O Loveparade é um festival de música tecno ao ar livre. Foi concebido originariamente como manifestação política pela paz através da música. Na sua primeira edição, em 1989, tinha apenas 150 participantes. Dez anos depois, passou a ser freqüentado por mais de um milhão de pessoas. É considerado como a maior festa rave do mundo.
O evento costumava ocorrer numa área pública no centro de Berlim. Em 2001, por conta dos transtornos causados pela multidão, as autoridades berlinenses (administrativa e policial) indeferiram o pedido de autorização para realização do evento formulado pelos organizadores do Loveparade e, em conseqüência, proibiram a sua realização em Berlim. O argumento utilizado pelas autoridades públicas foi o de que tal ato indeferitório não constituiria uma violação do direito constitucional de liberdade de reunião porque o Loveparade não se qualificaria como uma reunião pública inserida no âmbito de proteção da norma constitucional. Para as autoridades, não se poderia falar em reunião, já que o Loveparade havia se transformado em um mero evento comercial sem qualquer objetivo de expressar opiniões ou idéias.
Os organizadores do Loveparade questionaram os atos administrativos judicialmente. Não obtiveram sucesso nas instâncias ordinárias, pois a jurisdição administrativa concluiu praticamente a mesma coisa, ou seja, que o Loveparade não estaria protegido pela liberdade de reunião, por lhe faltar o elemento ideológico. Para o Oberverwaltungsgericht (Supremo Tribunal Administrativo Regional), a proteção constitucional deveria estar relacionada à expressão de uma opinião e não poderia ser alcançada pela mera dança e música e nada mais. Seria necessário qualquer outro elemento adicional que levasse à construção de idéias.
Inconformados com a decisão das instâncias ordinárias, os organizadores do Loveparade recorreram ao Tribunal Constitucional Federal alemão alegando que o conceito de reunião estabelecido pelos tribunais administrativos era muito restrito, já que qualquer união de pessoas baseadas em uma vontade ou crença partilhadas mereceria ser considerada como reunião para fins da proteção constitucional. Em suas palavras, as manifestações políticas, com objetivo de expressar uma opinião, seriam importantes, mas de nenhuma forma exclusivas para caracterizarem a incidência da norma constitucional que garante liberdade de reunião.
O Tribunal Constitucional alemão manteve a decisão das instâncias inferiores, negando autorização para a realização do Loveparade. Basicamente, ficou decidido que (a) seria preciso uma investigação fática mais aprimorada para conhecer as características e objetivos do evento, o que seria inviável no âmbito da reclamação constitucional; (b) os organizadores do evento não demonstraram o erro das conclusões fáticas e jurídicas adotadas pelos tribunais inferiores; (c) a liberdade de reunião, ainda que seja um dos direitos fundamentais mais importantes para a democracia, já que exerce uma função substancial na formação da opinião pública, não protege uma mera aglutinação de pessoas unidas por objetivos partilhados como a dança e a música, sendo indispensável um propósito de manifestar uma opinião, o que não ficou demonstrado no caso do Loveparade.
Depois da resposta do Tribunal Constitucional alemão, os organizadores do evento tiveram que mudar a data e o local previamente estabelecidos, o que gerou inúmeros prejuízos financeiros, pois perderam alguns patrocinadores e vários participantes desistiram de comparecer. Estima-se que o prejuízo foi de mais de 2,5 milhões de marcos alemães.
Os organizadores da Loveparade ainda pressionam as autoridades para tentar caracterizar a manifestação como um evento político protegido pela liberdade de reunião, já que seu propósito seria, entre outros, defender a paz mundial através da música. As autoridades locais, contudo, não costumam ser muito sensíveis a esse argumento, respaldadas pela decisão do TCF. Em 2004 e 2005, por exemplo, o evento não pôde ocorrer na Alemanha, por falta de autorização. Ao que parece, o Loveparade 2009, que seria realizado em Bochum, também foi cancelado.
