Fazia tempo que eu não viajava filosoficamente aqui no blog. Por isso, para não perder o costume, vou dar um pequeno vôo. Não vai ser muito alto. Quem quiser acompanhar só precisa pensar na existência de três mundos… Calma, vou começar do começo…
Uma das teorias jurídicas menos aceitas do Dworkin é a idéia da “única resposta correta”, que ele defendeu há uns trinta anos. Pouca gente engole essa opinião do Dworkin de que, para os casos difíceis, há somente uma única resposta correta. Eu próprio sempre fui um crítico dessa teoria, apesar de, em geral, gostar das idéias de Dworkin. Só que, no seu “Justice in Robes” (2006), ele tentou justificar essa idéia de uma forma tão banal que é impossível não concordar com ele. Na verdade, me parece que ele alterou mesmo – e substancialmente – a sua formulação inicial (como não estou com os livros antigos dele aqui em Coimbra, não posso confrontar).
Basicamente, Dworkin defende, nessa versão mais recente, que, nos casos difíceis, há respostas melhores do que outras. E as melhores respostas são corretas nesse sentido. Então, entre várias soluções rivais, seria possível estabelecer qual a resposta mais correta, ainda que não exista um procedimento algorítmico de decisão que estabeleça com exatidão e certeza qual é essa resposta. Dentro dessa perspectiva simplificada, é inegável que a teoria da única resposta correta (pelo menos nessa versão) é correta, ainda que seja muito fraca.
Como não fiquei satisfeito com essa (nova) versão da teoria da única resposta correta de Dworkin, vou apresentar a minha própria teoria da única resposta correta só pra bagunçar o meio de campo. Para isso, vou precisar invocar a teoria dos três mundos de Popper.
Popper desenvolveu a metáfora dos três mundos com uma finalidade prática inegável: tentar demonstrar a objetividade do conhecimento e ajudar a esclarecer o complexo problema “mente-corpo”. Nas palavras do próprio Popper, “para compreender as relações entre o corpo e a mente, temos de admitir primeiro a existência do conhecimento objetivo como um produto objetivo e autônomo da mente humana, e em especial o modo como usamos esse conhecimento como um sistema fiscalizador na resolução de problemas fundamentais” (p. 12).
Assim, ele concebeu a existência de três mundos:
Mundo 1 – é o mundo físico, ou seja, o que a gente normalmente conhece por mundo;
Mundo 2 – é um mundo psicológico, dos estados mentais, ou seja, que está dentro das nossas cabeças (como os pensamentos, as emoções, os desejos, os sentimentos de um modo geral etc.);
Mundo 3 – é o mundo dos produtos da mente humana que ganham “existência” própria uma vez exteriorizados: a cultura, as teorias de um modo geral, a arte – tudo isso faz parte do Mundo 3. É aqui que está o conhecimento objetivo, abrangendo as hipóteses e teorias, os problemas não resolvidos, os argumentos a favor e contra qualquer hipótese etc.
Vou dar um exemplo meu para tentar explicar como ocorre a interação entre esses três mundos. Imagine uma partida de xadrez que está no seu momento culminante, ou seja, naquele estágio do jogo em que qualquer movimento errado pode causar a derrota.
O Mundo 1 é o mundo do tabuleiro, das peças, dos jogadores, das cadeiras e das mesas. É o mundo físico. Os movimentos das peças efetuados pelos jogadores ocorrem nesse mundo.
Na cabeça dos jogadores (Mundo 2), ocorre uma multiplicidade de “eventos mentais” que simulam as jogadas ou mesmo fornecem o “comando” para que os braços e as mãos possam movimentar fisicamente as peças no Mundo 1. Cada ser humano possui seu próprio “Mundo 2”, pois é um estado eminentemente subjetivo, ainda que afetado pelo Mundo 1 e pelo Mundo 3. Enquanto esses pensamentos subjetivos não forem objetivados por meio da linguagem, eles permanecerão no Mundo 2.
