Karl Popper (na foto), Imre Lakatos, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend são os mais conhecidos e populares “filósofos das ciências” do século XX. Eles escreveram livros excelentes demonstrando como a ciência teria evoluído ao longo da história e, com isso, revolucionaram a metodologia científica (ou pelo menos o estudo da metodologia científica), pois permitiram que os cientistas refletissem criticamente sobre suas próprias técnicas de trabalho. As teses principais desses autores giram em torno das chamadas ciências naturais, especialmente da física. Portanto, eles não citaram nenhum “cientista do direito” (!?) para justificar seus argumentos. Suas observações e sugestões, quase sempre, são destinadas prioritariamente aos cientistas das chamadas “ciências nobres”.
Em razão disso, assumi o desafio de tentar trazer as mais importantes idéias desses pensadores para o mundinho dos juristas. Afinal, e se esses filósofos da ciência estivessem falando não de Einstein, Newton, Galileu, Copérnico etc., mas de Kelsen, Ihering, Pontes de Miranda, Holmes etc., qual teria sido o resultado? Se eles estivessem analisando não a teoria da relatividade, dos movimentos planetários, dos átomos, mas as teorias em torno da liberdade, da igualdade, da propriedade etc? E se eles tivessem analisado o papel dos juristas e não dos cientistas? Seria possível estabelecer uma sincronia entre a evolução da ciência e a evolução do direito? O que é que os juristas podem aprender com a lição deixada pela história da ciência e da metodologia científica? Tentar responder a essas indagações é o objetivo deste post.
Pra começar, nada mais justo do que resumir, bem resumidamente, os pontos principais defendidos por cada um deles e, a partir daí, fazer a transposição para o direito daquilo que for compatível com a metodologia jurídica. Como se verá, os referidos autores não possuem idéias uniformes. Muito pelo contrário. Seus pensamentos variam bastante, indo de modelos “mais certinhos” (Popper e Lakatos) para modelos mais revolucionários e “anárquicos” (Kuhn e Feyerabend). Não tenho gabarito intelectual para julgar quem está certo ou errado nesta disputa. Aliás, pode-se dizer que todos estão certos à sua maneira (ou errados à sua maneira, conforme for a perspectiva de análise). No fundo, as idéias, mesmo quando batem de frente, se complementam, corrigindo eventuais equívocos ou insuficiências umas das outras. E foi nessa perspectiva de mútua complementação que me apeguei. Tentei aproveitar o que cada um desses pensadores pode oferecer de útil para a construção de um método jurídico melhor, sem maiores preocupações de ser totalmente coerente com uma determinada “escola de pensamento”, ainda que seja possível notar uma indisfarçável quedinha pelas idéias metodológicas de Karl Popper.
Sim, mas o que se deve entender por método jurídico melhor? Para mim, método jurídico melhor é aquele que, em primeiro lugar, seja ético, democrático e comprometido com os direitos fundamentais. Esse aspecto material é básico, e talvez a metodologia científica não ajude muito nesse ponto (é o direito quem talvez possa ajudar a delimitar os limites éticos das investigações científicas). Mas para além desse aspecto axiológico, é preciso que o método jurídico seja, na medida do possível, mais racional, mais objetivo, mais consistente, mais coerente, mais convincente e, porque não dizer, mais científico. E nesse ponto a metodologia científica pode contribuir bastante. Então vamos lá. Começo com Karl Popper, ressaltando desde logo que ele desenvolveu suas idéias antes mesmo da Segunda Guerra Mundial.
Parte I: O Jurista “Popperiano”
De Popper, nada mais óbvio do que aproveitar a idéia do falsificacionismo, que representa a espinha dorsal de toda a sua construção intelectual.
Partindo da premissa da falibilidade humana (“todos nós podemos errar, e freqüentemente o fazemos, quer individual, quer coletivamente” – p. 34), Popper conclui que a verdade objetiva e absoluta jamais pode ser atingida, pois “o nosso conhecimento só pode ser finito, ao passo que a nossa ignorância tem, necessariamente, de ser infinita” (p. 50).
Isso não significa, contudo, que devemos desistir de tentar conhecer o mundo que nos cerca. Devemos, pelo contrário, buscar a verdade, ainda que na maioria das vezes possamos falhar por uma larga margem. A ciência tem como alvo a incessante procura de teorias verdadeiras, embora nunca possamos ter a certeza de que uma determinada teoria é verdadeira (p. 239). Para ser mais preciso: o objetivo da ciência seria o de desenvolver teorias que estejam mais próximas da verdade do que outras, ou seja, que correspondam melhor aos fatos (p. 307). O problema é que, mesmo que nos deparemos com uma teoria verdadeira, estaremos, por via de regra, meramente a conjecturar, pois nos é impossível saber se ela é verdadeira (p. 306).
O importante é que devemos ter humildade quanto às nossas limitações intelectuais e, diante disso, sermos capazes de aprender com os nossos próprios erros, por meio de uma crítica – e auto-crítica – racional (p. 34). Só assim, diz ele, a ciência e o conhecimento progridem. E essa progressão da Ciência ocorre por meio da invenção de teorias que, comparadas com outras anteriores, podem ser descritas como melhores aproximações da verdade (p. 239).
É dentro desse contexto que ele define que o papel do cientista deve ser o de formular conjecturas para, em seguida, tentar refutá-las. Nas suas palavras, o cientista formula hipóteses meramente conjecturais para a solução dos problemas que deve resolver e, num passo seguinte, submete-os a testes de falsificação, tentando encontrar falhas que possam demonstrar a sua falsidade. As hipóteses que não passam pelo teste devem ser descartadas. Já aquelas que vão “sobrevivendo” aos testes de falsificação devem ser consideradas como provisoriamente verdadeiras até que surja uma nova prova do erro. O processo de justificação de qualquer hipótese é, por natureza, contínuo e, portanto, nunca está plenamente acabado. Disso resulta o caráter essencialmente provisório da verdade científica.
Uma crítica que pode ser feita ao falsificacionismo de Popper é a idéia de que nem toda hipótese já falsificada merece ser descartada de plano. Ou seja, uma determinada hipótese pode ser “falsificada” em um determinado momento, mas depois pode se mostrar válida. A teoria heliocêntrica de Copérnico, por exemplo, foi “falsificada” pela comunidade científica de sua época e, não fosse a persistência de outros astrônomos, especialmente de Galileu, e a evolução das técnicas observacionais subseqüentes, sobretudo o desenvolvimento do telescópio, ela teria sido descartada para sempre se o falsificacionismo fosse levado à risca. O “erro”, no caso, não estava na hipótese copernicana propriamente dita, mas na insuficiência das técnicas de observação disponíveis naquele dado momento histórico. Os falsificacionistas de Copérnico estavam equivocados quando insistiram na idéia aristotélica e ptolomaica de que a Terra é o centro do universo.
Essa crítica, sem dúvida relevante, não atinge em cheio a técnica proposta por Popper. É que, nesse ponto, o próprio falsificacionismo é capaz de se auto-corrigir. Uma observação falsa pode ser refutada sem maiores problemas. Explicando melhor: uma hipótese já falsificada pode voltar a ser considerada como válida se a falsificação que a falsificou se mostrar, pela técnica do falsificacionismo, ela própria falsa. (Acho que fiquei tonto!).
O importante é que não se deve desprezar, de plano e para sempre, todas as hipóteses que já foram, de algum modo, falsificadas. É provável que o erro, como se disse, não esteja na hipótese em si, mas nas técnicas de falsificação…
E aqui surge outra crítica correlacionada: qual seria – se é que existe – o critério “verdadeiro” para se detectar a falsidade de uma hipótese?
Popper, naturalmente, não admite que exista um critério verdadeiro, único e preciso, já que toda escolha sempre será uma suposição arriscada. As técnicas de observação empírica, que talvez sejam o método mais utilizado para testar uma teoria com vistas a sua possível refutação, não são, como se disse, absolutamente infalíveis. Aliás, qualquer critério que se adote “envolve interpretação à luz de teorias, sendo, nessa medida, incerto” (p. 66). Logo, de fato, não há como garantir um teste de refutação cem por cento seguro, pois nunca se pode ter a certeza de que algum erro não foi cometido nesse processo. Popper resigna-se com essa constatação admitindo que, seja qual for o critério de falsificação adotado pelo investigador, permanece o fato de ele só poder testar a sua teoria tentando refutá-la (p. 66).