Minha opinião sobre o caso:
Particularmente, desde já reconhecendo que as informações de que disponho sobre o caso são muito escassas, não concordo com a decisão do Tribunal Constitucional alemão, por dois motivos básicos: (a) parece-me que o Loveparade tem sim um intuito de divulgar uma idéia – seja a paz, seja o amor, seja a música tecno -, ainda que a forma de expressão não se amolde ao “mainstream“, ou seja, ao gosto cultural da maioria da população (a mim, não me agrada); (b) mesmo que não tivesse qualquer intuito ideológico por detrás do Loveparade, penso que a Constituição não protege apenas as reuniões ideológicas, mas qualquer tipo de reunião, desde que haja interesses comuns compartilhados, como ouvir e dançar uma música em praça pública.
Por isso, na minha ótica, o Loveparade está sim protegido pelo direito fundamental de liberdade de reunião, desde que não cobre ingressos, nem impeça o acesso de pessoas a áreas públicas. Dito de outro modo: as atividades meramente recreativas também merecem proteção constitucional, mas isso não significa que promotores de eventos possam cobrar pelo uso de espaços públicos, pois certamente as áreas públicas pertecem a todos e não podem ser fechadas para fins particulares, exceto nos casos previstos em lei.
Portanto, tratando-se de festa popular gratuita (confesso que não tenho certeza se o Loveparade é uma festa popular gratuita), não creio que o estado possa impedir a sua realização, sob a alegativa de que não possui um conteúdo ideológico. Se um grupo de amigos resolver comemorar a vitória do seu time em praça pública, há proteção constitucional, ainda que isso não promova nenhuma discussão de idéias. A liberdade de reunião, na minha ótica, não pode ser controlada ideologicamente (salvo excessos, obviamente) e o Estado deve se manter, em regra, neutro quanto ao conteúdo. Ora, se o Estado não pode controlar o conteúdo, então até o conteúdo neutro ou vazio também merece proteção.
O problema é que o Loveparade ganhou uma dimensão tão desproporcional que outros valores importantes talvez possam ter sido ameaçados, mas, até onde sei, isso não foi discutido pela Justiça alemã. Portanto, sob esse aspecto, pouco posso comentar, apenas especular. Acho que os organizadores do evento, já que estavam lucrando, poderiam ser responsáveis pelo pagamento dos custos de segurança, limpeza e outros serviços que, em princípio, deveriam ser prestados pelo poder público. Do mesmo modo, seria possível estabelecer alguns limites administrativos para proteger o patrimônio histórico-cultural, ou a tranqülidade pública, ou impor limites contra a poluição ambiental e sonora e assim por diante.
Além disso, creio que eventuais ilícitos praticados pelos participantes do evento (consumo de drogas, por exemplo) deveria ser punido pontualmente, sem contaminar a globalidade da festa. “Se as violações jurídicas não forem apoiadas pelo grupo na sua globalidade, mas se apenas partirem de particulares no seio de uma reunião geral pacífica, o caráter pacífico da reunião não é, por esse fato, prejudicado no seu todo” (Schlink & Pieroth, p. 229).
Enfim, o exercício do direito de reunião pode ser limitado dentro dos critérios objetivos da proporcionalidade, não podendo ser afetado pelo fato de a música tocada e os trajes dos participantes ser de discutível qualidade (pra dizer a verdade, das roupas eu até que gosto).
Na minha opinião, a proibição absoluta daquela manifestação significou numa clara afronta ao núcleo essencial do direito de reunião.
Mais informações:
Lembro que o professor L. Martins mencionou em suas aulas (lá por 2005) que, em oposição ao caráter comercial que a “Love Parade” passou a ostentar, surgiu a “Fuck Parade” em relação à qual, pelos mesmos argumentos, teve a proteção constitucional afastada.
