A Ética da Eternidade – Parte III (A Ética Laica e a Oração de São Francisco de Assis)

Nest post, tentarei fazer uma comparação entre a ética laica contemporânea e a ética franciscana. Minha idéia é tentar demonstrar que é possível justificar racionalmente uma concepção ética humanista, reforçando o argumento de que nem toda concepção ética de matriz religiosa é necessariamente irracional. Para os fins ora propostos, vou me limitar ao filósofo Peter Singer, que talvez seja o principal representante desse novo movimento que tem surgido em torno da ética prática sem conotação religiosa. (Vale ressaltar que limitarei minha análise ao livro “Como Havemos de Viver?”, pois certamente, em outros livros, como o “Ética Prática”, Peter Singer adotou alguns posicionamentos que talvez não sejam compatíveis com a ética franciscana, especialmente no que se refere à sacralidade da vida humana).

A Oração de São Francisco de Assis é, certamente, um dos mais belos cânticos religiosos que existem, tanto por sua melodia quanto pela sua letra. Curiosamente, não foi composta por São Francisco de Assis. Foi escrita no século XX e São Francisco de Assis viveu entre os séculos XII e XIII. De acordo com a Wikipédia: “Em 1916, [a Oração de São Francisco] foi impressa em Roma numa folha, em que num verso estava a oração e no outro verso da folha foi impressa uma estampa de São Francisco. Por esta associação e pelo fato de que o texto reflete muito bem o franciscanismo, esta oração começou a ser divulgada como se fosse de autoria do próprio santo”. A autoria da letra é, até hoje, um mistério.

A ética contemporânea, inclusive a laica, lembra, em muitos aspectos, os ensinamentos franciscanos contidos na referida oração. A idéia de que os animais merecem ser tratados com dignidade, por exemplo, que tem sido um dos pontos fundamentais defendidos pelo filósofo ateu Peter Singer, também era uma das principais características da filosofia franciscana. A caridade e o sacrifício dos interesses pessoais em favor de outras pessoas, inclusive estranhos, também estão presentes tanto na filosofia moral de pensadores laicos quanto na filosofia de vida pregada por São Francisco de Assis. Singer também propõe uma vida de poucos luxos, onde a preocupação com o sofrimento alheio ocupa uma função primordial na sua proposta ética. Ele critica enfaticamente a ética capitalista da ganância individual  e do interesse próprio onde o essencial é fazer dinheiro, ficar rico e se dar bem às custas dos outros. Para ele, o princípio do “que lucro eu com isso?” que vigora na sociedade contemporânea debilita o nosso sentido de fazer parte de uma comunidade e destrói qualquer laço mais duradouro entre os indivíduos, pois cada um se vê como uma mera fonte de lucro. “A suposição é que o melhor é olharmos para nós próprios, pois o outro aproveitar-se-á de nós sempre que possível – e a suposição torna-se uma profecia que se cumpre a si mesma porque de nada vale ser cooperante com quem não sacrificará o seu ganho pessoal de curto prazo a favor de benefícios mútuos de longo prazo” (p. 77). Porém, uma sociedade ligada apenas por laços efêmeros do interesse próprio, não pode ser uma sociedade boa, até porque um consumismo desenfreado dos limitados bens naturais acarretará, mais cedo ou mais tarde, a própria destruição do planeta.

De um modo geral, era isso o que defendia São Francisco de Assis. A diferença fundamental é que os filósofos laicos tentam justificar racionalmente a sua ética, enquanto que, em São Francisco, a mera possibilidade de uma vida eterna já seria suficiente para seguir os ensinamentos de Cristo. São Francisco diria: “onde houver dúvida, que eu leve a fé”. A ética laica, por outro lado, defende: “onde houver dúvida, que eu leve o pensamento crítico-racional”. “Agir eticamente é agir de um modo que se possa recomendar e justificar”, adverte Singer, para lembrar a constante necessidade de fundamentar racionalmente os comportamentos éticos (p. 306).

