Pelas idéias que defendo aqui no blog, creio que os leitores já devem ter percebido que minha “fé na razão” é, em certo sentido, maior do que a minha “fé na fé”. O meu projeto original de tese era precisamente discorrer sobre o princípio da laicidade do Estado, onde eu tentaria defender a inconstitucionalidade das leis que se fundamentam em dogmas religiosos destituídos de racionalidade. Ainda bem que desisti desse tema tão logo percebi que era uma barca furada, pois seria impossível chegar a uma conclusão que não se refutasse a si própria. Explico.
Se, conforme penso, o direito tem um propósito ético e a religião também é um instrumento da ética, é óbvio que o direito e a religião irão, muitas vezes, caminhar de mãos dadas – e é bom que isso ocorra, já que ambos compartilham praticamente os mesmos objetivos éticos. Ainda que os argumentos religiosos não se misturem (ou pelo menos não deveriam se misturar) com os argumentos jurídico-políticos, sempre haverá uma confusão teleológica entre esses dois instrumentos da ética, de modo que, na prática, será quase impossível distinguir seus fundamentos. Vou dar um exemplo.
A caridade é um dos principais princípios éticos do cristianismo. É certo que quase todas as religiões, de algum modo, pregam a caridade, mas o cristianismo fez da caridade uma bandeira central de sua doutrina. Ora, mas se a caridade é um princípio ético de natureza originalmente religiosa, então, nenhuma lei poderia estimular a caridade caso o princípio da laicidade do Estado fosse levado às últimas conseqüências. Essa conclusão seria um absurdo. A caridade é, sem dúvida, um comportamento ético que merece ser estimulado pelo Estado por meio de políticas públicas que incentivem a sua prática.
Diante de reflexões semelhantes, percebi que não havia o menor sentido em defender um racionalismo radical em matéria de legislação, pois: (a) o próprio racionalismo radical é, de certo modo, irracional e insuficiente para solucionar todos os problemas da vida, já que as explicações racionais são apenas tentativas sempre provisórias de descrever a realidade e, portanto, sujeitas ao erro, (b) há muitos princípios éticos de natureza religiosa que também são racionais; (c) a religião é, sem dúvida, um reforço de peso para que as pessoas adotem uma conduta ética, tanto que as comunidades com fortes vínculos religiosos tendem a ser mais pacíficas. E foi nesse contexto que desisti de discorrer sobre o princípio da laicidade do Estado, já que as premissas que eu pretendia defender eram falsas ou, pelo menos, quase impossíveis de serem sustentadas, além de terem uma utilidade prática questionável. Em síntese: separar o estritamente racional do estritamente religioso não é fácil nem útil. E os conflitos ideológicos daí resultantes gerariam um antagonismo difícil de ser superado, pois a história demonstra que as discussões religiosas quase nunca dão bons frutos. O que é pior: esses conflitos levariam a um embate desnecessário entre dois instrumentos éticos que, na maioria das vezes, possuem objetivos comuns e se reforçam mutuamente no papel de estímulo à prática de comportamentos eticamente desejáveis. (Isso não significa reconhecer que o direito e a religião sempre cumprem esse papel de realizar objetivos éticos. Como qualquer produto cultural, tanto a religião quanto o direito podem ser manipulados para fins pouco nobres e o são com muita freqüência).
Ainda acredito que os fundamentos utilizados pelos juristas e pelos políticos, atuando como agentes estatais, não deveriam invocar dogmas religiosos, bem como continuo achando que as leis baseadas em dogmas religiosos destituídos de racionalidade deveriam ser consideradas como inconstitucionais, se, efetivamente, a sua irracionalidade for manifesta. Mas não creio que seja possível distinguir com precisão um argumento ético de um argumento religioso na maioria das vezes, de modo que, se eu levasse a sério a minha proposta, poderia me transformar em um cachorro tentando morder o próprio rabo.
Essa mudança de foco também foi ocasionada pelo surgimento de um repentino interesse em filosofia moral, que eu nunca havia estudado de forma sistemática. O fundamento dos direitos fundamentais, que sempre foi e sempre será o meu principal interesse acadêmico, encontra-se na ética. Antes de serem transformados em normas jurídicas, os direitos fundamentais são normas éticas debatidas pela filosofia moral. Por isso, a compreensão dos direitos fundamentais torna-se muito mais fácil se se dominar as ferramentas argumentativas fornecidas pela filosofia moral. E é isso que estou fazendo neste momento, ou seja, estou tentando entrar de corpo e alma no estudo da filosofia moral, a fim de tentar encontrar os fundamentos filosóficos da minha crença nos direitos fundamentais.