Convenhamos: Se a Love Parade não tinha o intuito de divulgar uma idéia, a Fuck Parade o tinha nitidamente..rsrsrsrs
Bacana, desconhecia essa historia, já ate curti a primeira edição dela aqui em Brasília, e por aqui posso falar, foi o “bicho”, não sabia dessa ideologia da festa, por aqui a rapaziada faz um churrasco sempre em dezembro, pra poder reunir a galera, e que nessa ultima edição (foram apenas 2) apareceu mais gente que a anterior, será que um dia venha a ocorrer algo análogo? rssss… mas voltando…
não sei como era a organização lá em Berlim, se era uma festa totalmente gratuita, ou se no começo o pessoal fazia uma vaquinha, e depois com o sucesso da festa, tiveram que cobrar entrada, pois aqui é só mais um evento comercial, é em local publico, não sei como procede a autorização, só sei que fui mesmo por causa das gatinhas.:-)~~~~~~
Achei essa decisão, um ato totalmente opressor (do ponto de vista leigo sobre o tema), e mesmo apesar da festa não possuir mais um ambiente harmónico (já ate imagino como estava a folia), penso que continua a ser um movimento com ideias positivas, a incentivar comportamentos positivos, para um melhor desenvolvimento de respeito mútuo entre as pessoas, e suas consciências. Mas… tudo tem um porém, os organizadores, observando a mutação da festa, deveriam providenciar mais segurança, para que o consumo de drogas e confusões sejam subtraídos, e to ponto de vista do governo e do judiciário, olhando a omissão dos organizadores, nada restou a não ser parar com tudo, pois certamente a festa só iria piorar. Admiro os donos das festas, vendo seus ideais perecendo a cada ano (pois acredito eu, que foi uma festa que a cada ano, aparecia consequências mais graves), não tomaram atitudes preventivas, antes do poder Alemão tomar uma posição, ou talvez, como não era uma festa famosa, talvez seus organizadores, se juntavam para tomar doces e êxtase(Talvez!!!), com a finalidade de escutar musica louvando a paz, e sendo assim, chamavam a atenção de mais jovens que estavam a procura da paz, que ficavam “bem legal” para poder cantar e sentir a paz e o amor de forma “verdadeira” (não estou afirmando que essa seria a pratica adotada por eles, mas ate pode ser), mas estou afirmando que suas omissões, contribuíram para tal decisão Jurídico e Administrativo das autoridades Alemãs, e com tanto silêncio, talvez nem mesmo seus organizadores, acreditava mais na festa como uma manifestação pela paz, e sim como uma maneira de degustar caviar e lagosta todo dia, O DINHEIRO TEM ESSE PODER INFELIZMENTE, e aqui em brasilia, tinha ate tenda do sexo, e as coisas ficaram quente por lá.
ps: Prof, pedindo desculpa por posta aqui no seu blog, comentários anteriores de forma como se estivesse falando com amigos no msn.
abraço.
Até onde sei, o Loveparade original ocorria ao ar livre e não era cobrado ingresso para entrada. Mas confesso que não posso garantir se essa informação é verdadeira, pois se basea na análise das imagens que vi na internet.
George
Prezado Dr. George. Não considero essa Loveparede uma reunião a ser defendida pelos tribunais constitucionais como forma de expressão. Em minha opinião os tribunais alemães agiram corretamente.
Utilizar um local público, em que há outros interesses além dos que querem os organizadores de certos eventos, requer algum intuito ideológico realmente, algo que favoreça de certa forma a sociedade ou algumas parcelas. Não seja um evento para distração e sim para conscientização e muito menos com fins lucrativos, como me pareceu essa Loveparede. Para mim, não atende fins constitucionais.
Eunice,
de fato, concordo que se o intuito fosse meramente comercial não haveria um direito fundamental de ocupar espaços públicos para lucar.
Como disse, não conheço o evento, mas pelo que vi nas fotos pareceu algo como o carnaval de rua no Brasil, sendo que a música não é o axé, mas o tecno.
Se eu estiver enganado sobre esse aspecto, mudo de opinião sem problemas. Ou seja, se o evento for tal qual as micaretas do Brasil, onde os foliões têm que pagar para poder usufruir, não creio que haja um direito fundamental a usar ruas e praças públicas para esse fim, pois a área pública é de todos e não pode ser fechada para fins particulares, exceto nos casos previstos em lei.
Por outro lado, e essa é a minha crítica maior à decisão do TCF, a exigência de que as reuniões em espaços públicos tenham sempre uma finalidade ideológica não está na Constituição. É despropositada. A reunião para fins recreativos também merece proteção constitucional.