Finalmente, é possível cogitar a existência de um Mundo 3, onde estão todas as jogadas possíveis e imagináveis, bem como as regras do jogo, por exemplo. É claro que existem muito mais possibilidades de jogadas no Mundo 3 do que no Mundo 2, já que a mente humana possui uma capacidade limitada. Aliás, é por isso que os computadores estão ganhando dos seres humanos no xadrez: eles possuem um banco de dados com praticamente todas as possibilidades estratégicas possíveis. Os bancos de dados (ou melhor, o conteúdo dos bancos de dados) são produtos da razão e, como tais, estão no Mundo 3, ainda que possam estar “materializados” fisicamente no Mundo 1.
É preciso não confundir o Mundo 3 com o mundo das idéias de Platão ou das essências de Aristóteles ou o Reino dos Fins de Kant, por exemplo. O Mundo 3 é produto do intelecto. Logo, é um mundo em constante evolução, já que o conhecimento racional vai-se acumulando gradualmente. No Mundo 3, não está a “verdade absoluta” ou a “essência das coisas”, mas apenas o conhecimento humano objetivado, que é sempre limitado e falível, pois sempre há conhecimento novo a ser adquirido ou descoberto. As idéias que estão no Mundo 3 são idéias em evolução. É como se fosse uma biblioteca onde a cada dia são acrescentados novos livros. Ou melhor: é como a internet, que vai sendo alimentada com informações diariamente.
Para ver como essa idéia dos mundos popperianos é simples, basta ver o seguinte quadro que resume bem essa teoria:
:-)
Dentro dessa lógica, é possível desenvolver a teoria da única resposta correta.
Os casos difíceis, por definição, são aqueles em que há desacordo quanto à resposta correta. Existem pelo menos duas soluções possíveis, mas elas se chocam, fornecendo diretrizes contrárias.
Um caso difícil geralmente se desenvolveria do seguinte modo (pegando emprestada outra teoria de Popper):
P1 → TE → EE → P2
Explicando: diante de um problema de difícil solução (P1), os juristas propõem várias teorias experimentais (TE) rivais para tentar solucionar o problema, que são testadas dentro de uma lógica de ensaio e erro (EE). As teorias que forem sendo falsificadas são eliminadas nesse processo, ainda que permaneçam no Mundo 3 como teorias falsas. Uma vez solucionado esse problema inicial (P1), novos problemas surgem (P2), para os quais são propostas novas teorias experimentais e assim sucessivamente.
O conhecimento objetivo (Mundo 3) é fruto das teorias experimentais rivais que competem para solucionar o problema e se acumulam ao longo do tempo. Nesse sentido, diante das informações até então disponíveis, é inegável que, em algum lugar do Mundo 3, existe sim uma única resposta correta para um dado problema. Para ser mais preciso: existem múltiplas opções, mas apenas uma é a melhor, ainda que o juiz sentenciante não tenha condições de saber, com elevado grau de precisão, qual é essa solução.
Aceitar que existe uma única resposta correta não significa dizer que apenas uma resposta pode ser aceita pelo ordenamento jurídico. Na verdade, as duas respostas contraditórias podem ser aceitas sem problema. Basta lembrar do jogo de xadrez: há vários movimentos possíveis, todos igualmente válidos conforme as regras do jogo. No entanto, apenas uma corresponderá à estratégia vencedora.
Se o juiz tivesse uma capacidade ilimitada de fazer todas as simulações possíveis, tal qual o Deep Blue, certamente encontraria uma resposta que pode ser considerada como “a melhor”, pois teria acesso a todas as informações contidas no Mundo 3 e aí estaria apto a decidir da melhor forma possível. Dworkin, para isso, invocou a figura do Juiz Hércules, que seria tal qual um Deep Blue Jurídico.
Como os juízes não são Hércules, nem sempre as decisões judiciais que estão nas suas cabeças (Mundo 2) refletem a melhor solução (Mundo 3). Mas a melhor solução existe. Só está esperando ser descoberta ou talvez até tenha sido descoberta, mas nunca é possível saber se, realmente, a solução adotada é a melhor resposta possível.