Estou cada vez mais convicto de que, uma vez que a norma jurídica é insuficiente para fornecer todas as respostas a todos os problemas jurídicos, as discussões em matéria de direitos fundamentais são, essencialmente, discussões filosóficas. Para ser mais preciso: são essencialmente discussões éticas. O livro que me despertou para esse fato foi o “Elementos de Filosofia Moral”, de James Rachels, que recomendo enfaticamente, tanto pelo seu conteúdo quanto por sua linguagem simples e acessível. No referido livro, são apresentadas as principais correntes do pensamento ético, inclusive os pensadores contemporâneos, e discutidos temas bastante conhecidos da teoria dos direitos fundamentais, como a eutanásia, o aborto, o homossexualismo, entre outros. Depois que li o “Elementos de Filosofia Moral” cheguei à conclusão de que, de fato, o papel dos juristas é transformar a ética em direito.
Mas tudo isso está sendo dito apenas como introdução de uma idéia que pretendo apresentar e desenvolver no momento oportuno, que é a idéia da ética da eternidade. Tentarei demonstrar que qualquer concepção ética, mesmo as não-religiosas, precisam se apegar a alguma noção de eternidade ou, pelo menos, de uma existência temporal que transcenda a nossa própria permanência terrena. Ressalto, desde já, que a minha concepção de eternidade não tem nenhum sentido teológico ou metafísico. Como se verá no momento oportuno, a eternidade que entendo que deve estar na base da ética é uma eternidade biológica (genética).
No meu segundo paper, em que tratei da transformação da ética em direito, iniciei o texto com uma famosa frase de Dostoievski: “Mas então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por conseqüência, tudo é lícito?” (Fiodor Dostoievski, no livro “Irmãos Karamazov”).
Uma versão alternativa da mesma idéia, que é desenvolvida em outra passagem do mesmo livro, diz o seguinte: “se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido”.
O personagem de Dostoievski tenta fazer uma ligação forte entre a idéia de imortalidade (que é uma idéia essencialmente religiosa) e o fundamento da ética, defendendo algo mais ou menos assim: se o que vale é o aqui e agora, sem perspectivas de uma vida para além da morte, então o melhor é curtir a vida e fazer o que quiser, sem outras preocupações éticas além da busca do prazer individual imediato.
Há um fundo de razão nessa idéia. A esperança na existência de vida futura é um dos principais argumentos religiosos para incentivar uma conduta ética. Muitas pessoas praticam boas ações, algumas vezes em sacrifício de seus interesses pessoais, pensando em recompensas que receberá “no paraíso”. Se existir vida depois da morte, há muito mais motivos para seguir uma vida virtuosa.
Mas de repente veio o iluminismo com a sua crença na razão e na comprovação empírica das teorias. Os dogmas religiosos começaram a ser questionados e criticados com base na razão. Foi defendido claramente que o Gênesis está errado se interpretado literalmente. O mundo não foi feito em sete dias; o homem não surgiu do barro; a mulher não foi criada a partir da costela de Adão; o planeta Terra não é o centro do universo; nem mesmo a Via Láctea é a única galáxia do universo, mas apenas mais uma entre bilhões e bilhões de outras…
Ora, se as observações empíricas e a racionalidade crítica demonstraram tantos equívocos nos dogmas religiosos contidos na Bíblia, então por que a idéia de vida eterna também não seria falsa, já que não pode ser empiricamente comprovada?
Foi diante disso que Dostoievski formulou o argumento antes citado, concluindo que tudo seria moralmente permitido sem a noção de imortalidade. Nietzsche, com seu niilismo característico, foi ainda mais além, diagnosticando a própria morte de Deus pela boca de Zaratustra: “Será possível que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque que Deus já morreu?“. E Mais: “Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias”.
É certo que, para a grande maioria dos seres racionais que habitam o planeta Terra, Deus não morreu. E mesmo aqueles que não acreditam em Deus não concordam com a idéia de que tudo é moralmente permitido. A ética sobrevive mesmo sem a religião, e a religião sobrevive mesmo sem comprovação empírica. Disso se conclui que: (a) a ética tem uma base racional que ultrapassa a religião e (b) a religião se sustenta na fé e não apenas na razão, de modo que a razão dificilmente “destruirá” a religião.