Nesse contexto, voltando para o método do falsificacionismo, pode-se dizer que uma hipótese já falsificada somente deve “ressuscitar” se for possível demonstrar que a sua falsificação foi, de fato, equivocada à luz das melhores técnicas observacionais de que se disponha num dado momento histórico. Não adianta, por exemplo, defender que a terra é quadrada só porque as observações hoje prevalecentes, que demonstram que a terra tem a forma circular, podem, no futuro, ser falseadas. Até que se demonstre, objetivamente, que a terra não é redonda (ainda que não seja um círculo perfeito), qualquer teoria que tente defender o contrário tem o ônus da prova. Hoje, a hipótese científica prevalecente, que deve ser tida como provisoriamente verdadeira, é no sentido de que a Terra é redonda. E se alguém disser o contrário, sem apresentar provas convincentes da falsidade da teoria circular da Terra, estará defendendo uma idéia irracional, pelo menos até que a hipótese prevalecente seja efetivamente falsificada com base em observações mais confiáveis do que das que hoje dispomos.
Até o presente momento, eu nada falei sobre o fenômeno jurídico. É hora, pois, de vestir o paletó.
Para os que já estão familiarizados com minhas idéias, é possível perceber que o “método do feeling” adota, em grande medida, a técnica de falsificação desenvolvida por Popper.
Popper critica o método indutivo, que vem desde Francis Bacon, segundo o qual as soluções são obtidas a partir das observações empíricas dos fenômenos da natureza. A crença de que podemos começar pela pura observação apenas, sem nada que se pareça com uma teoria, é absurda, diz ele (p. 72). Portanto, é um mito achar que toda a ciência começa pela observação e só depois avança, lenta e cuidadosamente, para as teorias (p. 191). O raciocínio científico, na sua ótica, inicia-se com uma fase de descoberta subjetiva (que ele chama de conjectura) que deve ser submetida a um processo de justificação (que ele chama de refutação). O cientista deve ser ousado nas conjecturas e rigoroso na refutação, eis a receita de Popper (Lakatos, p. 10).
As conjecturas – eu diria, o “feeling” do cientista – devem ser o ponto de partida, mas não necessariamente será o ponto de chegada, pois essas conjecturas devem ser submetidas a um rigoroso processo de refutação que pode vir a demonstrar que elas são falsas. E nesse caso, o cientista deve modestamente reconhecer o erro e reformular a solução que havia antecipado em sua mente. Eis suas belas palavras:
“Os nossos sonhos e esperanças não têm necessariamente de comandar as nossas conclusões. Na procura da verdade, o nosso melhor plano pode ser o de começar por criticar as crenças que mais prezamos. É possível que este pareça a alguns um plano perverso. Mas não o parecerá àqueles que querem descobrir a verdade e não têm receio dela” – Karl Popper, no livro “Conjecturas e Refutações” (p. 22)
Penso que o jurista deveria colocar os “óculos popperianos” sempre que estiver diante de um problema jurídico. Ou seja, deve tentar conjecturar a resposta mais justa para o problema que tem que resolver e, a partir daí, adotar uma postura crítica em relação ao seu ponto de vista, a fim de tentar refutá-lo com o rigor de um cientista. Essa é a essência do método do “feeling” que venho defendendo. Creio que o papel do juiz em particular é descobrir a solução mais justa possível para o caso concreto mesmo que a solução encontrada não se ajuste ao seu sentimento pessoal de justiça conjecturado num momento inicial. O problema é que, nesse processo de descoberta e refutação, as convicções pessoais do juiz certamente influenciarão o resultado dos testes de falsificação, mesmo que ele lute contra isso.
Mas não estou aqui para falar do método do feeling e sim do método popperiano, ainda que ambos tenham tremenda afinidade. Pois bem.
Um aspecto prático relevante da atividade do jurista popperiano é que ele não estaria tão preocupado em encontrar argumentos que possam reforçar a sua solução. O mais importante, na ótica de Popper, seria buscar argumentos contrários à solução proposta e demonstrar que esses argumentos não são suficientes para refutá-la: “sempre que propomos uma solução para um problema, devemos tentar, tão intensamente quanto possível, pôr abaixo a mesma solução, ao invés de denfedê-la. Infelizmente, poucos de nós observamos esse preceito” (b, p. 536).
No âmbito do direito, também essa atitude não costuma ser observada. Aliás, pode-se dizer que é o oposto do que os juristas comumente fazem. Em regra, os juristas procuram argumentos (doutrinários, jurisprudenciais e legislativos) que coincidem com a sua solução e simplesmente omitem aqueles que não “ajudam”.
O jurista popperiano não considerará a lei como um dogma a ser obedecido cegamente. Afinal, “nenhuma autoridade humana pode estabelecer a verdade por decreto” (p. 51). As leis e os precedentes seriam meras conjecturas ou hipóteses experimentais passíveis de refutação. Qualquer reposta oferecida pela lei, pela jurisprudência ou pela doutrina deveria ser submetida a testes de falsificação antes de ser adotada acriticamente. Só assim, por meio de constantes refutações, se pode esperar que o direito evolua. Não seria possível a evolução da jurisprudência se os juízes agissem sempre dogmaticamente, ou seja, aceitando como absolutamente verdadeiras as conclusões fornecidas no passado, seja por legisladores, seja por outros juízes, seja por autoridades acadêmicas.
Naturalmente, as conjecturas e refutações das idéias jurídicas possuem um nível ideológico e axiológico muito maior do que, por exemplo, um problema matemático, e, em conseqüência, não possibilitam um grau de precisão tão elevado e tão consensual quanto o que é obtido nas ciências naturais. Além disso, os critérios para saber se uma solução científica é “melhor” do que a outra são mais objetivos. Popper, por exemplo, afirma que uma teoria é melhor do que a outra quando corresponde melhor aos fatos. E ela corresponderá melhor aos fatos quando faz asserções mais precisas, resiste a testes mais rigorosos, explica um maior número de fatos em mais detalhes, entre outros fatores (p. 315). No direito, esses fatores relativamente precisos não se aplicam. O direito não busca uma “aproximação da verdade”, mas sobretudo uma “aproximação da justiça”, cuja definição é muito mais complexa do que uma mera “correspondência com os fatos”.
Mas isso, por si só, não retira a utilidade da técnica do falsificacionismo no âmbito jurídico. É que o método funciona essencialmente como um sistema de tentativa e erro muito eficaz justamente para detectar os erros (no caso do direito, as injustiças). As soluções injustas podem ser identificadas com mais facilidade e assim podem ser refutadas. E mesmo as soluções aparentemente justas podem ser corrigidas se ocasionarem resultados desastrosos não previstos inicialmente.
Popper, nesse ponto, usaria as seguintes palavras:
“A nossa tarefa [do cientista ou, aqui para nós, do jurista] consiste em testar, em examinar criticamente, duas (ou mais) teorias rivais. Resolvemo-las, tentando refutá-las – a uma ou a outra – até chegarmos a uma decisão. Na matemática (mas apenas na matemática), essas decisões são geralmente finais: é raro haver provas inválidas não detectadas.
Se olharmos agora para as ciências empíricas [creio que o direito é, em grande medida, uma ciência empírica], veremos que, regra geral, seguimos fundamentalmente o mesmo procedimento. Uma vez mais, testamos as nossas teorias: examinamo-las criticamente, tentamos refutá-las. A única diferença importante é que agora podemos utilizar também argumentos empíricos nas nossas análises críticas. Mas esses argumentos empíricos só se apresentam acompanhados por outras considerações críticas. O pensamento crítico enquanto tal continua a ser o nosso principal instrumento” (p. 270).
Creio que, de um modo geral, o fenômeno jurídico já funciona, ainda que de forma inconsciente, seguindo esse processo de tentativa e erro, dentro de uma lógica quase popperiana.
Vou dar dois exemplos.
Durante muito tempo, o direito considerou que as mulheres eram emocional e intelectualmente incapazes de praticarem diversos atos de natureza civil e política. Elas não podiam firmar contratos sem a assistência dos seus maridos e não podiam exercer o direito de votar nem de serem votadas. O alicerce teórico que dava suporte a esse tratamento era nitidamente machista e, ainda assim, prevaleceu (como se fosse algo racional!) até o século passado.
