo-juiz na falta de juizes-juiz.

  9. Acho que a decisão favorável é um avanço porque, independente de haver ou não vida no periodo intra-uterino, é fato que a gestação, como um todo, afeta todo o sistema biológico da mulher, que, no fundo, saberá que esta se sujeitando a isso para um ser vivo (digo aqui independente da discussao de “humano ou nao”)que não irá viver. Creio que a ideia das pessoas que ingressam no judiciário vem a ser justamente a atipicidade de uma conduta cuja finalidade não é ceifar a vida de um feto, mas sim, evitar um processo de gestação que sabe-se não servirá para a continuidade da vida humana (ja que o ser humano em questao nao irá viver mesmo).
    Agora, discursos e teorias que me causam arrepios são como os que eu andei vendo nas redes sociais, em que pessoas consideram o aborto “um direito da mulher”. Errado. A opção por ter ou não um filho não pode valer mais do que o direito a vida do feto. É claro, com as hoje 3 exceçoes, não há que se falar em liberaçao do aborto, porque ai sim estar-se-ia relativizando a vida em nome de um mero direito de escolha (ser mae ou nao) que, convenhamos, pode ser exercido sem a prática do aborto tranquilamente.

  10. Agora, se a mãe optar por seguir com a gravidez até o final, quem posteriormente matar/torturar/violentar/lesionar essa criança sem cérebro não poderá ser punido por algum.

    Afinal, segundo o STF, não se trata de um ser humano. É só um pedaço de carne. Matar ou estuprar um pedaço de carne é conduta atípica. Brilhante decisão!

  11. Já optaram pela ceifa da vida de um anencéfalo, mas e os problemas de certidão de nascimento, atestado de óbito, planos de saúde e gastos médicos e ainda o sepultamento. Como ficará?

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