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A primeira vez que vi a aplicação dos três mundos de Popper ao direito foi na tese de doutorado do Hugo Segundo, em que ele fez uma (ótima) relação entre o direito natural e o Mundo 3. Mas vários outros juristas também já usaram a mesma teoria para outros fins. Cito, em particular, Aarnio Aulis, que também mencionou os três mundos popperianos no seu “Rational as Razonable”.
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DUAS FORMAS DE DIZER A MESMA COISA
Lembrei de outra maneira de explicar a teoria P1 → TE → EE → P2 (para ver melhor, sugiro que clique aqui ou na imagem):
Está cada dia mais complicado eim professor…
Depois é o Alexy… hehe tudo isso que o Popper disse já não é senso comum?????
Pois é, Minotauro. Estou pegando o jeito. “Academia, aí vou eu!”, como diria o Calvin…
Bom post. Mas há um problema na sua teoria da resposta correta (situada no Mundo 3). O que exatamente é o “melhor” dentro do Mundo 3? O que é considerado assim pela comunidade de juristas?
Há outras alternativas: 1) “Melhor” num sentido objetivo. Existe um princípio do melhor no mundo objetivo (Mundo 1)? (Leibniz defendeu que sim!); ou 2) “Melhor” num sentido subjetivo, para o juiz ou para as partes do processo judicial (Mundo 2).
Entre esses melhores, qual o melhor?
Abs!
Responda entao essa pergunta: Professora de escola publica pode usar trajes religiosos em servico?
obs: Tomara que voce nao tenha visto a resposta dada por um respeitado orgao autorizado
quero ver como o Popper pode te ajudar nessa…
Ja te adianto… fico com kelsen.
Sim ou nao estao autorizados
Tiago,
O melhor para o George EH O MUNDO 3
Talvez o problema seja como livrar o MUNDO 3 dos preconceitos do mundo 2.
Dificil… pelo menos quando uma norma permite mais de uma solucao…
Leibniz confunde o mundo 1 com o mundo 3. Com o metodo de popper, nao ha como trata-los da mesma forma, jah que o mundo 1 eh pura natureza…. os pensamentos para popper estao em outra dimensao. Por isso eh impossivel o pensamento atingir a essencia.
George,
Obrigado pela referência e pelo juízo de valor positivo sobre minha tese e o tratamento que dei a essa questão “dos mundos” do Popper, que considero notável (a teoria dos mundos, e não a referência que fiz a ela!!!).
Em verdade, fui introduzido a essa teoria dos mundos pelo prof. Marcelo Lima Guerra, na disciplina de Teoria do Direito, no mestrado da UFC, lá pelos idos de 2004.
Gostei muito da sua abordagem. “Em algum lugar do mundo 3″…
um abraço,
Ah… Não tem nada a ver com o post, mas quando vi esse vídeo, não sei por que, lembrei de você: http://direitoedemocracia.blogspot.com/2009/04/quero-ser-imigrante-em-coimbra-se-nao.html
Thiago,
você tocou no cerne principal da controvérsia, que, desta feita, sai da espistemologia e entra filosofia política (pelo menos, no que se refere ao conhecimento jurídico). A discussão atual na filosofia política gira em torno precisamente desse ponto, mas posso adiantar que a maioria das pessoas que são contra a jurisdição constitucional não acredita nesse Mundo 3, ou se acredita, não acha que seja possível encontrar a melhor resposta com base na razão. E por isso preferem esquecer a melhor resposta e buscar o melhor procedimento: a melhor resposta seria a que é dada pelo melhor procedimento. Particularmente, vejo uma contradição lógica nesse ponto de vista, mas prefiro deixar para um outro momento.
Acho que qualquer pessoa, com base numa razão crítica, pode encontrar a melhor resposta. O problema todo é que a melhor resposta hoje pode não ser a melhor resposta amanhã, pois o conhecimento objetivo evolui. Assim, mesmo que eu “pense” que encontrei a melhor resposta e, de fato, ela seja a melhor resposta, ainda assim não saberei se é a melhor resposta. Nesse ponto, remeto ao meu primeiro paper.
