Superjudicialização versus Superjuridicização

Existem dois fenômenos que se interconectam, mas não se confundem: a judicialização e a juridicização. O primeiro diz respeito à influência do poder judiciário na criação do direito; o segundo nada mais é do que a interferência do próprio direito na vida das pessoas. Talvez seja possível medir o grau de legitimidade da judicialização a partir de sua contribuição para a desjuridicização, ou seja, tanto mais será legítima a judicialização quanto mais essa atividade contribuir para a desjuridicização da sociedade. Vou explicar melhor meu ponto de vista, que ainda precisa ser aprofundado, pois ainda há muitos furos nessa hipótese a serem tapados.

De início, vou tentar esclarecer o significado da palavra juridicização.

O direito tem a pretensão de controlar a vida das pessoas em seus mínimos detalhes. Isso não vem de hoje. O apogeu desse fenômeno começou muito antes do desenvolvimento do estado de direito. Já na época do Império Romano se observa que a vida social era fortemente marcada pelo componente jurídico. As pessoas pautavam suas condutas conforme fosse a resposta jurídica conseqüente. Para todo conflito social, seja em matéria de propriedade, de família, de religião, de comércio e de qualquer outro assunto, havia uma possível solução jurídica a ser fornecida pelas autoridades competentes. A liberdade dos antigos não via limites à capacidade de interferência do direito na vida privada. Se o direito era a arte de dar a cada um o que lhe é devido, então onde houvesse uma disputa lá estaria um jurisconsulto para dizer o direito no caso concreto. Isso é a juridicização da sociedade, que, na era moderna, foi ligada ao dogma da plenitude do ordenamento jurídico e aos movimentos de codificação do direito.

A juridicização da sociedade é potencialmente conflitante com a idéia de autonomia da vontade. O direito (legislado) é heterônomo, ou seja, é ditado e imposto independentemente da vontade de seus destinatários. Tendo em vista que, desde Kant, passando por Stuart Mill e vários outros pensadores liberais e anarquistas, acredita-se que existe uma forte vinculação entre dignidade humana e respeito à autonomia da vontade, é fácil perceber que a regulamentação heterônoma das condutas humanas é potencialmente conflitante com a idéia de dignidade. Só com muita ingenuidade é possível acreditar que a lei representa a vontade geral e que a liberdade autêntica seria submeter-se apenas a uma legislação “auto-imposta” pelos parlamentares. A liberdade dos modernos pressupõe uma zona privada de livre influência do estado. Em razão disso, nos tempos contemporâneos, a excessiva regulamentação estatal das relações entre particulares vem sendo atacada como sendo uma forma de “colonização da sociedade pelo direito”. A palavra “colonização”, com toda a carga pejorativa que carrega consigo, indica que o direito estaria invadindo a vida e sufocando os indivíduos, obrigando as pessoas a seguirem um padrão valorativo previamente ditado pelas autoridades constituídas. Considerando que a lei (direito legislado) cada vez mais vem perdendo a sua autoridade e, sobretudo, a sua legitimidade, o fenômeno da juridicização é visto com desconfiança, já que é uma ameaça à emancipação plena dos indivíduos. Ninguém mais quer ser escravo da lei.

Já manifestei em diversos momentos a minha simpatia pelas idéias em favor da liberdade de escolha e, portanto, da autonomia da vontade. Por isso, devo concordar que a excessiva juridicização da sociedade é, em princípio, um mal a ser combatido.

E onde entra a judicialização?

A judicialização, por outro lado, é um fenômeno mais recente. Remonta ao judicial review norte-americano, ganhou o continente europeu com a aceitação da chamada jurisdição constitucional à la Kelsen e se tornou uma realidade quase universal sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Em síntese, a judicialização significa submeter a um órgão imparcial, politicamente descompromissado (do ponto de vista eleitoral), a solução em última instância das questões constitucionais mais relevantes. Com a judicialização, os tribunais tornam-se peças centrais no sistema político na medida em que são responsáveis pela tomada de decisões em temas sensíveis que afetam o dia a dia de milhares de seres humanos.

