É possível um Deep Blue Jurídico? A teoria dos jogos e o direito

“Supletivo, supletivo…”
Josef Klimber

No post passado, fiz uma comparação pedagógica entre as decisões tomadas em um jogo de xadrez e as decisões judiciais. A idéia não foi, de forma alguma, dizer que são escolhas idênticas ou mesmo parecidas. Meu intuito foi tão somente demonstrar que há uma diferença entre a decisão efetivamente tomada (Mundo 1), as decisões pensadas pelos jogadores/juízes/partes/advogados (Mundo 2) e as decisões possíveis diante de todas as informações até então existentes, inclusive aquelas que não foram pensadas pelos envolvidos, mas que estão disponíveis numa comunidade de conhecimento objetivo  (Mundo 3). Desse modo, ainda que não exista uma única decisão possível diante de situações complexas, talvez seja viável cogitar na existência de uma decisão que, à luz de determinadas circunstâncias, seja considerada como melhor do que as outras, pelo menos no mundo do conhecimento objetivo que leva em conta tão somente as informações até então existentes (Mundo 3). Além disso, cogitar a existência de uma decisão correta (digo, melhor) não significa dizer que as outras decisões são necessariamente inválidas. Por exemplo, o jogador de xadrez pode movimentar o cavalo em L ou o bispo na diagonal – as duas opções são válidas diante das regras do jogo – mas apenas uma solução será estrategicamente a melhor naquela situação concreta. O mesmo vale para a decisão judicial: às vezes, diante de duas opções possíveis igualmente aceitas pelo ordenamento, pode ser que exista uma que seja melhor do que a outra.

Mas a analogia do jogo de xadrez com a decisão judicial é falha por uma série de motivos. Há um óbvio: o jogo de xadrez é um jogo estritamente lógico-matemático, cujas soluções podem ser antecipadas por um sistema de processamento de dados relativamente simples. Já os problemas sócio-jurídicos são muito mais complexos, já que as suas conseqüências não podem ser antecipadas com facilidade e, portanto, sempre haverá um componente de incerteza nas escolhas adotadas. As decisões judiciais, mesmo as bem-intencionadas, podem gerar efeitos indesejados que não foram considerados pelo julgador.

Mas há outra diferença entre o jogo de xadrez e a decisão judicial menos visível, mas igualmente determinante: o xadrez é um jogo de soma zero. Isso quer dizer que só há três opções possíveis: vitória, derrota ou empate. O objetivo dos jogadores é vencer à custa da derrota do adversário. Se um ganha, o outro perde. De um modo geral, ninguém quer perder ou empatar: todos querem ganhar.

As relações sociais, em regra, são “jogos” de soma diferente de zero. Isso significa que é possível que todos os jogadores envolvidos possam vencer, assim como todos possam perder, dependendo da estratégia adotada pelo adversário. Num contrato de compra e venda, por exemplo, os dois podem sair ganhando. Um tem o dinheiro, e o outro tem o produto. O que tem o produto quer o dinheiro, e o que tem o dinheiro quer o produto. Então, por mútuo acordo, fazem o negócio e satisfazem suas necessidades. Bom para ambas as partes.

O problema nos jogos de soma diferente de zero é que, em algumas situações, a depender da estratégia adotada pelos jogadores, um pode ganhar mais e o outro pode perder mais. Vejamos uma situação bem simples envolvendo um contrato de compra e venda pela internet. Eu quero um livro raro e tenho dinheiro para pagar. Encontro alguém que tem o mesmo livro e está disposto a me vender esse livro se eu depositar cem reais na sua conta. Se os dois cumprirem sua parte no trato, os dois saem ganhando. Porém, se eu depositar o dinheiro e ele não me enviar o livro, certamente ele ganha muito mais: ganha os cem reais e ainda fica com o livro. E eu ainda perco os cem reais e fico sem o livro. Por outro lado, se ele enviar o livro e eu não depositar os cem reais, sou eu quem ganha mais, pois permaneço com os meus cem reais e ainda ganho o livro que eu queria.