George
João Paulo,
os casos difíceis, por definição, são aqueles em que há desacordo quanto à resposta correta. Há duas opiniões possíveis, mas elas se chocam. Para quem acredita no conhecimento objetivo, apenas uma resposta é a correta, ainda que as duas possam ser aceitas pelo ordenamento jurídico. Não há qualquer contradição entre o pensamento de Dworkin e o de Kelsen, nesse ponto, pois Dworkin está pensando um pouco metafisicamente (o Mundo 3 não é o mundo físico, que Kelsen tanto admirava).
Desse modo, dentro da teoria da única resposta correta, a resposta eventualmente incorreta pode ser válida, pois o que importa, para verificar a validade, é o que os tribunais decidem.
Lembre-se do jogo de xadrez: há várias respostas possíveis, todas igualmente válidas conforme as regras do jogo. Só que, se a gente tiver uma capacidade ilimitada de fazer todas as simulações possíveis, tal qual o Deep Blue, certamente haverá uma resposta que pode ser considerada como “a melhor”.
George
Thiago, não é que eu acho que o melhor é o Mundo 3. Na verdade, do ponto de vista biológico, só o mundo 1 e 2 fazem sentido. Os animais, de um modo geral, vivem muito bem sem o Mundo 3.
No entanto, eu acredito na razão humana (sem excluir a importância do sentimento humano, que também acho que foi moldado pela evolução para auxiliar a razão – vide António Damásio). Por isso, acho que o Mundo 3 não é um mundo “divino” ou inacessível ou de acesso limitado apenas para alguns iluminados. É um mundo nosso, de todos seres racionais, e por isso qualquer pessoa pode ter acesso a ele. Daí a sua função nitidamente emancipatória. Não acho que existam seres superiores aos outros. Existem alguns que tem mais informações abstratas relativas ao Mundo 3, mas muitas vezes não conseguem solucionar problemas simples da vida. Por outro lado, há pessoas que possuem poucas informações do Mundo 3 e são gênios na sua área, justamente porque dominam as informações necessárias que lhe sejam úteis. Todos têm algo a contribuir de importante para a evolução do Mundo 3, nem que seja com o mau exemplo.
Quanto à relação do Mundo 2 com o Mundo 3, realmente, é uma relação de “amor e ódio”. Um não vive sem o outro, mas brigam com muita freqüência.
Todas as soluções começam no Mundo 2 (sob a forma de conjecturas – ou feeling) e são lançadas no impiedoso mundo da racionalidade crítica, que é o Mundo 3 (das refutações). As teorias piores, mais dia menos dia, serão eliminadas, como de fato várias foram ao longo da história. E assim caminha a humanidade. O papel dos seres racionais é lutar para que as idéias boas prevaleçam.
George
George, fiquei curioso para saber a contradição lógica que vc vê na troca da “melhor resposta” pelo “melhor procedimento”.
A modernidade sepultou a idéia de verdade (Descartes, Kant, Locke). O “nomos” engoliu a “physis”. A verdade passou a ser produto da subjetividade (redenção do indivíduo) e, na política, tornou-se produto de consenso (veja o tribunal do júri anglo-saxão). É a lógica contratualista da vida social, que perdura até os dias de hoje e está embutida na nossa Constituição. Veja que a morte da verdade emancipa o indivíduo. Toda verdade é despótica, já disse Hannah Arendt. O liberalismo político e o liberalismo científico estão intimamente ligados, já percebeu o próprio Popper. A verdade se reduziu a uma mera idéia reguladora (no direito, uma ordem justa deve ser, em tese, verificável). Com isso os modernos concordam. É o que o Dworkin retoma. É um “dever ser”. A verdade deixou de ser “ser”. Ora, qual a solução lógica para o direito? Se concentrar em procedimentos, e não em resultados. Ações deontológicas e não teleológicas. É o que Rawls chama de justiça procedimental. A contradição lógica, pra mim, seria levar a sério sistemas de respostas corretas.
Tiago,
a discussão epistemológica sobre o conceito de verdade deixo pra depois.
Por ora, resumo a contradição em uma única frase: como estabelecer qual o melhor procedimento sem apelar para argumentos construídos fora do próprio procedimento?
