Boston Legal – The End

Na semana passada, assisti ao último episódio da quinta temporada de Boston Legal. Aparentemente, o último episódio da série. Foi muito bom enquanto durou.

Posso dizer que o seriado me ajudou muito a compreender o direito norte-americano e, como conseqüência, o próprio direito como um todo. Aliás, já falei dele aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Dá para perceber o quanto me empolguei…  Ainda tenho em mente, algum dia, escrever um livro completo sobre a série.

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Boston Legal demonstra bem uma faceta da cultura jurídica norte-americana. Lá, a litigância em direitos fundamentais é algo quase banal no dia a dia forense.  Discussões envolvendo liberdade de expressão, direito à vida, liberdade religiosa, discriminações raciais e sexuais costumam ser debatidas abertamente nos tribunais e lá são decididas em última instância.

É óbvio que o sistema do “common law” contribui para esse tipo de coisas, já que admite mais explicitamente a criação judicial de direitos. Nos EUA, há mais de duzentos anos que se aceita o controle de constitucionalidade das leis. Portanto, existe toda uma tradição atribuindo ao Judiciário a tarefa de ser o intérprete final da declaração de direitos, o que lhe dá um poder político e social muito grande.

Outro ponto importante que vale a pena observar é que, mesmo naquelas áreas em que a solução jurídica é fornecida pela legislação, ainda resta uma margem de manobra interpretativa para afastar a aplicação da lei. Questiona-se com muita freqüência a racionalidade ou a própria justiça da solução legal. Vale lembrar que a idéia de controle judicial da razoabilidade das leis surgiu naquele país, através de uma interpretação criativa da cláusula do devido processo, à qual foi dado um conteúdo substantivo desde o caso Dred Scott.

Os EUA se orgulham de serem governados “por leis e não por homens”. Mesmo assim, é possível encontrar vários casos em Boston Legal em que o descumprimento da lei foi utilizado pelos advogados como estratégia de defesa, num claro estímulo à desobediência civil. Embora não seja tão comum quanto o seriado demonstra, os EUA, realmente, toleram o descumprimento da lei como forma de protesto, conforme já defendia, por exemplo, Henry Thoreau (muito citado no seriado, por sinal) e, mais recentemente, Martin Luther King Jr.. A lógica que eles adotam é a de que “se o cumprimento da lei puder causar um prejuízo maior do que a infringir, a necessidade justificaria o ato”. No fundo, pode-se dizer que a lei é um mero topos argumentativo como vários outros.

Talvez o julgamento pelo júri estimule esse tipo de estratégia argumentativa, através da qual, com muita freqüência, apela-se para o senso de justiça, em detrimento da lei.

Vou citar um caso em que isso ocorreu.

No episódio nove da segunda temporada (S2e9), houve um interessante caso envolvendo tortura (aliás, um tema freqüente em Boston Legal).

Uma criança foi seqüestrada por um pedófilo. O irmão do seqüestrador negou-se a dar qualquer dica acerca de um provável paradeiro do seqüestrador. Um padre, que também poderia ter informações relevantes, invocou as leis canônicas e preferiu não falar nada. A dúvida: fazer justiça com as próprias mãos para salvar o garoto?

Optou-se pela tortura. Conseguiram-se as informações necessárias e a criança foi salva.

Logicamente, após o ocorrido, o responsável pela tortura foi acusado pelo crime que cometeu.

O promotor do caso, em suas argumentações finais, defendeu o seguinte:

“Os fins não justificam os meios. Somos uma nação de leis. Os nosso país é conhecido por proteger as liberdades civis e os direitos fundamentais de seus cidadãos. Tais princípios estão garantidos na nossa Constituição. O réu não apenas violou a lei, mas também suprimiu as garantias fundamentais de um processo justo. A justiça com as próprias mãos pode ser aceita em outros lugares, mas não aqui”.

A defesa, por sua vez, conduzida pela competente advogada Shirley Schmidt, adotou a seguinte linha argumentativa:

“sempre ouvimos sobre os direitos dos acusados neste país. E as vítimas? E os seus direitos? Neste país a um assassinato a cada 31 minutos, um estupro a cada 6 minutos e um roubo a cada minuto. Mesmo assim, muita gente acha que é mais importante proteger os direitos dos acusados que fizeram esse país famoso. As coisas ficaram bem feias por aqui. Mas uma vida humana estava em risco. Com todo o devido respeito às liberdades civis do irmão do suspeito e às leis canônicas que impediam um padre a denunciar um pedófilo, a vida de uma criança estava em risco. Brad Chase salvou a vida do garotinho. É simples assim”.