Qual é a melhor estratégia nesse caso? De um ponto de vista estritamente econômico, a minha melhor estratégia é não depositar o dinheiro, pois assim saio ganhando muito mais, especialmente se ele enviar o livro. Por outro lado, a melhor estratégia do vendedor é não enviar o livro, sobretudo se eu depositar o dinheiro. Dito de outro modo: seja qual for a conduta do vendedor, a resposta que maximiza a minha riqueza é não enviar o livro. Da mesma forma: seja qual for a conduta que eu adotar, o vendedor lucrará mais se não me enviar o livro.

Lógico que isso gera um paradoxo e impede qualquer relação que se baseia na confiança. E, como as relações sociais se repetem no tempo e dependem da confiança mútua, a solução “normal” é o cumprimento do pacto, pois, a longo prazo, a deslealdade não é uma estratégia vencedora.

Esse tipo de dilema é estudado pela chamada “Teoria dos Jogos”. Para a Teoria dos Jogos, nas relações que se repetem no tempo, a tendência é que se alcance um equilíbrio em que ambas as partes saiam ganhando o máximo que puderem diante do comportamento esperado do outro jogador. É o equilíbrio de Nash. No caso do contrato de compra e venda pela internet, a melhor estratégia para ambos os jogadores a longo prazo é cumprir o pacto, pois cada qual ganha aquilo que esperava desde o início. Se o pacto não for cumprido, não há mais acordo e nenhum satisfaz as suas necessidades originais: eu fico sem o livro e o vendedor sem o dinheiro. E, de fato, a grande maioria dos contratos comerciais realizados pela internet são cumpridos normalmente. A exceção é o não-cumprimento.

E onde é que entra a decisão judicial nisso tudo?

Existe uma “ala normativa” da Teoria dos Jogos que defende que o papel do direito é estabelecer mecanismos para que o equilíbrio de Nash seja atingido e observado. Esse equilíbrio virá naturalmente, mas o direito deveria funcionar como um mecanismo para incentivar os comportamentos que gerem uma situação em que todos os envolvidos possam ganhar o máximo possível, seguindo a lógica nashariana. Ou seja: o direito deveria punir aqueles “jogadores” que se desviem do equilíbrio de Nash e premiar aqueles que sigam essa estratégia.

Particularmente, acho interessante a Teoria dos Jogos como exercício de racionalização, mas creio que, dificilmente, ela terá alguma utilidade para os juízes a curto prazo. É que ela se baseia na atribuição de valores para determinadas conseqüências e nem todas as conseqüências desejadas pelo direito podem ser matematizadas. Como atribuir valores para a liberdade, para a vida humana, para família etc.? Como decidir uma questão de eutanásia, ou de aborto, com base na Teoria dos Jogos? Talvez os problemas jurídicos estritamente comerciais possam ser, de algum modo, solucionados pela Teoria dos Jogos, já que é possível encontrar, com mais facilidade, o equilíbrio de Nash. Mas aquelas que envolvem direitos ou valores não econômicos possuem um componente ético que não segue a lógica matemática e que, portanto, dificilmente podem ser transformadas em fórmulas numéricas.

Por isso, acho improvável que seja possível conceber um Deep Blue Jurídico para solucionar os casos difíceis. E particularmente, por uma questão de respeito à razão humana, creio que, no dia em que os seres humanos atribuírem aos computadores a tarefa de solucionarem os problemas éticos, estaremos a um passo do fim da humanidade. É errando que a gente aprende. As escolhas morais não deveriam ser terceirizadas. Cada ser humano deveria ser auto-legislador de si próprio.

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CURSOS GRATUITOS (UNIVERSIDADE DE YALE)

Para quem tiver interesse no tema “Teoria dos Jogos”, recomendo o Open Course da Universidade de Yale, sobre “Game Theory”, com o professor Ben Polak. Assisti a quase todas as aulas e achei bastante proveitoso e, de certo modo, divertido.