Ao justificar a sua noção de ética, Peter Singer segue um caminho que muitos acharão perigoso: aceita a teoria da evolução de Darwin para defender que a cooperação é uma estratégia de ação bem sucedida na ótica evolucionista. Para Singer, “os seres humanos são muitas vezes egoístas, mas a nossa biologia não nos obriga a ser assim. Pelo contrário, leva-nos a cuidar dos nossos filhos, dos nossos familiares mais afastados e, em certas circunstâncias, também de grupos maiores” (p. 197).

Aqueles que acompanham o blog vão se recordar que, após ler o livro “Gene Egoísta”, de Richard Dawkins, defendi que as explicações desenvolvidas pela biologia evolucionista eram bastante plausíveis, mas não concordei com o termo “gene egoísta”, pois, paradoxalmente, esse gene egoísta geraria seres cooperativos. Havia um capítulo do “Gene Egoísta” que defendia claramente que a melhor estratégia de evolução a longo prazo não seria o egoísmo, mas a cooperação (o capitulo em questão intitula-se: “Os bons rapazes terminam em primeiro”). Essas idéias também foram bem desenvolvidas por Matt Riddley, no seu “A Origem da Virtude”, que forneceu explicações biológicas bastante convincentes acerca do surgimento da solidariedade entre os seres humanos, demonstrando que, à luz da teoria dos jogos, agir cooperativamente é, em regra, a melhor opção. Aliás, Dawkins disse que o livro de Riddley poderia ser considerado como a segunda parte do seu “Gene Egoísta”.

É justamente essa incoerência na teoria de Richard Dawkins (ou seja, um apego desnecessário e equivocado à idéia de “egoísmo”) que Peter Singer aproveita para desenvolver uma ética que, alicerçada, pelo menos em parte, em bases darwinistas, se aproxime, quanto aos propósitos axiológicos, dos valores de solidariedade tão caros à humanidade.

Para justificar seu ponto de vista, Singer invoca o famoso Dilema do Prisioneiro, um jogo bem interessante para estudar a teoria da escolha racional, que é a teoria que procura fornecer as melhores soluções racionais em situações complexas que envolvem incertezas. O jogo consiste numa situação hipotética que pode ser descrita do seguinte modo:

Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para os condenar, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6 meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. (Fonte: Wikipédia)

Se cada jogador se guiar pensando unicamente nos seus próprios interesses, certamente irá trair o seu companheiro, pois essa é a melhor estratégia de decisão individual, seja qual for a atitude tomada pelo outro. Em outras palavras: se você trair, você tem chance de sair livre, caso o seu companheiro não lhe entregue, ou pegar apenas cinco anos de prisão, caso o seu companheiro também o traia. Por outro lado, se você “cair na besteira” de querer ser bonzinho e não trair, pode pegar até dez anos de prisão, caso o seu companheiro o traia. Desse modo, se você pensar no seu próprio umbigo, é melhor trair. O pior é que, se o seu companheiro pensar do mesmo modo, certamente a melhor solução que ele adotará é também o trair, pelas mesmas razões já apresentadas.

Não há dúvida que, numa perspectiva egoísta de curto prazo, trair é a melhor solução. Porém, tudo muda de figura se o jogo se repetir ao longo do tempo. Se forem jogadas várias partidas, a traição certamente não é uma boa opção, pois o companheiro vai perceber que você não é de confiança e também vai trair. No final, os dois se dão mal se adotarem uma postura egoísta. Eis o grande paradoxo do Dilema do Prisioneiro: quando cada pessoa age racionalmente perseguindo seus próprios interesses individuais pode acabar pior do que se estivesse agindo pensando de forma não-egoística. Logo, se a ação racional deve mirar a satisfação dos próprios interesses, então é melhor agir pensando também no comportamento esperado do outro. No fundo, a cooperação e honestidade são as melhores políticas – eis a lição deixada pela teoria dos jogos.