George
Só para deixar claro meu ponto de vista:
(a) é garantido o direito de reunião, ainda que para fins não ideológicos;
(b) não é garantido o uso de espaço públicos para fins meramente comerciais (particulares), exceto nos casos previstos em lei.
George
Concordo. O direito de reunião protege as idéias mais chulas, como a de promoção da paz por meio da música techno.
No entanto, tenho duas dificuldades em acatar 100% sua opinião:
1)O evento é comercial. O objetivo de quem promove é festa é ganhar dinheiro. A idéia de promoção da paz pela música techo mais parece um slogan para promoção do evento do que um fim para a reunião.
2)Reunião não é igual a um conjunto de pessoas. Deve haver um fim comum ao grupo. Dar ao termo reunião essa amplitude que quer dar implica admitir o fechamento das ruas da avenida paulista para que os cidadãos possam reunir-se. O motivo do pedido administrativo seria a promoção da paz e a aversão às modernidades do mundo moderno.
Concordo, em parte. Caso o objetivo seja a divulgação da música, a recreação, entreterimento, aprovo, com certeza. E, sem exigir qualquer ‘elemento ideológico’, embora considera a música um ideal supremo do ser (não há nada que modifique mais o espírito humano que a música). “Sem a música, a vida não teria sentido”. Por outro lado, penso que exista, sim, um intuito comercial no evento e, assim, deve, certamente, obedecer os regulamentos legais para que seja promovido em local público. O tribunal alemão, ao considerar necessário um fim ideológico, um propósito de se manifestar uma opinião, restringiu em demasia o direito de reunião. O manifesto favorável à música, à arte é uma ideologia!!
Renan, é exatamente como penso.
Na minha opinião, até mesmo reuniões recreativas merecem proteção. Se um grupo de amigos resolver comemorar a vitória do seu time em praça pública, há proteção constitucional, ainda que isso não promova nenhuma discussão de idéias. Se um grupo de adolescente resolve jogar futebol na praia, também há proteção constitucional. A liberdade de reunião, na minha ótica, não pode ser controlada ideologicamente (salvo excessos, obviamente) e o Estado deve se manter, em regra, neutro quanto ao conteúdo. Ora, se o Estado não pode controlar o conteúdo, então até o conteúdo neutro ou vazio também merece proteção.
Quanto ao aspecto comercial, disse e repito: se o evento era fechado e pago, também acho não há direito ao uso do espaço público para fins privados.
George
Só mais uma coisa: pelas fotos, tudo leva a crer que o evento não era fechado, ou seja, era uma autêntica festa popular em praça pública sem cobrança de ingressos. Mas confesso que não tenho certeza quanto a isso.
george
Não é a simples aglutinação de pessoas que caracteriza uma reunião protegida pelo específico direito. Deve haver um objetivo comum no encontro, qualquer que seja o conteúdo desse objetivo, respeitados certos limites. Ao que parece, a partir das informações do post, promover a paz é tão abstrato que não se pode falar de um objetivo delimitado, sem falar que, ao que parece, não implica em qualquer efeito prático. Entendo que os tribunais alemães acertaram.
Quanto à comemoração da vitória de um time de futebol pelas ruas ou ao encontro para um jogo de futebol, permita-me discorda também, caro George. Não são exemplos de exercício do direito de reunião e sim a simples liberdade de ir e vir. No Brasil, por exemplo, se esses dois exemplos fossem realmente reuniões, deveria haver a cientificação prévia ao Poder Público, o que não é o caso. Essa exigência formal corrobora o entendimento de que não é uma simples aglutinação de pessoas a caracterizar uma reunião protegida pelo art. 5°, XVI, da CF/88 e sim algo mais complexo.
O necessário propósito comum (que não se confunde com a mera aglutinação de pessoas, com o “propósito de todos”) não significa a imprescindibilidade de um expressão de opiniões.
Juraci,
veja o perigo de suas idéias: se um grupo se reunir em praça pública para defender a democracia, poderá ser dissolvido na marra, pois a democracia é uma palavra muito abstrata.
