Fila nos JEFs (fonte: o Globo)
O texto do Júlio me estimulou a apresentar a minha própria opinião sobre a atual situação da “judicialização das questões sociais” no Brasil, em especial sobre essa superprocura dos juizados especiais federais para discutir demandas que não precisariam ser judicializadas se a administração fizesse seu trabalho corretamente.
Sempre defendi abertamente uma postura ativa do Judiciário, principalmente quando se está em jogo a efetivação de direitos fundamentais, sobretudo quando titularizados por pessoas e grupos com baixa capacidade de mobilização política. Entendo que um dos papéis mais relevantes do Poder Judiciário é proteger a Constituição, permitindo a efetivação de suas normas, ainda que, para isso, seja necessário, eventualmente, suprir vácuos legislativos ou mesmo corrigir, excepcionalmente, a resposta legislativa que não faça justiça ao caso concreto. Ativismo judicial, para mim, é isto: o reconhecimento de que o Poder Judiciário não precisa pedir licença a ninguém para efetivar a Constituição, nem mesmo ao legislador. Na verdade, basta substituir a expressão “ativismo judiciário” por “aplicação judicial de direitos” que o efeito é o mesmo. Aliás, talvez já seja o caso de começar mesmo a substituir a expressão ativismo judicial que gera preconceitos e confusões meramente terminológicas insuperáveis. Enfim…
Mas a postura judicial que defendo não é equivalente a um ativismo tresloucado e inconsequente. Sou mais um ativismo judicial “prudente para uma vida decente”, onde o papel do juiz é subsidiário, ou seja, só se justifica naquelas situações em que os demais poderes não estão cumprindo a sua função constitucional a contento. Não acho que o Judiciário deva ser o espaço democrático central, mas apenas mais um espaço de luta e de pressão popular, nem mais importante, nem menos importante – cabe à sociedade definir como usar o Judiciário para os seus propósitos. Por isso, a meu ver, não cabe ao próprio Judiciário julgar se está cumprindo seu papel: é a sociedade quem dispõe dessa faculdade de julgar os juízes.
Já que o ativismo judicial não é uma situação normal dentro de um modelo de democracia representativa, uma vez que uma postura atuante dos juízes tensiona o princípio da separação dos poderes, colocando em risco o próprio sentido de Estado Democrático de Direito, defendo que os juízes sejam muito cautelosos quando estiverem exercendo tal poder excepcional. As decisões devem ser superfundamentadas, sem joguinho de palavras ocas que só servem para camuflar o arbítrio. O processo deve ser superdialogal, dando amplas possibilidades de participação dos envolvidos na formação da decisão, forçando o juiz a agir de forma compreensiva, aberta, plural e sempre partindo do pressuposto de que os seus valores pessoais não são os únicos nem necessariamente os melhores. E, sobretudo, acho que o juiz deve saber que a sua atividade não é um fim em si mesmo. O Judiciário existe como instrumento: de limitação do poder, de controle social, de efetivação de direitos, de ampliação e desobstrução do debate democrático, de pacificação social, de solução de conflitos, de garantia da estabilidade institucional – mas sempre um instrumento, que precisa constantemente se legitimar perante a sociedade.
Como instrumento que é, o Judiciário não pode querer – e isso seria danoso para todos, inclusive para o próprio Judiciário – “colonizar” os demais poderes, agindo como se fosse administrador ou legislador. O Judiciário, nesse aspecto, é um instrumento de pressão e, como tal, pode, eventualmente, interferir na atividade do Executivo e do Legislativo sempre que isso seja necessário para efetivar direitos. A Constituição autoriza que os juízes exerçam esse papel claramente quando prevê o princípio da infastabilidade da tutela judicial e confere a guarda da Constituição aos órgãos judiciais. Mas, em momento algum, a Constituição diz que os juízes devem assumir o controle das políticas públicas, nem que devam exercer a função legiferante em caráter principal. Como afirmei, tal função deve ser vista como algo excepcional e deve ser utilizada tão somente para pressionar os demais poderes.
Não há dúvida de que, no Brasil, há uma intensa judicialização da política e da vida social, especialmente a partir do ano 2000, quando o Supremo Tribunal Federal chamou para si algumas responsabilidades e atribuições que já estavam no texto de 88, mas que ainda não vinham sendo postas em prática.