Naturalmente, a judicialização pode ocorrer tanto num ambiente de superjuridicização quanto num ambiente em que o direito não exerce um papel preponderante na vida das pessoas. Do mesmo modo, a juridicização não necessariamente exige a aceitação da jurisdição constitucional. Estados totalitários são superjuridicizados e não possuem obrigatoriamente um sistema de controle judicial dos atos públicos em face da Constituição. O Código Civil de Napoleão é um exemplo de superjuridicização da sociedade em que não se aceitava qualquer papel ativo dos juízes na formulação do direito. A interconexão entre juridicização e judicialização não é, portanto, necessária, mas, sem dúvida, um fenômeno pode afetar o outro.

O problema é que a judicialização é tanto mais perigosa quanto maior for a juridicização da sociedade. Em ambientes assim, corre-se o risco de o judiciário se tornar, indevidamente, uma espécie de superego da sociedade (conforme denunciou Ingborg Maus), já que qualquer aspecto da vida social poderá ser submetido ao crivo de juízes não-eleitos pelo povo, cujas decisões são mais difíceis de serem controladas por mecanismos democráticos de discussão. A rigor, a judicialização também impõe soluções heterônomas para os conflitos sociais. Talvez seja por isso que a judicialização tem sido tão questionada na atualidade. Defende-se, com alguma razão, que a Constituição deveria ser mantida longe dos juízes, pois o povo, e não o judiciário, deveria ser o intérprete autêntico das vagas normas constitucionais.

É aqui que entendo que o combate à judicialização falha, pois pressupõe que as escolhas judiciais sempre contribuem para o aumento da juridicização, o que não é necessariamente uma verdade. A judicialização pode contribuir para aumentar ou diminuir o grau de juridicização da sociedade. A judicialização que aumenta o grau de juridicização é perigosa, pois pode significar um aumento significativo do controle estatal sobre os cidadãos; por outro lado, a judicialização que diminui o grau de juridicização é bem-vinda, pois enfraquece o poder do estado. Exemplos.

Na Alemanha, quando a Corte Constitucional decidiu que seria inconstitucional descriminalizar o aborto (caso Aborto I), a judicialização ali exercida contribuiu para aumentar a interferência do Estado na vida das pessoas. O legislador decidiu prestigiar a liberdade de escolha das mulheres e livrou as gestantes de qualquer punição criminal caso optassem pela interrupção da gravidez. A Corte Constitucional, por sua vez, preferiu prestigiar o direito à vida dos fetos, declarando que não-criminalizar o aborto seria uma proteção insuficiente ao direito à vida desses seres humanos em potencial. A decisão foi fortemente criticada até que, no caso Aborto II, a Corte Constitucional teve que voltar atrás e abrandou as conseqüências da decisão proferida no caso Aborto I, decidindo que a criminalização não seria mais obrigatória para proteger a vida dos fetos, pois existiriam outras medidas capazes de reduzir o número de abortos.

A decisão do Aborto I certamente não foi tão legítima quanto a decisão do Aborto II, tanto que foi criticada e teve que ser alterada. A decisão do Aborto I contribuiu para aumentar a interferência do direito nas escolhas pessoais das mulheres, desestimulando a interrupção da gravidez com ameaça da sanção criminal. O exemplo demonstra, pelo menos de certo modo, que tanto mais será legítima a judicialização quanto mais essa atividade contribuir para a desjuridicização da sociedade.

O fundamento básico dessa tese é que a judicialização é um instrumento em favor da dignidade humana, e a dignidade humana é protegida quando a autonomia da vontade dos indivíduos é respeitada. Portanto, uma das funções da jurisdição constitucional deve ser a de reduzir a interferência do estado na vida das pessoas. Nesse aspecto, a judicialização, ao invés de representar uma invasão indevida do judiciário no terreno individual, pode ser uma forma de impedir a tão temida colonização da sociedade pelo direito.