Particularmente, não conheço nenhuma teoria procedimentalista que tenha sido contruída respeitando seus próprios fundamentos. Todas elas partem de “verdades” arbitrariamente definidas pelo seu próprio idealizador, como por exemplo a suposta verdade de que todo conhecimento é subjetivo e que tudo não passa de uma construção social moldada pela cultura e pela ideologia.
Portanto, a contradição lógica é essa: para se chegar a uma teoria procedimentalista, sempre será necessário partir de alguns pressupostos não construídos por nenhum procedimento.
George
Ah, e não foi a modernidade que sepultou a idéia de verdade, mas o pós-modernismo. Popper não afasta a idéia de verdade. Ele apenas acha esta não é alcançável. O máximo que conseguimos é nos aproximar dela, construindo teorias que correspondam aos fatos. (vide meu primeiro papper).
Você diz: no campo político, a verdade é produto do consenso. Mas aí também há uma contradição lógica. O consenso só é possível porque as partes se convenceram de que existe melhores propostas do que outras. Se houve um convencimento sincero e racional, é porque essa proposta já estava lá muito antes do consenso defini-la.
O consenso é instrinsecamente bom porque é onde as idéias frutificam e as pessoas amadurecem moral e politicamente. Mas dizer que a verdade é produto do consenso é um equívoco tão grande quanto dizer que a moral é produto da vontade de Deus. O bom, o justo e o correto são valores que independem de qualquer consenso. O consenso é apenas um instrumento para descobri-los ou mesmo construí-los, mas construí-los com base em argumentos baseados na razão, que já estavam lá e só esperavam de um debate para florescer.
George
George,
Algumas observações importantes:
– Num jogo de xadrez é o seu objetivo que orienta as escolhas de suas jogadas, um elemento externo ao jogo. Se desejo a vitória ou o empate não é uma questão interna ao jogo; Por isso não é o manejo das regras do xadrez que me dá a resposta correta, mas sim um elemento externo a elas;
– O seu exemplo do jogo de xadrez não é adequado para expor sua tese, pois um jogo sempre é um procedimento, e no caso do xadrez, um procedimento que coordena jogadas alternadas, o que torna tudo mais complexo e demonstra seu carater procedimental. Ao jogar, não tenho como de início saber qual a melhor jogada a ser feita, mas perseguir a melhor estratégia frente a resposta dada por meu adversário, mediante sucessivas jogadas;
– Por fim, um julgador não encontra a resposta correta, mas a resposta possível para o caso, até pq a resposta correta de hoje pode ser a resposta falsa de amanha, com o aparecimento de um novo dado até então desconhecido, o que indica que não existem respostas certas ou erradas, mas respostas adequadas ao seu tempo;
Antes de mais nada, Prof. Dr. George, parabéns pelo blog. Tenho me tornado um frequentador com certa assiduidade pela leveza e ao mesmo tempo profundidade com que aborda os temas. Procurarei, na medida do possível, também ser um participante mais ativo.
Minha opinião sobre o tema deste post:
Essa representação em três mundos é a reprodução da dicotomia mente-corpo. Assim como creio que não existe essa dicotomia, sendo mente e corpo uma só unidade – tudo o que na mente se passa está reproduzido no corpo, observo que o mundo 1 só existe para cada indivíduo a partir da interpretação que dá do que obtém dos sentidos, e essa interpretação é resultado de uma filtragem que é devida pelo ambiente do mundo 2, e sua formulação do mundo 3, recebe as influências de seus filtros internos gerados por esse processo dinâmico, ao mesmo tempo em que ao atuar no mundo 1 ele o faz dentro do mundo 2. O exemplo do xadrez, com suas peças e tabuleiros, colocados no mundo 1, só pode ser entendido a partir do mundo 2, que gerou e se retroalimentou do mundo 3. Se eu apresentar um tabuleiro a alguém para quem o xadrez nunca foi apresentado, haverá uma significação completamente diferente para alguém que conhece o jogo. Então não existe esse mundo 1 objetivo sem o mundo 2 e 3. Quero dizer que essa fragmentação, embora pareça didática, é falaciosa e se nos conduzimos por ela para obtermos respostas, seremos como a cobra que quer engolir o próprio rabo: vou buscar forçar minhas respostas dentro de um pressuposto e não vou encontrar as incongruências a menos que me abstraia do modelo. A idéia da resposta da única resposta correta faz sentido dentro desse contexto, e a melhor resposta sempre está limitada ao modelo de mundo de quem a formula. Essa limitação é insuplantável, a meu ver e creio que expandir esse modelo de mundo, observando os sistemas maiores de que fazemos parte pode ajudar a amenizá-la.