Não é preciso nem dizer que o corpo de jurados acolheu essa argumentação utilitarista, bem ao gosto da mentalidade norte-americana, e inocentou o acusado. Aliás, depois vou comentar um caso de tortura defendido pelo Alan Shore em que a sua sustentação oral, como de costume, foi brilhante.

(Adianto que não concordo com esse tipo de raciocínio de que admite a tortura em determinados casos. Já comentei essa questão aqui).

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Quero deixar bem claro que as considerações acima referem-se ao seriado Boston Legal e não necessariamente à realidade jurídica norte-americana. Há uma longa distância entre o que passa nas telas e o que ocorre de verdade.

Estou com um monte de textos escritos sobre os episódios que mais gostei. Depois, vou soltando aos poucos por aqui…

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Uma das cenas que mais me impressionou, durante todas as temporadas, foi a primeira sustentação oral que Alan Shore fez perante a Suprema Corte. Foi uma pancada forte nos juízes daquela Corte. Ele apontou os podres de cada juiz, para demonstrar que, no fundo, todos são falíveis e sujeitos a tentações mundanas. Já pensou se fosse aqui no Brasil?

Depois faço uma seleção das melhores sustentações orais de Alan Shore.

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Outra cena legal foi o casamento no último episódio. Mas não vou falar nada aqui, pois estraga a surpresa.

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Ao longo desses cinco anos de Boston Legal, foram apresentados alguns casos bem bizarros. Alguns beiram o surrealismo. Fiz uma pequena amostra com os mais pitorescos no meu entender:

1. O Caso do Papai Noel gay: um empregado foi dispensado da sua função de papai noel depois que o patrão descobriu que, de noite, ele era “Mamãe Noel”;

2. Mulher que pretendia processar Deus em razão de seu marido ter falecido após ter sido atingido por um raio;

3. Mulher e marido discutem sobre quem deve decidir sobre a realização de uma eutanásia no gato de estimação;

4. Terapeuta entra com ação reintegratória após ser demitido por acreditar em extraterrestres;

5. Casais entram com ação judicial contra escola pública para que não seja realizada a festa do dia das bruxas, em nome da laicidade do Estado;

6. Esposa que quer se separar do marido por ele manter relações e ser apaixonado por uma vaca (literalmente falando);

E por aí vai.

Apesar de alguns casos assim, há, também, muitos casos relevantes, em que as discussões éticas, jurídicas e políticas são bem complexas e tratadas com muita seriedade. Aborto, eutanásia, preconceito racial e sexual, liberdade religiosa etc. São esses casos mais importantes que pretendo analisar com mais cuidado.

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Só pra finalizar:

Denny Crane forneceu a melhor explicação que já vi sobre como funciona o raciocínio do juiz. Eis suas palavras:

Primeiro, o juiz joga todos os argumentos em um grande prato e vai mastigando-os um a um, bem lentamente. Depois que os argumentos forem devidamente engolidos, eles passarão por uma fase de “digestão” interna. Só depois, após muito tempo digerindo cada argumento apresentado pelos advogados, é que o juiz… bem… sentencia.

Que maldade!

:-)

24 comentários em “Boston Legal – The End”

  1. Em matéria de casos bizarros (ou pitorescos, como você apontou, George), os EUA estão cheios. Basta ver o caso do sujeito que processou o Satanás e seu “staff” (ou sua turma, ou sua gang, ou seus trutas, ou seus manos; tudo, óbvio, a depender do seu grau de religiosidade… rs – ver http://en.wikipedia.org/wiki/United_States_ex_rel._Gerald_Mayo_v._Satan_and_His_Staff; aqui também: http://kevinunderhill.typepad.com/Documents/Mayo_v_Satan.pdf). Há também o caso do Senador que processou Deus (http://en.wikipedia.org/wiki/Ernie_Chambers). É, que Deus abençoe a América…

  2. George,

    por causa dos seus posts eu fui na locadora e alguei uma das temporadas há uns três meses atrás. Achei muito interessante, e engraçado também. Denny Crane é, hoje, um dos meus idólos, hahaha.

    Acho que para quem está adentrando para a vida jurídica (como eu que ainda estou no sétimo período do bacharelado) encontrar lazer em atividades relacionadas ao Direito é sempre vantajoso. Lembro bastante de uma mensagem que dizia como é difícil gostar de Direito, na verdade você demonstrou como é possível se apaixonar pelo Direito.

    Por enquanto, estou lendo seu livro sobre direitos fundamentais e criando a minha opinião sobre ele, que até o presente momento é bastante positiva. Espero que você faça mesmo o livro sobre a série, com certeza o seu livro estará dentre as minhas opções de ‘lazer jurídico’.

