“Há homens de caráter mudo,
que julgam que ser sério é ser sisudo”.
Quintino Cunha, jurista e poeta cearense
Quem já teve a oportunidade de assistir ou participar de um júri vai concordar que tudo aquilo parece um grande teatro. Os advogados exploram ao máximo o jogo de cena para seduzir os jurados. Usam e abusam da emoção, distorcem os argumentos do adversário, lançam insultos gratuitamente, invocam autoridades e teorias inexistentes que inventam de improviso, aproveitam-se da ignorância alheia para ganhar a causa. A ética do argumento não parece ser uma preocupação prioritária, até porque o principal compromisso assumido por alguns advogados é salvar a pele de seus constituintes a qualquer custo. Às favas, com os escrúpulos. E o pior é que até mesmo pessoas inteligentes costumam acreditar nos truques argumentativos dos advogados mais habilidosos.
De certo modo, esse tipo de atitude não é censurado no meio jurídico. Talvez seja até estimulado, por mais estranho que isso possa parecer. Parece que, na luta pela sobrevivência que vigora no ambiente jurídico, os advogados “bons mocinhos” não costumam chegar em primeiro, o que é uma pena. Os advogados mais admirados são aqueles que brilham no júri, que conseguem inocentar facínoras com o uso de técnicas sofísticas, que são capazes de engolir as provas dos autos se isso puder ajudar a alcançar seus objetivos. Isso faz com que o discurso forense se torne uma ilha de retórica cercada de falácias por todos os lados.
O significado de falácia é precisamente este: falácias são construções retóricas vazias de significado que se passam por argumentos sólidos para impressionar o público. Uma falácia parece com um bom argumento, mas não é, pelo menos se o propósito do debate for a descoberta da verdade. Não se deixar manipular pelo jogo de palavras dela decorrente é obrigação de qualquer pessoa racional. Conhecer a teoria da argumentação e saber desmascarar as falácias é uma das competências mais relevantes que um bom jurista tem a obrigação de adquirir. E nada melhor do que as anedotas de Quintino Cunha para ilustrar algumas falácias comuns no meio jurídico para que não caiamos nas armadilhas argumentativas de um advogado esperto.
Quintino Cunha foi um famoso advogado cearense, que dá nome a um bairro aqui em Fortaleza. Suas atuações no júri eram folclóricas. Era capaz de tirar coelhos da cartola sempre que fosse necessário, como se fosse uma espécie de “Denny Crane” do Ceará. Vencia quase sempre e quase sempre abusava das falácias para convencer o júri e os juízes.
Certa vez, defendeu dois casos no mesmo dia perante o mesmo juiz. Em ambos os casos, o princípio jurídico que estava em discussão era o mesmo. Em um deles, Quintino falava em nome do autor e, no outro, em nome do réu. Pela manhã, fez uma eloqüente defesa do autor e ganhou a causa. Durante a tarde, defendeu o réu com a mesma desenvoltura, desdizendo tudo o que havia defendido pela manhã. O juiz, sorrindo, perguntou-lhe porque havia mudado de atitude. Quintino, com muita perspicácia, saiu-se com esta máxima: “excelência, todo homem sábio muda de opinião quando percebe que se equivocou. Nunca é tardia a estrada que leva à verdade”.
Em outra ocasião, Quintino foi contratado para defender um réu em Natal. O promotor, na sua sustentação oral, citou três grandes juristas franceses que reforçavam a tese defendida pela acusação. Quintino, aproveitando a deixa, também invocou a falácia do apelo à autoridade e recheou a sua sustentação oral da seguinte forma: “caros jurados, como dizia o grande Filomeno Gomes, ‘a lei não deve ser flexível, e sim rígida, coesa, soberana e forte”. O júri, impressionado com a grande erudição demonstrada pelo advogado, inocentou o acusado. Após a decisão do júri, o jovem promotor perguntou a Quintino: “nobre colega e bom mestre, por favor, me dê o nome do livro daquele grande jurista Filomeno Gomes que você citou, pois fiquei admirado com a força das palavras dele”. Ao que Quintino respondeu: “Coisa nenhuma! Filomeno Gomes é um vendedor de cigarros lá do Ceará”.
Há algum tempo, havia a figura do juiz “ad hoc”, que nada mais era do que um advogado indicado pelo Tribunal de Justiça para julgar determinados casos. Quintino foi nomeado para ser juiz “ad hoc” em Lages. Numa sessão de julgamento, dois advogados discutiam e apelaram para a falácia do ataque pessoal. O primeiro iniciou os insultos: “O senhor é um mentiroso”. O outro, imediatamente, retrucou: “E o senhor é um caluniador”. Nesse momento, o juiz Quintino interveio: “Agora que os senhores já se identificaram, podemos continuar os debates…”.