Mas o certo é que essa hipótese, ao longo do século XX, foi “falsificada”. Conseguiu-se demonstrar objetivamente que as mulheres são tão capazes do que os homens, de modo que nada justifica tratá-las de forma discriminada. A discriminação, conforme a experiência prática confirmou, era infundada, sem sentido e, portanto, injusta. Com isso, o direito evoluiu. A tese da incapacidade das mulheres foi substituída pelo princípio da igualdade de gênero, que hoje é reconhecido expressamente por diversos ordenamentos jurídicos pelo mundo afora.
Nesse caso, a evolução do direito não partiu propriamente dos juristas, mas da própria sociedade. Foi o “feeling” do legislador, captando os anseios da sociedade, quem possibilitou a mudança de pensamento.
Em casos mais recentes, contudo, especialmente por conta do desenvolvimento da chamada jurisdição constitucional, é possível apresentar diversos exemplos de evolução substancial do direito que partiu da atuação de “juízes popperianos”.
O fim da segregação racial nas escolas norte-americanas talvez seja o maior exemplo, ainda que não seja o único. Havia uma crença nos EUA, antes da decisão proferida pela Suprema Corte daquele país no caso Brown vs. Board of Education (1954), de que a adoção de um regime educacional segregacionista entre negros e brancos não violava a cláusula da igualdade, desde que fosse garantido aos negros o acesso a escolas públicas iguais a dos brancos, ainda que separadas. Era uma hipótese que vinha sendo aceita desde a aprovação da Emenda Constitucional 14, de 1868, que estabeleceu a cláusula da igualdade, e que foi reforçada com a decisão proferida pela Suprema Corte em 1896, no caso Plessy vs. Ferguson, que reconheceu a constitucionalidade da doutrina “equal, but separate”.
Essa hipótese foi submetida a um rigoroso teste de falsificação pelos juízes da chamada “Corte Warren”, durante a década de 50 do século passado, que resultou na conclusão de que a doutrina “iguais, mas separados”, até então prevalecente, era uma farsa e, portanto, injusta. No fundo, conforme ficou demonstrado, a desigualdade era gritante, em desfavor dos negros. O regime segregacionista, de acordo com a decisão unânime daqueles juízes, além de não funcionar na prática, já que as escolas para os negros eram nitidamente piores do que as escolas para os brancos, gerava um sentimento psicológico de inferioridade nos estudantes negros que somente poderia ser corrigido e minorado com a integração racial. Com isso, a segregação racial, que era um sistema previsto na lei e aceito pela jurisprudência até então consolidada, foi considerada inconstitucional por violar a cláusula da igualdade. Eis um exemplo típico e louvável da adoção da técnica popperiana aplicada ao direito, ainda que de forma inconsciente.
Esse exemplo demonstra claramente que é falsa a idéia de que os juízes primeiro consultam o ordenamento jurídico para somente depois encontrarem a resposta justa, tal como sugerido, por exemplo, por Karl Larenz e pela imensa maioria de juristas. Se isso tivesse sido feito no caso “Brown”, os juízes necessariamente teriam que concluir que o regime segregacionista era válido, pois era essa a resposta que as leis e a jurisprudência forneciam. O que houve, na realidade, foi uma mudança substancial no “feeling” dos juízes daquela corte, certamente influenciada pela própria mudança dos valores vindos da sociedade, que foi forte o suficiente para permitir e justificar a refutação de uma teoria até então válida, qual seja, a doutrina do “equal but separate”. Os dados objetivos apresentados no processo demonstraram a falsidade da doutrina do “equal but separate”, e o “feeling” em prol da igualdade racial acabou prevalecendo.
Eis aí algumas contribuições do pensamento de Karl Popper que já deveriam ter sido aproveitadas pelos juristas há muito tempo.
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Popper vs. Kelsen
Conforme se pode observar, há uma diferença substancial entre o jurista popperiano e o jurista kelseniano. Como é sabido, Hans Kelsen também estava preocupado com a cientificidade do direito e, por isso, desenvolveu sua famosa teoria pura.Aliás, tanto Kelsen quanto Popper estavam relativamente próximos do chamado “Círculo de Viena“, o grupo de pensadores alemães que defendia a racionalidade científica acima de tudo. Apesar disso, os resultados obtidos por Kelsen geraram um modelo substancialmente diverso do modelo popperiano, que também tem pretensões de cientificidade. Como pode isso?
Kelsen estava muito mais preocupado com a delimitação do objeto de estudo da ciência do direito do que propriamente com o avanço do conhecimento jurídico ou com a busca da justiça e da verdade. Por isso, escolheu a norma jurídica – e somente a norma jurídica – como objeto de análise do jurista, tratando-a como se fosse algo que existe por si só, de forma independente e autônoma em relação à realidade social e histórica em que está inserida. Popper critica essa delimitação epistemológica com as seguintes palavras (logicamente, não tratando especificamente do Direito ou de Kelsen):
“A crença de que existe algo como a Física, a Biologia, ou a Arqueologia, [e aqui acrescento eu: o Direito ou a Norma], e que esses ‘estudos’ ou ‘disciplinas’ são indistinguíveis pela matéria que investigam, parece-me um resquício da época em que se acreditava que uma teoria tinha de provir de uma definição da sua própria matéria temática. Mas matérias, ou espécies de coisas, não constituem, digo eu, uma base para distinguir disciplinas. As disciplinas são distinguidas, em parte, por razões históricas e razões de conveniência administrativa (como a organização do ensino e dos apontamentos); e, em parte, porque as teorias que elaboramos para resolver os nossos problemas têm tendência para se transformar em problemas unificados”.
Em seguida, concluiu de forma magistral:
“Nós não somos estudantes de uma matéria qualquer, mas estudantes de problemas. E os problemas podem atravessar diretamente as fronteiras de qualquer matéria ou disciplina específica” (p. 98).
Essa conclusão é ainda mais óbvia quando se trata de problemas jurídicos. Os problemas jurídicos são problemas essencialmente humanos e não meramente normativos. Envolvem fatos, valores, normas (Reale) e, acrescentaria eu, seres humanos. O método kelseniano “purificou” tanto o objeto de estudo do jurista que o direito se tornou uma abstração sem sentido, já que perdeu a sua principal razão de ser que é resolver problemas humanos concretos ou pelo menos fornecer argumentos capazes de ajudar os juristas a encontrarem a melhor solução para esses problemas. O jurista que se preocupa em resolver problemas concretos sabe que jamais conseguirá ser neutro, como pretendia Kelsen. Mesmo o conhecimento mais puro, diria Popper, não é tão puro quanto se pode pensar, já que as idéias são, em grande medida, motivadas e inconscientemente inspiradas por esperanças políticas e sonhos utópicos (p. 21).
Para muitos, Kelsen seria o maior exemplo de como a atividade dos juristas pode ser “científica”, apesar de tudo. A coerência da teoria pura seria o máximo que se poderia alcançar em termos metodológicos. Não ouso negar a coerência da teoria pura do direito. Mesmo assim, penso que a doutrina kelseniana é muito mais dogmática do que científica. A norma jurídica é tratada como um dogma, como se fosse um objeto imaculado e como se nela estivesse a fonte de todo o conhecimento relevante para os “cientistas do direito”.
O que pode dar ao direito um caráter de cientificidade não é certamente o objeto de estudo bem delimitado ou a busca da neutralidade jurídica. A possível cientificidade do direito deve ser encontrada nos métodos e nos argumentos adotados pelos juristas para solucionarem os problemas que devem resolver. A argumentação jurídica deve seguir um padrão de objetividade e de racionalidade se quiser ser chamada de científica. Se a solução dos problemas jurídicos se basear em meros argumentos dogmáticos, então não se pode falar em “ciência do direito”. E na visão de Kelsen, a norma era um dogma.
Na ótica popperiana, as leis seriam vistas com um olhar crítico, que tanto poderia resultar numa aceitação como numa rejeição. Seria preciso, antes de aplicar a lei, conhecer e compreender o seu significado e a sua função e assim verificar a sua racionalidade. O jurista popperiano estaria sempre pronto a desafiar e a criticar as leis de seu país, colocando pontos de interrogação em tudo, pelo menos nas suas mentes, não se submetendo cegamente a nenhuma lei (p. 172 – Popper, no caso, estava tratando da tradição e não propriamente das leis, mas creio que a lógica é a mesma).