A reunião é um direito fundamental, sem dúvida, porque visa promover o debate de idéias. Mas quem disse que uma reunião recreativa também não pode ter o mesmo efeito só porque não possui uma pauta ideológica prévia?
Controlar o conteúdo de qualquer reunião é nitidamente totalitário. O estado não pode ficar se metendo no que as pessoas estão debatendo. Isso é um assunto que só interessa aos que estão reunidos.
Pelo que pude perceber no livro do Pieroth & Schilink, até então a Corte Constitucional vinha decidindo de forma contrária. Mas quando a reunião não estava de acordo com o “mainstream” aí se exigiu esse novo elemento. Particularmente, me pareceu autoritário.
Concordo que limites podem sem impostos, mas a proibição pura e simples não.
Quanto à exigência de comunicação prévia, é tão somente para evitar transtornos. Não cabe a proibição de uma manifestação espontânea em que não houve manifestação prévia. Nesse ponto, até o conservador TCF está de acordo.
George
Aliás, só para corroborar o que disse acima.
Eu havia escrito as palavras abaixo antes de ler a mesma coisa no livro do Pieroth e Schlink, que são bons representantes dos direitos fundamentais na Alemanha:
O dever de anúncio à autoridade competente é exigido tão somente para as reuniões em céu aberto planejadas com antecedência. Tratando-se de reuniões realizadas em locais fechados ou então que ocorram espontaneamente, sem planejamento e sem organização, ainda que em locais abertos ao público, é desnecessária a prévia autorização. Nessas situações, a autoridade competente não pode dissolver compulsoriamente reuniões pacíficas, ainda que não tenham sido previamente anunciadas, salvo se estiver havendo violência por parte dos manifestantes. Aliás, a ausência de prévio aviso não pode servir de desculpa para a dissolução compulsória, mediante força policial, de agrupamentos pacíficos, salvo se houver risco de que o exercício do direito possa acarretar um perigo real e imediato para as pessoas lá presentes.
Prezado George,
Provavelmente vc. deve ter tido conhecimento do bárbaro caso de pedofilia ocorrido aqui no Brasil, onde um padrasto estuprou sua enteada de 9 anos.
Presentes os permissivos legais, a menina foi submetida ao aborto. Fato é que hoje me deparo hoje com a notícia que lamentavelmente a Igreja mais uma vez declarou sua posição contrária a qualquer tipo de aborto e “excomungou” os envolvidos na operação (http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1028529-5598,00-ARCEBISPO+EXCOMUNGA+MEDICOS+E+PARENTES+DE+MENINA+QUE+FEZ+ABORTO.html).
Tal posição nem merece ser levada em consideração em um Estado laico. Ainda prefiro acreditar que se a questão for posta aqui através plebiscito ou referendo o aborto voluntário será descriminalizado, tal como ocorreu aí em Portugal (maior país católico da Europa) em 2007.
No entanto, a pergunta que eu faço é a seguinte: é possível admitir que se essa mesma menina não quisesse abortar voluntariamente, mesmo “consciente” de que caso a gravidez perdure a sua morte seja quase inevitável, poderia o Estado fazê-lo nas primeiras dez semanas e em estabelecimento de saúde próprio, visando assegurar sua vida?
Em outras palavras, o direito fundamental à vida da gestante deve prevalecer em detrimento da vida do feto nesses casos? Poderíamos pensar que a dimensão dos direitos fundamentais alcança a proteção da vida da gestante mesmo sem seu consentimento?
Me perdoe por trazer a questão neste espaço destinado aos comentários de seu último post, mas tive dúvidas se vc. o leria nos comentários do post do tema (https://direitosfundamentais.net/2008/07/14/independente-futebol-clube-uma-defesa-da-autonomia-da-vontade/).
Abraços!