Robert Axelrod desenvolveu uma competição para tentar definir qual seria a melhor estratégia de ação no Dilema do Prisioneiro caso o jogo se repetisse por várias jogadas. A estratégia vencedora de todas as competições foi extremamente simples e pode ser resumida na frase “pague na mesma moeda” (em inglês: Tic for Tat). Dito de outro modo: “a. Na primeira jogada, cooperar; b. em cada jogada subseqüente, agir segundo aquilo que o outro jogador fez na jogada anterior” – eis a estratégia vencedora de todas as competições do Dilema do Prisioneiro. Assim, se você cooperar e o outro jogador também cooperar, você pode seguir agindo assim indefinidamente sem mudar sua linha de ação. Se, em algum momento do jogo, o outro jogador mudar de estratégia, faça o mesmo, até que ele resolva voltar a cooperar.

(Uma observação: é lógico que o Dilema do Prisioneiro é uma simplificação extremamente reducionista dos dilemas que ocorrem na vida real. Na vida real, há mais “jogadores”, mais opções de ação e muito mais fatores em jogo do que a mera preocupação com o prêmio ou com o castigo. Há laços afetivos, econômicos, éticos que também são levados em conta. Além disso, o Dilema do Prisioneiro foi “montado”, de fato, para favorecer estratégias cooperativas de longo prazo, demonstrando que as estratégias simpáticas saem-se melhor do que as estratégias egoístas. Certamente, se o “prêmio” para a traição fosse maior, talvez fosse aconselhável trair em algum momento dentro da lógica do interesse próprio. Por isso, o Dilema do Prisioneiro deve ser visto tão somente como um exercício simulado de compreensão das atitudes humanas e não como  uma verdadeira reprodução do que ocorre na vida real).

Para Singer, a verdadeira importância do resultado descoberto por Axelrod ainda não foi devidamente valorizada fora de um círculo restrito de especialistas, apesar de ser capaz de alterar profundamente as nossas vidas e até mesmo a política numa visão mais macro. Em primeiro lugar, a competição demonstrou que as “estratégias simpáticas”, ou seja, aquelas em que nunca se é o primeiro a agir de forma não-cooperativa, saem-se melhor do que as estratégias “más”. Isso significa que o comportamento não-egoísta pode desempenhar melhorias das nossas perspectivas de sobrevivência e de deixar descendentes, ou seja, os seres humanos que agem de forma altruísta conseguem viver tão bem, ou mesmo melhor, do que aqueles que agem de modo completamente egoísta. Com isso, conclui-se: (a) ao agir em seu favor, a estratégia Tic-for-Tat também cria um ambiente em que as outras estratégias simpáticas podem se desenvolver, já que as estratégias simpáticas, em geral, apoiam-se mutuamente; (b) em contraste gritante com as estratégias simpáticas, as estratégias más estragam as possibilidades de outras estratégias más que jogam contra elas, de modo que, ao jogarem entre si, as estratégias más acabam por obter péssimos resultados; (c) quando se defrontam estratégias simpáticas e más, as estratégias simpáticas terão bons resultados se forem provocadas para retaliar pela primeira ação egoísta da outra. (p. 249).

Desse modo, usando uma lógica estritamente de acordo com a teoria dos jogos e com a descoberta de Axelrod, Singer elabora as seguintes estratégias de ação para uma vida ética:

1. Comece por manifestar vontade de cooperar, assumindo uma postura amigável;

2. Faz bem a quem te faz bem (cuidar de quem cuida de nós) e puna aquele que te faz mal, para não ser explorado;

3. Preserve a simplicidade;

4. Seja clemente;

5. Não seja invejoso.

Talvez o único princípio que possa ser questionado à luz da ética cristã é a segunda parte do item 2 (punir a quem te faz mal). Afinal, o cristianismo recomenda que devemos amar até mesmo nossos inimigos e fornecer o outro lado do rosto diante de uma agressão. Não devemos fazer mal nem mesmo àqueles que nos fazem mal, diria um cristão. “Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”, diz a oração franciscana. Para Singer, se não castigarmos aqueles que praticam ações não-cooperativas estaremos estimulando a prática de condutas não-cooperativas e os egoístas se aproveitarão da nossa boa vontade. Isso representa “uma refutação experimental do famoso ensinamento de Jesus sobre dar a outra face”. “Dar a outra face é ensinar aos candidatos a vigaristas que a vigarice compensa” (p. 252). Por isso, devemos estabelecer alguma forma de punição para aquelas pessoas que não cooperam e que traem a nossa confiança. Essa idéia de que se deve evitar as pessoas agressivas não é, contudo, estranha à Bíblia. Eis um trecho dos Provérbios: “não tenha companheirismo com alguém dado à ira” (22:24); “se fores companheiro de pessoas sensatas, ganharás entendimento; mas, se andares com gente tola, ver-te-ás em apuros” (13:20). Esses conselhos bíblicos não deixam de ser uma forma de retaliação àqueles que não são cooperativos.

(Vale ressaltar que, para Singer, não devemos seguir à risca o princípio do “pagar na mesma moeda” se o mal causado puder resultar na destruição definitiva de ambas as partes. Nesse caso, ainda que exista a capacidade de retaliar, não faz sentido fazê-lo, mesmo que possa  – p. 262. Para evitar uma situação de mútua destruição, Singer recomenda o desenvolvimento de um conceito de imparcialidade e de um sistema que produza decisões imparciais acerca daquilo que constitiu o tratamento equitativo – p. 270).

Mas há um detalhe importante que concilia o Tic-for-Tat com o pensamento cristão. É o seguinte: se a pessoa que cometeu um ato não-cooperativo mostrar disposição de voltar a cooperar, devemos ser clementes e perdoá-la. “É perdoando que se é perdoado”.

Por detrás da estratégia “pagar na mesma moeda” está a idéia de reciprocidade, que orienta a grande maioria das concepções éticas.

A ética da reciprocidade insere-se naquilo que os biólogos chamam de “estratégia evolutivamente estável”, para usar uma expressão de J. Maynard Smith. A estratégia evolutivamente estável é aquela estratégia comportamental que, se adotada pela maior parte dos membros da população, não pode ser derrotada por outra política comportamental adversária, numa competição onde a vitória significa a sobrevivência. A pressão evolutiva penalizará aqueles elementos da população que se afastem da estratégia evolutivamente estável e favorecerá os que adotarem a estratégia comportamental vencedora. Logicamente, os comportamentos éticos não são regidos por leis biológicas da natureza, mas pela evolução cultural. Enquanto a evolução biológica é aleatória, a evolução cultural pode ser consciente e dirigida pelos seres racionais. Mas, de qualquer modo, talvez seja possível extrair da idéia de “estratégia evolutivamente estável” pelo menos uma linha geral de direcionamento das teorias éticas para excluir de plano as estratégias destrutivas e não-cooperativas.