Júlio, quanto os dois primeiros itens, estou com um post pronto onde assinalo algumas diferenças entre o jogo de xadrez e os problemas jurídicos. Ainda não publiquei porque achei que dois posts “filosóficos” seguidos iria afastar alguns leitores.
Quanto ao terceiro ponto, concordo com você. Foi esse o sentido que dei à “resposta correta”. Não há uma única, eterna e imutável resposta correta, mas uma resposta correta diante das informações até então disponíveis. É uma resposta correta “enquanto dure”… Então, realmente, a palavra “correta” pode ser trocada sem problemas por possível, isto é, “melhor possível”…
George
a propósito, esse é o próprio conceito de resposta correta de Dworkin nessa última versão: a resposta correta é a melhor resposta possível.
Cloadoaldo,
na medida em que você fala: “Se eu apresentar um tabuleiro a alguém para quem o xadrez nunca foi apresentado”, já não significa que você acredita num mundo 2 desvinculado do mundo 1? Digo: se existe outra pessoa além de você, é porque nem tudo se passa exclusivamente na sua mente.
Do mesmo modo, quando você diz: “o mundo 1 só existe para cada indivíduo a partir da interpretação que dá do que obtém dos sentidos”, só em pensar na possibilidade interpretação, já não seria um reconhecimento de que existe um mundo 1 que indepedende do mundo 2?
Não nego que existem múltiplas interpretações do mundo 1, mas essas múltiplas interpretações não significam que não existe um mundo 1 alheio às subjetividades. Será que os objetos físicos só ganham existência própria depois que são “interpretados” pelo mundo 2?
Confesso que esse não é um dos temas filosóficos que tenham me “empolgado” tanto, pois me parece tão complicado não acreditar numa realidade que independe da nossa mente que não me dei ao trabalho de aprofundar o estudo, até porque tenho que ser seletivo, diante da imensidão de conhecimento ainda a ser digerida.
Mas sei que é um tema complexo e que há bons filósofos que defendem a unidade mente-corpo.
george
A ressalva de Habermas deve ser considerada, de que com esses 3 mundos, Popper coloca as “relações” em um plano ontológico (e não histórico). Ou seja, a visão histórica é anulada e isso nem Dworkin consideraria…
É um empirismo puro difícil de ser defendido…
Fernado,
pode traduzir?
George
George,
Existe um mundo objetivamente, independente de minha mente, meus pensamentos, minha cultura. No entanto, o meu mundo 1 é resultado de uma captação de uma ínfima parcela de manifestações desse mundo objetivo, que apreendidas pelos sentidos são então interpretadas e incorporadas aos mundos 2 e 3, e graças à nossa abstração vamos construindo mundos internos cada vez mais distantes desse mundo externo, vivendo essencialmente dos aprendizados e experiências de abstrações compartilhadas. Há frequencias de sons que não estão acessíveis a mim, eu não me conscientizo delas, então elas não podem fazer parte de meu mundo 1, embora existam objetivamente, descobertas por equipamentos que expandem esse mundo objetivo externo. Mesmo sons que eu poderia perceber, não existem no meu mundo se eu não for treinado para isso: o músico é capaz de perceber elementos em uma composição que estão completamente distantes de meu mundo 1, 2 e 3. Assim, na verdade esses três mundos só podem ser compreendidos didaticamente. A educação é a tentativa de construir mundos internos semelhantes o que permitiria a percepção de uma consciência única coletiva e assim ser possível a comunicação. Duas pessoas em tese observando a mesma realidade objetiva externa, irão perceber elementos completamente diferentes, pois seu mundo objetivo é a conscientização de aspectos diferentes, muitos não existindo no mundo externo, mas sendo produto da nossa abstração: alguém pode ver uma paisagem e descrevê-la como ensolarada, conceito que não existe objetivamente no mundo externo, mas que seria colocado em seu mundo 1. Um som só é som se houver alguém que assim o interprete. Nós nos comunicamos dentro das abstrações do mundo externo, utilizando-o como referência para a construção de nossa realidade interna. Comunicar-se é transmitir sentido ao mundo do outro.