O jurista popperiano não adotaria uma visão dogmática das soluções já fornecidas e, por isso, seria crítico quanto à resposta fornecida pelas vias tradicionais. Mas nem por isso seria necessariamente anti-legalista. Há argumentos racionais muito fortes para reforçar a idéia de que a lei e os precedentes devam ser seguidos na maioria das vezes. Já tratei desse assunto aqui, e Popper reforçaria meus argumentos dizendo que as pessoas precisam ter uma idéia clara do que esperar e de como proceder na vida social. As leis teriam, portanto, a função de possibilitar alguma previsibilidade no mundo social em que vivemos, a fim de que possamos ter consciência de como a sociedade irá reagir às nossas ações (p. 182). Daí porque, na análise crítica das leis, o jurista deveria ponderar os seus méritos e deméritos, sem esquecer o mérito que lhes advém do fato de serem leis instituídas e, portanto, já terem passado com sucesso por testes de falseabilidade anteriores.
Creio que o jurista popperiano será mais legalista à medida em que o sistema legal for mais justo. E o sistema legal será mais justo se se basear em consensos racionais e democráticos e não apenas na força ou na tradição. Daí porque é preciso um ambiente jurídico sempre aberto ao debate e às críticas, o que só pode ser obtido nos regimes democráticos. Mas aqui teríamos que entrar no pensamento político de Karl Popper, o que fugiria aos propósitos do post. Então melhor parar por aqui.
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Apesar de todos os argumentos acima terem sido inspirados nas idéias de Karl Popper, não posso garantir, logicamente, que ele chegasse às mesmas conclusões a que cheguei. Como foi uma interpretação “por analogia”, há grande chance de distorções, já que, naturalmente, a atividade dos juízes e dos juristas não é exatamente igual a atividade dos cientistas. Enfim, o texto não deve ser lido como se fosse uma reprodução fidedigna de um suposto “pensamento jurídico” de Karl Popper, mas de como eu imagino que seria esse pensamento, à luz de minhas próprias teorias. Confesso, por exemplo, que ele dá uma ênfase maior ao respeito às tradições (e às leis) do que a que eu deixei transparecer no texto.
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As citações foram extraídas de POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006.
As idéais metodológicas de Popper foram desenvolvidas de forma mais completa em POPPER, Karl. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 2007.
Suas idéias políticas estão detalhadas nos dois volumes de POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.
Para uma visão resumida e levemente crítica ao falsificacionismo de Popper recomendo a leitura de CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1983.
Para uma crítica mais pesada: SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987.
Num livro posterior, um pouco menos radical, Boaventura abrandou mais as críticas ao método científico e acabou se aproximando mais do pensamento popperiano, ainda que não assuma expressamente esse fato. O livro é SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Porto: Edições Afrontamento, 1989.
(Depois devo comentar especificamente o papel da ciência no pensamento de Boaventura de Sousa Santos, até como preparatório para as suas aulas do doutorado e, quem sabe, para elaboração de um paper).
As críticas de Lakatos, Kuhn e Feyerabend serão detalhadas nos próximos posts.
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PS1. Vocês perceberam como a “filosofia barata do direito” está se tornando cada vez mais “refinada”? No próximo “PS”, entenda porquê.
PS2. No final do ano passado, tive a oportunidade de ler uma versão preliminar da tese de doutorado do Hugo Segundo, que me acordou de um “sono dogmático” que eu estava passando. Eu estava muito confuso e ansioso por tentar definir o mais rápido possível a minha própria tese de doutorado e, por isso, tinha meio que perdido o foco de minhas investigações. No fundo, eu queria falar sobre tudo e resolver todos os problemas possíveis envolvendo jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Estava na cara que eu tinha perdido o foco. Estava lendo uns dez livros ao mesmo tempo, colhendo bibliografia de tudo que é assunto, como se fosse possível abarcar o mundo com as pernas.
Após a leitura do texto escrito pelo Hugo e de um conselho dado pelo Drica, percebi que talvez eu já tivesse uma tese pronta para ser desenvolvida. Naturalmente, estou falando da minha filosofia barata do direito. A partir daí, tudo ficou mais claro para mim.
A idéia é mais simples do que se pode imaginar. Vou problematizar com a “katchanga” e solucionar o problema com o método do “feeling”. A partir daí, será possível construir um conjunto de argumentos racionais capazes de justificar a jurisdição constitucional em favor dos direitos fundamentais, que era precisamente o que eu queria. Isso sem falar que agora posso estudar filosofia (e filosofia da ciência) com um foco muito mais definido. O texto acima já é resultado dessas primeiras investigações.
Otimo post Prof… não vou comentar sobre ele, pois são pensamentos mais elevados que o meu, mas continuo sugando tudo, e fico feliz por vc ter saido do labirinto sobre sua tese.
E sobre aquilo que voce falou sobre a terra ser redonda, tem um estudo que diz que ela tem essa forma, talvez pela velocidade que gira, e ate pode ter a forma de triangular….rsssss, e se tiver curioso, vai ai o endereço.
http://lablogatorios.com.br/universofisico/2009/01/08/fisicos-enxergam-%e2%80%9cuniverso%e2%80%9d-em-gota-dagua/
abraços.
George,
Já que curte tanto a filosofia, conheça Robert Nozick; “Anarchy, Sate and Utopia”. É uma obra de filosofia política que de certa forma trata de direitos fundamentais em que Nozick proponha um estado mínimo para garantir que direitos não são violados.
Sven,
conheço, já do mestrado, as idéias de Nozick, embora não tenha lido o livro dele diretamente. Pelo pouco que li, não sei se vou concordar muito, pois não sou fã do Estado mínimo (nem do Estado máximo, diga-se de passagem). Mas o livro dele está na minha lista, assim como o do Hayek e a própria “Socidade Aberta” do Popper.
Estou com uns dez livros e uns cinquenta textos para ler só sobre a parte epistemológica e depois volto com força total para a parte axiológica e deontológica, que é onde talvez eu já tenha uma base mais sólida.
George
George,
1) Há um erro em seu raciocínio quando ALMEJA TRANSPLANTAR A TEORIA DE POPPER PARA O DIREITO. A JUSTIÇA NÃO DEVE SER ENCARADA COMO DOGMA. Deve ser também HIPÓTESE FALSEÁVEL. Você acaba pulando um degrau QUANDO AFIRMA QUE O JUIZ DEVE, NA ESCOLHA DE DECISÃO MAIS JUSTA (CORRETA?) PARA O CASO CONCRETO, PROVAR A FALSEABILIDADE DE TODAS AS DECISÕES INJUSTAS HIPOTETICAMENTE POSSÍVEIS PARA SOLUCIONAR O CASO CONCRETO.
POPPER JAMAIS TIRARIA A JUSTIÇA DO DEBATE. NÃO ARGUMENTARIA SOBRE A FALSEABILIDADE DAS DECISÕES INJUSTAS SEM ANTES PROVAR POR QUE A JUSTIÇA DEVE PREVALECER NO CASO CONCRETO. Aumentando, desse modo, o NÚMERO DE HIPÓTESES FALSEÁVEIS, aumentar-se-iam as chances DE ENCONTRAR A DECISÃO JURIDICAMENTE CORRETA.
Quando falo em justiça, não estou ME REFERINDO A BONDADE. Não é necessário que o JUIZ PROVE AS CONSEQUENCIAS DE SER MALDOSO PARA QUE SEJA BONZINHO NO CASO CONCRETO. É preciso, por ex., demonstrar PORQUE A NORMA DEVE SER DESPREZADA EM DETRIMENTO DAS PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO.
É que a injustiça é só o antônimo de justiça. Há várias outras ALTERNATIVAS à JUSTIÇA QUE NÃO SEJA A INJUSTIÇA, que não seja A MALDADE DELIBERADA PARA A SOLUÇÃO DO CASO CONCRETO. Deve o juiz demontrar por que desprezá-las PARA QUE A JUSTIÇA PREVALEÇA.
Além do que, a JUSTIÇA NÃO É CONCEITO UNÍVOCO, CONSENSUALMENTE ENTENDIDO. Posso entender que ser JUSTO É SER O MÁXIMO LEGALISTA POSSÍVEL; OUTROS, ao contrário, podem entender QUE A NORMA É PLANO DE AÇÃO, é apenas MAIS UM ARGUMENTO A SER UTILIZADO PARA A SOLUÇÃO DE PROBLEMAS.
Portanto, o conceito de JUSTIÇA É MAIS UM ETAPA QUE NÃO PODE SER ULTRAPASSA, desde que se PROVE, é claro, que A DECISÃO JUSTA NÃO PODE SER DESPREZADA POR NENHUMA SOLUÇÃO ALTERNATIVA.