Essa tese vai encontrar muitos argumentos favoráveis em matéria de liberdade e privacidade. Podem-se citar, nesse sentido, diversas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, como o caso Griswold vs. Connecticut, Roe vs. Wade, Lawrence vs. Texas, entre outros inúmeros casos que prestigiaram a autonomia privada.

Porém, ela certamente não é compatível, pelo menos se analisada rigidamente, em questões em que a igualdade está em jogo. A liberdade funciona bem sem a interferência do estado; a igualdade, muitas vezes, precisa da interferência do estado para ser efetivada ao máximo. Nas relações desiguais, é indispensável a interferência do direito para impedir a opressão do mais forte sobre o mais fraco. A judicialização em matéria de direitos sociais, onde se busca a redução das desigualdades, vai implicar um necessário aumento da interferência do estado na sociedade. Essa interferência é justificada em nome da própria autonomia da vontade, já que um dos objetivos dos direitos econômicos, sociais e cultuais é fornecer as condições mínimas para o exercício dos direitos de liberdade. Basta ver que a educação é um pressuposto necessário para o exercício pleno da liberdade de expressão, assim como a saúde é um pressuposto básico para o exercício de quase todos os direitos de liberdade. Portanto, a implementação dos direitos sociais visa permitir a emancipação dos indivíduos, sendo indispensável para que os grupos em desvantagem sócio-econômico-cultural possam exercer a autonomia da vontade de forma autêntica. Portanto, a tese original continua válida mesmo quando se admite um aumento da juridicização da sociedade em matéria de direitos sociais. Basta que se entenda que tanto mais será legítima a judicialização quanto mais essa atividade contribuir para a promoção da autonomia da vontade e, em conseqüência, para a desjuridicização da sociedade.

O que você acham?

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5 comentários em “Superjudicialização versus Superjuridicização”

  1. Caro George,

    A excecao dos direitos sociais nao excepciona a sua tese, e sim a falseia. Demonstra que a judicializacao eh legitima quando os JUIZES NAO JURISDICIZAM MAIS DO QUE QUIS O LEGISLADOR OU A CONSTITUICAO. Isso nao eh mais do que DEIXAR AO DIREITO POSITITVO, E NAO A FILOSOFIA, O PAPEL DE ESTABELECER OS LIMITES AS LIBERDADES DOS CIDADAOS.

    Por outro lado, mesmo sob a condicao de um vacuo legislativo, EH FALSA A TESE DE QUE O JUIZ TEM A OBRIGACAO ETICA DE ESTABELECER A NORMA QUE TRAGA MAIS LIBERDADE AO CIDADAO. Nao ha uma alternativa para os juizes, no caso de ausencia de regra para a solucao do conflito, de IMPOREM OU NAO UMA OBRIGACAO A QUEM QUER QUE SEJA. Ora, se fosse assim, pra que serviria a norma que PERMITE AOS CIDADAOS FAZER TUDO QUE A LEI NAO DETERMINA? Veja que essa norma retira qualquer possibilidade de arbitrio dos juizes, e, por consequencia, a NECESSIDADE DE ESTABELECER-LHES A OBRIGACAO ETICA DE RESPEITAR A LIBERDADE DO CIDADAO.

    Desse modo, nao vejo utilidade na formula por voce criada. A excecao dos direitos sociais refuta-a por completo. No primeiro paragrafo parecia que a tese era promissora: a judicializacao soh se legitima caso garanta a liberdade do cidadao. No ultimo paragrafo, vem a excecao: “[…] desde que o DIREITO POSITIVO, SEMPRE COM PREVALENCIA DA CONSTITUICAO, EH CLARO, NAO ESTABELECA O CONTRARIO. Ora, a excecao reduz O PROBLEMA FILOSOFICO SUSCITADO – muito atual, eh bom que se diga, DO QUESTIONAMENTO DO DIREITO E DO ESTADO ( e nao nesses campos como fazia a filosofia classica do direito) – a uma CONSTATACAO DE DIREITO POSITIVO: investigar quais normas restringem a liberdade do cidadao. Ora, feita a pesquisa das normas restritivas a liberdade do cidadao, NAO HA ESPACO PARA DIVAGACOES FILOSOFICAS. Deve o juiz aplicar a norma que ESTABELECE A LIBERDADE DO CIDADAO NA AUSENCIA DO DIREITO.