Há também, pela mesma instituição, um curso de filosofia política que pareceu bem interessante, mas ainda não assisti.

Aliás, essa tendência das melhores universidades de disponibilizarem cursos gratuitamente merece ser aplaudida e estimulada. O Mundo 3 certamente agradece. :-)

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10 comentários em “É possível um Deep Blue Jurídico? A teoria dos jogos e o direito”

  1. George, dê uma olhada nas escolas de inteligência artificial, de aplicação de lógicas fuzzy e paraconsistentes, de sistemas inteligentes que se alimentam das informações repassadas.

    Há um sujeito, formado em Direito e que fez ITA, que desenvolveu um sistema para aplicar mecanicamente a dosemetria da pena com base nos entendimentos pretérios do julgador.

    Acho que o Deep Blue é factível sim…

  2. Hummm…
    O problema é que um modelo satisfatório que correspondesse ao Direito teria que ser formado por uma quantidade quase infinita de variáveis – pense no comportamento que pode ter cada uma das pessoas que vivem em uma determinada região, realizando, conjuntamente ou não, negócios jurídicos, fatos ilícitos, etc, em condições de tempo, intensidade, lugar, com objetivos diferentes, etc. Além disso, o Direito varia com o tempo. Dependendo de condições históricas, políticas, desenvolvimento científico e muitos outros fatores, novas leis surgem, o que é óbvio. Não dá pra bolar a priori um algoritmo que preveja futuras alterações…
    O que funciona no jogo de xadrez – que obedece a regras definidas, limitadas e imutáveis e, portanto, possíveis de serem descritas por um modelo matemático – não poderia ser transposto, de forma confiável, para as ciências humanas; seriam, no máximo, modelos bastante ruins. No jogo de xadrez, as vitórias das máquinas sobre humanos são produto tanto do desenvolvimento dos softwares como do aprimoramento dos bancos de dados, fazendo com que a máquina consiga antecipar uma quantidade enorme de combinações de jogadas. Mas, ainda assim, vira e mexe algum russo ganha de alguma máquina através de sua criatividade, ou seja, inovando, sendo criativo, utilizando alguma tática ainda não usada.
    Computador substituindo juiz é coisa de ficção científica…

  3. Fernando,

    acho que para os casos de rotina, como a dosimetria de uma pena ou aplicação mecânica de soluções previamente estabelecidas, o computador substitui o ser humano com vantagens. O sistema virtual que utilizamos na Quinta Região (Creta), de certo modo, “julga” muito mais processos do que os juízes, pois o trabalho que o juiz tem é selecionar o modelo de sentença ou decisão desejado e dar um clique de ok. (Logicamente, quem elaborou a sentença foi um ser humano: o computador só faz o trabalho “braçal”).

    Também acho que até mesmo para alguns casos difíceis contabilizáveis, como o cálculo de um dano ambiental muito complexo por exemplo, também o computador pode ajudar e, de certo modo, realizar a maior parte do trabalho decisório.

    O problema são aqueles dilemas éticos não contabilizáveis. Por exemplo: é crime realizar o aborto em um feto anencéfalo?

    Aqui, será preciso fazer uma ponderação de valores éticos: vida do feto versus liberdade de escolha da mulher, que dificilmente um computador poderia indicar qual a melhor solução. Talvez ele possa fazer uma compilação excelente de julgados das mais diversas cortes, ou da legislação sobre o assunto de cada país, e assim apontar uma tendência. Mas a solução propriamente dita, sempre caberá (ou sempre deverá caber) aos seres humanos. Pelo menos é o que eu acho.

    George

  4. Acho que é possível a aplicação da Teoria dos Jogos ao direito se e apenas se pararmos de usar eticamente e moralmente a razão prática (uso aqui a distinção que Habermas faz do uso da razão prática: uso pragmático, uso ético e uso moral).
    Se todas as relações sociais fossem vistas apenas pelo prisma da razão pragmática, que é a razão instrumental (que calcula meios e fins), aí sim poderíamos reduzir tudo a um cálculo de jogo. Alguns juízes americanos fazem isso (usando a fórmula de Hand, o teorema de Coase etc.). Mas, contudo, ao custo de o direito perder seu lado humano.