2)Quanto À kELSEN, é, se não o único, o QUE TRATA O DIREITO COM MAIOR CIENTIFICIDADE.
A escolha da NORMA como objeto da CIÊNCIA DO DIREITO não é TRATADA COMO DOGMA PELO AUTOR. Ao contrário, QUEM SE DEU O TRABALHO DE LER O LIVRO TEORIA PURA DO DIREITO, vê logo nas primeiras páginas o AUTOR DEMONTRAR A FALSEABILIDADE DA IDÉIA DE QUE O DIREITO SE CONFUNDE COM A JUSTIÇA. O argumento é bem simples: o DIREITO NÃO SE CONFUNDE COM ORDENAMENTOS JURÍDICOS ESPECÍFICOS, com sentimentos de JUSTIÇA PROVENIENTES DOS HORRORES DA SEGUNDA GUERRA. Fosse assim, NÃO HAVERIA DIREITO ONDE SE PERMITISSE CONSIDERAR O ESCRAVO COMO MERCADORIA.
Ao contrário, O AUTOR DESPREZA OS DOGMAS DE QUE O MUNDO DEVE SER BELO, de que os ricos serão punidos no inferno, de que OS POBRES DEVEM SER AJUDADOS COM NORMAS PROGRAMÁTICAS, PARA CONSIDERAR QUE O DIREITO É PURO.
Ao contrário do afirmado pelo GEORGE, O DIREITO PROPOSTO POR KELSEN É PURO, não porque SE LIMITA ÀS NORMAS JURÍDICAS, E SIM PORQUE O SEU CONCEITO INDEPENDE DO CONTEÚDO QUE PRESCREVE, DAS IDÉIAS PREVALECENTES EM DETERMINADO GRUPO SOCIAL. O FATO DE O DIREITO LIMITAR-SE À NORMA É FRUTO DO DESPREZO CIENTÍFICO DO AUTOR AOS DOGMAS. Não se trata de NOVO DOGMA, e sim de HIPÓTESE CIENTÍFICA, já que infirmadas as hipóteses que a contrariam.
Minotauro,
SE VOCÊ ESCREVESSE EM LETRAS MINÚSCULAS FICARIA BEM MAIS FÁCIL DE LER E ENTENDER.
Não sei se você percebeu, mas a anologia que fiz foi entre verdade e justiça, sendo a verdade o objetivo a ser alcançado pelos cientistas e a justiça o objetivo a ser alcançado pelos juristas. Assim, não disse que Popper tiraria a justiça do debate. Apenas disse que, para Popper, a justiça jamais poderia ser alcançada. Ou melhor, poderia até ser alcançada, mas nós jamais saberíamos com certeza.
Quanto ao conceito plurívoco de justiça, isso tá no post.
Quanto à teoria pura, a crítica também já está no texto, não preciso repeti-la. Só gostaria que você me indicasse exatamente a parte em que Kelsen diz que a norma não é um dogma. Ficaria muito feliz se você me mostrasse, na obra de Kelsen, que o jurista pode se valer de outros argumentos que não a norma. Ou então que pode criticá-la ao ponto de deixar de observar uma norma válida.
Gostaria ainda que você me explicasse à decisão do Caso Brown à luz da teoria de Kelsen. Como um jurista kelseniano julgaria o Caso Brown?
George
Na primeira página da Teoria Pura do Direito, Kelsen já afirma que não ignora a influência de diversos fatores (sociais, econômicos, políticos, etc.) sobre o direito, mas seu estudo busca analisar o direito de forma isolada dessas influências…
Por isso, o livro chama-se teoria pura do direito, e não teoria do direito puro!
Kelsen busca formular uma TEORIA jurídica livre de aspectos externos (com o objetivo de conferir ao direito um caráter científico), e não um DIREITO abstraido da realidade.
Belissimo post George!!!! Faço minhas as palavras do Hugo, deixarei de comentar qualquer coisa, pois meus comentários não estariam a altura de suas reflexões!!! De qualquer forma, estou vendo que sairá uma bela tese de doutoramento aí em terras portuguesas, va comentando conosco suas reflexões que tenho certeza que será muito proveitoso para todos os leitores.
Abraços
George,
Fico feliz que a leitura de minha minuta de tese tenha despertado em você idéias tão interessantes.
Devo registrar, também aqui no seu blog, que as observações que você fez me estão sendo muito úteis para tentar transformar aquela minuta em versão final.
Quanto ao tema do post, há uma tentativa – não tão boa quanto a sua, adianto – de usar o método do falseamento de Popper no direito. É feita por Arthur Kaufmann. Ele diz, basicamente, que, do mesmo modo que não podemos dizer o que é a verdade (só podemos dizer o que já foi demonstrado não ser verdade), não podemos dizer o que é a justiça. Mas podemos dizer o que não é. Ou, por outros termos, se não dá para dizer com certeza o que está de acordo com a justiça, é menos difícil de dizer o que não está. Alvaro de Vita diz algo parecido, em relação às violações à dignidade da pessoa humana, e Steven Lukes (professor de sociologia da NYU, autor de livro sobre “relativismo moral”) também, em relação aos direitos humanos.
um abraço!
Marquinhos,
é exatamente essa opção epistemológica feita por Kelsen que Popper critica. Lógico que Kelsen sabia das influências ideológicas no fenômeno jurídico e fez de tudo para isso não “contaminar” a atividade do jurista. De duas uma: ou isso é uma ilusão; ou, caso o jurista consiga se transformar num marciano a analisar um problema jurídico qualquer, está errado, pois o direito é poder, e o papel do jurista deve ser o de fazer com que o direito e, portanto, a sociedade, se transforme em algo melhor do ponto de vista ético. É obrigação do jurista lutar por isso e não simplesmente ver os valores se deterionando, tal como fizeram os juristas do nazismo, e não fazer nada.
George
Pois é, Hugo, estou procurando o livro do Kaufmann, mas ainda não encontrei por aqui. Tenho apenas um pequeno livro, em espanhol, sobre “Direito e Moral”, que ainda não li.
Mas valeu pela dica.
George
Boa colocação, Marquinhos.
George,
O que houve COM O PRINCÍPIO DA IGUALDADE foi uma evolução social que desaguou em novo entendimento de seu conceito. Se antes, admitíamos desigualdades baseadas na origem/cor do indivíduo, hoje não toleramos. Simples assim!
O princípio da igualdade é NORMA COM SUPOSTO E CONSEQUENCIA COMPLETÁVEIS NO CASO CONCRETO. Pode ser traduzido em preceito do tipo: “Se ocorre diferenciação baseada em funtamento antijurídico X, há invalidade da norma”.
Kelsen, em tempos atuais, SEM SOMBRA DE DÚVIDAS, não admitiria a VALIDADE da desigualdade com fundamento EM ORIGEM/COR dos indivíduos. Além do que, afirmaria que novos avanços da sociedade poderiam fazer com que o PRINCÍPIO DA IGUALDADE ADMITISSE nova diferenciação baseada na ORIGEM/COR com fundamento nessa norma. Quem sabe A CRIAÇÃO DE QUOTAS FUTURAS em faculdades para os seres humanos normais em detrimento de pessoas geneticamente modificadas?
Não se desconsidere que KELSEN respeitaria o entendimento de grandes sábios de priscas eras. Aristóteles, por exemplo, considerava os escravos INSTRUMENTOS FALANTES, e admitia a desigualdade entre homens e esses instrumentos com BASE NO MESMO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, que hoje é usado PARA DIFERENCIAR OS HOMENS DOS ANIMAIS, que em outros tempos poderá….
Kelsen, inclusive, adorava esse efeito gerado pela maleabilidade dos princípios – e ausente nas normas-regras – : a auto-modificação do conteúdo de sua prescrição normativa por conta de avanços na sociedade. Achava, no entanto, que as normas-princípios tinham consequências desastrosas, que não superavam os benefícios gerados por essas.
O grande problema dos princípios, visto por KELSEN, era o da DISCRICIONARIEDADE DOS JUÍZES na concreção de seus preceitos. Com o aumento da vontade dos juízes na concreção da norma, NÃO ERA A SEGURANÇA JURÍDICA QUE IRIA PARA O BELELEÚ, como afirmado pelos juízes que o criticam; e sim o aumento da vontade na concreção das normas, a qual, por não ser falseável, não controlável, não é objeto da ciência jurídica.