    Quanto ao problema do aborto, indago: QUAL LIBERDADE DEVE PREVALECER, a da gestante ou a do feto? Eh que a criminalizacao da conduta da gestante implica maior liberdade para o feto. Nesse caso, a tipificacao da conduta seria justificada PELA IRREVERSIBILIDADE DO ATO DE ABORTO E PELA IMPOSSIBILIDADE DE SOLUCAO DO PROBLEMA PELO DIREITO CIVIL. Eh que, como soa evidente, a previsao de uma indenizacao a ser paga pelas mulheres que abortassem teria efeito quase nulo para desmotivar suas condutas. Portanto, caso se considere a liberdade do FETO, TERIAMOS UMA JUDICIALIZACAO QUE JURISDICIZA e, ao mesmo tempo, promove a liberdade. O que implica mais uma excecao de direito posititivo a sua tese. De outro lado, caso considerasssemos APENAS a LIBERDADE DA MAE, AIH sim TERIAMOS CONFIRMADA A SUA TESE, qual seja, a DE QUE MENOS JURISDICIZACAO IMPLICA MAIOR LIBERDADE.

    Entendo que no CASO DO ABORTO, principalmente de fetos anencefalos, a solucao correta EH A QUE ESTAH BASEADA NUMA ETICA CONSTITUCIONALMENTE TOLERADA. Veja que, com isso, nao nego a tese kelseniana de que no VAZIO HA ARBITRIO. Nao. No caso dos fetos anencefalos, vejo que CADA PRINCIPIO FAVORECE UM DOS ENVOLVIDOS. Se considero a vida, salvo o feto, e, por tabela, a SUA LIBERDADE DE VIVER POR MISEROS SEGUNDOS. Por outro lado, se considero a dignidade da pessoa humana, protejo a liberdade da mae. Se ha duas normas nao auto-excludentes, ambas aplicaveis, FAVORECENDO cada uma delas um DOS ENVOLVIDOS, HA, EM TESE, LIBERDADE DO JUIZ. Nao ha, portanto, como INFIRMAR A TESE DE QUE AGIRA COM ARBITRIO, OU PELO MENOS SEM RESTRICOES JURIDICAS, NO CASO. No entanto, a analise do resultado FINAL DA DECISAO DOS JUIZ, E NAO SUA FUNDAMENTACAO COMO DEFENDE ALEXY, PERMITIRA VER SE ADOTOU A MELHOR SOLUCAO PARA O CASO. No caso de matar o bebe, fica evidente que o juiz privilegiou a etica utilitaria, QUE VE NA INUTILIDADE DE UMA VIDA IMPRESTAVEL E QUE DAH TRABALHO A RAZAO SUFICIENTE PARA EXTERMINA-LA. Por outro lado, uma solucao que privilegie o feto eh a QUE SE PREOCUPA TAMBEM COM O MEIO, E NAO APENAS COM OS FINS. Nao seria essa a solucao autorizada pelo texto constitucional? Nao eh essa que consagra o tal principio da dignidade da pessoa humana, de forca constitucional?

    abraco

  2. Caro George,

    antes de tudo, excelente post! Coloca realmente talvez uma das questoes centrais acerca da teoria juridica critica contemporanea.

    Concordo em inumeros pontos colocado por voce, porem, desejo discutir a questao central colocada por voce, a de que a judicializacao poderia parar a juridicizacao (é esse o termo em portugues ou voce o criou? Pois eu, saindo do termo em alemao, “Verrechtlichung” sempre o imaginei como “juridificacao”).