Para finalizar, uma envolvendo a falácia do apelo à emoção.
Em um julgamento complicado, Quintino levou todos os membros do júri à comoção ao dizer que o acusado era arrimo de família e cuidava sozinho de sua mãezinha cega de mais de oitenta anos. Eis um trecho de sua sustentação oral:
“Não olhem para o crime deste infeliz! Orem pela sua pobre mãe, velhinha, doente, alquebrada pelos anos e pela tristeza, implorando a misericórdia dos homens, genuflexa diante da justiça, se desfazendo em lágrimas, pedindo liberdade para o seu filho querido!”
O réu foi inocentado por unanimidade. Na saída do tribunal, um dos que assistiram ao julgamento, sensibilizado, aproximou-se do advogado e perguntou-lhe: “Doutor Quintino, quero fazer uma visita à mãe daquele infeliz, pois quero ajudá-la. Onde ela mora?”
Quintino, sem embromação, respondeu: “Ora, eu sei lá se esse filho de uma égua algum dia teve mãe!”
:-)
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Fonte de consulta: Anedotas de Quintino
Para aqueles que querem se proteger dos argumentos falaciosos e conhecer melhor a teoria da argumentação, recomendo os seguintes livros sobre o assunto:
“Lógica Informal”, de Douglas Walton (ed. Martins Fontes) – mais completo
“Pensamento Crítico: o poder da lógica e da argumentação”, de Walter Carnielli e Richard L. Epstein (ed. Rideel) – mais divertido
“A Arte de Argumentar“, de Anthony Weston (ed. Gradiva, Portugal) – mais sintético
“A Arte de ter Razão”, de Arthur Schopenhauer (ed. Martins Fontes) – mais clássico (deve ser lido como uma crítica e não um elogio à argumentação falaciosa)
A área da Revista Crítica na Rede destinada à argumentação e lógica também merece uma looonga visita: http://criticanarede.com/logica.html
Denny Crane do Ceará….hahahaha…Fantástico George!!!! Quintino era mesmo O Cara! Lembrei de uma estória contada por um antigo professor de administrativo de nossa salamanca que um preso confessava pra Quintino ter feito mal a uma donzela local e que apesar de ter dois anos para cumprir pena, aceitava casar para “desfazer” o mal, e ele dizia:
– quer um conselho de amigo? cumpra o resto da pena….
Abração!!
Parece que o velho Denny é fichinha do lado de Quitino. Seria interessante ver os dois duelando numa Corte.
Muito bom o post, George.
Sobre as falácias, aproveito para sugerir, também, o livro “Introdução à lógica”, de Irving Copi. É muito bom. Ele classifica as diversas falácias e em seguida faz alguns exercícios para o leitor treinar como identificá-las. Além de bom, e profundo, é engraçado.
Dr. George,
Sobre as falácias, há um texto divertidíssimo, chamado “O amor é uma falácia”, disponível em: .
Parabéns pelo site.
Sugiro um post sobre o “caminho das pedras” de como chegar e se virar academicamente em Coimbra, destinados aos que, assim como eu, têm interesse em lá pesquisar.
Daniel,
o texto “o amor é uma falácia” é espetacular. Obrigado pela dica. Vou até distribuir para os meus alunos de Filosofia do Direito.
A propósito, o endereço é:
http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/amorfalacia.htm
Interessante o post, as histórias (ou estórias?) do Quintino fizeram-me lembrar de um boato contado em aula de Direito Constitucional, atribuído a Saulo Ramos, quando Consultor Geral da República no Governo Sarney, em 1989, ao analisar a possibilidade de reedição de Medidas Provisórias cujo prazo tivesse se expirado ou quando o Congresso Nacional as tivesse rejeitado, seja quanto aos pressuposto ou ao mérito, citou um tão ilustre quanto desconhecido doutrinador italiano com nome um tanto “gastronômico” para convencer os congressitas de que “a melhor doutrina” entende perfeitamente possível a reedição das MP´s.
Pois bem, ultrapassada a questão, alguns meses depois, em Congresso de Direito Constuticional realizado na Itália, professores brasileiros que participavam do evento procuraram em inúmeras livrarias italianas o tal doutrinador referenciado no parecer, sem, no entento, encontrar uma publicação sequer em nome do ilustre. E questionando acerca do entendimento sobre a possibilidade de reedição dos Decreto-legge no Direito italiano receberam a resposta de que a tese era uma aporia por si só, já que esvaziaria o argumento da existência de situação urgente e relevante.
Fora as palavras do professor que contou a história não encontrei outros registros do ocorrido, mas se tal fato é verdade, imagine-se o quão ousada foi a estratégia e o sucesso que obteve.
Os falsos argumentos estão por toda parte, cuidar para não cair neles deve ser o papel de todos, e mais ainda dos juristas.