A premonição de KELSEN foi comprovada. Embora teóricos constitucionalistas tenham criado teorias argumentativas para a justificação da escolha da consequencia pelo juiz, o FATO É QUE A TAL RAZOABILIDADE/PROPORCIONALIDADE confirma a teoria de KELSEN de que a norma abstrata, com suposto e consequencia vagos, AUTORIZAM O JUIZ a escolher entre as normas-concretas possíveis. Não é preciso lembrar que a proporcionalidade DESEMBOCA em duas soluções variáveis ao gosto do intérprete.
Frise-se que Kelsen simplesmente entende que A ARGUMENTAÇÃO UTILIZADA PELO JUIZ é necessária, já que a norma extraída do art. 93, XI, expressamente prevê essa obrigação para os juízes. Também não é contrário às tentativas de RACIONALIZAÇÃO DA DECISÃO. Limita-se a considerar que as técnicas de argumentação (proporcionalidade/razoabilidade) não PERTENCEM AO DIREITO. Devem ser escritas por filósofos, letristas, e não são obras jurídicas. Podem até ser escritas por juristas, mas, ao assim fazer, não são juristas, são filósofos, sociólogos, etc…
Kelsen provavelmente LERIA/UTILIZARIA O ALEXY, mas não o colocaria na estante de juristas. Nem afirmaria que a proporcionalidade/razoabilidade está escondida no art. 5 ou na norma que prega estarmos vivendo num Estado de Direito. Talvez preferisse ler um filósofo, sociólogo de verdade, com maior habilidade em suas ciências, para captar melhor o fenômeno que JULGASSE INTERESSAR AO DIREITO.
Os exemplos das desgraças geradas pela abstração dos princípios são vários!!! A dignidade da pessoa humana, por exemplo, é utilizada tanto para MATAR O FETO ANENCÉFATO com o fundamento na manutenção da temperatura e da mente sã da gestante como também para não matá-lo, já que, embora sem capacidade para ser bem sucedido num mundo capitalista, é capaz de inalar um bom ar puro à beira do mar.
Isso é sinal de que KELSEN não merece ser desprezado, ao menos por aqueles que entendem que os DIREITOS HUMANOS não são a última bolacha do pacote, nem que a DEMOCRACIA é o único caminho para a governabilidade. Ao contrário de ALEXY e outros tantos juristas da modinha, os quais não amarelarão nas prateleiras. Quem viver, verá!
Minotauro (ou seria João Paulo?),
“O que houve COM O PRINCÍPIO DA IGUALDADE foi uma evolução social que desaguou em novo entendimento de seu conceito”.
Para Kelsen, essa evolução social não poderia ser levada em conta pelo jurista. A norma positivada e válida admitia a segregação racial. Também a jurisprudência. Logo, essa era a moldura. Qualquer solução fora disso seria incoerente com o sistema jurídico.
Talvez você se saísse melhor se invocasse o fato de os EUA adotarem o modelo do common law.
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“Kelsen, em tempos atuais, SEM SOMBRAS DE DÚVIDAS, não admitiria a validade da desigualdade com base em cor/raça dos indivíduos”.
Você poderia também me fornecer os números da mega-sena?
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A propósito, concordo que a argumentação baseada exclusivamente em princípios (ou em outras katchangas) não é falseável e, portanto, não é científica. O post, aliado ao anterior, defende justamente a busca pela máxima objetividade possível da argumentação jurídica.
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Finalmente, não desprezo Kelsen. Pelo contrário. Aproveito o que ele tem de bom para oferecer (como a jurisdição constitucional, a supremacia e a normatividade da Constituição, a justificação racional das soluções jurídicas etc.) e critico o que não concordo (como a pureza da metodologia jurídica). Em outras palavras: critico apenas algumas páginas de sua imensidade de textos.
E prefiro não argumentar com base em autores, mas sim em idéias.
George
George,
Quanto ao fato de Kelsen entender que a discriminação de negros OFENDE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE, parto do princípio de que ele teria, se fosse vivo, os valores morais consensualmente aceitos em nossa era.
Reitero que no princípio da igualdade cabe tanto a interpretação que ADMITE A DISCRIMINAÇÃO DOS NEGROS, quanto a que não admite.
É que o princípio da igualdade pode ser traduzido no seguinte preceito:
“Se ocorre diferenciação baseada em funtamento antijurídico X, há invalidade da norma”.
Ocorre que muitas vezes não há norma que proíbe expressamente desigualdades com fundamentos específicos. Não há norma que proíbe expressamente a discriminação de espaçoes físicos entre brancos e negros. É aí que entra a LIBERDADE DO JUIZ, do qual se espera que utilize outros princípios, ou até mesmo valores consensualmente aceitos para completar a norma. No caso concreto, aceitar ou não fundamento de diferença de cor para fundamentar a restrição de espaçoes físicos.
Desse modo, não é necessário PARA KELSEN, para desprezar a norma discriminatória dos negros, que haja norma-regra específica que expressamente proíba esse tipo de situação.
Não me espantaria que Kelsen nem sequer RESPONDESSE ESSA QUESTÃO. Já que depende do valor a ser utilizado pelo intérprete para resolvê-la. Consideraria que somente a RESPOSTA DADA PELO INTÉRPRETE AUTORIZADO interessa. Afinal, de que adiantaria especular sobre duas soluções PERMITIDAS AO JUIZ? Se escolhe uma ou outra, jamais poderiam considerá-la errada, pelo menos não juridicamente.
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‘A propósito, concordo que a argumentação baseada exclusivamente em princípios (ou em outras katchangas) não é falseável e, portanto, não é científica. O post, aliado ao anterior, defende justamente a busca pela máxima objetividade possível da argumentação jurídica”.
Concordo com você. Também estou em campanha contra katchanga.
Kelsen também concordaria com você, já que sempre prezou pela objetividade da ciência. No entanto, consideraria que a teoria da Katchanga é uma teoria não jurídica, já que tem por objeto ESCOLHAS SUBJETIVAS, em que a norma não oferece solução única.
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Se a norma permite a solução X e Y, a escolha de qualquer uma delas é, correta ou não, jurídica.
Ao buscar critérios para escolha de uma em detrimento de outra, o intérprete tem o OBJETIVO DE MOSTRAR AO SEU INTERLOCUTOR que uma solução é melhor que outra. O ojbetivo é de buscar a legitimidade da decisão.
Ao direito, pouco importa que a decisão seja aceita por 1 ou por 100% da população. Fosse assim, o melhor seria submeter as decisões do SUPREMO à referendo; tornando, assim, JURÍDICAS as opiniões da massa.
Ótimo post, George. ;)
Há tempos esperava ver as idéias de Popper discutidas detidamente por um jurista (e não apenas en passant como se vê por aí).
Aproveito para sugerir a leitura das obras de Hans Albert, filósofo alemão que trata do racionalismo crítico de Popper no campo das ciências sociais. Acho que o livro mais conhecido dele é o Tratado da Razão Crítica (Traktat über kritische Vernunft), sei que possui uma versão brasileira antiga pela editora Tempo Universitário. Os livros dele são difíceis de achar, infelizmente.
Valeu pela dica, Ricardo.
Já tinha visto o livro no scribd, mas ainda não li. Coloquei já na minha lista.
George
George,
Outro belo post.
Giordano Bruno merece ser citado juntamente com Copérnico e Gallileu, por ter abraçado a causa do Heliocentrismo e da infinitude do Universo, e ter sido calcinado pela igreja por isso.
Suponho que a morte na fogueira deva ser mais dolorosa do que uma crucificação. Em fim, mas isso é mera conjetura e como tal, comporta refutação. Mentira… na verdade, fazendo uma experiência infanto-juvenil, qual seja, submeter o dedo (ou a mão) ao calor das chamas, verifica-se que doi muito mais do que perfurá-lo.
A isso, K. Popper certamente chamaria de “nominalismo metodológico”.
Outro encadeamento lógico, ao se negar a rever seus pensamentos (como o fez Galileu para fugir de rigoroza e excruciante carbonização), Bruno deu sua vida para auxiliar-nos na árdua tarefa de libertação da submissão da igreja Mingau… digo…Papal.
Em sentido parecido, embora com outro espírito, o ex Frade e médico François Rabelais também auxiliou na insubmissão ao editar (ainda que inicialmente sob o pálio de um pseudônimo Anagramático) o belo texto “Gargantua e Pantagruel” (narrando nos 5 livros, de maneira cômica, os feitos de Gargantua, pai de Pantagruel, neto de GrandGousier, Gargamela).