    A sua tese, ao meu entender, é complicada por dois motivos:

    (1) A judicializacao ja pressuporia, de certa forma, a juridicizacao. O terreno do judiciario é em si a representacao maxima do procedimento legal. Um juiz é acionado basicamente quando ha o envolvimento de uma lei. Sem infrigimento legal, ou somente uma questao legal comum, nao ha a necessidade de um juiz. Assim, se dissermos que em um determinado assunto, a resolucao se da atraves da decisao judicial, basicamente a gente afirma que existe um direito nos controlando naquele ponto. Entao, afirmar que a judicializacao poderia acabar com a juridicizacao seria quase que paradoxal, pois o primeiro depende do segundo. Nao seria mais facil simplemente reconhecer certas liberdades baseadas em direitos negativos (de defesa) e em permissoes? Basicamente é a solucao dada pelos libertarios, como, p.ex., o Nozick.

    (2) O tipo de solucao que voce apresenta é, ao meu ver, muito semelhante com a que o Dworkin coloca. Basicamente ha um “telos” legal que dentro de uma decisao judicial deve ser respeitado. Particularmente gosto dessa ideia. Nao acredito que exista um direito descomprometido com um telos legal. Dworkin em inumeras das suas criticas demonstra esse ponto, ao meu ver, muito bem. No entanto, aqui surge novamente o problema. Dworkin defende a liberdade basicamente como sendo uma especie de derivado do “ser tratado como um igual”. Ser tratado como igual pressupoe respeito pelas decisoes do outro acerca da propria vida, e tais decisoes pressupoem defesas legais. Isso faz, no entanto, que a tese de Dworkin seja comprometida com a igualdade acima da liberdade. Voce busca defender a ideia da liberdade em primeiro plano, isso cria, por um lado, a aporia que coloquei no (1), e por outro lado, cria uma colisao entre interpretacoes legais de principios como liberdade e igualdade, como voce mesmo menciona acima. Me parece que a unica forma de sair desse problema é assumir, que a liberdade é um principio absoluto, superando qualquer outro tipo de consideracao. Porem, isso me parece em certos momentos levar a consideracoes absurdas. Acredito que voce mesmo pense assim, pois deixou isso no texto. A unica solucao que me parece factivel é adotar um principio que seja superior a propria liberdade, e dele derivar as consideracoes possiveis acerca do direito. Solucao semelhante a do Dworkin ou Utilitaristas, ainda que estes tivessem pontos de vista opostos.

    Um outro ponto que eu gostaria de levantar é a que nao sei ate que ponto a juridicizacao é algo necessariamente ruim. Liberdades basicas pressupoem a defesa estatal para poderem ser efetivas. Da mesma forma, certos direitos basicos que sequer podem ser compreendidos como liberdades, tal como direito a propriedade, direito a nao ser agredido, e talvez o fundamental, o direito a propria vida. Buscar tentar reduzir esses direitos a liberdades é criar uma certa confusao conceitual. Por isso Locke, Hume, Kant, etc., tratam as liberdades basicas como sendo algo diferente desses direitos. Direitos sociais tambem nao podem ser compreendidos como liberdades, nesse sentido mais estrito ao menos. Direitos do bem-estar da crianca sao basicamente direitos que pouco tem a ver com liberdade. Assim, me parece que a juridicizacao nao é necessariamente algo ruim. É ruim quando ela realmente se torna sem limites, e possui uma moralidade politica complicada.

    Principalmente na parte final do seu texto, voce me parece cada vez mais identificar o “telos” legal nao a liberdade, porem a autonomia. Sua definicao de autonomia ficou um pouco abrangente, porem, me parece ser exatamente a que foi defendido por toda tradicao liberal, desde Kant, ate Rawls, Dworkin e Sen. Nesse sentido, se voce identifica a ideia de liberdade como qualquer representacao da necessidade da autonomia individual, entao eu concordo com voce e o ponto (2) nao se aplica. E ja o ponto (1), fica um problema dentro da tradicao liberal, pois se encontram liberais libertarios de um lado, basicamente acabando com direitos sociais em prol de uma liberdade quase que absoluta, tendo somente poucos deveres negativos, e por outro lado os liberais igualitaristas, buscando defender a questao a igualdade e do respeito a autonomia, como voce parece colocar na parte final.