“É dando que se recebe”, diz a oração franscicana, numa síntese bastante feliz da ética da reciprocidade. Aliás, é esse tipo de pensamento que Richard Dawkins chama de egoísmo, já que, mesmo quando age de forma cooperativa, o indivíduo estaria pensando apenas em si próprio. É o chamado “egoísmo recíproco”, em que “uma mão lava a outra”. Para Singer, contudo, é um erro pensar dessa forma. “Não se deve ver tais recompensas intangíveis como a negação da motivação altruísta do indivíduo” (p. 194). Afinal de contas, “quem se importa com o ‘verdadeiro significado’ deste tipo de altruísmo, se o que nos interessa é compreender como as pessoas podem ser motivadas a agir eticamente? Se os doadores de sangue são movidos por um sentido de obrigação para com a comunidade ou uma consciência da aprovação social, isso não significa que as suas ações não são éticas ou mesmo altruístas. Agir ética e altruisticamente, nos sentidos moralmente importantes destes termos, consiste, entre outras coisas, em ser movido por um sentido de obrigação para com a comunidade, ou um desejo de fazer o que granjeará a aprovação daqueles cujas opiniões respeitamos. Seria absurdo negar que uma ação é ética meramente porque as pessoas que a realizam podem, de fato,  se beneficiar com ela, caso sejam movidas pela expectativa de um ganho pessoal – e ainda mais absurdo se elas nem sequer tiverem consciência dessa expectativa” (p. 196). E mais: “Os sentimentos de amor para com os nossos irmãos  e irmãs não se tornam menos genuínos por explicarmos como estes se desenvolvem; continua a ser verdade que ajudamos os nossos irmãos porque nos preocupamos com eles, e não devido ao grau de sobreposição genética que existe entre nós. De forma semelhante, o fato de a cooperação ser a melhor política não significa que aqueles que cooperam estejam necessariamente a cooperar porque desejam obter uma vantagem. Por vezes, isto é verdade. (…) Mas, outras vezes, não será. Alguns de nós pertencerão àquele tipo de pessoas que desenvolve sentimentos de simpatia por aqueles que se mostram simpáticos para com elas” (p. 254). “O nosso prazer em estarmos perto dos nossos amigos pode ter origem no fato de retirarmos daí benefícios, mas os sentimentos de amizade não se tornam menos genuínos por causa disso” (p. 255).

E o curioso é que essa lógica de dar pensando em receber não seria uma conduta ética para Immanuel Kant, já que a sua ética é inspirada unicamente por um sentimento de dever que não se interessa por recompensas ou castigos. Para Kant, somente o ato moral puro e desinteressado possuiria um verdadeiro valor moral.

Singer critica a noção kantiana de dever moral, defendendo que o cumprimento do dever pelo cumprimento do dever em si, tal como proposto por Kant,  é irrealizável, pois é hostil à natureza humana, já que os seres humanos são seres físicos providos de desejos. Talvez, sugere Singer, seja possível aspirar alcançar uma harmonia entre a lei moral e os nossos desejos, mas tal tarefa certamente será inalcançável para a grande maioria dos seres humanos. Mas ele não nega a importância da noção de “dever moral” como mecanismo para tornar mais fácil o cumprimento das regras de conduta éticas. Ele pode ser útil, se ministrado com prudência, mas insuficiente: “por muito que encorajemos as pessoas a cumprir o seu dever pelo dever, o verdadeiro objetivo por detrás desse encorajamento é pô-las a fazer o seu dever devido às boas conseqüências que advirão do fato de elas o fazerem” (p. 326). Sem uma preocupação com as conseqüências dos atos, um forte sentido do dever pode levar ao fanatismo moral rídigo, o que certamente não é desejável. Aliás, vários nazistas que foram julgados por crimes contra a humanidade demonstraram uma forte pré-disposição para seguir o seu sentimento de dever, mesmo quando isso ia contra o seu senso de empatia por suas vítimas. Por isso, conclui Singer, “abandonemos, de uma vez por todas, a idéia de Kant de que o valor moral se encontra apenas quando cumprimos nosso dever pelo dever (…). Então, podemos construir uma descrição da ética que assenta, em ver de se afastar, na nossa própria natureza enquanto seres sociais” (p. 329). O que Singer quer dizer é que a até mesmo uma noção de dever moral que seja consciente das boas conseqüências que a ética trará para a humanidade merece ser estimulada.

Outro ponto importante é a posição do outro que deve estar presente qualquer teoria ética.

Na Oração de São Francisco, há um belo trecho em que se sugere devemos antes compreender do que ser compreendido; antes amar do que ser amado. Compreender o outro talvez seja um dos princípios éticos mais importantes para uma vida em sociedade. R. H. Hare, um famoso filósofo moral inglês, defende que uma característica essencial do pensamento moral é a nossa disponibilidade para nos colocar no lugar dos outros antes de pronunciar um juízo moral.  Assim,  para se pensar eticamente é necessário nos imaginarmos na situação de todos aqueles afetados pela nossas ações, levando em conta as preferências que eles possuem.