Obra considerada “sensual e desrespeitosa”, foi declarada herética e incluída no Index librorum prohibitorum.
Com efeito, temos não só um, mas muitos salvadores, incluíndo ai Giordano Bruno, Rabelais, Erasmo Desidério, Isaac Newton entre vários outros. Alguns nos campos sociais e outros nos campos científicos naturais.
O próprio Karl Popper afirma (in A sociedade aberta e seus inimigos) que as ciêcias natuais estão a frente das ciências sociais muito por conta da metodologia utilizada, ou seja, o nominalismo metodológico (Como?) – usado comumente nas ciências naturais, e na opinião de Popper, o motivo pelo qual as ciências sociais estão em atraso ao usar preponderantemente o chamado essencialismo metodológico (Que?) – usado nas ciências ditas sociais. Aquele se preocupa em verificar
como as “coisas” funcionam, e este se preocupa em definir, explicar e descrever a essência das “coisas”.
No seu texto, a questão da escolha ou determinação acerca de qual seja o método jurídico melhor, ao indicar como premissa a ética, a democracia e os Direitos Fundamentais, precisa-se fazer uma análise essencialista, para definí-los, dada a impossível (adjetivo que uso como mera conjetura) experimentação acerca de “como” funcionam
(ética, a democracia e os Direitos Fundamentais) sem uma prévia essencialização, mutável de regime para regime.
Em analogia, Popper proporia o nominalismo e Kelsen o essencialismo. Pelo que aqui já li sobre sua observação da “Katchanga”, o Julgador sentenciaria:
“(In) defiro pedido, julgando (im)procedente o pleito por ser a solução que é mais razoável e proporcional, se adequando a ordem pública insculpida em tais e quais mandamentos constitucionais, cumprindo, destarte, a função social a que se destinam”.
Popper, na esteira de Sócratis, “essencializaria” indagando:
Que:
é razoável?
é proporcional?
é ordem pública?
é mandamento?
é função social?
Dadas e obtidas as respostas, passa-se a novas indagações socráticas sobre as respostas e conceituações e definições dadas. E nesse sentido, outro livro mencionado aqui no blog (I.F. Stone sobre o Julgtamento de sócrates, questiona as essessivas buscas essenciais).
Neste sentido, o “feeling” terminaria quando, sua indagação dialética? Essa é uma resposta que também seguiria indefinida infinitamente.
Ainda que se considere que razoabilidade, proporcionalidade, ordem pública, mandamento e função social estão dogmaticamente ligados a uma linguagem técnico-jurídica, a essencialização posterior prossegue, até se se chegue a uma resposta em que o interlocutor se exarpere e diga “é assim por que eu acho que é…..o melhor”
A obra “A sociedade aberta e seus inimigos”, busca desacreditar escritos de Heráclito, Platão, Hegel e Marx, com base na denúncia da insuficiência do “fluxo contínuo” da história (historicismo), que seria inapta e um pseudo-método que falharia ao tentar explicar todos os problemas [da humanidade] com base num dado elemento e sucessão de eventos históricos.
Historicismo Teológico, Historicismo Econômico e Historicismo Coletivo beberiam na mesma fonte condutaora do totalitarismo.
Concordo em alguns pontos e discordo de muitos. Contudo, Popper critica o Historicismo usando….. uma espécie de historicismo. Claro que a guerra o influenciou, como ele mesmo o afirma.
E é ai que o diálogo por ele mencionado inúmeras vezes entre Teeteto e Sócrates fica mais sugestivo.
E também a “falsificação que falsifica outra falsificação”, que lembra, ainda que de passagem, o paradoxo do mentiroso.
Ou seja, se minto, falo a verdade, se falo a verdade, minto. Mero jogo de palavras, que insiste em permanecer. O jogo de palavras fica por conta de Wittgenstein, que não comento porque ainda não compreendi de maneira satisfatória. Talvez o fato de ele ter renunciado a uma das maiores fortunas da Europa, e também de três dos seus quatro irmãos terem se suicidado sejam um prelúdio de que ele é complicado por experiência própria familiar.
Toda escolha é arbitrária, e a definição de qual hipótese deve prevalecer, com base em dado critério ainda parece um pouco
ortodoxa demais. Se algo encontra-se proximo da impossibilidade de ser verificado, como por exemplo, “o Meme” de Dawkins ou
ainda a temperatura e a composição da superfície do Sol? Tudo o que se sabe hoje se deve a analíses teóricas e observações indiretas por meio da heliosismologia.
Pois bem, nesse sentido, afirmar que o sol tem 1,9891 × 1030 kg de massa e temperatura da superfície de 5.775 K (Kelvin) pode ser refutado com base em outra teoria ou dizer que “os memes” não se “autoreproduzem” sem ser considerado irracional?
E no caso da transposição das conjeturas e refutações para o direito, uma decisão tomada com base no “feeling” tornaria todas as tentativas recursais irracionais?
Nesse sentido, o tratado lógico filosófico de Wittgenstein, enormemente criticado, em especial por Olavo de Carvalho, poderia atribuir valores específicos ao uso da linguagem, numa pretensa lógica perfeita, apta a permitir uma comunicação e uma exteriorização do pensamento inequivocamente comprendidos. Mesmo Wittgenstein percebeu a incoerência de tais assertivas e abandonou tais idéias, e, ainda assim acabou preso na garrafa da qual tentava libertar as moscas aprisionadas.
Afinal, estariamos sendo levados a um tal estado de aporia na ilusão de estarmos superando-la.
Quanto aos exemplos mencionados, como o da incapacidade e ou inferioridade das mulheres, o Direito não fez nada que não fosse consenso da época, influênciado pelos escritos dos médicos Helênicos Hipócrates, Galeno e do Francês Rabelais, dentre inúmeros outros, que difundiam a inferioridade fisiológica e emocional da mulheres, com base em seus escritos sobre medicina. Uma espécie de argumento de autoridade, na esteira daquela outra: “…isso é indiscutível, pois Aristóteles já elucidou a questão”.
Afinal, existiria algo digno de afasia?
In casu, o direito apenas deu abrigo a uma prática consuetudinária amparada inclusive pela medicina, sendo que a refutação se deu neste específico campo do saber, e o direito apenas (novamente apenas) acompanhou, sendo que para mudar de “ponto de vista” o Direito teve mais dificuldade, sendo necessária a criação de medidas afirmativas, calcadas num certo princípio da igualdade, usado quando convém, ao que parece.
Na mesma toada, a decisão da Corte de Warren no caso Brown vs Board of Education (e também em Brown II) não foram casos
de refutabilidade de uma tese em si, pura e simplesmente. A peculiaridade está em que eles não conjeturaram e submeteram
a prova de refutabilidade a decisão tomada. Eles mudaram a decisão então prevalecente desde Plessy.
Aqui é outra conjetura que faço, poderiam testar outra hipótese, como por exemplo, ainda que ad absurdum, trocar as crianças de escolas, e mandar as crianças de cor para as escolas “Brancas” e as crianças brancas para as escolas “de cor”, ou outra conjetura qualquer. Mas ao que parece, não houve refutação.
Enfim, talvez o “feeling” de Waren não fosse o mesmo se ele tivesse “experiência jurídica” anterior, eis que ele era formado em Direito, mas até então nunca exercera a profissão em nenhum cargo, era Político profissional (ex governador).
A sociedade agradece, eu presumo, a pureza judicante e o traquejo político, eis que a decisão foi deste jaez, dada a pressão social e o contexto histórico da época.
Caro prof. Marmelstein,
Muito bom seu post. Apesar de não crer que a idéia de falsificacionismo de Popper seja idêntica à sua teoria do feeling, por achar que o seu “feeling”, apesar de carregar toda uma série de juízos prévios em sua formação, é muito menos rigoroso do ponto de vista científico (uma espécie de intuição mais elaborada do que a convencional) do que a hipótese de fasificação popperiana (que parte de teorias científicas constuídas), não posso deixar de parabenizá-lo pela importante contribuição teórica à legitimação do ativismo judicial, que não é apenas do juiz, mas sobretudo da sociedade que postula.