    Abracos.

  3. Daniel,

    creio que você captou corretamente o “espírito” do post. Como deve ter percebido, meu drama é precisamente em torno do seguinte problema: como permitir que o direito, que é heterônomo, se torne compatível com a dignidade humana, que pressupõe a autonomia (no sentido kantiano)?

    Ainda estou muito longe de encontrar uma solução satisfatória para o problema. Tenho me sentido inclinado a concordar com as idéias do “paternalismo libertário”, que vem sendo desenvolvido por Cass Sunstein, entre outros. A idéia é permitir que os indivíduos tenham a faculdade de decidirem suas próprias vidas, cabendo ao Estado (ou ao direito) apenas criar um ambiente que proporcione ao indivíduo à tomada da melhor decisão (arquitetura de escolhas).

    A minha tese, sugerida no post, aplica-se bem às situações em que as escolhas individuais não afetarão terceiros. Na grande maioria das situações, a ação do indivíduo afetará (negativa ou positivamente) os interesses de outros indivíduos e, nesse ponto, é essencial uma solução imparcial, proporcionada pelo direito. Logo, a juridicização (ou juridificação) é algo necessário (e talvez positivo) nessas situações.

    O lado negativo da juridicização ocorre quando as escolhas pessoais não afetam outros indivíduos e mesmo assim o direito quer se intrometer na vida das pessoas. É aqui que a tese se aplica com mais clareza, ainda que tenha falhas essenciais.

    Não coloco a liberdade acima da igualdade, nem a igualdade acima da liberdade. Para mim, são valores interdependentes que estão no mesmo patamar. Numa sociedade como a brasileira, a igualdade tem que ser mais valorizada, pois a desigualdade é um dos nossos principais problemas.

    George

  4. Caro George,

    acredito que sua questao acerca da heteronomia do direito é de certa forma ja resolvida pelos autores liberais classicos. Me parece, p.ex., que Kant nao afirma que a dignidade humana deriva da autonomia, ou seja, é necessario que sejamos autonomos para possuirmos dignidade. Na verdade a dignidade humana seria derivada, primeiro, do reconhecimento da capacidade da autonomia de cada ser racional, e segundo, do imperativo moral de tratar seres capazes de serem autonomos como fins em si mesmo. Assim, ele trata a ideia da heteronomia do direito e da autonomia nao como sendo contrarios, porem complementarios. Nao a toa ele busca fundamentar o direito atraves da necessidade moral de entrar na sociedade civil. No entanto, a regulacao do direito é do arbitrio, e nao da vontade. Nesse sentido, o direito corresponde ao livre-arbitrio, enquanto a moral a vontade livre. Em Kant sao simplesmente dois tipos diferentes de liberdades, que sao necessarias. Kant nao se questiona acerca da autonomia no direito pelo fato que ele nao relaciona a esfera da liberdade da vontade, que é causada pela autonomia da razao, a esfera do direito, que busca legislar externamente, buscando criar o melhor estado de coisas sociais.

    J.S. Mill tem uma reflexao semelhante ao separar a ideia de liberdade da vontade da civil. A questao da autonomia se da dentro da liberdade da vontade, porem essa questao é uma questao metafisica, enquanto a liberdade civil se da na esfera dos direitos. Os direitos buscam criar uma individualidade que acaba contribuindo ao bem-estar individual. Assim, em Mill os direitos buscam mais contribuir para a individualidade dos individuos. O que poderia ser no maximo dito, é que a autonomia dos individuos sobre sua propria vida contribui para sua propria individualidade. Mas os direitos nao sao derivados da autonomia.