  3. Para rivalizar com BL só mesmo Parry Manson! Até o seu madruga sabe disso.

    Sério, tanto os livros, quanto os filmes, baseados no personagem de Erle Stanley Gardner rivalizam com BL.

    A sustentação perante a Suprema Corte é chocante, até porque emula caso real, conforme pode-se ver no video. O caso real, mostra uma possível nova interpretação sobre o princípio da proporcionalidade.

    http://edition.cnn.com/2008/CRIME/04/16/scotus.execution/

  4. George,

    Infelizmente não assisto muito este seriada, sou mais do raçocinio lógico do Dr. House mas devo dizer que só fá de John Grisham. Já foi em alguns julgamentos nos estados unidos e sei que nos tribunais não é igual na televisão.

    Em relação de justica. Escolher um júri nos Estados Unidos é uma ciência. Os advogados/psycologos que exercem a função são extremamente bem pagos. Outro fato importante, pessoas com 3o grau completo geralmente não precisam aparecer no júri. O que tem no júri nos Estados Unidos na sua maioria são legos e seu sentimento de “Justíca” não necessariamente é o que eles acham “justo” mas o que eles gostariam de ter se o caso fosse deles. Iso resulta em centensas absurdas. Me lembro de um caso aonde um “paranormal” recebeu uma indenização de um hospital por ter perdido seu “poder” apos uma reçonância magnética. Outro caso absurdo é uma mulher que entornou o café no Mc Donalds, se queimou e, recebeu uma indenização do Mc Donalds de U$ 5.000.000 por que o café estava quente e não tinha um aviso no copo (hoje em dia café no Mc Donalds não é mais quente, mas é morno). Não preciso falar do poodle no micro ondas etc.

    Eu acredito que até hoje, um homem negro de classe baixa, no sul dos estados unidos, não pode receber o que lá chamam de “fair trail” por causa do júri. Um homem negro corre um risco muito maior que um homem branco para ser condenado a morte pelo mesmo críme.

  5. @Leandro

    Chambers processou Deus não por nenhum motivo religiouso, mas pitoresco mésmo. Foi um protesto contra um processo contra um juíz. Porém o caso agora está nas mãos do Supremo Corte de Nebraska.

    Chambers:
    “the court itself acknowledges the existence of God. A consequence of that acknowledgment is a recognition of God’s omniscience. Since God knows everything, God has notice of this lawsuit.”

  6. sven,

    também gosto de Dr. House e de Grisham. Mesmo assim, acho que, sob a ótica jurídico-filosófica, Boston Legal está em um nível acima. Os debates são simplesmente fantásticos.

    George

  7. Ah, e só para registrar: A formula de justapor opostos parece que funciona. Alan Shore é democrata e tem gostos políticos e filosóficos peculiares, diferente e diametralmente opostos dos de Danny Crane, Republicano; mas se dão muito bem na varanda, fumando cubanos e degustando um belo scotch.

    Disse inicialmente que a formula funciona, olhando para a narrativa de Pedro e Paulo em Esaú e Jacó. Mudando-se o que deve ser mudado, são aplicação pura da velha e boa doutrina dos opostos. Capaz de David E. Kelley apreciar Machado.

  8. Olha…. gostei muitíssimo de Bostin legal… adorei o Alan e o Denny e posso falar francamente que estou muito chateado com o fim da série…….. infelizmente chegou ao fim… sim, alguns dirão q a série acabou bem…. talvez, mas mesmo assim não há como falar pra um fã apaixonado pela série que ela acabou em boa hora….
    Sinceramente estou nostálgico, será que o kelley vai pelo menos levar o Denny e o Alan pra próxima série???????? Queria fazer uma moção e mandar pra ele para que mantivesse esses dois personagens……….
    estou muito triste…………. mas feliz por saber que a série é amada……..

  9. George,
    Por causa dos teus posts comprei TODOS os episódios à venda no Brasil. Falta portanto a 5a. temporada que já sei é a última. Não sou advogado e não trabalho diretamente com direito. Meu ramo é TI aplicada ao marketing (meu hobby) no dia a dia dirijo o departamento de marketing de uma faculdade centenária na cidade de São Paulo.
    Boston Legal me ajuda a entender mais que a legislação norte americana. Allan, Denny e Cia nos fazem refletir sobre a vida. Sobre nosso lado obscuro como diz a Shirley num dos últimos episódios da 1a. temporada (a do sequestro do menino x tortura). Denny, acho que no segundo episódio, ensina o segredo ao Allan: tire coelhos da cartola. Meu deus, isso para marketing é básico!!! Escreva o livro. Eu compro. Abraços!