Quando vou buscar uma única resposta correta, sempre estarei buscando dentro de minha única dimensão. A tarefa é torná-la parte do mundo de outros, através principalmente da construção linguística, que em si já é a busca por uniformizar os mundos 1,2 e , o que nunca ocorre pela diversidade de estímulos a que cada um se submete.
Sds,
Gostaria somente de acrescentar que o mundo 1 pode ser entendido como o que enxergamos e entendemos como realidade objetiva para nós. Se entendermos que esse mundo 1 em que atuamo é na verdade uma dimensão consciente e por nós elaborada, e que outros possuem mundos 1 completamente diferentes, penso que o conceito de Popper tem sua utilidade didática. O mais importante é ser capaz de interagir de uma maneira mais aberta, calibrando-se na comunicação com o mundo externo, deixando os sentidos abertos. Muitas vezes vivemos somente dentro de mundos completamente distantes da interação com o exterior. A melhor comunicação é aquela que se baseia na constante observação das respostas obtidas em minha interação com o outro e com o mundo objetivo, na busca de resultados desejados.
Clodoaldo,
então acho que estamos falando a mesma coisa.
O fato de a minha interpretação do Mundo 1 ser difrente da sua, ou seja, estou vendo uma pipa amarela e você está vendo uma pipa rosa, não significa dizer que não exista uma realidade que independe de nossas percepções. Ou seja: existe um mundo 1 – e esse mundo não depende de nossas mentes ou de nossa cultura. Existe e ponto final. Não interessa se a pipa é amarela ou rosa, pois ela está lá.
O Mundo 2 – de fato – é tudo o que conhecemos, ou seja, conseguimos sentir, “captar”. Nós sabemos que a pipa que enxergamos – que para mim é amarela e para você é rosa – existe e está lá: a cor “verdadeira” dela independe de nossas percepções.
Onde estou errado?
George
George,
O problema está no mundo 1. Ele só, digamos existe, em minha mente quando toma consciência de certos aspectos, o que mesmo assim está muito condicionada aos nossos filtros de conceitos já assimilados. Embora haja algo no mundo externo objetivo, ele não existe se não me conscientizei dele, se não o elaborei intelectualmente. No caso da pipa rosa ou amarela, os conceitos de rosa e amarela, que você utilizou para diferenciar nossas percepções de mundo, não existem objetivamente, somente em nossa construção, as cores são interpretações. Portanto, o mundo 1 é totalmente construído pelos mundos 2 e 3. O que vai fazer com que alguém diga que percebe o mundo externo como outro percebe é resultado de incorporações de uso de palavras semelhantes a partir da conscientização de certos estímulos. Se alguém só conhece o animal cachorro e eu apresento um animal cavalo, ele vai dizer que é um cachorro grande, pois não existe uma outra possibilidade em seu mundo. E então, onde está um mundo 1 objetivo?
Melhor explicando: se alguém acredita em fantasmas, porque assim aprendeu a interpretar o mundo, porque foi convencido de que essa é uma realidade, no mundo 1 dele existirão fantasmas e estímulos que para você tem um determinado significado, para ele são interpretados como manifestações de fantasmas. No mundo 1 dele existem fantasmas e ele vai construir mundos 2 e 3 e interagir em seu mundo 1 como existindo fantasmas. Quando você o observar, vai perceber nele exteriorizações incompatíveis com sua interpretação objetiva do mundo, seu mundo 1 não bate com o mundo 1 dele, você atua de uma maneira diferente.