Caro George,
Concordo com você. Não pode haver controle apriorístico do conteúdo da reunião, salvo se se verificar, no caso concreto, um ilícito. Quando afirmei que a reunião pela paz era abstrato não me referia a qualquer tipo de encontro com esse objetivo, mas especificamente o caso do Loveparade, que – ao que parece – é mera desculpa para uma festa. Uma passeata no Rio de Janeiro clamando pela paz nas favelas e cobrando uma atuação do Poder Público em função de crimes ocorridos é um exemplo perfeito de uma reunião com objetivo de busca pela paz bem delimitado. Contudo, simplesmente curtir a paz ao som de música não caracteriza reunião a ser protegido pelo direito específico. Também não estou dizendo que o evento devesse ser proibido, mas não se poderá invocar essa cláusula específica e sim outra, como por exemplo, o direito à liberdade de manifestação cultural, que, salvo engano, na Alemanha, não possui previsão constitucional expressa. Se, pelas peculiaridades do caso, o direito de reunião seria o único, na Alemanha, apto a justificar a realização do Loveparade, então, entendo que os julgamentos dos tribunais foram corretos.
O direito de reunião, certamente, não precisa de prévia autorização do Poder Público. Nossa Constituição menciona apenas o dever de comunicar previamente. A simples falta dessa comunicação não pode ser tida como motivo suficiente para impedir a reunião, salvo se houver outra anteriormente marcada para o mesmo horário ou houver outros motivos de ordem pública a justificar. Nesse ponto, não há nenhuma divergência entre nossos entendimentos.
Creio que nossa divergência é definir o que é reunião para efeito de proteção pela específica cláusula constitucional. A meu ver, o Loveparade, a comemoração da vitória de um time de futebol (flamenguistas bem o sabem, dado o maior hábito) ou “reuniões” recreativas não estão albergados pelo direito de reunião, podendo, entretanto, no Brasil, se invocarem outros direitos fundamentais para protegê-los, o que será até mais fácil, dada a desnecessidade de sequer se comunicar previamente ao Poder Público.
George,
E o carnaval na Bahia. Se nao me engano, uma avenida é parada para um evento de natureza comercial.
Como fica nesse caso?
valeu!!!!!!
Professor, apreciei com entusiasmo a construção dos fatos e fundamentações jurídicas e depois a sua desconstrução. A todo momento me ocorria a imagem do carnaval baiano, onde o espaço público é tomado por uma multidão que paga valores impensáveis para dançar ao ritmo do carnaval. Imagino que nossas autoridades tentando preservar o patrimônio público e evitar a poluição sonora provocada pelos altos volumes dos trios proíbissem tal aglomeração. A associação de trios elétricos entrassem com uma ação alegando ofensa ao direito de manifestação e reunião em lugares públicos. É lógico que tudo isso parece surreal, mas digamos que fosse factível tal julgamento e que nossa corte suprema fosse chamada a se manifestar. Teríamos então a vitória óbvia da nosso direito de manifestação e reunião ganhando de 10 x 0. Por isso, professor, eu acho que certas decisões e questionamentos só são possíveis em dada realidade cultural. É plenamente aceitável que a corte alemã assim agisse dada a grande repulsa dos alemãs a licensiosidade. Ao contrário do Brasil, que temos uma tradição de grande tolerância a licensas indevidas a moral.
Juraci,
nossa divergência é aparentemente pequena, mas, no fundo, é bem profunda. Afinal, o que estamos discutindo é o conceito de reunião. E defendo um conceito amplo, para abranger inclusive as reuniões que não possuam caráter ideológico (como as recreativas). Já você, concordando com o TCF, vincula o exercício do direito fundamental a uma pauta ideológica qualquer.
Talvez aqui eu esteja “contaminado” (no bom sentido) pelas idéias de Stuart Mill. Quanto mais o tempo passa, mais percebo o quanto as idéias dele “mindfucked me”. (Depois explico melhor o conceito de “mindfuck”).
Tenho muita resistência ao controle ideológico exercido pelo Estado. O Estado não deve se intrometer no conteúdo do que for discutido nas reuniões. E se não houver discussão nenhuma, isso é problema dos cidadãos reunidos e não do Estado.
Quanto ao Loveparade especificamente, se o argumento utilizado pelo TCF para indeferir a sua realização fosse exclusivemente o seu caráter comercial, eu estaria mais propício a aceitar esse argumento. Como disse, a realização de eventos privados em espaços públicos está sujeita às limitações administrativas e, realmente, não estão abrangidas pela proteção constitucional.
George