    Talvez, o que pode ser dito, é que a ideia da juridicizacao é contraria a esse tipo de individualidade, que Mill propoe. Nao a toa ele defende a ideia das liberdades basicas como um contraposto a teoria democratica. No entanto, poderiamos ir alem com outros autores, como Dworkin e Sen, e afirmar que a ideia de autonomia pressupoe nao somente a individualidade como tambem um tipo de bem-estar de outro nivel, algo semelhante ao “capabilities approach” do Sen. Assim, antes de serem ideias conflitantes, a questao da liberdade x igualdade seria simplesmente algo como uma colisao de direito. Liberdades podem colidir, da mesma forma, direitos de diferentes esferas tambem. Mas essas colisoes nao demonstrariam que eles se contrapoem, mas sim que em determinados momentos reivindicacoes sao levantadas de forma contraria, e cada uma delas se apoia em diferentes direitos. Assim, caberia aos juizes decidir naquele momento qual reivindicacao que se aproxima com o estado de coisas sociais preconizado pelos nossos principios adotados.

    Abracos

  5. Caro George,

    Primeiramente, gostaria de parabenizá-lo pelo belo trabalho e pela bela iniciativa que você, como magistrado e pessoa, teve e tem feito com este blog. Sou estudante de direito, estou no quarto periódo da faculdade e tenho certeza que, assim como eu, muitos outros estudantes e até mesmo profissionais formados e em pleno exercício de sua carreira fazem uso corriqueiro deste blog, sendo ele uma das principais fontes de reflexão, debates e até mesmo de distração acerca do mundo jurídico. Não conheço nenhum outro magistrado que tenho tido inciativa paercida e parabenizo-o por isso.

    Quanto ao post em questão, este é um tema da moda, super falado e discutido nos últimos tempos. Gosto muito de filosofia do direito e procuro sempre me inteirar dos assuntos mais polêmicos e interessantes que estão em pauta no direito hodierno, mas como aidna estou apenas no quarto período, talvez não tenha bagagem suficiente para construir uma opinião perfeitamente bem fundada.

    Ainda assim, concordo bastante com a sua teoria e com as idéias expostas. Acredito que o futuro do direito está mesmo em garantir uma maior proteção aos direitos de liberdade e igualdade, para que o fenômeno da juridiczação se dê na medida certa a garantir o ambiente propício para cada um ser dono de sua própria conduta. Acredito que este será o a´pice do Estado de Direito, na sentido dado por Imanuel Kant ao Direito: “O direito é um conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode entrar em acordo com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade.”

    A esse respeito, capturando o espírito do post, aproveito para acrescentar algo que me veio a mente esses dias e que tem a ver com a sua teoria.

    Sobre os direitos de liberdade e igualdade, podemos fazer remissão ao momento de eclosão desses direitos no mundo moderno: a Revolução Francesa. Recordemos que a tríade principiológica deste mvimento era “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Assim, podemos concluir que, do mesmo modo como a teoria da separação dos poderes foi conbida por Montesquieu, esses tr~es direitos são direitos fundamentais que andam de mãos dadas, são indissociáveis, interconexos e ocupam o mesmo patamar hierárquico.

    Conclui-se então que é difícil valorar qual direito deve ter mais peso que o outro dentro das políticas estatais. Isso deverá ser analisado caso a caso, considerando-se todos os aspectos e circunstâncias em que se encontra determinada naçãoo ou estado em particular.

    Da mesma forma, por serem esses três princípios hierarquicamente iguais e indissociáveis, naturalmente, o investimento maior de um determinado estado em um desses direitos fará com que os outros dois venham a cabo por via indireta, estando todos sempre alcançando o mesmo patamar de segurança e proteção jurídica conferida pelo estado, mesmo que um pouco mais tardiamente. No fim, não importará por qual via se atingiu o “thelos” final, no sentido aristotélico da palavra, ou seja, o bem comun e a felicidade geral.

    Acredito que a sua teoria tem um pouco a ver com essa relação fundamental entre esses três direitos-princípios fundamentais, especialmente a liberdade e a igualdade.

    Bem, era apenas isso que tinha a acrescentar.

    Abraços.

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