O enaltecimento da razão pelo iluminismo não foi capaz de substituir a fé em Deus por uma fé na razão. Apesar disso, o projeto iluminista não foi um fracasso total. Pelo contrário. A razão ganhou muito prestígio e ocupou muitos espaços, inclusive espaços estratégicos para a vida em sociedade, como o espaço estatal, que antes era ocupado pela religião. O princípio da laicidade do Estado é a maior demonstração desse fenômeno.
O espaço acadêmico também foi, em grande medida, ocupado pelo pensamento racional, ainda que sobrevivam diversas instituições religiosas de ensino. Nas ciências naturais (física, biologia etc.), falar em “Deus” virou ironicamente uma espécie de pecado intelectual. Defender uma concepção religiosa do mundo ou da vida em uma reunião de biólogos ou de físicos é ser ignorado ou até mesmo ridicularizado pela comunidade científica.
No campo da ética, por outro lado, vive-se um período híbrido, em que o racional tenta conviver com o religioso. É uma convivência ainda não muito bem definida: há muitos acordos, mas também muitos desacordos. É sobre esse hibridismo entre a ética laica e a ética religiosa que pretendo tecer alguns comentários. Mas isso é assunto para o próximo post.
Caro George,
A “vida corrida” por aqui não nos tem permitido participar mais ativamente dos debates (parece mesmo que o “tempo” é um produto a desafiar a “crise dos mercados”).
Todavia, “dialogando”, há algum tempo, com Ariano Suassuna (um crítico contundente da “hipocrisia” da Igreja Católica), ele afirmou que a sua (dele) “aproximação” com a questão religiosa (Deus), ocorreu precisamente depois da leitura da obra de Dostoievski (“Irmãos Karamazov”), citando, coincidentemente, o mesmo trecho por você já referido. Daí, como me pareceu que você não andou “dialogando” com o Suassuna, achei pertinente consignar que tenham feito, a partir de trajetórias distintas, as mesmas reflexões.
No tocante ao tema central do “post”, devo lembrar um texto do Robert Alexy (“A institucionalização da razão”) quando afirma que “Cada filosofia do direito é, explícita ou implicitamente, expressão de um conceito de direito”, acrescentando que “Todos os conceitos de direito compõem-se da determinação e ponderação de três elementos de definição: (1) a decretação de acordo com a ordem, (2) a eficácia social e (3) a correção quanto ao conteúdo”. E a preocupação central da teoria dele (Alexy) é exatamente acerca da tese que o “direito promove, necessariamente, um pretensão de correção”. Eis o desafio.
Forte abraço,
Jânio.
Grande Jânio,
realmente, a idéia de “pretensão de correção” desenvolvida por Alexy é muito feliz. Acho que tanto o direito tem uma pretensão de correção quanto a ética tem uma pretensão de juridicização.
O desafio maior é precisamente descobrir quais são esses princípios éticos que merecem ser juridicizados e como se realizará a institucionalização desses princípios.
George
As reflexões do texto me fazem remeter ao filósofo Ludwig Feuerbach, autor do célebre “A essência do cristianismo”.
A idéia de recompensas post mortem traduzem um setimento mesquinho de muitos dos regiliosos, independentemente da sua classificação. É como se a ética pela ética (como pensava Kant) não fosse o valor transcendental, mas sim a ética pela recompensa.
Feuerbach fala: amo meu próximo não porque quero amá-lo e porque me sinto bem fazendo isso, mas porque Deus quer assim e me recompensará por isso.
Uma das mais lindas fundamentações para o comportamento moral que já li é, sem dúvida, o livro ” A fundamentação da metafísica dos costumes” de Kant. Nunca li ninguém falar tanto de Deus sem citá-lo uma única vez.
A idéia dos imperativos categóricos, os quais só podem ser seguidos pelo ser causa sui (ser humano racional fim em si mesmo) e de que a moralidade não tem qualquer outro fundamento, senão a razão, remete a uma linda metafísica; religiosa, por certo, mas linda.
Quanto ao sentimento mesquinho dos religiosos (óbvio que não de todos), eu prefiro “limpar os pratos” e também defender que o direito, com sua natureza deontológica, imponha os deveres éticos, daí o racíocio será assim para todos: “devo ser ético, sob pena de receber uma sanção jurídica”.