  5. Caro George,

    Além da dosimetria, penso que a utilização da inteligência artificial poderia auxiliar ao juiz no oferecimento de parâmetros ou repostas possíveis e válidas.

    Até mesmo no âmbito da proporcionalidade e observados alguns limites, ie, considerando a relevância dos precedentes na atividade jurisdicional dos ordenamentos contemporâneos, a catalogação e criação de combinações prévias poderiam servir: 1. Para evitar as “katchangadas.” 2. Fortalecer o exercício deste importante poder estatal com o mínimo de uniformidade. Visando assegurar as mudanças jurisprudenciais decorrente do tempo, dos debates e estudos, este sistema precisaria sempre ser alimentado quanto aos novos posicionamentos.

    Obviamente que isto não pode nos levar as seguintes conclusões: 1. Substituição do juiz pelas máquinas. 2. Engessamento da atividade dos juízes de primeira instância.

    O perigo seria a sobreposição deste sistema à atividade jurisdicional, do que tornar-se-ia necessário uma das seguintes posições: 1. Incluir apenas questões específicas neste processo decisório. 2. Ou excluir, ex leges, determinados temas dessa possibilidade de análise. 3. Por fim, a inserção de limites ao próprio sistema quando, por exemplo, deparar-se com situações características dos casos difíceis.

    Em que pese o reconhecimento de algumas contribuições até mesmo em casos difíceis, nestes o ato decisório deve ser necessariamente humano para, inclusive, preservar o significado de um sentido valorativo dado pela decisão à sociedade, que é inerente ao direito do século XXI.

    OBS: Comecei a ler o paper, quando possível, envio comentários para o e-mail.

    Samuel Martins.

  6. No jogo de xadrez cada decisão em cada jogada tem um objetivo final a alcançar: o xeque-mate. Assim, penso que o que falta para o Deep Blue jurídico é exatamente definir o que eu pretendo alcançar, qual o resultado final que o juiz pretende obter, quais valores pretende preservar. Sua decisão terá como referência e guia uma dimensão mais ampla onde se insere sua decisão. Se eu não sei para onde ir, qualquer caminho me serve. Então a mais correta decisão é a que me leva ao objetivo definido a ser alcançado.

  7. Caro George,

    Existe algum autor que você conheça que tenha se dedicado especificamente ao uso normativo da Teoria dos Jogos?
    Gostaria de ler mais sobre o assunto.

  8. Engraçado, depois de ler o texto, fiquei imaginando:

    o Judiciário seria como loteria, as decisões seriam aleatórias (como no sorteio das bolas), os brasileiros viveriam fazendo uma “fézinha” e, quem sabe, os pedidos de danos morais (que não são poucos) poderiam até acumular, fazendo de eventual sortudo um milionário.

    imaginei mais:

    se o Judiciário pudesse ser substituído por máquinas, os Poderes Legislativo e Executivo também poderiam sofrer a mesma substituição, afinal são atividades decorrentes do mesmo poder político.

    O Deep blue, então, seria um verdadeiro ditador. Primeiro, calcularia todas as hipóteses possíveis de necessidades públicas relativas à prestação legislativa, aí editaria uma lei que, segundo seu processamento algorítmico, seria a melhor. Depois se encarregaria do mesmo procedimento para aplicar a lei.

    Seria bom demais: sem corrupção, sem inchaço administrativo, sem escalonamentos nobiliárquicos, etc.

    Imaginei mais:

    como ficariam as súmulas vinculantes? como ficaria o controle de constitucionalidade, uma vez que foi o próprio Deep Blue que a editou?

    Verdadeiro caos hein!!!

    Abraços a todos

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