Na verdade, a ética nada mais é do que a preocupação com o outro e, conseqüentemente, significa compreender os desejos do outro. Viver eticamente é viver levando em conta os interesses do outro. É ter a consciência de que o outro não deve ser visto como um mero objeto, mas como um fim em si mesmo, merecedor da mesma consideração que reservamos a nós próprios. “É pensar sobre as coisas que se encontram para além dos nossos próprios interesses. Quando penso eticamente torno-me apenas um ser, com necessidades e desejos próprios, certamente, mas a viver no meio de outros que também têm necessidades e desejos. Quando agimos eticamente, devemos ser capazes de justificar o que estamos a fazer, e essa justificação deve ser tal qual possa, em princípio, convencer qualquer ser razoável” (p. 307/308).

Vale ressaltar que essa preocupação com o outro também não é estranha à teoria dos jogos. Um dos princípios mais básicos adotados pela teoria dos jogos é precisamente este: “putting yourselves into other people’s shoes“. Esse princípio recomenda que, para alcançarmos a melhor solução em um jogo de soma diferente de zero, devemos levar em conta os interesses das outras pessoas para que possamos tentar, juntos, alcançar um equíbrio em que ambos se beneficiem em longo prazo.

Por fim, a parte final da Oração de São Francisco de Assis faz menção à vida eterna. É como se dissesse: se você seguir esses ensinamentos, viverá eternamente. É precisamente aqui que entra a idéia da ética da eternidade, que formularei no post seguinte.

9 comentários em “A Ética da Eternidade – Parte III (A Ética Laica e a Oração de São Francisco de Assis)”

  1. Eita, George. Agora tá explicado por que o blog ficou duas semanas sem atualizações; essas três últimas postagens devem ter dado um trabalho imenso. Muito interessantes, por sinal.

    Embora me pareça muito bem elaborada, eu ainda não tenho certeza se a ética kantiana é boa, exatamente por ser muitíssimo rigorosa e acabar desconsiderando comportamentos nobres e de grande valor nas relações entre os indivíduos. Por outro lado ainda não refleti suficientemente sobre essa ética do Singer, quer para aceitá-la, quer para criticá-la.

    Essas suas postagens vão me render uns meses de reflexão. :)

    Obrigado por compartilhar.

    Raul Nepomuceno.

  2. Raul,

    na verdade, eu escrevi os posts nesta semana, embora as reflexões já venham de muito tempo. Os posts foram escritos de um fôlego só, quase por “inspiração divina”.

    A ausência de posts deveu-se a uma viagem que fiz e à falta de assunto. :-)

    george

  3. Ah,

    e ainda está faltando o último, que é o principal.

    George

  4. Com todo o respeito, na minha opinião, isso ainda é religião, não tem nada de racional.

    Assim como Marx, Singer interpretou os fatos a partir de pré-compreensões suas; tentou colocar um boi dentro de uma pequena caixa e, como não conseguiu, o esquertejou até conseguir.

    Eleger esta explicação da ética como correta é a mesma coisa de acreditar em Adão e Eva, não tem qualquer diferença (com todo respeito novamente). Talvez a única distinção possível é que os crentes na bíblia não reclamam o fundamento da razão, como fazem os laicistas.

    A teoria dos jogos, a próposito, idealizada pelo Nesh, não tem muita continuidade teórica e padece dos mesmos vícios encontrados na teoria da “mão invisível” de Smith, explica apenas parte da realidade e o que não encaixa, joga para debaixo do tapete.

    Essa ideia de busca da racionalidade é complicada, talvez nem seja possível alcançá-la nos moldes em que imaginamos ter alcançado.

    Outra coisa com a qual não concordo: quando Singer fala do capitalismo do modo como falou, ignorando as vantagens que este sistema trouxe aos seres humanos, perde sua credibilidade sob o meu ponto de vista.

    Abraço a todos!