Entendo que imputar à ética um fundamento religioso (como a recompensa post mortem) ofende um postulado ético primordial, segundo Kant, qual seja o de que o ser humano deve ser tratado não como meio, mas como fim em si mesmo. Se tratamos bem o nosso próximo apenas para ganhar recompensas na “outra vida”, é porque ele servirá como instrumento (e não mais que isso) para alcançar as benesses do “paraíso”.
Um abraço a todos!
Carlos Eduardo,
estou com uma edição da “A Essência do Cristianismo”, da Fundação Calouste Gulbenkian, mas ainda não li. Mais um para incluir na minha lista que cada vez aumenta mais…
Quanto ao Kant, vou falar dele no próximo post. Mas desde já vou abrir uma divergência.
Não acho que a busca de recompensas contamine de tal modo a ética como Kant defendia. Defendo que o agir ético é algo benéfico para a humanidade. Então, quem age eticamente sabe que estará agindo para receber algum tipo de benefício. O só fato de você agir eticamente em nome de um suposto “dever moral”, já significa que você está pensando em obter alguma vantagem, nem que seja a sensação de dever cumprido. Depois explico melhor o meu ponto de vista.
George
Na óptica de sua tese, seriam os feriados religiosos inconstitucionais George?
Fernando, como afirmei, minha tese não será sobre o princípio da laicidade do Estado, mas sobre a transformação da ética em direito.
Mas foi por causa de discussões como essa do feriado religioso que percebi que escrever sobre o laicismo, defendendo uma racionalização radical da legislação, seria inútil. Particularmente, não vejo nenhum mal em se estabelecer feriados religiosos. Esses feriados não causam conflitos, nem intolerância. Em outras palavras: não geram uma situação de desarmonia, nem estimulam conflitos éticos. Por outro lado, acabar com os feriados sim causaria um grande descontentamento, inclusive entre aqueles que não são religiosos de carteirinha, mas que gostam do feriado por si mesmo. Já pensou acabar com a semana santa, ou com o natal ou com o São João?
O laicisimo não deve ser confundido com o ateísmo. Assim como pode haver feriados para personalidades históricas laicas, como Tiradentes, por exemplo, é perfeitamente possível admitir a existência de feriados de natureza religiosa.
É um pouco diferente de uma cruz colocada em uma sala de julgamento de um tribunal. O tribunal deve julgar de forma laica. Logo, a cruz pode ser um indicativo de uma determina concepção religiosa que pode, sem dúvida, interferir no julgamento. Julgar uma questão envolvendo, por exemplo, a sacralidade da vida humana tendo uma cruz acima de seus ombros, talvez não gere para um público mais amplo a sensação de que o julgamento estará sendo laico e imparcial.
Sei que a minha fundamentação não está tão consistente quanto o tema requer, mas é o que um simples comentário permite.
George
Agora fico pensando se a cruz no tribunal tiraria a imparcialidade do julgador, assim como um adesivo, no laptop do juiz, do Corinthians, como já vi alguns juízes usando. O juiz corinthiano poderia intervir parcialmente em casos envolvendo times de futebol?
A distinção entre direito e moral é bem difícil, senão impossível, aprendemos com Dworkin. Por mais que se possa questionar a cruz sob o prisma da igualdade, do direito das minorias etc, acredito que sob a questão da parcialidade, é muito difiícil.
Enfim, o Ministro Direito decidiria contra as pesquisas com células-tronco com cruz ou sem cruz no STF!
Fernando,
e o pior é que já mandei bloquear as contas do Ceará, meu time do coração! :-)
A questão não é se a cruz interfere ou não na parcialidade, mas se interfere na demonstração de imparcialidade, ou seja, na forma como as pessoas vêem o tribunal.
Tenho certeza de que a existência da cruz não altera em nada o julgamento dos ministros. Suas crenças estão na sua cabeça e isso ninguém tira.