Quando falo de verdade construída pelo consenso, falo de verdade já num sentido formal, longe do sentido aristotélico e tradicional de verdade, que é o que vc está usando. Vc está concebendo a verdade como um dado. E sim, foi a modernidade que enterrou a verdade (Descartes e Kant não são pós-modernos!). A modernidade criou a verdade da forma, do aparente (o que, em relação à concepção tradicional de verdade, não pode ser chamado de verdade, já bem observou Carnelutti). O pós-modernismo apenas aprofundou o processo.
Em relação à contradição lógica que vc vê em relação à idéia do melhor procedimento, não vejo contradição alguma. Nem John Rawls, que aponta 3 tipos de justiça procedimental: na perfeita, dispomos de um critério independente e o procedimento é estruturado para assegurar que o resultado satisfaça o critério; na imperfeita, dispomos de um critério independente, mas não é possível um procedimento que satisfaça o critério; na pura, o critério é intrinsecamente procedimental (sem qualquer referência ao resultado).
Me atrai especificamente o último tipo. É o que vemos nos jogos de azar, por exemplo. Se um certo número de pessoas se engaja em uma série de apostas regulares, voluntárias e sem trapaça, a distribuição do dinheiro após a última jogada é justa. O resultado do jogo é justo se forem seguidas as regras que definem seu procedimento, sem a necessidade de lançarmos mão de um critério independente voltado para valorar a justiça do resultado. Se o jogo foi limpo, o resultado é justo, seja ele qual for. O processo penal do júri anglo-saxão é um procedimento desse tipo. Não é anti-moderno como o nosso, que ainda apela para uma idéia de verdade real (que valora o resultado).
Prof. George,
O também Prof. Adriano Soares da Costa trata dos três mundos popperianos em seu livro “Teoria da incidência da norma jurídica: crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho”.
O mais interessante é a aproximação que fez entre o pensamento de Popper e a doutrina de Pontes de Miranda.
Segue endereço do seu blog e de artigo em que defende as idéias.
http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2009/04/direito-linguagem-e-marcelo-dascal.html
Incidência e aplicação da norma jurídica tributária.
Uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho.
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2140
Abraço!!
Prof. George, primeiramente, Parabéns pelo Blog!
Bom, sou enxadrista, advogado/concurseiro/e pretendente de mestrado.
Não conhecia a Teoria da única resposta correta, tampouco a dos Três mundos..- sou iniciante, aliás nem isso sou na Academia. Logo, mesmo sendo seguidor empírico da primeira teoria, tenho dúvidas: Talvez pelo meus parcos conhecimentos no mundo 3, sinceramente, não cosegui fazer a diferença do mundo 2 e 3 (e isso é um problema em minha vida, acredite). Pra mim, é tudo subjetivo! Por exemplo, a cultura baiana, pra uns é um lixo, pra outros é o fino da MPB…Teorias então…(nem se fale) vivem sendo derrubadas..pesquisas idem: antes um copo de vinho fazia mal, hj faz bem, sempre com base em teses técnicas…, aberturas de xadrez a mesma coisa…(sigo uma linha na carokan que o Fritz e os GMs reputam horrível, entretanto consigo bons resultados na prática…tudo depende do adversário), decisões judiciais também (como dizer que a guarda da criança fica melhor com pai ou mãe, estando ambos em igualdade? Ora, a resposta vai depender da família que se perguntar..) Finalizando, sempre pautei minha vida considerando existir apenas uma resposta correta (tanto que sempre contestei aquele ditado: não me arrependo de nada do que fiz!!) Mesmo assim, continuo sem enxergar a diferença entre os mundos.. resultado: como mensurar o resultado? Afinal, tomo ou não tomo vinho? critico ou não a música baiana? melhoro a minha abertura pra ganhar mais fácil ou isso pode prejudicar o meu jogo? Recorro ou não de uma sentença contrária ao meu cliente que perdeu a guarda da criança, já que pra ela, tanto faz mesmo…
Não sei se fui claro…Mas se puder me responder, ficarei grato.
Abs
curso sobre teoria dos jogos do Ben Polak de Yale disponibilizado na íntegra pela internet. Nesse link há vídeos das aulas, escritos no quadro, referências, exercícios etc.
http://oyc.yale.edu/economics/game-theory
o mundo nao vai acabar eu acredito en sejus quen nao acredita fica com iso na cabesa