  10. George, sou “concusando”, Aluno da EMERJ. Recentemente adquiri seu curso de direitos fundamentais, estou adorando e agora fiquei surpreso em ver que vc também tem um blog, justamente quando estava procurando informações da minha série preferida. Alias, vc está “roubando” todas as minhas idéias. Sempre pensei em escrever um livro sobre direitos fundamentais com linguagem coloquial, mas vc já fez, e agora parece que vc também está escrevendo artigos sobre os seriados de Boston Legal, pelo menos a gente pode trocar idéias quem sabe. Parabéns pelo seu trabalho, muito bom mesmo.

  11. Gostaria de uma informação:
    Recentemente terminou a temporada onde os chineses adquiriram o escritório de advocacia, inclusive, não tiveram interesse em manter o Crane. Que temporada foi essa a 4a. ou a 5a.
    O que estamos vendo atualmente é uma repetição ou é a 6a. temporada.
    Abraços,
    Mauricio

  12. George, sou fã de carteirinha desta série desde o primeiro ano e tenho todos os episódios que sairam aqui no Brasil. Não sou do ramo do Direito e nem tenho nada em comum com esta área do conhecimento, mas mesmo assim acho a série fenomenal pelos motivos já apontados por todos. Alem do mais, o mais interessante é mostrar que questões ridículas (prá dizer o mínimo) vão a julgamentos que são verdadeiras comédias e que as decisões dos Senhores Juízes são muitas vezes meras preferencias pessoais. Aqui mesmo no Brasil, vemos a STF deliberar acerca de incontáveis casos com posições diametralmente opostas entre os juízes – o que isso significa? Existem coisas que podem ser e não ser erradas ao mesmo tempo? O que é certo a um e errado a outro? Como conviver com isso? Enfim, como disse não sou do ramo, mas o seriado Boston Legal me faz relaxar em saber que pelo menos nos EUA, alguem como David Kelley pensa coisas como eu – pena que não temos um por aqui!
    Abraços e parabéns pelo bom gosto.

  13. Parabéns por trazer ao debate uma série que infelizmente é pouco conhecida no Brasil, mas que deveria ser vista por todos os estudante de direito (e demais operadores).

    Você tem um estilo, inclusive no seu livro, que concilia habilmente o culto com o “pop”. Mantenha isso, este é seu diferencial.

  14. Também fiquei com muita pena da série ter terminado. Não perdia um capítulo sequer… e quero comprar todas as séries em DVD para revê-las sempre que puder. Vejo que a Fox irá repetir alguns capítulos. Mas no fundo gostaria de ter conhecimento de como ficou a vida de cada personagem daquele escritório após a venda para os chineses e de seus casos, como o brilhantismo das defesas de Alan Shore.
    É uma daquelas séries que deixaram saudades e foi uma das séries mais bem escritas da TV americana.

  15. Já vi a série completa umas cinco ou seis vezes e não posso deixar de me comover sempre que os dois personagens principais acabam o seu dia com um charuto e um whysky. Os cometários, bem como todoo diálogo entre o Alan e o denny são didnos de serem chamados de obra de arte. Já não falo do mérito jurídico da série, pois não tenho conhecimentos para isso, mas da interpretação e diálogos. Acho que podemos chamar a Bosto Legal uma obra de arte. E porque não? Desperta sentimentos, sabe como comover, irar, fazer rir, …sim gosto mais dela do que do tecto da Capela Sistina.
    BLS. Joana

  16. Po, cade o livro????

    Ele preencheria temporariamente a lacuna que o fim da série deixou dentro no meu interior de mim

    Se pudesse eu contrataria Alan Shore para te obrigar judicialmente a escrever o livro ainda esse ano.

    Hehehe, muito bom ler os artigos que o Sr escreve sobre a série, parabéns

    Mas aí, escreve logo…

  17. Sr. George
    Concordo com suas opiniões sobre a maravilhosa série. Adoro ler seus comentários. Uma pena que acabou! Um abç

  18. Tengo una pregunta bfsi usas gafas cearoctibrs como se convinan con los diferentes sistemas 3d? me explico, lo que quiero decir es si bfse solocan solo las gafas del sistema 3d y te quitas las tullas o te colocas las dos? y si es lo segundo bfen que orden? gafas correctigas, gafas 3d, ojosb4b4 o gafas 3d, gafas cearoctibrs, ojosb4b4 Muchas gracias por aclararme la duda.

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