George
Amigo George:
Essa senhora “razão” é muito convencida: pensa que sabe tudo, que pode explicar tudo que existe, acha que só ela está certa e todos os outros estão errados, mas esquece que é tão falível e limitada quanto aquele que a criou — o homem…
Ela é tão convencida que acha que não precisa de ninguém para viver, mas não sabe que seria muito mais feliz e completa se, humildemente, aceitasse a amizade e a colaboração da senhora “fé”…
A mim me parece que a virtude está meio, como diziam os escolásticos (“in medio stat virtus”): na história, sempre que se exagera para um lado, sobrevém uma reação contrária, igualmente exagerada. No caso, depois de uma longa predominância do elemento “fé” na idade média, muitas vezes despida de racionalidade/razoabilidade, sobreveio a reação iluminista tendente a conferir primazia ou exclusividade ao elemento “razão”. A síntese decorrente dessa tensão dialética seria a fé iluminada pela razão e vice-versa. Mas os ranços ainda existem, como vc bem apontou.
Quanto à questão da recompensa (parte III), parece-me que seria um exagero afirmar que a intenção do agente é irrelevante para a ética, à consideração de que o importante seria apenas a conduta ética em si e o resultado dela.
O cristianismo valoriza sobremaneira a intenção do sujeito. Eis um exemplo claro (Mt 6, 1-6):
1. Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus.
2. Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.
3. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita;
4. para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.
5. E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.
6. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. (Mt 6, 1-6)
Outros exemplos: a oferta da pobre viúva (Lc 21, 1-4), a condenação do adultério cogitado mesmo que não tentado (Mt 5, 27-28: “Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela.”), etc.
A essa luz, a intenção do agente serviria para graduar a recompensa a que este faria jus: quanto mais altruísta e desinteressada a ação, maior seria a recompensa.
Nessa óptica, aquele que faz o bem a outrem apenas para que Deus lhe recompense na vida eterna receberá uma recompensa menor do que aquele que faz o bem a outrem por genuína compaixão. Ambos serão recompensados, mas não na mesma medida. Observe-se que em Mt 6, 1-2, até mesmo os fariseus receberam alguma recompensa pelas suas boas obras (o reconhecimento público), embora esta não se compare com aquela que Deus reserva para os verdadeiramente altruístas.
Isso parece tão racional que o próprio Direito Penal perquire a intenção do agente para definir se a conduta é ou não passível de pena, bem como para graduá-la.
A lógica está, dentre outras coisas, em que uma conduta dolosa merece uma reprovação maior do que uma meramente culposa porque o que age com dolo, pela sua disposição anímica, é mais propenso a reproduzir a conduta futuramente.
Dessarte, salvo melhor juízo, a intenção do agente, o seu leitmotiv, é eticamente relevante, até porque quem pratica uma conduta ética por autêntico altruísmo (a sua recompensa está em ver a felicidade do outro, e não em benefício para si próprio) tende a repeti-la futuramente em situações idênticas ou análogas, ainda que não vislumbre recompensa em benefício próprio, pois seu querer se alicerça em outros fundamentos, mais firmes, sólidos e elevados.
No mais, amigo George, folgo em ver uma contínua e instigante evolução do seu pensamento, designadamente no que concerne à religião e à ciência jurídica.
Os posts e os seus comentários estão cada vez mais interessantes e profundos!
Abração,
André Fernandes.
Grande André,
obrigado pelas suas valiosas observações. Acho que você captou bem a minha atual “crise” de racionalidade: quanto mais a razão nos fornece informações, mais ela nos mostra a sua insuficiência. Mas essa insuficiência, certamente, não é uma fraqueza, mas uma virtude para que percebamos que sempre temos algo a aprender.
Quanto à intenção do agente, concordo com você. Mas acho que o que o Peter Singer quis dizer foi que ajudar os outros sabendo que isso pode nos beneficiar no futuro também não é algo errado.
Acho que o lugar da razão na ética é precisamente demonstrar que agir eticamente não é necessariamente agir contra os nossos próprios interesses. Quem age eticamente também será beneficiado a longo prazo. Podemos perder um pouco de imediato, mas iremos colher frutos no futuro com a nossa boa ação.
Grande abraço,
George
Caro Professor George,
Estou muito feliz por ter encontrado o seu blog! Estou lendo tudo!!!! Mas só um detalhe: a Bíblia não disse que a Terra era o centro do universo. Ela afirma que a Terra é redonda e que flutua pelo espaço, podemos ver Isaías 40:22; Jó 37:12 e Jó 26:7.
Muito bom este blog!
Parabéns pelas contribuições!