Quanto à discussão sobre a postura de Kelsen nos dias atuais, relativamente ao racismo, também não creio que ele negligenciaria o tema, já que no conjunto de suas ponderações intelectuais não se esquivou de compreender a importância dos condicionantes históricos e dos fatos sociais na formação dos valores inerentes à sociedade, apenas cria que não deveria ser objeto de apreciação pela Teoria Pura já que era assunto próprio da Sociologia do Direito, da Ciência Política, etc., o que, obviamente, não obstaria, muito pelo contrário, a possibilidade de que normas jurídicas incompatíveis com a nova ordem fossem revogadas ou alteradas, ainda mais quando em contradita com a Constituição Política do Estado, a principal norma fundamentadora do ordenamento.
A propósito da dica do amigo Hugo Segundo, estou aguardando a remessa do livro Filosofia do Direito, de Artur Kauffman, cuja compra coincidentemente realizei por internet mês passado. Chegando em minhas mãos, ficaria muito honrado em emprestar-lhe.
E quanto a livros em espanhol, de lingua hispânica ou traduzidos, novos, antigos e/ou esgotados, posso facilitar-lhe, se for de seu interesse, telefones de amigos livreiros de Salamanca, que têm me ajudado bastante nas pesquisas do doutorado. Rapidamente eles enviam todos os livros. Para que tenhas uma idéia, consegui o Teoría de la Constitución, de Karl Loewenstein, em dez dias, um livro que passei dois anos procurando, durante o mestrado. A obra foi lançada na Espanha, foi vendida pra Argentina, depois foi parar na Colômbia, até que a comprei novamente na Espanha, e agora está em minha biblioteca em Fortaleza.
Um abraço e mais uma vez parabéns.
Em tempo: Parabéns também pelo seu fantástico Curso de Direitos Fundamentais (Ed. Atlas). Indicarei à biblioteca da Unifor e aos meus alunos nas duas cadeiras que ministro, Hermenêutica Jurídica e Direito Internacional. Inclusive já está na seção de indicação literária do mês de meu escritório http://www.gomeseuchoa.adv.br/dica_literaria.asp
Dica literária de novembro de 2008 e de janeiro de 2009. Está mesmo em alta!
Pois é, Marcelo. Também tenho plena consciência das falhas metodológicas contidas na minha teoria do feeling.
Por mais paradoxal que possa parecer, o método do feeling surgiu, de certo modo, utilizando as regras básicas do próprio método do feeling. Estou agora na fase de justificação. E, logicamente, nessa fase, aberto a mudanças no meu próprio feeling inicial.
Tenho certeza de que, ao final do doutorado, o método do feeling estará bem melhor do que o que é hoje. Posso dizer que já melhorou muito a partir de uma leitura mais aprofundada das idéias de Popper e de seus críticos…
Quanto ao Curso de Direitos Fundamentais, fico feliz que tenha gostado e, ainda mais feliz, por sabe que você vai indicar para os seus alunos.
O desejo de todo escritor é ser lido – e um “trocado pra dar garantia”, especialmente com o Euro do jeito que tá… :-)
George
Prof. George, gostaria que comentasse a última da Suprema Corte:
Suprema Corte aceita prova obtida por erro
Decisão abre precedente que legitima evidências colhidas de forma imprória
A Suprema Corte dos EUA decidiu ontem que evidências obtidas por meio de buscas ilegais conduzidas pela polícia nem sempre devem ser rejeitadas pelos tribunais. Por 5 votos a 4, os membros conservadores da corte mantiveram a condenação por posse de armas e drogas de um homem do Alabama que foi preso depois que um computador, por engano, indicou que havia uma ordem de prisão contra ele.
A decisão da corte derrubou a regra de quase 100 anos, segundo a qual os juízes tinham de rejeitar evidências que haviam sido obtidas de forma imprópria.
O juiz da Suprema Corte John Roberts escreveu, representando a opinião da maioria na corte, que evidências podem ser usadas nos tribunais quando a polícia conduzir por engano uma busca ilegal motivada por negligência isolada, em vez de erro sistemático ou por precipitado desrespeito às exigências constitucionais.
Roberts e os juízes Antonin Scalia, Anthony Kennedy, Clarence Thomas e Samuel Alito votaram a favor. A juíza Ruth Baser Ginsburg, que votou contra, disse que a decisão dará aos policiais grande oportunidade para justificar as prisões e pouco incentivo para corrigir problemas como erros nas bases de dados de computadores.
Os policiais do Condado de Coffee, no Alabama, prenderam Bennie Dean Herring em 2004 depois que um condado vizinho lhes disse que ele era procurado e havia uma ordem de prisão. Quando procuravam por Herring, os policiais encontraram no caminhão dele metanfetaminas e um arma descarregada. Descobriu-se depois que a ordem de prisão havia sido retirada cinco meses antes, mas ainda estava na base de dados dos computadores do condado vizinho. Os policiais perceberam o erro, mas a busca já tinha sido conduzida.
Herring foi condenado por posse ilegal de arma e drogas e sentenciado a 27 anos de prisão. Os advogados de Herring argumentaram que as evidências deveriam ser suprimidas, pois os policiais o prenderam com base em informações incorretas de um computador.
Fonte: NYT E REUTERS – 15/01/2009.
http://www.promotordejustica.blogspot.com/
Outro belo post.
Parabéns Professor.
Caro Prof. George,
Popper é um autor muito bem resgatado para a Teoria do Processo e para a Teoria Processual da Decisão Jurídica por um autor mineiro, Prof. Dr. Rosemiro Pereira Leal, docente do doutorado, mestrado e graduação da UFMG e da PUC/MG, nas obras: Teoria Geral do Processo (Ed. Forense, 8ª edição, 2009) e Teoria Processual da Decisão Jurídica (Ed. Landy, 2002), e também em muitos de seus textos publicados em outros livros (Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada – temática processual e reflexões jurídicas, Ed. Del Rey, 2005) e obras coordenadas por outros autores, bem como nas publicações da Revista Eletrônica Virtuajus de Direito da PUC/MG.
Acredito que sua leitura será muito proveitosa para seus estudos.
Atenciosamente.
S. Tiveron
“George,
Quanto ao tema do post, há uma tentativa – não tão boa quanto a sua, adianto – de usar o método do falseamento de Popper no direito. É feita por Arthur Kaufmann. Ele diz, basicamente, que, do mesmo modo que não podemos dizer o que é a verdade (só podemos dizer o que já foi demonstrado não ser verdade), não podemos dizer o que é a justiça. Mas podemos dizer o que não é. Ou, por outros termos, se não dá para dizer com certeza o que está de acordo com a justiça, é menos difícil de dizer o que não está.”
Há um equívoco de Kaufmann aqui. Podemos dizer que o que já foi demonstrado de fato não é verdade em decorrência da condição empírica de refutabilidade do que foi enunciado enquanto teoria. Não podemos dizer o que não é justo utilizando o mesmo método por que qualquer afirmação básica (o termo é de Popper) envolvendo o Justo não tem suporte empírico, portanto não é passível de ser submetido a teste, refutado, descartado, permitindo, “a contrario sensu” descobri-lo.
Honório,
talvez a analogia feita por Kaufman faça algum sentido se for invocada a teoria dos três mundos desenvolvidas por Popper. Para Popper, todas as teorias fazem parte do Mundo 3, que é o mundo do conhecimento objetivo. Logo, as teorias da justiça fazem parte desse mundo. Todas as informações até então disponíveis no Mundo 3 podem ser objeto de crítica (que seria um falsificacionismo em sentido amplo). Logo, as teorias da justiça também poderiam ser falsificadas nesse sentido, isto é, criticadas por não resolverem adequadamente os problemas que se propõem a resolver.
Na autobiografia de Popper, há um capítulo chamado “O lugar dos valores num mundo de fatos” em que ele defende basicamente a mesma idéia. Só não fala de justiça, mas dos valores de um modo geral.
Desse modo, pode-se dizer que a seqüência básica do desenvolvimento do conhecimento humano descrito por Popper: “problema – teoria – refutação – problema” também se aplica às teorias da justiça. A lógica é a mesma, ainda que a avaliação de teorias da justiça (prescritivas) seja muito mais complicada do que a avaliação de teorias que digam respeito a fatos (descritivas).
George
Com todo o respetio, Popper deve estar se revirando.
Não reinvente a roda, por favor. Leia o texto “A Lógica das Ciências Sociais” de Karl Popper.
Desconhecido, mas já escrito.
Valeu a tentativa, mas as premissas do Direito em nada se assemelham as premissas da Física ou Biologia, assim Popper nada pode dizer sobre o direito.
CaríssimosMuito ogbriado pela honraria. E vamos continuar viva a chama da pesquisa científica. Forte abraço a todos.