  5. Carlos eduardo,

    quando eu disse (lá na Parte I) que o racionalismo radical também é, de certo modo, irracional, estava querendo dizer justamente o que você pretende dizer, ou seja, que, no fundo, as explicações científicas são mitos, criadas pela razão e, portanto, sempre insuficientes e falíveis. Por isso, disse também que essa explicação não substitiu outras explicações, inclusive de base religiosa.

    Com relação ao capitalismo, não sou advogado de Singer e também não concordo com muitas de suas idéias. Mas acho que ele não critica o capitalismo em si, mas o egoísmo, o dinheiro pelo dinheiro, que, por sinal, é outro ponto que também encontra suporte na Bíblia.

    Há um pouco de ideologia nisso tudo: sem dúvida!

    Mas a grande vantagem do racionalismo é o seu potencial emancipatório e é isso que o difere, a meu ver da religião. O racionalismo diz: aqui estão os argumentos, se você não concorda, basta refutá-los; se conseguir refutá-los, mudo de idéia sem problemas. Já a religião não abre essa possibilidade. Ou você acredita com base na fé ou não acredita.

    george

  6. Caro George, você sabe que, sendo grande admirador seu – verdadeiro fã -, sou suspeito para falar. Mas acho que este post foi de uma imensa beleza e felicidade.

    Digo isso talvez porque sempre admirei São Francisco de Assis, inicialmente por influência de meu pai, que estudou em seminário fransciscano (aliás, vou passar seu texto para ele, que certamente vai gostar muito), identificando-me com a ética humanista e ecológica presente nos ensinamentos dele.

    Chamo à atenção que existe um livro interessante do Leonardo Boff, que disseca, sob o aspecto ético, a Oração de S. Francisco. É fininho e merece leituras recorrentes.

    Sobre essa controvérsia entre a visão pragmática do Peter Singer e a noção kantiana do dever moral, lembro dos debates em Pavia nas aulas de economia ambiental, essencialmente fundamentadas na economia do bem-estar, a qual, por sua vez, recebe vários influxos da teoria dos jogos.

    Isso ajuda a explicar questões muito atuais, como a constituição do mercado de créditos de carbono e o investimento das empresas (e do próprio Poder Público) em uma imagem “ecologicamente correta”. Ainda que a finalidade que inspire a empresa seja o aumento do lucro, mediante a captação dos “consumidores verdes”, o fato é que as ações implementadas visando à melhoria da qualidade de vida no planeta provocam um ganho ético. E, no fim das contas, é isso que importa!

    Parabéns mais uma vez pelo texto!

    Abraços!

  7. Grande Leonardo,

    valeu pelo comentário. Não sabia que seu pai tinha sido franciscano.

    Já tinha ouvido falar do livro do Leonardo Boff, mas nunca li. Vou comprar com certeza.

    Quanto à teoria dos jogos, sou um pouco cético quanto a suas reais possibilidades de solução de casos concretos. Mas ela é bastante interessante enquanto técnica de racionalização e tem um caráter realista inquestionável ao defender que todos agem pensando no próprio interesse, mas, ao agir assim, temos que pensar que os outros também pensam assim, e, por isso, no longo prazo, é melhor ser cooperativo, ou seja, agir pensando nos próprios interesses é também pensar no outro, que também fará da mesma forma até chegar a um equilíbrio em que todos saem ganhando.

    George

  8. Caro George!
    Gostei muito do comentário que você fez para o Eduardo. Foi perfeito em tudo, mas discordo do final. Existem dois tipos de pessoas: crente e não crentes. Assim, continuo com o pensamento de que se sou não crente, fico apenas com os conhecimentos existentes, com base na razão, muitas vezes incompletos. Mas se creio em Deus passo a ter uma resposta para as verdades que a razão(conhecimento humano) não foi capaz de me dar. O homem já foi a Lua, jà descobriu muitos outros planetas e já fotografa e filma o sol mais agressivo para esses dois anos, entretanto não consegue explicar porque o sol existe, é maior que a terra 200 vezes. Essas e outras explicações do desconhecido, do que a razão não pode explicar, só podemos buscar em Deus. Só pela fé.
    Alfonso

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