Me desculpe sou leigo no assunto, mas gosto desta matéria, ja pesquisei e não consigo encontrar resposta, ou se encontro não consigo entendela. Um aluno de Direito me perguntou porque tem uma Cruz na entrada do STJ em Brasilia, não consegui responder mesmo pesquisando, voltando as minhas memorias, já estando dentro de alguns tribunais, realmente existe sempre uma cruz na parede, seria apenas religioso ou teria a Cruz a sacralidade da vida Humana. Por favor, se possivel me tire esta dúvida. Muito obrigado. Helio.
Prezados George e Hélio,
Vi a postagem recente questionando a razão do cruxifixo nas salas de julgamento do Judiciário e aproveitei para elaborar alguns outros comentários.
Sou advogado aqui no RS e tivemos aqui no nosso TJ essa discussão do crucifixo ante a laicidade do Estado e um dos argumentos que prevaleceu foi que para além de considerações outras a crucifixão de Jesus lembraria permanentemente a consciência do juiz do julgamento mais injusto da história, como reconhecido por estudiosos.
De fato, não lembro o que motivou a manutenção da cruz nas salas do Judiciário daqui, a discussão foi superada e os crucifixos mantidos, o que achei muito bom porque hoje tudo é válido menos aquele que deu a vida por nós, porém, sou católico fervoroso e portanto suspeitíssimo heheheh.
Por outro lado, estou lendo a biografia de São Pio de Pietrelcina escrita por Renato Alezzi (Ed. Paulinas), considerado “o santo do século XX” e que possuía dons extraordinários, bilocação, vidência, levitação, os “estigmas” de Jesus Cristo, etc.
A par disso tudo, que são questões de crença, no meu entender o seu maior dom foi o de ter uma vida ABSOLUTAMENTE SANTA E ÉTICA como testemunhado em longas pesquisas inclusive da sua infância por pessoas alheias a igreja. Teve uma vida sempre voltada à abertura para o próximo, à servidão absoluta ao ponto de assumir para si (e isto também é questão de crença, perdão!) sofrimentos físicos em troca da salvação da alma de seus filhos espirituais, experiências místicas que estão longe do nosso entendimento mas que são retratadas ao longo da história de vários santos.
Dentro de legado de São Pio, que tinha um amor especial pelos doentes idosos porque Cristo estava neles “duas vezes”, o santo, pobre e humilde, foi o responsável pela idéia e edificação de um dos maiores hospitais da Europa, centro de referência para pesquisas, reconhecidamente um dos hospitais mais importantes da Itália, pela sua extensão e equipamentos de última geração, e que encontra-se em San Giovanni Rotondo, Italia.
Essa “Casa Alívio do Sofrimento”, fundada há 50 anos por padre Pio, possui mais de 1000 leitos, foi construída no meio do nada e idealizado por um humilde frade capucchino que convertia pessoas a tapas, mas logo recebia os agredidos de braços abertos com um amor que nunca mais desligava aquela alma dele. São Pio sofreu duras penas físicas e morais e assumiu desde muito cedo como missão espiritual “dividir” com Jesus os sofrimentos da cruz pelas almas e teve experiências místicas extraordinárias, assim como fenômenos físicos inexplicáveis atestados por diversos médicos distintos ao longo de sua vida, inclusive do exército, como suas febres que chegavam a atingir incríveis 53°C e tinham de ser medidas por termômetros de água, sendo que no dia seguinte estava em pé celebrando missa.
São Pio era franciscano e sua ordem era voltada completamente à oração e a contemplação. Acreditava que o excesso de estudo prejudicava o tempo de oração e afastava a alma da simplicidade, eis que o conhecimento naturalmente levava a alma a centrar-se em si e tolhia a comunicação salutar com o invisível, dentro da radicalidade do pensamento de São Francisco de Assis, que seguia essa linha e não a dos agostinianos.
Caro George, sem entrar tanto no mérito das orientações acadêmicas, e seguindo mais a linha do pensamento popular, das verdades que se manifestam na simplicidade e que são muitas (senão a grande maioria), eu penso que uma rápida leitura dos Evangelhos, da vida de Jesus seja a mais perfeita aula de ética, de filosofia e de psicologia possível, como, aliás, muitos estudiosos ateus, cada um em seu campo, reconhece ao estudar os evangelhos, tomando Jesus como uma grande “personalidade” e não o próprio Deus que veio a nós em carne e sangue (com a ressalva de que respeito absolutamente a crença alheia).
Parabéns por ser essa pessoa simples, essa pessoa e profissional aberto, bem-humorado, esse estudioso apaixonado, e por esse espaço privilegiado de estudo e de “caridade” informativa.