Na minha opinião, não acho que haja um excesso de judicialização. O que há é uma incapacidade estatal de reagir a essa judicialização, talvez até porque se trata de algo novo na nossa realidade. A judicialização, como instrumento de pressão, tem uma missão importante a cumprir. A história mundial fornece inúmeros exemplos positivos da atuação judicial pró-direitos fundamentais que foram capazes de revolucionar a vida social em países tão diferentes como os Estados Unidos e a África do Sul, por exemplo. Mas essa judicialização deveria funcionar só até o ponto de “cutucar” os demais poderes ou só até o ponto de dar um suporte de juridicidade às lutas sociais, tal como um combustível de catalisação da vontade constitucional. Mais do que isso, talvez fosse pernicioso para a democracia. Ninguém deseja que o Judiciário se torne o super-ego da sociedade.
Um exemplo positivo desse fenômeno pode ser dado com o caso do fornecimento de remédios para portadores do HIV. A questão começou judicial, com inúmeras ações forçando o poder público a agir de alguma forma para solucionar o problema, até que o Governo Federal assumiu para si a responsabilidade e criou uma das políticas públicas de saúde mais elogiadas do mundo para essa situação. Desde então, a atuação judicial, quando se trata de portadores de HIV postulando medicamentos ou tratamentos médicos, tornou-se limitada a situações excepcionais. É exatamente assim que as coisas deveriam funcionar.
Infelizmente, o exemplo acima é raro. O mais comum é que a judicialização gere mais judicialização. Um segurado entra na Justiça para conseguir um determinado benefício previdenciário e obtém uma resposta favorável da Justiça. No dia seguinte, ao invés de a Administração tentar se ajustar ao entendimento judicial, todos os demais segurados vão à Justiça para receber o mesmo benefício. Criam-se mais cargos de juízes, contratam-se mais servidores, instalam-se Juizados como se fossem Mcdonalds e cada vez mais aumenta a demanda. A demanda sempre cresce mais porque toda vez que um entendimento favorável ao segurado é consolidado, o mesmo fenônomeno se repete: chega à Justiça uma enxurrada de demandas individuais que poderiam perfeitamente ser evitadas se a Administração se antecipasse e ajustasse a sua ação à jurisprudência.
O mesmo ocorre com o fornecimento de medicamentos. Um paciente obtém uma resposta favorável da Justiça. Outro paciente, com o mesmo problema, comparece ao hospital público e o seu pedido é negado administrativamente. Solução: procurar o Judiciário. A coisa se torna tão mecânica e natural que, algumas vezes, o paciente vai direto do médico ao advogado.
Isso está certo?
Da parte do Judiciário, talvez esteja – pelo menos no momento inicial desse processo em que são estabelecidas as diretrizes interpretativas para a legislação aplicável. Trata-se de uma questão de legitimação política difícil de ser avaliada, mas que tem sido uma tendência mundial, sobretudo em países democráticos, o que demonstra que não é algo tão absurdo assim. O problema é o segundo momento: o da ampliação (generalização) desse entendimento para todos os demais casos semelhantes. O Estado brasileiro, em suas diversas esferas, não está sabendo como reagir a essa judicialização tão intensa. Falta aos órgãos estatais um “agente de ligação” que permita uma rápida adaptação das políticas públicas às decisões judiciais. (Deve-se ressaltar também a culpa do Judiciário em não uniformizar sua jurisprudência de forma rápida e estável).
Às vezes, uma mera portaria resolveria o problema, consolidando administrativamente o entendimento judicial, tal como ocorreu com o caso dos benefícios previdenciários decorrentes de uniões de pessoas do mesmo sexo. Houve uma ação civil pública favorável ao direito dos homossexuais, cujo cumprimento se deu com a edição de uma portaria que resolveu o problema a nível nacional. Com isso, alguns milhares de processos foram evitados.
É lógico que muitas decisões judiciais podem e devem estar erradas. Mas essa é outra questão a ser resolvida pelos inúmeros mecanismos de controle da decisão judicial, que ainda são mais numerosos quando se trata de decisão proferida contra a fazenda pública.
Por fim, aqui vai minha conclusão, adaptando um trecho que escrevi em 2003:
O melhor seria que os Poderes Públicos levassem a sério a concretização dos direitos fundamentais e, com mais “vontade de Constituição”, conseguissem oferecer um serviço público de qualidade a toda a população independentemente de qualquer manifestação do Poder Judiciário. Como atualmente essa situação ideal está longe de ser realidade, é imprescindível a atuação jurisdicional para que pelo menos aqueles que batem à porta da Justiça possam usufruir, na mínima dimensão desejável, o direito conferido pela Constituição.
Feliz será o dia em que não for mais necessária a intervenção judicial na concretização dos direitos fundamentais. Enquanto esse dia não chegar, terá algum sentido em falar de efetivação judicial da Constituição.